Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
637/08.0GBVVD.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: AMEAÇA
ELEMENTOS TÍPICOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A conduta da arguida que, com foros de seriedade, se dirige à ofendida e lhe diz “se voltas a envenenar-me o cão dou-te dois estalos” não integra a previsão do crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, n.º1 do Código Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO


No processo nº 637/08.0GBVVD.G1 do Tribunal Judicial de Vila Verde, o Ministério Público veio interpor recurso do despacho da Mma. Juiz, constante fls. 70 a 72, que rejeitou a acusação, por manifestamente infundada, por ter entendido que os factos na mesma relatados não se subsumiam ao crime de ameaça, cuja autoria aí era imputada à arguida Rosa M....


No recurso interposto, a recorrente formulou as seguintes conclusões (transcritas):


“I - O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida Lúcia Susana Pimenta da Mota, imputando-lhe a prática de um crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153°, nº l, do Código Penal, porquanto, nas circunstâncias de tempo e lugar aí melhor descritas, se dirigiu à ofendida Rosa M... e lhe disse, com foros de seriedade, "se voltas a envenenar-me o cão dou-te dois estalos";


II - Na Douta decisão recorrida, a Mmª. Juíza a quo após conhecer das questões a que se refere o artigo 311°, n'T, do Código de Processo Penal, decidiu, nos termos do artigo 31º, n° 2, aI. a) e 3, aI. d), do Código de Processo Penal, rejeitar a acusação pública deduzida por manifestamente infundada, por ter entendido que os factos na mesma relatados não constituem crime;


III - Considerou, pois, que os factos descritos na acusação não põem em causa o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja a liberdade de decisão e de acção, porque tal liberdade implica a prática de um crime, o de dano, cuja concretização depende da vontade da vítima;


IV - E mais considerou que, as palavras alegadamente proferidas pela arguida não têm a virtualidade de, nem são adequadas a, causar medo ou inquietação, poderão vir a ter, no futuro, caso a ofendida tente envenenar o dito cão;


V - Assim, estriba-se a Mmª. Juíza no argumento fundamental de que o mal futuro anunciado pela arguida se encontra na dependência da própria vítima, concluindo, portanto, que a conduta descrita, objecto da acusação, não é susceptível de consubstanciar, sequer em abstracto, o crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153°, n"l , do Código Penal, por não ser violadora dos bens jurídicos protegidos pela incriminação - a liberdade de decisão e de acção;


VI - Todavia, entende a recorrente não resultar da acusação qualquer facto que objectivamente permita concluir como concluiu a Mm". Juíza a quo;


VII - Com efeito, não se vê que na acusação se tenha dito que a ofendida tenha envenenado algum cão. O que se diz na acusação é que" a arguida (...) dirigiu-se-Ihe e disse-lhe com foros de seriedade "se voltas a envenenar-me o cão dou-te dois estalos";


VIII - Na verdade, não resulta do texto da acusação, nem podia resultar, antes da audiência de discussão e julgamento, a autoria do envenenamento do animal. E assim não resultando, não podia a Mm3 Juíza concluir desde logo que a conduta da arguida que anunciou à ofendida que lhe daria dois estalos caso voltasse a envenenar-lhe o cão, não é subsumível ao crime de ameaça.


IX -Tal conclusão só seria susceptível de ser alcançada após produção de prova em audiência de discussão e julgamento, pelo que se impunha o recebimento da acusação;


X - Assim, a conduta descrita na acusação pública imputada à arguida, é subsumível ao crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153°, n'T, do Código Penal.


XI - Logo, a acusação é fundada e viável, devendo ter sida recebida e designada data para audiência de julgamento.


XII - Decidindo como decidiu, violou a Mm3 Juíza os artigos l°, alínea a) e 153°, nº I, do Código Penal, 311°, n02, alínea a) e nº 3, alínea d) e 312°, n'T, do Código de Processo Penal.


Pelo exposto, deve ser revogada a decisão proferida e substituída por outra que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público contra a arguida e que agende data para julgamento da mesma pela autoria material do crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153°, n" 1, do Código Penal.


Porém, Vossas Excelências decidirão como for de


JUSTIÇA”.


A Recorrida não ofereceu resposta ao presente recurso.


Nesta Relação, aquando da vista a que se reporta o art. 416.º do C.P.Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fls. 135 a 139).


Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.


Foram colhidos os vistos legais.


Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.


O teor do despacho recorrido é o seguinte:


“O Tribunal é competente.


*


O Ministério Público deduziu acusação contra Lúcia M..., imputando-lhe os seguintes factos:


«Cerca das 17h00 do dia 08 de Outubro de 2008, a arguida dirigiu-se a casa da ofendida Rosa M... sita no Lugar de T..., da freguesia de Pico de Regalados, em Vila Verde e, avistando-a, através da janela do automóvel que conduzia, sentada nas escadas exteriores daquela residência, dirigiu-se-lhe e disse-lhe com foros de seriedade «se voltas a envenenar-me o cão dou-te dois estalos na cara».


Ao proferir estas palavras, a arguida quis com elas significar que atentaria contra a integridade física da ofendida e foi também esse o sentido que lhes atribuiu a mesma, que, desde então, ficou receosa de que venha a consumar o mal anunciado, temendo pela sua integridade física.


Ao actuar pela forma acima descrita, a arguida agiu livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de causar medo e intranquilidade à ofendida, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.»


Dispõe o art. 153° n.º 1, do Cod. Penal, que “quem ameaçar outra pessoa com a pratica de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”


Esta infracção tem sofrido algumas adaptações ao longo dos tempos, sendo tipificada como um crime de perigo abstracto no Cod. Penal de 1886, passando a crime de resultado no Cod. Penal de 1982 e consagrando o Cod. vigente uma versão intermédia (a ameaça há-de ser adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação).


Estamos perante um crime contra a liberdade, resultando dos respectivos elementos típicos que a ameaça tem que ser praticada contra uma pessoa física, já que só esta poderá ver a sua liberdade de acção ou decisão coarctadas.


Tem-se ainda entendido que este ilícito pressupõe sempre a ameaça de um mal futuro por parte do agente para com a vítima, daí resultando a distinção entre o crime de ameaça e o crime tentado.


Com efeito, conforme sustenta Américo Taipa de Carvalho, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Torno I, pág. 343, “0 mal ameaçado tem que ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. (...) Assim, p. ex., haverá ameaça quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: “vou-te matar já”.


Começa desde logo por notar-se que os factos em causa não põem em causa o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja a liberdade de decisão e de acção, porque tal liberdade implica a prática de um crime, o de dano.


Por outro lado, a concretização do mal depende da vontade da própria vítima, ou seja, se ela não tentar envenenar o cão não estará sujeita a qualquer agressão, o que também afasta o preenchimento do tipo de crime imputado. Com efeito, as palavras alegadamente proferidas não têm a virtualidade de, nem são adequadas a, causar medo ou inquietação, poderão vir a ter, no futuro, caso a ofendida tente envenenar o dito cão.


A faculdade concedida ao Juiz no artigo 311.°, n.2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, é uma consagração do principio da economia processual, com vista a evitar a realização de julgamento quando manifestamente os factos descritos na acusação não integrem a prática de facto tipificado por lei como crime, devendo tal resultar da simples análise da factualidade descrita e exposta na acusação, sem necessidade de recorrer a outros elementos já constantes no processo anteriores ou posteriores à sua dedução, pois se a inexistência de crime não resultar inequivocamente da simples análise do teor da acusação só na sentença, após a realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz pode decidir da existência ou não de um crime.


Deste modo e ao abrigo do preceituado no art. 311°, n.°s 2 a) e 3 d), do Cod. Proc. Penal, rejeita-se a acusação deduzida por ser manifestamente infundada.


Notifique.


Rosa M... veio deduzir acusação particular contra Lúcia M..., imputando-lhe a prática de factos que descreve a folhas 54 e 55 dos autos.


O Ministério Público acompanhou a acusação deduzida.


Cumpre apreciar.


Em primeiro lugar, impõe-se chamar à colação o disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 311, do Código de Processo Penal (são deste Diploma os demais preceitos a citar sem menção expressa de proveniência), segundo o qual, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução” - como sucedeu in casu – “o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.


Ora, de entre os princípios que regem o nosso direito processual penal destaca-se, pela sua importância, o princípio da oficialidade, de acordo com o qual “a iniciativa e a prossecução processuais são públicos, pertencem ao Ministério Público”.


Com efeito, o art.º 262, n.º 2 determina que “...a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito” e o art.º 48, dispõe que “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal...”.


Porém, o princípio da promoção oficiosa não se afirma sem limitações.


De facto, se é certo que o citado art.º 48 determina que o Ministério Público tem legitimidade para promover a acção penal, há que ter em conta as restrições consagradas nos art.ºs 49 a 52.


É que, relativamente a alguns crimes, a actuação do Ministério Público está condicionada.


Assim, há limitações - de ordem legal - a essa actuação, inerentes à própria existência dos crimes semi-públicos e dos crimes particulares.


Dizem-se crimes públicos “aqueles em que o MP promove oficiosamente e por sua própria iniciativa o processo penal e decide com plena autonomia (...) da submissão ou não submissão de uma infracção a julgamento”.


Já os crimes semi-públicos são aqueles em que o procedimento criminal depende de queixa do titular do direito, e só quando esta é apresentada pode o Ministério Público promover a abertura do processo (art.º 49). No entanto, uma vez exercido o direito de queixa, a titularidade da acção penal passa a pertencer ao Ministério Público, a quem competirá, findo o inquérito e recolhidos indícios suficientes da prática do crime, deduzir acusação pública.


Por último, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, estaremos diante de um crime particular, já que é necessário que o titular do respectivo “direito se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular” - art.º 50 – cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Volume I, páginas 43 e 44 e Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1º volume, 1981, páginas 120 e 121.


Nas elucidativas palavras de Figueiredo Dias, nos crimes semi-públicos, em que a queixa “não substitui a acusação pública, mas tem necessariamente de a preceder”, estaremos perante limitações ao princípio da oficialidade, e perante “autênticas excepções” a esse princípio nos crimes particulares, cfr. op. cit., página 123.


De tudo quanto se expôs, resulta, pois, o seguinte:


- findo o inquérito, indiciando-se a prática de um crime público ou semi-público, deve o Ministério Público deduzir acusação pela prática desse ou desses crimes - art.º 283, n.º 1 - sendo o assistente notificado desse despacho acusatório para, querendo, deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial - art.º 284;


- já nos crimes particulares, findo o inquérito, o Ministério Público notificará o assistente para que este deduza, querendo, acusação particular - art.º 285, n.º 1 - podendo o próprio Ministério Público acusar pelos mesmos factos da acusação particular, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles – n.º 3 do referido artigo.


Contudo, a acusação deduzida não indica quaisquer disposições legais aplicáveis, razão pela qual a mesma não poderá ser recebida, por se considerar manifestamente infundada, nos termos do preceituado no art. 311º n.º 2 al. a) e nº 3 al. c) do Cód. de Processo Penal.


Cumpre ainda fazer uma breve referência ao facto de o Ministério Público ter acompanhado a acusação no que tange à imputação de um crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º n.º 1 do Código Penal.


Estando em causa um crime particular e tendo o assistente deduzido acusação particular, ao Ministério Público não restam mais do que 4 alternativas:


- abstem-se de acusar;


- subscreve, acompanhando-a, integralmente a acusação particular;


- acompanha a acusação particular apenas por parte dos factos ali referidos ou


- acusa, mas por outros factos, que não importem uma alteração substancial daqueles - neste sentido pronunciou-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Fevereiro de 1999, in CJ, XXIV, 1º, página 154.


Na situação ajuízada, como se disse, estamos diante de um crime particular – crime de injúrias.


Daí que só a Assistente tivesse legitimidade para deduzir acusação particular contra a Arguida, como efectivamente veio a suceder, assim, não pode o Ministério Público suprir a nulidade de que a acusação padece.


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, e por se considerar manifestamente infundada por falta de indicação das disposições legais aplicáveis, ao abrigo do disposto no citado art.º 311, n.º 2, alínea a) e n.º 3 al. c) do Cód. de Processo Penal, decide-se rejeitar a acusação particular apresentada contra a arguida Lúcia Mota a folhas 54.


Custas a cargo da Assistente Rosa M..., fixando-se a taxa de justiça em uma U. C. – artigos 515.º n.º 1 f) e 518.º do Código de Processo Penal e 74.º, 82.º n.º 1 e 85.º n.º 3 e) do Código das Custas Judiciais.”


III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.


Como é consabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada)., sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P. Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95..


Ora, como supra se mencionou, o presente recurso, interposto pelo Ministério Público, encontra o seu fundamento no facto de Exmª Srª Juiz ter rejeitado a acusação deduzida, por a ter considerado manifestamente infundada, em razão de ter perfilhado o entendimento de que os factos na mesma alegados não integrarem todos os requisitos constitutivos do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153, nº 1, do C.P., cuja autoria aí era imputada à arguida.


Assim, na situação vertente, o objecto do presente recurso em mais não consiste do que na questão de esclarecer se os factos alegados na acusação são ou não passíveis e suficientes para integrar tal crime de ameaça.


Analisada a acusação deduzida constata-se que dela constam os seguintes factos:


- “Cerca das 17h00 do dia 08 de Outubro de 2008, a arguida dirigiu-se a casa da ofendida Rosa M... sita no Lugar de T..., da freguesia de Pico de Regalados, em Vila Verde e, avistando-a, através da janela do automóvel que conduzia, sentada nas escadas exteriores daquela residência, dirigiu-se-lhe e disse-lhe com foros de seriedade «se voltas a envenenar-me o cão dou-te dois estalos na cara».


- Ao proferir estas palavras, a arguida quis com elas significar que atentaria contra a integridade física da ofendida e foi também esse o sentido que lhes atribuiu a mesma, que, desde então, ficou receosa de que venha a consumar o mal anunciado, temendo pela sua integridade física.


- Ao actuar pela forma acima descrita, a arguida agiu livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de causar medo e intranquilidade à ofendida, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.”


Ora, de harmonia com o disposto no art.° 153°, n.º 1, do Código Penal, “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.


O bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito previsto no art.153° do CP é a liberdade pessoal de decisão e de acção.


As ameaças ao provocarem um sentimento de intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado afectam a liberdade e a paz individual.


Como refere Américo Taipa de Carvalho Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, pág.342). “há uma conexão íntima entre a paz individual e a liberdade de decisão e de acção. Por isto, as expressões “provocar-lhe medo ou inquietação” e “prejudicar a sua liberdade de determinação” não se referem a bens jurídicos autónomos entre si (paz individual e liberdade de determinação), mas ao bem jurídico liberdade pessoal, que vê na paz individual uma condição da sua realização”.


São, assim, elementos constitutivos do tipo legal em apreço:


- O anúncio de que o agente pretende infligir a alguém um mal que constitua crime;


- Que esse anúncio provoque na pessoa a quem se dirige receio, medo ou inquietação ou lhe prejudique a sua liberdade de determinação;


- E finalmente que o agente tenha actuado com dolo, exige-se a representação e a vontade de realização dos elementos que integram a tipicidade objectiva.


No que se refere aos elementos objectivos podemos dizer que a ameaça traduz-se numa promessa de um mal futuro cuja ocorrência dependa da vontade do agente.


O mal ameaçado, que tanto pode ser de natureza pessoal, como patrimonial, tem de ser futuro, não podendo a ameaça ser com um mal iminente, porque neste caso haveria tentativa de execução.


O último elemento que integra o conceito de ameaça é que a concretização futura do mal dependa da vontade do agente. Esta aferição faz-se segundo o critério do “homem médio”, ou seja, a perspectiva do homem comum.


Actualmente, verifica-se o crime desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto não o tenha provocado.


A inquietação é a intranquilidade, um desassossego para a pessoa ameaçada.


Ora, salvo o devido respeito por diversa opinião, somos de entender que, tal como se defende no despacho recorrido, pelas duas ordens de razões aí aduzidas e que são as seguintes:


- Por um lado, porque “os factos em causa não põem em causa o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja a liberdade de decisão e de acção, porque tal liberdade implica a prática de um crime, o de dano”;


- E por outro lado, porque “a concretização do mal depende da vontade da própria vítima, ou seja, se ela não tentar envenenar o cão não estará sujeita a qualquer agressão, o que também afasta o preenchimento do tipo de crime imputado. Com efeito, as palavras alegadamente proferidas não têm a virtualidade de, nem são adequadas a, causar medo ou inquietação, poderão vir a ter, no futuro, caso a ofendida tente envenenar o dito cão”.


Como e, em nosso entender, correctamente expende no douto parecer emitido o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto a expressão verbal imputada à arguida - “se voltas a envenenar-me o cão, dou-te 2 estalos na cara”- “materializa apenas um aviso” (…) em que ela dá conta à ofendida “das consequências que lhe adviriam se ela praticasse um crime”, ou seja, se “procedesse ao envenenamento dum cão”.


E, -continua –, “a sua acção punitiva repousava não numa acção própria irrestrita, mas sim condicionada pelo agir de outrem, pela conduta da queixosa”, ou dito de outro modo, constituía “a profetização do mal anunciado – um efectivo mal futuro, só ocorreria se a queixosa praticasse um crime, se ela agisse contra o património da queixosa”.


No acórdão de 18/05/2008, da Relação de Guimarães – também citado no aludido parecer -, Processo 349/07.1PBVCT, escreve-se o seguinte relativamente aos elementos do crime de ameaças:


“Como referiu o Professor Figueiredo Dias no âmbito da Comissão de Revisão, “o que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação”(Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, página 500). Daí que o normativo legal em causa se assuma actualmente sob a veste de um crime de perigo e já não, como ocorria anteriormente à Revisão de 1995, como um crime de dano. Hoje, já não se exige a ocorrência do dano, como efectiva perturbação da liberdade do ameaçado, mas também não basta a simples ameaça da prática do crime. Com efeito, exige-se a comprovação da adequação da ameaça, perante a situação concreta, para provocar medo ou inquietação, o que leva a concluir que o crime de ameaça, previsto e punido no artigo 153º do Código Penal é um crime de perigo. Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o preenchimento do tipo legal (neste sentido, cfr. Taipa de Carvalho, Comentário, cit, pág. 348, Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, volume II, Lisboa, 1996, pág. 185).


Seguindo novamente os ensinamentos do Professor Taipa de Carvalho, “o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar o medo ou inquietação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das «sub-capacidades» do ameaçado). Assim, uma determinada ameaça pode, relativamente a um adulto normal, não ser adequada, mas já o ser quando o ameaçado é uma criança ou uma pessoa com perturbações psíquicas.” Em estilo de conclusão, a ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as suas características pessoais”.


Ora, em decorrência de tudo o acabado de expender, como óbvio resulta que a ameaça proferida pela arguida não se revela adequada a produzir medo ou inquietação, bem como, também não causa prejuízo à liberdade de determinação da queixosa, pois que, ela apenas constitui “o anúncio de uma ofensa corporal” que a motivará “a conformar-se com o direito respeitando o que não lhe pertence, não praticando qualquer crime”, ou seja, e como refere o Sr. Procurador, “a ameaça proferida através da expressão acima referida, afinal, constitui um apelo dirigido à queixosa para que preze o alheio, para que não pratique qualquer ilícito”.


E, como é evidente, “nunca um aviso dirigido a alguém para que se comporte conforme o direito constitui crime de ameaças, não pode atemorizar ninguém” e, por consequência, o uso da aludida expressão não constitui um crime de ameaças, dado não preencher todos os seus elementos típicos.


Assim sendo, parece-nos de todo evidente que não merecendo o despacho recorrido qualquer reparo, o presente recurso haverá de ser julgado improcedente.


IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo Mº Pº e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.


Sem custas.


Guimarães, 23/ 05/ 11.