Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2035/03-1
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
NEXO DE CAUSALIDADE
MENOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/12/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Os campos de aplicação da responsabilidade contratual e da responsabilidade extra-contratual extraem-se a contrario da primeira: sempre que a fonte da indemnização não for o contrato, apenas poderá ser o acto ilícito, e o risco ou o acto lícito, estes apenas quando a lei assim o cominar.
II – Se o Réu levou a cabo uma venda a menor proibida por lei, a respectiva responsabilidade só pode discutir-se no âmbito da responsabilidade por factos ilícitos.
III – Um facto é causal, relativamente a uma determinada ocorrência prática, se faz acrescer, de maneira considerável, a possibilidade objectiva de realização do resultado – para se considerar assim determinado facto da vida material, é necessário levar em conta as máximas da experiência e da razoabilidade, levando em conta todas as circunstâncias reconhecíveis por um bom observador, no momento dos factos.
IV – No confronto entre a proibição de venda a menor de “bombas de Carnaval” e a explosão ocorrida, quando o menor se encontrava a queimar as bombas, explosão que determinou perda de dedos, mobilidade e desfiguração da mão direita, sabendo-se como os acidentes deste tipo ocorrem muitas vezes por forma quase inopinada e que existe uma noção menos clara do perigo, bem como uma apetência clara pelos efeitos ligados ao divertimento, na pessoa de um menor de 15 anos, é de considerar causal do resultado danoso o comportamento do Réu marido, ainda que se não conheça a causa próxima que determinou a detonação das bombas.
V – Todavia, é de considerar “culposo” e “causal” o comportamento do menor, para efeitos do disposto no artº 570º nº1 C.Civ., posto que este menor seja passível de imputabilidade para o facto.
VI – Na indemnização por dano patrimonial, se o julgador optar indiciariamente pelo cálculo através de tabelas matemáticas, não deverá olvidar que a indemnização deve produzir um capital susceptível de ser pago até ao fim da vida do lesado (e não apenas até ao fim da sua vida activa) e que no juro de capitalização da quantia a entregar de uma só vez devem ser descontados os valores referentes à inflação, ganhos de produtividade e subidas de escalão que afectam, diminuindo-as em termos práticos, as taxas de juro que incidem sobre o quantum indemnizatório entregue numa só prestação.
Decisão Texto Integral: Acordão no Tribunal da Relação de Guimarães

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº ..., da comarca de Vieira do Minho.
Autor – A.
Réus – B.

Pedido
Que os RR. sejam condenados a pagar ao Autor a quantia de Esc.16.925.005$00, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação.
Tese do Autor
O Réu marido dedica-se à actividade de pirotecnia.
No dia 24/2/98, o A., quando tinha 16 anos de idade, adquiriu ao R. marido várias bombas de carnaval. Nesse mesmo dia, quando as queimava, uma delas, por defeito de fabrico (carga excessiva), rebentou-lhe na mão direita.
Invoca a responsabilização do Réu por facto ilícito (venda a menor de “bomba de carnaval”).
Computa o montante do dano patrimonial e não patrimonial sofrido por via do aludido rebentamento no montante peticionado.
Tese dos Réus
Impugnam a alegação do Autor, desde logo a invocada venda ao Autor (menor de idade) de “bomba de carnaval”.
Sentença
Na sentença proferida pelo Mmº Juiz “a quo”, foi decidido julgar a acção improcedente, por não provada.

Conclusões do Recurso do Apelante Autor
1ª – Em 24 de Fevereiro de 1998, quando o Demandante tinha 16 anos de idade, adquiriu ao Demandado, que se dedica à actividade de pirotecnia, 700$00 de Bombas de Carnaval, sendo várias das pequenas a 25$00 cada uma e várias das grandes a 100$00 cada uma.
2ª – Habitualmente o Demandado, que é o único pirotécnico existente m Vieira do Minho, vende na sua residência, na vila de Vieira do Minho, bombas de Carnaval a qualquer pessoa, designadamente a menores.
3ª – Das que vendeu ao Demandante, uma, das grandes, rebentou-lhe na mão direita, provocando esfacelo grave dessa mão e traumatismo da mão direita, provocando esfacelo grave dessa mão e traumatismo do olho esquerdo.
4ª - Com esta factualidade, o Meritíssimo Juiz a quo decidiu absolver o demandado porque, relativamente à ilicitude não se vislumbra violação de qualquer direito do autor ou disposição legal que tutele interesses públicos ou particulares que mereça tutela do direito, por estar em causa simples contrato de compra e venda, cuja violação poderá limitar-se ao incumprimento defeituoso desta.
5ª - Salvo melhor e mais esclarecida opinião em contrário o Meritíssimo Juiz a quo não tem razão.
6ª - Se o tema não fosse particularmente familiar ao mandatário do demandante, pese embora o consagrado princípio de que da mihi factum, dabo tibi jus, teria referido na petição inicial a legislação infringida pelo demandado, o que tinha facilitado a tarefa ao julgador e, com certeza, evitado este recurso.
7ª - O diploma legal que regula a matéria relativa às bombas de Carnaval é o Dec.-Lei nº 376/86 de 30 de Novembro, que foi alterado pelo Dec.-Lei nº 474/88, de 22 de Dezembro, quanto à redacção do nº 6 do artigo 22º e que aditamento do nº 6 ao artigo 31º, ficando com a seguinte redacção:
- artigo 22º, nº 6 (do Dec.-Lei nº 376/84)
A venda de bombas de arremesso só pode ser feita às pessoa que, tendo obtido das entidades competentes autorização para a sua aquisição e lançamento, exibam o respectivo documento comprovativo no momento da compra.
- artigo 31º, nº 6 (do Dec.-Lei nº 376/84):
As autorizações referidas no nº 6 do artigo 22º deverão ser requeridas no comando concelhio da respectiva autoridade policial, só podendo ser concedidas se estiverem verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Ter o requerente idade não inferior a 18 anos;
b) Destinarem-se as bombas de arremesso a ser usadas para fins não lúdicos, designadamente na defesa de produções agrícolas ou florestais, ou, ainda, para o exercício autorizado da caça de batida;
c) Quando o local projectado para o lançamento não implique perigo ou prejuízo para terceiros;
d) Quando as quantidades sejam devidamente justificadas.
8ª - Traduzindo por miúdo, significa que as chamadas bombas de Carnaval pura e simplesmente acabaram como tal, pois essas bombas de Carnaval, ou de arremesso, só podem ser vendidas:
- a quem tenha obtido das entidades competentes autorização para a sua aquisição e lançamento;
- a maiores de 18 anos;
- com destino à defesa de produções agrícolas ou florestais (para afugentar animais), ou para a caça de batida autorizada;
- que não se apliquem em fins lúdicos;
- que o local previsto para o lançamento não cause perigo ou prejuízos para terceiros
- em quantidades devidamente justificadas.
9ª - E que as alterações introduzidas no Dec.-Lei nº 376/84, de 30/11 pelo Dec.-Lei nº 474/88, de 22/12, visaram acautelar o interesse de terceiros, de crianças em idade escolar e os particulares em geral, bastará recordar o preâmbulo do Dec.-Lei nº 474/88, de 22/12 que diz assim:
- Todos os anos são noticiados inúmeros acidentes provocados pela utilização das chamadas bombas de “Carnaval”.
- As vítimas de tais acidentes, alguns de reconhecida gravidade, são, na sua grande maioria, crianças em idade escolar.
- Em face do exposto, a que se acresce o ruído, particularmente perturbador do sossego, provocado pelo uso daqueles explosivos nas brincadeiras carnavalescas de crianças e adolescentes, impõe-se a tomada de medidas que ponham termo a esta situação. Sendo certo que as conhecidas «bombas de "Carnaval» são apenas um tipo das tecnicamente designadas «bombas de arremesso», espécie de fogos-de-artifício considerados produto explosivo, torna-se necessário integrar sistematicamente as soluções normativas a adoptar no quadro dos pertinentes instrumentos jurídicos em vigor, nomeadamente os aprovados pelo Decreto-Lei nº 376/84, de 30 de Novembro.
- Com o presente diploma, a venda e o lançamento das bombas de arremesso e, designadamente, das chamadas “bombas de Carnaval” ficam sujeitos a licenciamento prévio, susceptível de concessão, apenas a maiores de 18 anos, restringindo-se o seu uso à realização de fins não lúdicos, caso da defesa de produções agrícolas ou florestais, e ainda ao exercício de caça de batida. Por outro lado, estabelecem-se mecanismos que permitirão o controle das operações de compra e venda.
10ª - Posto isto fica particularmente claro que o demandado “vendeu” as bombas de Carnaval ao demandante de um modo ilícito e ilegal, tendo o mais completo conhecimento dessa ilicitude, que mais não fosse pela apertada fiscalização que a P.S.P. e a G.N.R. passaram a fazer, de tal modo que, quem não andar distraído, já se deve ter apercebido de que há vários anos, praticamente não se ouve uma única bomba por altura do Carnaval.
11ª - Da mihi factum, dabo tibi jus. O demandante deu os factos. A douta sentença recorrida não lhe deu o direito, como devia ter feito, pois a conduta ilícita e censurável – pelo lucro de uns míseros euros põe em risco a integridade física de menores – do demandado está expressa e claramente contemplada na lei e é evidente o nexo de causalidade entre a venda ilegal de bombas de Carnaval a um menor de 18 anos de idade e os ferimentos que sofreu em consequência de uma dessas bombas na sua mão.
12ª - Assim, e salvo melhor e mais esclarecida opinião em contrário, a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 22º, nº 6 e 31º, nº 6 do Dec-Lei nº 376/84 de 30/11, na redacção do Dec.-Lei nº 474/88, de 22/12, e os artigos 483º, 490º e 879º do Cód. Civil.

Em contra-alegações, os apelados "B" pugnaram pela manutenção do decidido.

Factos Apurados em 1ª Instância
O Réu marido dedica-se à actividade de pirotecnia (A).
No dia 24/2/98, o A. foi vítima de uma explosão ao manusear materiais explosivos, designadamente bombas de Carnaval (B).
O Autor nasceu no dia 2/5/82 (C).
O Réu marido vende na sua residência, sita na vila de Vieira do Minho, bombas de Carnaval a qualquer pessoa, designadamente a menores (1º).
No dia 24/2/98, o A. adquiriu ao Réu marido várias bombas de Carnaval (4º).
O Autor pagou ao Réu a quantia de 700$00, sendo várias das pequenas, a 25$00 cada uma, e várias das grandes, a 100$00 (5º).
O Autor estava a queimar as referidas bombas e uma delas rebentou-lhe na mão direita (6º).
Em consequência da explosão, o Autor sofreu traumatismo do olho esquerdo e esfacelo grave da mão direita (8º).
Do local do acidente foi transportado para o Centro de Saúde de Vieira do Minho, de onde foi transferido para o Hospital de São marcos, em Braga (9º e 10º).
Daqui, devido à gravidade dos ferimentos, foi transferido para o Hospital de S. João, no Porto (11º).
Neste hospital foi submetido a uma intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido efectuada a amputação pelo 5º metacarpo (inclusive), com plastia de retalho do dorso da mão direita (12º).
Quanto às lesões do olho esquerdo foi tratado conservadoramente (13º).
No dia 25/2/98 foi reenviado novamente para o Hospital de São Marcos, em Braga, onde permaneceu internado até ao dia 10/3/98 (14º).
Após, recolheu a sua casa, onde se manteve em repouso durante cerca de um mês (15º).
A partir daí passou a ser assistido pela Consulta Externa do Hospital de S. Marcos, em Braga (16º).
Em Junho de 1998, começou a fazer tratamentos de fisioterapia, durante cerca de um mês (17º).
Apesar dos tratamentos a que se submeteu ficou a padecer definitivamente de:
a) esfacelo grave da mão direita, com perda do dedo auricular (5º dedo), bem como do 5º metacarpo total; perda da falangeta do dedo médio (3º dedo); perda da falangeta do dedo anelar (4º dedo) e dores referidas à região mediana do carpo em provável relação com fragmento ósseo livre do corpo do osso trapézio e sub-luxação trapézio-metacarpiana;
b) limitação da mobilidade dos dedos por cicatrizes viciosas da face palmar da mão direita e por alterações osteo-articulares do polegar – limitação da mobilidade metacarpo-falângica e inter falângica; do indicador – limitação da mobilidade inter falângica (1ª e 2ª); do dedo médio – limitação da mobilidade inter falângica (1ª e 2ª) e do dedo anelar – limitação da mobilidade inter falângica;
c) sequelas neurológicas do sistema nervoso periférico (nervos cubital e mediano direitos) com hipotrofia dos músculos da mão direita, com diminuição da força muscular; parestesias; existência de sinais de disfunção dos nervos do cubital e mediano direitos; sequelas sensitivas e motoras com dificuldades significativas de preensão e sobretudo precisão no que se refere aos dedos polegar e indicador;
d) dismorfias notórias da mão com cicatrizes viciosas que interferem no grau de mobilidade dos dedos, associadas às lesões do foro neurológico (18º).
As lesões referidas provocam ao Autor uma I.P.P. para o trabalho de 30% (19º).
O Autor é dextro (20º).
As lesões sofridas provocaram ao Autor dores físicas (21º).
As sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal estar, as quais vão acompanhar o Autor durante toda a vida e se exacerbam com as mudanças de tempo (22º e 23º).
O Autor ficou com a mão direita defeituosa, o que o desfeia parcialmente e causa ao Autor um profundo desgosto (24º e 25º).
O Autor, à data do acidente, era saudável e fisicamente bem constituído (26º).
O Autor é trolha e ganhava pelo menos Esc.80.000$00 por mês, catorze vezes ao ano (27º e 28º).
O Autor gastou Esc. 40.000$00 em honorários médicos, Esc. 26.000$00 em meios de diagnóstico, Esc. 31.500$00 em tratamentos de fisioterapia, Esc. 883$00 em medicamentos, Esc. 14.000$00 em transportes para receber tratamentos, Esc. 3.000$00 num sling de apoio ao braço direito e Esc. 1.800$00 em taxas moderadoras (29º).
A Ré mulher aproveitava os lucros obtidos pelo Réu marido por meio da actividade (30º).


Fundamentos
O recurso do Apelante comporta a apreciação de uma única questão substancial, qual seja:
Possuem os autos demonstração de responsabilidade civil por facto ilícito imputável aos Réus e, em consequência, deveria a acção ter procedido?
I
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que o Autor invoca, no douto petitório, que a “bomba de Carnaval” lhe rebentou na mão por “defeito de fabrico” (artº 8º da P.I.) e por via de “a carga ser inapropriada e excessiva para uma bomba de Carnaval” (artº 9º da P.I.); os factos, desta forma relatados, apontam para a responsabilização dos RR. a título de responsabilidade contratual pela venda de produtos defeituosos.
Todavia, sob a epígrafe “a responsabilidade”, o Autor mais tarde esclarece que “o Demandado é responsável porque praticou um facto ilícito, ao vender bombas de carnaval a um cidadão de menor idade” (artº 48º), “bem sabendo que essa actividade lhe era proibida por lei” (artº 49º), invocando que o Autor é responsável por violação do disposto nos artºs 483º e 490º do Código Civil, normativos aplicáveis à responsabilidade civil por factos ilícitos.
Nas alegações de recurso a que se referem as conclusões supra, vem o Autor insistir em que os RR. são responsáveis a título de responsabilidade civil por facto ilícito.
Como se extrai da resposta restritiva ao quesito 6º e da resposta negativa ao quesito 7º (não ficou provada a “deficiência de fabrico” da bomba que rebentou na mão do Autor, nem que tal bomba fosse portadora de “excesso de carga”), os factos não poderiam conduzir à responsabilização dos RR. por via de responsabilidade contratual, ou seja, por via da inexecução pelo Réu marido de qualquer obrigação contratual.
Seja como for, a teoria da substanciação consagrada na nossa lei processual reconduz a causa de pedir ao acontecimento ou facto concreto em que se baseia o pedido (A. de Castro, Direito Processual Civil, I-207).
E pode concluir-se que “causa de pedir” é o facto jurídico ou o título gerador do direito invocado, mas que (ut S.T.J. 17/1/95 Bol.443/353):
- de um lado, não se confunde com os factos materiais alegados pelo autor (os factos provados podem ser diversos dos alegados como razão do pedido, desde que se encontrem genericamente alegados no processo por qualquer das partes e resultem provados, conduzindo ao título jurídico invocado);
- mas também se não confunde com as razões jurídicas invocadas pelo autor (o Tribunal é livre de as qualificar – da mihi facto dabo tibi jus);
- define-se em função da noção complexiva que resulta da conjugação dos factos alegados com a qualificação jurídica que lhes é dada (cf. A. dos Reis, Anotado, V-92ss.).
Desta forma, porque o Autor faz corresponder determinada consequência jurídica aos factos que invoca, saber se tais factos integram responsabilidade contratual ou responsabilidade por factos ilícitos constitui uma mera questão de interpretação jurídica e assim nem a questão é nova no processo (embora concedendo-se que o Autor invocou, sem os distinguir claramente, dois tipos diferentes de responsabilidade), nem a interpretação que dela o Autor desse nas alegações de recurso constituiria qualquer espécie de questão nova, na medida em que a interpretação jurídica nunca constitui para o Tribunal uma “questão nova” – como bem refere o Autor da mihi facto dabo tibi jus.
II
Adentremo-nos agora propriamente na apreciação da problemática sub judice.
A responsabilidade contratual possui um campo de aplicação menos vasto que aquele que cabe à responsabilidade extra-contratual.
Em boa verdade, os campos de aplicação recíprocos deduzem-se a contrario: sempre que a fonte da indemnização não for o contrato, apenas poderá ser o acto ilícito, o risco ou o acto lícito, quando a lei assim o cominar (Sériaux, Droit des Obligations, PUF, §98).
É assim que a responsabilidade contratual pressupõe necessariamente a existência de um contrato, que o autor do dano seja o co-contratante da vítima e, finalmente, que o dano sofrido o haja sido em consequência da inexecução, pelo co-contratante, das respectivas obrigações contratuais (que até podem ocorrer em momento anterior ao nascimento da obrigação propriamente dita, bem como podem ser “pré-contratuais”).
Ora, é sabido que a lei comina de invalidade, na modalidade de nulidade, os negócios jurídicos cujo objecto seja contrário à lei – artº 280º nº1 C.Civ. – nulidade essa que pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal – artº 286º C.Civ.
Desde a publicação do Decreto-Lei nº474/88 de 22 de Dezembro, com a alteração da redacção do Decreto-Lei nº376/84 de 30 de Novembro (Regulamento sobre o Fabrico, Armazenagem, Comercialização e Emprego de Produtos Explosivos), que a venda e o lançamento de “bombas de arremesso”, e designadamente das chamadas “bombas de Carnaval”, ficou sujeita a licenciamento prévio, susceptível de concessão apenas a maiores de 18 anos, restringindo-se o seu uso à realização de fins não lúdicos, caso da defesa de produções agrícolas ou florestais e ainda do exercício de caça de batida.
Encurtando razões, não há dúvida de que o negócio concreto de que os autos dão mostra, de venda de “bombas de Carnaval” a um menor de 15 anos (respostas aos quesitos 4º e 5º), é de considerar ferido de nulidade absoluta, por contrário à lei.
E assim, não será de considerar, de facto, qualquer espécie de responsabilidade contratual, por variadas razões, à cabeça das quais surge a consideração de que se não chegou a formar validamente qualquer vínculo contratual entre as partes.
III
É sabido como a responsabilidade civil exige determinados requisitos, segundo a terminologia técnica corrente na doutrina: facto; ilicitude; imputação do facto ao lesante (culpa); dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Temos por assente demonstrarem os autos a existência de acto ilícito – é proibida a venda de explosivos, designadamente de “bombas de arremesso”, a menores de 18 anos, de acordo com o que dispõem os artºs 22º nº6 e 31º nº6 D.-L. nº376/84 de 30 de Novembro.
Trata-se, de resto, de ilícito contraordenacional, punido com coima – artº 27º Regulamento sobre Fiscalização de Produtos Explosivos (D.-L. nº376/84 de 30 de Novembro, actualizado pelo artº 7º D.-L. nº265/94 de 25 de Outubro).
Será este facto ilícito de venda de um produto explosivo a um menor de 18 anos, absolutamente proibido por lei, causal, relativamente ao evento danoso de que os autos dão conta?
Os Apelados / Réus defendem que o rebentamento das bombas foi efectuado pelo Apelante / Autor, por forma consciente e voluntária, pelo que a causalidade do ocorrido deve situar-se nesse acto de rebentamento das bombas, imputável ao Autor.
Em matéria de causalidade, desde logo e em tese geral, subscrevemos integralmente a formulação de Meneses Cordeiro, Obrigações, II-339, quando entende que, se a causalidade é integrada num comportamento humano e, nesse sentido, é sujeita a um juízo de licitude, a “fórmula vazia” da adequação tem que ser preenchida por uma valoração, uma valoração que incide sobre o comportamento humano (e é negativa, se se seguir à letra o preceito legal do artº 563º C.Civ.): “a adequação não pode, a não ser para efeitos de discussão e esclarecimento analíticos, ser cindida do comportamento, tal como o não pode a culpa”.
Em termos práticos, aquele Autor divisa na caracterização, seja da causalidade, seja da culpa, uma complexidade singular, antecedida de uma valoração, na qual entram já conceitos ancorados na ordem jurídica.
Finalmente, e a propósito, “quando o Direito desvaloriza uma conduta, desvaloriza automaticamente o fim e os meios necessários para a prosseguir”, fórmula que, adaptada à responsabilidade aquiliana baseada na mera culpa, se dirá: se uma norma prevê um resultado no respectivo âmbito de protecção (normweckzusammenhang), então devem ser censurados os comportamentos previstos pela norma que atingiram tal resultado.
Nessa matéria, o pensamento legislativo não podia ser mais esclarecedor. Socorrendo-nos do preâmbulo do D.-L. nº474/84 de 22 de Dezembro (alterou a redacção do D.-L. nº376/84, na matéria que nos ocupa), verifica-se que o legislador interveio para pôr definitivamente termo aos acidentes com “bombas de Carnaval”, ocorridos com crianças em idade escolar, e, para tanto, subordinou a venda das “bombas de Carnaval” apenas a maiores de 18 anos e para fins não lúdicos.
À data em que os factos ocorreram, esta proibição encontrava-se em vigor há cerca de dez anos.
Não se podem, assim, deixar de ter por assentes dois aspectos da responsabilidade por facto ilícito:
- de um lado, a causalidade da infracção ao disposto na lei, relativamente à venda das bombas de Carnaval a menores, relativamente ao acidente em causa nos autos, pois que se demonstra que este é um evento típico que a citada proibição visou prevenir;
- de outro lado, a culpa do Réu marido, que violou uma proibição legal com já dez anos à data dos factos e assim se comportou por forma grosseiramente negligente, aquela em que não incorreria o bonus pater familias a que se refere o disposto no artº 487º nº2 C.Civ.
De outro lado, que uma “bomba de Carnaval”, vendida pelo Réu marido, se destinasse a ser rebentada por quem a adquiriu, nada disso descaracteriza o processo causal.
Um facto é causal se faz acrescer, de maneira considerável, a possibilidade objectiva de realização do resultado ocorrido – para se considerar assim determinado facto da vida material, é necessário levar em conta as máximas da experiência, da razoabilidade (Vaz Serra, Obrigação de Indemnização, Bol.84º/nº5).
Ora, sabe-se como os acidentes deste tipo ocorrem muitas vezes por forma quase inopinada, sem causa atribuível a um determinado comportamento do menor (a simples fricção que ocorre quando a “bomba” se encontra no bolso da criança); por sua vez, existe uma noção menos clara do perigo, bem como uma apetência clara pelos efeitos ligados ao divertimento, na pessoa de um menor, que justifica a protecção legal imposta no comportamento negativo do vendedor ou fabricante de explosivos, previsto na lei.
E nada de concreto se apurou no processo que conduzisse à descaracterização deste processo causal.
IV
Mas olhemos a questão debaixo de outras formulações doutrinárias equivalentes, a fim de tornar mais clara a imputação dos factos à conduta do Réu.
De acordo com M. H. Mesquita, Revista Decana, 128º/92, para que possa afirmar-se, como pressuposto da obrigação de indemnização, que uma pessoa causou determinados danos, têm de verificar-se dois requisitos:
a) tem de provar-se – prova que incumbe ao lesado, nos termos do artº 342º nº1 C.Civ. – que os danos resultaram de um facto praticado por essa pessoa ou por agentes seus;
b) e tem de apurar-se, num segundo momento, se tal facto, apreciado em abstracto, era apropriado (adequado) a produzir os danos.
Ora, dos elementos provados nos autos é de concluir não se ter apurado qual a causa concreta que deu origem à explosão ocorrida, apenas se sabendo que o Autor se encontrava, no momento da explosão, a manusear as referidas bombas, mais propriamente a queimá-las, quando uma delas lhe rebentou na mão direita.
De tal constatação, na realidade, nada se retira quanto à causa ou facto determinante do rebentamento, posto que as “bombas” são destinadas precisamente a ser queimadas e manuseadas. Em rigor, esta causa não constava já da Petição Inicial (posto que se alegou “defeito” ou “excesso de carga explosiva” que igualmente se não lograram demonstrar), nem foi alegada posteriormente nos articulados por qualquer das partes.
Ignora-se assim se foi a excessiva proximidade do fogo que fez a “bomba” explodir ou então se, apesar de ter o Autor usado de cuidados normais no manuseamento da “bomba”, esta, inopinadamente, explodiu, designadamente porque possuísse o invocado excesso de carga; ou, finalmente, se o Réu marido fez ciente ao Autor, menor de 15 anos, a necessidade de adoptar cuidados mínimos no transporte ou manuseamento da “bomba”.
Assim, não se provou qual teria sido a causa ou o facto últimos que tenham determinado a explosão do artefacto.
Todavia, causalidade não deve confundir-se com “causa próxima” ou “imediata” do facto.
Concebeu-o assim, é certo, a teoria da última condição (cf. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, §124).
Mas a doutrina portuguesa e a lei (artº 563º C.Civ.) acolheram a doutrina da causalidade adequada, que traduz a causalidade em termos de probabilidade, fundada nos conhecimentos médios – se, segundo os ensinamentos da experiência comum, é lícito dizer que, posto o antecedente x se verificará provavelmente o consequente y, então verifica-se causalidade entre o antecedente e o consequente (ut Pessoa Jorge, op. cit., §124-I).
Ora, os autores que defendem esta orientação aceitam simultaneamente a teoria da equivalência de condições, isto é, que a condição adequada deveria também revestir características de “condição sine qua non”, isto é, que a condicionalidade seria pressuposto da adequação (Pessoa Jorge, op. cit., § 124-II).
Isto mesmo o explana M. H. Mesquita, pub. cit., pg.92, ao desenvolver o conteúdo da al.a) supra citada, isto é, da primeira operação destinada a averiguar, no puro plano naturalístico, se os danos resultaram de um acto ou omissão da pessoa em relação à qual se formula a pretensão indemnizatória: o problema da questão de direito (causalidade adequada) só pode discutir-se se se encontra estabelecida a questão de facto – isto é, se se encontra estabelecido que uma certa acção ou omissão foi condição equivalente, condição sine qua non, da produção de determinados danos (assim também a jurisprudência – cf., por todos, S.T.J. 3/12/92 Bol.422/365, S.T.J. 15/4/93 Col.II/59 e S.T.J. 3/2/99 Col.I/73).
Ora, foi do acto de venda dos explosivos a menor, venda essa absolutamente proibida por lei, que decorreu a lesão de direitos alheios e os prejuízos de que os autos dão conta, não como última condição demonstrada, mas como condição naturalística entre outras ou condição equivalente.
Se não ocorresse a venda ilícita de explosivos, não teria ocorrido a lesão que os autos demonstram, desde logo como precedente naturalístico necessário dos factos, ainda que potencialmente acompanhado de outros, que não lograram demonstrados.
E note-se a propósito que o comportamento imposto ao Réu marido, na sua qualidade de vendedor de material pirotécnico, passava pelo objectivo de, nas trocas comerciais efectuadas, evitar a lesão de direitos alheios, e não pelo objectivo de evitar prejuízos, que aliás poderiam não resultar da lesão (Pessoa Jorge, op. cit., § 31-V).
E estabelecido que a venda de material explosivo, pelo Réu marido ao Autor, é antecedente de facto necessário da ocorrência danosa dos autos, há que estabelecer igualmente, de direito, que tal transacção foi condição apropriada e adequada (em abstracto) à produção dos danos, á luz das regras da experiência ou o curso normal das coisas.
Neste sentido decidiu já a jurisprudência, mutatis mutandis: no Ac.S.T.J.11/11/97 Bol.471/369 ou Col.III/132, levou-se em consideração que, pese embora não se tivesse apurado qual a causa em concreto determinante de uma descarga eléctrica que estivera na origem de uma morte por electrocussão, e se ela teve origem na rede pública de energia eléctrica a cargo da E.D.P. ou na instalação eléctrica do prédio, à guarda do proprietário ou do inquilino, dentro de uma casa de habitação, a E.D.P. era obrigada a indemnizar os herdeiros da vítima pois, avisada para a existência de “choques eléctricos”, não averiguou a existência de tais choques, concorrendo para a sua eliminação, como era respectivo dever.
Em conclusão, entendemos que o Réu marido se constituiu na obrigação de indemnizar o Autor, à luz do disposto no artº 483º nº1 C.Civ., por ter violado disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
E face à culpa grave do agente, que os factos revelam, não haverá lugar a qualquer limitação da indemnização por via do disposto no artº 494º C.Civ., atendendo a que culpa lata dolo aequiparatur.
VI
A indemnização poderá, todavia, sofrer redução em consequência do disposto no artº 570º nº1 C.Civ., que determina que, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
Ora, tendo-nos fixado supra no momento da venda ao menor dos explosivos de Carnaval, como momento causal efectivo e adequado do resultado danoso que os autos demonstram, não podemos deixar de considerar que tal “venda” integra um contrato em que a contraparte “compra”.
Tal “compra” poderá ser considerada “facto culposo do lesado”?
Dispõe o artº 488º nº1 C.Civ. que, no campo da responsabilidade civil por factos ilícitos só é imputável quem, no momento em que o facto ocorreu, não estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer.
Assim, prevalece no nosso direito a orientação pela qual, em relação aos menores (com mais de sete anos – cf. artº 488º nº2 C.Civ.), a imputabilidade deve ser apreciada caso a caso, de modo a determinar se têm discernimento bastante para avaliar o acto que praticaram, isto é, capacidade de entender e querer, o livre exercício da sua vontade (Vaz Serra, Culpa do Devedor ou do Agente, Bol.68/105; P. de Lima e A. Varela, Anotado, I/artº 488º).
Significa isto que a conduta do menor deve ser submetida a dois crivos: de um lado, deve analisar-se se é imputável, segundo os critérios supra; após, saber se o menor imputável pode ser considerado culpado, agora à luz dos critérios que conduzem à determinação da mera culpa – artº 487º nº2 C.Civ.: a culpa deve ser apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Como se apura que o menor estava em condições de entender o valor do seu acto e que tinha a vontade necessária para escolher a melhor conduta, de harmonia com esse conhecimento? Segundo Pais de Sousa e C. Matias, Da Incapacidade Jurídica dos Menores, Interditos e Inabilitados, 2ªed., pg. 194, não pode haver regras fixas e o juízo final depende de vários factores, entre os quais, a capacidade intelectual e volitiva do menor, a natureza do acto praticado ou a experiência do menor em relação a esse acto.
Todavia, importa salientar que o juízo que se tome em matéria de imputabilidade é um juízo abstracto, embora possua relação a um acto concreto.
Compulsado o material probatório constante dos autos, entende-se que, face à idade do menor, 15 anos (perfaria 16 daí por pouco mais de dois meses), tinha já o menor experiência suficiente para se ter deparado quer com o perigo do uso de “bombas de Carnaval”, quer com a proibição legal, uma vez que, pese embora a venda indiscriminada que o Réu marido efectuava (resposta ao quesito 1º), é do conhecimento geral (o id quod plerumque accidit) que a utilização destes artefactos, que era, não generalizada, mas comum, passou a ser efectuada em termos de quase raridade, de há vários anos a esta parte, designadamente já à data de 1998.
Entende-se, desta forma, a inequivocidade da consideração de que o menor era imputável para o acto da compra de explosivos de Carnaval, porquanto devia possuir, em face da respectiva idade e experiência pregressas, necessariamente noção do perigo do manuseamento, para a própria saúde e para a saúde de terceiros, dos ditos explosivos.
Em face de tais considerandos, e atendendo às características do grupo etário em que se insere (a diligência do menor deve ser avaliada de acordo com as características deste grupo, para que o menor possa ser isento de culpa, ut Sousa Antunes, Responsabilidade Civil de Pessoas Obrigadas à Vigilância de Pessoa Naturalmente Incapaz, §6.5) consideramos culposa a conduta do ora Autor, menor, á data dos factos.
Saber se o menor poderia repercutir tal culpa nos seus representantes legais, por culpa in educando (cf. artº 571º C.Civ.), é matéria excluída da apreciação dos autos.
Atendendo às culpas recíprocas, para efeito do disposto no citado artº 570º nº1 C.Civ., entendemos que a indemnização a fixar, favorável ao Autor, deverá ser reduzida de 25%.
V
Vejamos agora os danos sofridos pelo Autor, a fim de ser fixada indemnização.
Segundo a lei portuguesa, o dano patrimonial é representado pela diferença entre a situação real actual da vítima e a situação hipotética em que se encontraria, caso não houvesse sofrido o dano – artº 566º nº2 CCiv.
O dano patrimonial pode ser valorado em dinheiro, incluindo não apenas o dano emergente (o que compreende o dano provocado nos bens ou nos direitos da vítima já existentes previamente ao acidente), mas também o lucro cessante (o qual compreende as benefícios a que a vítima não pôde aceder, por causa do facto ilícito) – artº 564º nº1 C.Civ.
Também na fixação da indemnização pode o Tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (liquidação em execução de sentença).
Entre os danos futuros figuram os danos patrimoniais derivados da I.P.P. (incapacidade permanente e parcial para o trabalho) de que o Autor ficou a padecer por via do acidente (cujo ressarcimento em capital ou renda, mesmo na eventualidade de o lesado não ver efectivamente diminuídos os seus rendimentos, já tinha sido objecto da Resolução do Comité de Ministros do Conselho da Europa nº75-7).
O cálculo respectivo não pode dispensar o recurso à equidade, conforme disposto no artº 566º nº3 CCiv.
Assim, faz o Autor jus a todas as quantias referidas na resposta ao quesito 29º e que totalizam Esc. 117.183$00.
Quanto à quanto à quantia referente à perda de capacidade para o trabalho, pese embora a relevância fundamental da equidade, tal não exclui que se parta de uma base técnico-contabilística, para após corrigir o capital obtido, fazendo apelo à fundamental equidade.
Com efeito, ao figurar-se a carreira profissional futura do Autor, não pode prescindir-se do id quod plerumque accidit – a duração normal previsível de vida (tomando por base a expectativa média de vida dos homens em Portugal, pelos dados mais recentes), a progressão profissional de um trabalhador, a idade do Autor à data do acidente e da alta clínica (apenas 16 anos de idade) e a flutuação do valor do dinheiro, tendo em conta o tempo durante o qual o capital entregue deve ser despendido pelo Autor (até ao final da vida deste Autor) – ut S.T.J. 25/6/02 Col.II-128; desta forma, as meras tabelas financeiras só por si não logram aproximar-se da realidade indemnizatória e necessitam de ser corrigidas, para mais ou para menos, em função de eventos que, sendo previsíveis, encontram nas fórmulas matemáticas uma tradução redutora (note-se que, sendo a equidade o critério legal, o Tribunal não está de todo reduzido à expressão indemnizatória das fórmulas matemáticas – S.T.J. 11/3/97 Bol.465-537 – mas pode recorrer a elas como fórmula de valor meramente auxiliar – S.T.J. 25/6/02 cit.).
Olhemos agora à fórmula matemática sugerida pelo Ac.S.T.J. 5/5/94 Col. II-86.
A fórmula a utilizar como elemento de trabalho será:
N -N
C = P x ((1/i-(1 + i)/((1 + i) x i)) + P x (1 + i)
onde C será o capital a depositar, P a prestação a pagar anualmente, i a taxa de juro e N o número de anos em que a prestação se manterá.
Ou ainda à fórmula matemática sugerida pelo Ac.R.C. 4/4/95 Col.II/23, que, partindo da fórmula anterior, complementa-a com estoutra:
i = ( 1 + r / 1 + k ) - 1
em que r representa a taxa de juro nominal líquida das aplicações financeiras (como visto, 4% máximos) e k a taxa anual de crescimento da prestação a pagar no primeiro ano (englobando inflação – 2% - ganhos de produtividade – cerca de 1% ao ano – e subidas de escalão – 1% ao ano).
Pela aplicação da dita fórmula do S.T.J. é certo que chegaríamos ao resultado de Esc. 8.996.207$00, figurando 57 anos para o pagamento de capital, no qual se deveria fixar a indemnização global pela perda de ganho do Autor, caso se não considerasse a inflação e os naturais aumentos de produtividade e aumentos de vencimento; estes últimos dados anulam por completo a capitalização da quantia atribuída de uma só vez, uma vez que, partindo dos valores avaliados, somam 4%, tanto como o juro produzido.
Por isso, a consideração da capitalização vê-se anulada por esses valores relativos às ditas inflação e aumentos de produtividade e de vencimento, pelo que resulta até inútil a consideração desta fórmula matemática para se conhecer e atingir um quantum indemnizatório, a título de perda de ganho.
Repristinaremos, assim, o critério achado nos Ac.R.P. 20/5/82 Col.III-209 e Ac.R.C. 13/7/82 Col.IV-48: multiplicando a quantia anual de Esc.1.120.000$00 (vencimento anual estimado do Autor) pelo valor da IPP (30% - q.19º), atingimos o montante de Esc.336.000$00.
Multiplicaremos este montante pelo número de anos (57) que faltariam ao lesado para atingir a esperança média de vida das pessoas do sexo masculino em Portugal (na actualidade fixada em 73 anos), atingindo Esc.19.152.000$00.
Diminuindo essa quantia de 1/3 do produto da mesma, atingiremos finalmente a quantia de cerca de Esc. 12.768.000$00, quantia esta na qual se entende dever fixar-se a indemnização relativa à perda de capacidade de trabalho do Autor.

Quanto ao dano não patrimonial, os autos patenteiam à evidência um dano elevado na vertente do “dano moral”, propriamente dito (com base na incapacidade permanente), na vertente do “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida e que acompanhará o A. durante toda a vida) e no dano estético (defeito notório na mão direita, de que o A. é portador).
O artº 496º nº3 C.Civ. manda fixar o montante da respectiva indemnização equitativamente, tendo em conta as circunstâncias referidas no artº 494º CCiv., ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, mais levando em conta, em todo o caso, quer os padrões geralmente adoptados na jurisprudência, quer as flutuações do valor da moeda (por todos, S.T.J. 25/6/02 cit.).
Tal dano, com a caracterização sofrida, e para que não se assemelhe a um simulacro de ressarcimento, deverá atingir a peticionada quantia de Esc. 2.500.000$00.
O quantum indemnizatório atingirá assim o total de Esc. 15.385.183$00 (2.500.000$00 + 12.768.000$00 + 117.183$00), ou seja, € 76.740, 96.
Reduzindo tal quantia a 75%, obteremos o quantum indemnizatório final de € 57 555,72.

Pelo pagamento de tal quantia é também responsável a Ré mulher, face aos factos provados e ao disposto nos artºs 1692º al.b) parte final C.Civ., uma vez que o fim imediato da conduta do Réu marido se inscreveu no exercício do respectivo comércio e também no proveito comum do casal – artº 1691º nº1 C.Civ.

Em matéria de juros de mora, de acordo com o Ac.Jurispª S.T.J. 4/02 de 9/5/02, in D.R. Is. de 27/6/02, sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do artº 566º nº2 CCiv., vence juros de mora, por efeito do disposto nos artºs 805º nº3 (interpretado restritivamente) e 806º nº1 CCiv., a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
Acontece que, nos autos, só a avaliação do dano não patrimonial foi actualizada à presente data, razão pela qual o montante fixado como compensação para o dano patrimonial deve vencer juros a contar da citação.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – Os campos de aplicação da responsabilidade contratual e da responsabilidade extra-contratual extraem-se a contrario da primeira: sempre que a fonte da indemnização não for o contrato, apenas poderá ser o acto ilícito, e o risco ou o acto lícito, estes apenas quando a lei assim o cominar.
II – Se o Réu levou a cabo uma venda a menor proibida por lei, a respectiva responsabilidade só pode discutir-se no âmbito da responsabilidade por factos ilícitos.
III – Um facto é causal, relativamente a uma determinada ocorrência prática, se faz acrescer, de maneira considerável, a possibilidade objectiva de realização do resultado – para se considerar assim determinado facto da vida material, é necessário levar em conta as máximas da experiência e da razoabilidade, levando em conta todas as circunstâncias reconhecíveis por um bom observador, no momento dos factos.
IV – No confronto entre a proibição de venda a menor de “bombas de Carnaval” e a explosão ocorrida, quando o menor se encontrava a queimar as bombas, explosão que determinou perda de dedos, mobilidade e desfiguração da mão direita, sabendo-se como os acidentes deste tipo ocorrem muitas vezes por forma quase inopinada e que existe uma noção menos clara do perigo, bem como uma apetência clara pelos efeitos ligados ao divertimento, na pessoa de um menor de 15 anos, é de considerar causal do resultado danoso o comportamento do Réu marido, ainda que se não conheça a causa próxima que determinou a detonação das bombas.
V – Todavia, é de considerar “culposo” e “causal” o comportamento do menor, para efeitos do disposto no artº 570º nº1 C.Civ., posto que este menor seja passível de imputabilidade para o facto.
VI – Na indemnização por dano patrimonial, se o julgador optar indiciariamente pelo cálculo através de tabelas matemáticas, não deverá olvidar que a indemnização deve produzir um capital susceptível de ser pago até ao fim da vida do lesado (e não apenas até ao fim da sua vida activa) e que no juro de capitalização da quantia a entregar de uma só vez devem ser descontados os valores referentes à inflação, ganhos de produtividade e subidas de escalão que afectam, diminuindo-as em termos práticos, as taxas de juro que incidem sobre o quantum indemnizatório entregue numa só prestação.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar integralmente procedente, por provado, o recurso do Apelante Autor e, em consequência, condenar os Réus a pagar ao Autor a quantia de € 57 555,72, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre € 9 352,46, a contar da presente data, e, sobre a quantia de capital restante, a contar da citação.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção em que Autor e Réus agora decaem.