Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
863/11.4GAFAF.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) A nulidade decorrente da não observância do preceituado no artº 374º, do CPP, só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorretas ou passíveis de censura as conclusões a que, através dele, o tribunal a quo chegou.
II) A demonstração de que determinado raciocínio é ilógico, poderá sustentar, conjuntamente com o registo da prova, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que é questão distinta da nulidade da sentença.
III) Não tendo os recorrentes indicado qualquer facto relativamente ao qual não perceberam as razões do julgador, não há que falar da nulidade do citado artº 374º, do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No ex 1º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc.nº 863/11.4GAFAF), foi proferida sentença que decidiu (transcreve-se):
a) Absolver os arguidos Emílio I. e Libânia I. dos crimes de sequestro de que vinham acusados;
b) Condenar o arguido Emílio I. como co-autor material de dois crimes de coacção agravada, crime previsto e punível pelos art. 154.º, n.º 1, e 155.º, do CP, e art. 86.º, n.º 3 e 4, da Lei das Armas, cada um na pena de 3 (três) anos de prisão;
c) Em cúmulo jurídico destas duas penas fixadas, condenar o arguido Emílio I. na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, pena de prisão suspensa na sua execução pelo período de 4 anos ao abrigo do art. 50.º, do CP;
d) Condenar a arguida Libânia I. como co-autora material de dois crimes de coacção agravada, crime previsto e punível pelos art. 154.º, n.º 1, e 155.º, do CP, e art. 86.º, n.º 3 e 4, da Lei das Armas, cada um na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
e) Em cúmulo jurídico destas duas penas fixadas, condenar a arguida Libânia I. na pena única de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão, pena de prisão suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 2 meses ao abrigo do art. 50.º, do CP;
f) Subordinar as suspensões de pena dos dois arguidos a regime de prova e ao pagamento a Maria A. Silva Ferreira, na forma solidária, àquela de uma indemnização no valor de €5.000,00, devendo os arguidos, de 6 em 6 meses, depositar, à ordem dos autos a quantia de €1.000,00, até perfazer aquele montante, o qual posteriormente será entregue àquela ofendida;
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Os arguidos Emílio I. e Libânia I. interpuseram recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:
- o registo da prova contém “impercetibilidades e outras incorreções e incompreensões que limitam a capacidade recursória dos arguidos devendo os autos baixar à primeira instância, agendando-se nova data para a inquirição das testemunhas…”;
- “aos arguidos deverá ser devolvido o valor da multa autoliquidada, por à mesma não terem dado causa…”;
- arguem a nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas – art. 374 nº 2 do CPP;
- arguem os vícios dos arts. 410 nº 2 als. a) e c) do CPP;
- impugnam a decisão sobre a matéria de facto, visando, alterada esta, a sua absolvição;
- questionam o enquadramento penal dos factos; e
- questionam a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da prisão.
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Respondendo, o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.
Nesta instância, a sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
a) No dia 11 de Agosto de 2011, pelas 15.20h, os arguidos Emílio I. e Libânia I., na concretização de um plano previamente engendrado por ambos, deslocaram-se à fábrica de confecção “…”, sita na Rua …, nesta comarca de Fafe, acompanhados por um outro indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, por forma a recuperar os cerca de 1800 pólos que haviam ali deixado para serem bordados.
b) Ali chegados, os arguidos entraram na referida fábrica e, por força da não entrega voluntária, salvo pagamento de uma dívida aí contraída pelos arguidos, o arguido Emílio, dirigindo-se à funcionária Maria F. que ali se encontrava, disse-lhe: “quero as minhas peças, quero os meus pólos”.
c) Nisto, as funcionárias Maria F. e Maria A. disseram ao arguido para ter calma, que iriam telefonar ao patrão para resolverem a situação, tendo o arguido se aproximado da funcionária Maria A. e lhe desferido uma sapatada na mão, fazendo com que o telemóvel que esta trazia na mão caísse para o chão, impedindo-a de realizar qualquer chamada telefónica.
d) Em acto contínuo, a funcionária Maria A. dirigiu-se para dentro do compartimento do seu escritório para tentar telefonar para a polícia, tendo o arguido Emílio seguido no seu encalço, e depois de desferir um pontapé na porta e entrar dentro do referido escritório, abeirou-se junto desta e apontou-lhe um objecto que se assemelhava a uma arma junto do pescoço enquanto lhe dizia repetidamente: “eu mato-te, dou-te um tiro, eu mato-te sua puta, ninguém liga à polícia senão mato-te”.
e) Por força disto, Maria F., acompanhada da arguida Libânia e do terceiro elemento não identificado, abriu a porta do armazém, disponibilizando o acesso às peças de vestuário exigidas.
f) De seguida, os arguidos acompanhados do terceiro elemento, carregaram cerca de 1800 pólos para dentro do veículo automóvel onde se faziam transportar naquele dia, e ausentaram-se daquele lugar.
g) Actuaram os arguidos na concretização de um plano previamente elaborado por ambos, em conjugação de esforços e intentos, com o propósito conseguido de amedrontar como amedrontaram as referidas funcionárias, bem como constrangê-las a entregar as referidas peças de vestuário.
h) Em razão da seriedade das referidas ameaças proferidas pelo arguido Emílio e por acreditarem que o arguido seria capaz de as executar, sentiram as funcionárias medo e inquietação, tendo receado a sua concretização e temido pela sua vida e integridade física.
i) Quiseram os arguidos privar, como privaram, as duas ofendidas da sua liberdade de movimentos, obrigando-as, mediante ameaça, a entregar os ditos pólos e impedindo-as de telefonar à polícia, detendo-as nos seus movimentos e impedindo-as, assim, de se deslocarem livremente.
j) Actuaram os arguidos de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei.
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k) Dos CRC’s dos arguidos não constam antecedentes criminais.
l) O teor dos relatórios sociais de f. 121-127 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
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Considerou-se não provado que:
O arguido mostrou uma arma de fogo pequena, de cor preta, de marca e modelo não apurados à funcionária Maria F. que ali se encontrava e disse-lhe: “quero as minhas peças, quero os meus pólos, senão eu mato o seu marido”.
Maria F. ficou cercada pela arguida e por um terceiro, que se colocaram junto desta com o intuito de a vigiar, controlar e intimidar.
Quando a funcionária Maria F. regressou do armazém, o arguido Emílio, dirigindo-se à mesma, disse que no final do mês ia buscar o dinheiro, tendo acrescentado: “Cuidadinho que eu rebento isto tudo”.
Perante a postura intimidatória da arguida Libânia ao cercar a ofendida Maria F., impondo que a mesma se dirigisse ao armazém da fábrica, conseguiu esta arguida constranger a ofendida a actuar contra a sua própria vontade.
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Transcreve-se igualmente a motivação da decisão sobre a matéria de facto
O tribunal formou a sua convicção do seguinte modo:
Os arguidos não quiseram prestar declarações.
Das testemunhas resultou unânime a presença dos arguidos no dia dos factos. Como resultou consensual que os mesmos tinham encomendado um trabalho à confecção em causa. E a existência da dívida, pelo menos à data, não foi controvertida por ninguém. Isto no que toca ao contexto.
Já quanto à prática dos factos típicos, porém, por razões alheias ao tribunal, as testemunhas, com excepção de Maria A., vieram prestar um depoimento defensivo, incongruente, estranhamente falho de detalhes, atenta a postura destas testemunhas e a versão relatada, tudo conjugado com as regras da experiência. Assim, todos os depoimentos, quanto à dinâmica dos factos (que não aquele contexto supra referido), apresentaram-se manifestamente inverosímeis. Senão vejamos, dando exemplos de cada uma destas testemunhas:
Maria F. Alves veio dizer a tribunal que já não se recordava bem dos factos, designadamente se foi utilizada força para a entrega dos pólos. Como se o uso de uma arma fosse um acontecimento habitual numa pessoa. Aliás, esta testemunha referiu-se genericamente à existência de um conflito, de confusões. E que o arguido pedia as coisas de modo agressivo. Ainda assim admitiu que ela e Maria A. estavam assustadas. De um modo completamente inconsistente, frágil afirmou que o patrão deu ordem para entregar o material.
António F., o dono da confecção, esteve no mesmo registo e quis fazer crer ao tribunal que, apesar de ter acabado por dar ordem para a entrega do material, quando chegou ao local as funcionárias estavam um pouco nervosas. Aliás, basta ver o auto de notícia para se perceber que esta testemunha foi com a GNR para o local. Deste modo, o declarado por esta testemunha resulta imprestável e quase a raiar o absurdo.
Por seu turno, Fernanda G., há alguns anos a trabalhar na …, declarou que viu a discussão e que falavam alto, pedindo a obra quando foram para dentro do escritório. Referiu também que ele tinha qualquer coisa na mão, assemelhando-se a um telemóvel. Mas acabou por admitir que Maria A. lhe disse que foi confrontada com uma arma por parte do arguido. A postura desta testemunha, o modo como depôs, designadamente como tergiversou sobre determinados aspectos impedem-nos também de considerar este depoimento espontâneo, sincero e credível.
Por sua vez Rosa C., maquinista à data, a trabalhar na referida confecção, admitiu ainda assim que ouviu gritos e ameaças, mas estava de costas para a entrada e para o escritório. No fundo, perante uma situação destas manteve-se de costas. Infelizmente, afirmou que hoje em dia não se lembra bem do que dizia o arguido aos gritos. Como se fosse um acontecimento banal, refira-se. Mas, ainda assim, disse que ficou com medo e que ouviu a palavras tiros, mas não sabe quem disse isto: se fosse na altura sabia bem o que disseram, agora não se lembra. Mais disse que viu o arguido a levantar o casaco e a mostrar algo, mas não conseguia ver o que tinha.
Pensamos que tanto basta para concluir como se concluiu supra quanto aos outros depoimentos: imprestável, absurdo e inverosímil.
Por fim, António C., à data a trabalhar na …., declarou que viu o arguido a falar mais alto e que entrou no escritório, mas não viu mais nada. Os colegas é que o alertaram porque onde estava nem se ouvia bem. Viu qualquer coisa na mão, mas não sei o que era.
Mutatis mutandis: o que veio dizer não é, de todo, compatível com as regras do bom senso, a que acresce a postura e o modo frágil como declarou.
Pelo contrário, o depoimento da testemunha Maria A. foi o único que se mostrou sincero, espontâneo, detalhado e rigoroso. Esta testemunha acabou por admitir que, embora não possa ter visto em detalhe a dita arma, concluiu que tinha de ser por lhe ter sido apontado à zona onde foi apontado r porque a Maria F. ofereceu-se logo para dar os pólos, pelo que, na sua óptica, só podia ter sido uma arma. Isto revela sinceridade e reforça o seu depoimento. Como declarou em tribunal a razão para o teor dos depoimentos anómalos dos seus colegas. E disse até que, do que conhecia dos arguidos até àquele momento, nada tinha a apontar. Peremptória, segura e convincente quando afirmou que de modo algum a Maria F. ou quem quer que seja tenha recebido ordens para entregar o material.
Afastados aqueles frágeis depoimentos, com base neste último depoimento, conjugado com as regras da experiência permitem ao tribunal formar convicção no sentido da acusação.
Quanto aos elementos subjectivos considerados provados, o tribunal considera que a forma como os factos foram praticados e atentas as regras da experiência, é forçoso concluir pela sua ocorrência.
O teor do CRC serviu de base para a decisão relativa aos antecedentes criminais dos arguidos.
Os factos não provados resultam da total ausência de prova nesse sentido.

FUNDAMENTAÇÃO
1 – Sob a epígrafe “Nota Prévia”, os recorrentes suscitam várias questões que não podem ser conhecidas pela relação, por serem alheias ao objeto do recurso.
É que os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido. . É pacífica a jurisprudência no sentido de que "a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pela tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei" - por todos, acs. STJ de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJs 364/714 e 390/408.
Vejamos, então, à luz destes princípios as questões suscitadas na referida “nota prévia”.
a) o registo da prova contém “impercetibilidades e outras incorreções e incompreensões que limitam a capacidade recursória dos arguidos (…). Donde, uma necessidade imperativa e categórica de voltar a ouvir as testemunhas e a prova em questão, gravando de forma cabal e audível os depoimentos… (…) devendo os autos baixar à primeira instância, agendando-se nova data para a inquirição das testemunhas…”.
Nesta parte os recorrentes argumentam contra jurisprudência fixada Ac. Fixação de Jurisprudência 13/14, DR 183 SÉRIE I de 2014-09-23: A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada. . Se entendessem que as deficiências das gravações limitavam as suas possibilidades de argumentar no recurso, deveriam ter suscitado a questão junto do tribunal que efetuou o julgamento, requerendo a repetição dos depoimentos, podendo, depois, recorrer, se a pretensão não fosse atendida. Não tendo sido submetida à decisão do tribunal de primeira instancia a questão da invalidade da audiência, não pode agora esta relação conhecer dela. A consequência é a normalização dos efeitos originariamente precários da nulidade, a qual ficou sanada (no caso de ter existido).
b) “Aos arguidos deverá ser devolvido o valor da multa autoliquidada, por à mesma não terem dado causa…”.
Também nesta parte se remete para o que acima se escreveu quanto ao âmbito dos recursos: visam só modificar as decisões recorridas. O recurso vem interposto apenas da sentença, enquanto peça processual autónoma, e não de qualquer decisão que tenha desatendido a pretensão dos recorrentes no sentido de lhes ser devolvida a multa que auto liquidaram.
2 – A nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas – art. 374 nº 2 do CPP
No ato decisório o juiz opta por uma solução, entre várias possíveis e alternativas. O dever de fundamentação destina-se a permitir perceber porque é que a decisão se orientou num sentido e não noutro. Ela deve explanar os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão – cfr., ac. Trib. Constitucional de 2-12-98 DR IIª Série de 5-3-99. Trata-se de uma garantia que tem consagração constitucional – art. 205 nº 1 do CPP.
Uma sentença só não estará fundamentada se não for possível entender o «porquê» do seu conteúdo e não também quando forem incorretas ou passíveis de censura as conclusões a que o juiz chegou. Isso é matéria para a interposição de recurso.
Com isto se esgota a questão da nulidade com base no não cumprimento do disposto no art. 374 nº 2 do CPP. O «exame crítico das provas» destina-se, conjuntamente com a documentação das declarações prestadas na audiência, a permitir, às partes e ao tribunal de recurso, o controlo da decisão da matéria de facto.
Percebidas as razões do julgador, podem as partes recorrer e o tribunal de recurso decidir, confrontando-as com o que consta do registo da prova.
A nulidade em causa só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorretas ou passíveis de censura as conclusões a que, através dele, o tribunal a quo chegou. A demonstração de que determinado raciocínio é ilógico, poderá sustentar, conjuntamente com o registo da prova, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que é questão distinta da nulidade da sentença.
Ora, os recorrentes não indicam qualquer facto relativamente ao qual não perceberam as razões do julgador. Perceberam-nas bem, como mais à frente se demonstrará, quando se tratar da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Discordam da decisão, o que é diferente, mas, mesmo que lhes assista razão na discordância, isso não é gerador da nulidade que invocam.
3 – Os vícios dos arts. 410 nº 2 als. a) e c) do CPP
Os recorrentes confundem o âmbito de arguição dos vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP com a impugnação da decisão sobre a matéria de facto regulada no art. 412 nº 3 do CPP.
Todos os vícios do art. 410 nº 2 do CPP, têm forçosamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos a ela estranhos. Isso decorre expressamente do corpo da norma.
O fundamento a que alude a al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que é coisa bem diferente. Este vício verifica-se quando há omissão de pronúncia pelo tribunal relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão. Ou seja, quando o tribunal não dá como «provado» nem como «não provado» algum facto necessário para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Argumentando sobre este vício, alegam os recorrentes que “a prova produzida como resulta dos autos e analisadas as transcrições dos registos áudio, não autoriza as conclusões vertidas na decisão recorrida…” – Conclusão nº 5.
Por sua vez, o «erro notório» referido na al. c) trata-se de um erro de que o homem médio, suposto pelo legislador, facilmente se dá conta mediante a leitura da decisão recorrida e não com recurso a elementos a ela estranhos”. (...) “O erro notório só existe quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” - ac. STJ de 29-2-96, Revista de Ciência Criminal ano 6 pag. 55 e ss.
Sobre este vício alegam os recorrentes que “as contradições insanáveis existentes entre a matéria de facto impugnada, confrontada com as transcrições efetuadas dos registos técnicos (..) demonstram um notório (…) acumular de erros na apreciação da prova” – conclusão nº 7.
Tanto basta para concluir pela improcedência na arguição dos vícios. Em ambos os casos, para os demonstrar, os recorrentes socorrem-se da prova produzida, não limitando a argumentação ao texto da própria sentença.
Verdadeiramente, pretendem impugnar a decisão sobre a matéria de facto, de que se tratará a seguir.
4 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Nesta parte, a argumentação do recurso assenta num equívoco: o de que a relação pode fazer um novo julgamento da matéria de facto, decidindo, através da consulta do registo da prova e dos elementos dos autos, quais os factos que considera «provados» e «não provados». Como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99. É que “o julgamento a efetuar em 2ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de impugnação em causa, isto é, o recurso… Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…” – ac. TC de 18-1-06, DR, iiª série de 13-4-06.
Por isso é que as als. a) e b) do nº 3 do art. 412 do CPP dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos «concretos» pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa. Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados. Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa (é mesmo este o verbo - «impor» - utilizado pelo legislador) e em que sentido devia ter sido a decisão. É que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Não concretiza aquele Professor a que “vícios” se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.
Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiro e este não tiver sido chamado a depor. Aqui poderemos estar perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação. Poderá ainda afirmar-se a existência de um “vício” no julgamento da matéria de facto, quando a decisão estiver apoiada num depoimento cujo conteúdo, objetivamente considerado à luz das regras da experiência, deva ser considerado fruto de pura fantasia de quem o prestou.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pag. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto direto) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a atuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” – Anotado, vol. IV, pags. 566 e ss.
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A argumentação da motivação do recurso consiste na análise da prova produzida no julgamento e na extração das conclusões que a recorrente tem por pertinentes.
Na realidade, os recorrentes fazem a sua própria análise crítica da prova para concluirem que o essencial dos factos que os responsabilizam deveriam ter sido considerados não provado. Mas o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360 do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito. Fica-se a saber qual teria sido a decisão se os arguidos/recorrentes tivessem sido os juizes do seu próprio caso, mas isso nenhumas consequências pode ter, pois é ao juiz e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar. Verdadeiramente, nesta parte, a procedência do recurso implicava que a relação censurasse o tribunal recorrido por, cumprindo a lei, ter decidido segundo a sua livre convicção, conforme lhe determina o art. 127 do CPP.
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Ao contrário do que alegam os recorrentes, o tribunal a quo não utilizou “apenas o depoimento da única testemunha que serviu os intentos da acusação…”.
Decorre da fundamentação que, efetivamente, o depoimento da testemunha Maria A. foi nuclear para a decisão de facto. Mas não foi o único.
Vejamos:
Sendo certo que ocorreu um episódio relacionado com a entrega dos polos, o julgador foi confrontado com uma série de depoimentos de pessoas que, tendo estados presentes, tiveram condutas próprias de quem pretende tergiversar sobre o que assistiu – admitindo determinados factos, mas “branqueando” o acontecimento tomado na sua globalidade.
O sr. juiz foi exemplar ao indicar os subterfúgios das testemunhas e em que medida, mesmo apesar deles, reforçaram a credibilidade do que disse a Maria A..
Não se vai aqui voltar a transcrever toda a fundamentação. Apenas se realçará o essencial:
- a Maria F. já não se recordava bem dos factos, mas admitiu que ela e Maria A. estavam assustadas. Nesse contexto, é surpreendente não saber afirmar se foi utilizada força e se foi empunhado um objeto semelhante a uma arma, como se o uso de uma arma fosse um acontecimento habitual.
- a postura do dono da confeção ao afirmar ter dado ordem para a entrega do material é contraditória com o que consta do Auto de Notícia;
- a Rosa C. ouviu gritos e ameaças, ficou com medo, mas ter-se-á mantido de costas para nada ver, postura surpreendente e singular.
A prova deve ser, toda ela, conjugada e relacionada. Aliás, nisso consiste o essencial da «exame crítico das provas» referido na norma do art. 374 nº 2 do CPP, que não se pode resumir à mera reprodução do sentido de cada um dos depoimentos. A função do julgador não é a de achar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos. Nem, tão pouco, tem o juiz que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito. Como, aliás, já há muito ensinava o prof. Enrico Altavilla “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras” – Psicologia Judiciária, vol. II, 3ª ed. pag. 12.
Posto isto os desembargadores ouviram o depoimento da Maria A. Silva Ferreira. Foi claro, preciso, sem indícios da falta de isenção. Nada permite retirar-lhe a credibilidade que lhe foi conferida pelo julgador.
À luz dos princípios balizados há que decidir quanto aos factos impugnados.
Em alguns pormenores, embora penalmente irrelevantes, a prova não permite a opção pela redação que consta dos factos impugnados.
Quanto ao facto provado na alínea a)
Contestam os recorrentes ter-se dado como provado que se deslocaram ao local “na concretização de um plano previamente engendrado por ambos…”.
É o que resulta das regras da experiência comum, face à concreta atuação dos arguidos durante o episódio descrito pela Maria A..
Como se sabe, na coautoria não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os atos de execução, bastando que a atuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado Nos termos do art. 26.º do CP, "é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo, ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros". Daqui resulta que basta que o comparticipante contribua com a sua ação, conjugada com a dos outros, para a realização típica do evento qualificado como crime, ainda que não tenha participação em todos os atos que fazem parte daquele processo de realização.
Ora, a Maria A. foi bem clara. Disse, nomeadamente: “estava sempre ele com a arma apontada à minha cabeça. Ele só saiu quando disseram que as peças já estavam carregadas. E foram-se embora, puseram-se a andar” (minuto 4,58).
Este tipo de comportamento conjunto só é pensável após prévio acordo entre todos os intervenientes.
Por isso, mantém-se inalterada a redação do facto.
Quanto ao facto da línea b):
Ali chegados, os arguidos entraram na referida fábrica e, por força da não entrega voluntária, salvo pagamento de uma dívida aí contraída pelos arguidos, o arguido Emílio, dirigindo-se à funcionária Maria F. que ali se encontrava, disse-lhe: “quero as minhas peças, quero os meus pólos”.
A Maria A. afirmou “nós tivemos ordem para não entregar, porque ele já lá devia dinheiro” (minuto 2,12). Também disse que foi a testemunha Fernanda que foi atender à porta. “Tocaram à campainha, a D. Fernanda é que foi à porta e apareceram eles (…) ele a ameaçar a D. Fernanda, que mandava, que fazia, que acontecia (minuto 1,00).
Sendo embora irrelevante, a testemunha não referiu que o arguido Emílio tenha dito concretamente: “quero as minhas peças, quero os meus pólos”.
Assim, este facto ficará com a seguinte redação:
b) Ali chegados, os arguidos entraram na referida fábrica e, por força da não entrega voluntária, salvo pagamento de uma dívida aí contraída pelos arguidos, o arguido Emílio, dirigindo-se à funcionária Maria F. que ali se encontrava, disse-lhe que queria os 1800 polos referidos na al. a).
Quanto ao facto da al. c):
“…fazendo com que o telemóvel que esta trazia na mão caísse para o chão, impedindo-a de realizar qualquer chamada telefónica”.
Disse a Alice: “eu tinha o telefone na mão, eu disse que ia telefonar para eles virem, e ele dá-me uma bofetada na mão, atira-me com o telemóvel ao chão…” (minuto 1,50).
Mantem-se inalterada a redação.
Quanto ao facto da al. d):
Em acto contínuo, a funcionária Maria A. dirigiu-se para dentro do compartimento do seu escritório para tentar telefonar para a polícia, tendo o arguido Emílio seguido no seu encalço, e depois de desferir um pontapé na porta e entrar dentro do referido escritório, abeirou-se junto desta e apontou-lhe um objecto que se assemelhava a uma arma junto do pescoço enquanto lhe dizia repetidamente: “eu mato-te, dou-te um tiro, eu mato-te sua puta, ninguém liga à polícia senão mato-te”.
Na realidade, a Maria A. afirmou que se dirigiu ao escritório, mas não para telefonar. “eu virei-me e ia para o escritório, mas nem ia com a ideia de querer telefonar (…), era para ver se ele se ia embora…” (minuto 2,33).
A testemunha também não chegou a dizer que o arguido Emílio “desferiu um pontapé na porta”. “empurrou a porta” (minuto 3,49) “P. Pode ter sido um pontapé? Acha que foi com o pé? R. Acho que foi com o pé” (minuto 3,58).
Quanto ao uso do objeto que se assemelhava a uma arma, que é o relevante, não podem subsistir dúvidas. “ia com a arma na mão, disse que me matava e pôs-me a arma na cabeça, assim de lado” (minuto 2,44) “Estava sempre com a arma apontada à minha cabeça” (minuto 4,58). Naturalmente, a testemunha não soube especificar as características da arma, pelo que nenhuma censura merece a redação o segmento “objeto que se assemelhava a uma arma” Não há qualquer elemento que permita excluir tratar-se de uma imitação de arma. “P. de que cor era? Lembra-se da cor? R. Ela era cromada, sei que era…” (minuto 3,05).
Finalmente, a expressão “eu mato-te, dou-te um tiro, eu mato-te sua puta, ninguém liga à polícia senão mato-te” não foi referida nestes precisos termos pela testemunha. A testemunha afirmou que o arguido Emílio lhe chamou “puta” e “vadia”, mas em momento anterior a entrarem no escritório (cfr. minuto 2,12).
Assim, este facto ficará com a seguinte redação:
d) Em ato contínuo, a funcionária Maria A. dirigiu-se para dentro do compartimento do seu escritório, tendo o arguido Emílio seguido no seu encalço, e depois de forçar a entrada no escritório com um pé, abeirou-se da Maria A. e apontou-lhe um objecto que se assemelhava a uma arma junto do pescoço enquanto lhe dizia repetidamente que a matava.
Quanto ao facto da al. e):
Por força disto, Maria F., acompanhada da arguida Libânia e do terceiro elemento não identificado, abriu a porta do armazém, disponibilizando o acesso às peças de vestuário exigidas.
Disse a testemunha “A D. Fernanda viu a arma e viu que ele estava… Foi quando ela disse assim: Pronto, eu vou-lhe abrir a porta. Foi abrir a porta à mulher e ao empregado que estava lá e ele ficou lá comigo e com a pistola…” (minuto 3,14). “que me matava, que me dava um tiro, que me matava (…) E a D. Fernanda disse: Pronto eu vou abrir a porta. Ó D. Alice, deixe lá, vamos abrir a porta, antes que ele faça alguma asneira” (minuto 4,04) “A D. Fernanda foi abrir a porta. P. E quem é que foi com ela? R. Era a mulher dele e o empregado que estava com eles” (minuto 4,32).
Mantém-se inalterada a redação do facto.
Quanto ao facto da al. f)
De seguida, os arguidos acompanhados do terceiro elemento, carregaram cerca de 1800 pólos para dentro do veículo automóvel onde se faziam transportar naquele dia, e ausentaram-se daquele lugar.
Se bem se percebe a argumentação, os recorrentes só contestam o facto do arguido Emílio I. ter participado no ato concreto de meter os polos no veículo. É também pormenor despiciendo, face ao que já acima se escreveu sobre a autoria.
Como quer que seja, sendo certo que a testemunha disse “Ele só saiu quando disseram que as peças já estavam carregadas. E foram-se embora, puseram-se a andar” (minuto 4,58), este facto ficará com a seguinte redação:
f) De seguida, a arguida Libânia e o terceiro elemento, carregaram cerca de 1800 polos para dentro do veículo automóvel onde se faziam transportar naquele dia, após o que os três ausentaram-se daquele lugar.
Quanto ao facto das als. g)
Actuaram os arguidos na concretização de um plano previamente elaborado por ambos, em conjugação de esforços e intentos, com o propósito conseguido de amedrontar como amedrontaram as referidas funcionárias, bem como constrangê-las a entregar as referidas peças de vestuário.
Está em causa a atuação conjunta dos arguidos.
Remete-se para o que já acima se escreveu a propósito da al. a).
Mantém-se inalterada a redação.
Quanto ao facto das als. h) e i)
Visam os recorrentes neles apenas seja feita “uma referência apenas e só no singular, quer do lado ativo quer do lado passivo, pois que a penas o arguido poderá, com o seu comportamento condicionar, o mesmo não se podendo imputar à arguida.
É pretensão que tem de improceder, face a tudo o que já acima se escreveu quanto à atuação conjunta dos três elementos.
O mesmo se passa quanto às pessoas alvo da violência. Os recorrentes visam uma redação que coloque a Maria F. fora do objeto dos seus comportamentos. Porém, resulta claro da prova que esta se prontificou a permitir o acesso aos polos, porque a Alice estava com a “arma” apontada a si – Nesta parte remete-se para as transcrições feitas aquando da decisão sob a redação da al. e).
Embora se esteja em sede de matéria de facto, refira-se que neste tipo de crime não é necessário que a violência ou a ameaça vise diretamente a pessoa do coagido. Transcreve-se do Comentário Conimbricense: “A violência tanto pode dirigir-se contra a pessoa do coagido como contra a pessoa de terceiros. Necessário é apenas que o terceiro, objeto da violência, se encontre numa relação de “proximidade existencial” do coagido…” Tomo I, pag. 355. Era manifestamente o caso, pois as duas ofendidas trabalhavam no mesmo local da mesma empresa.
Na redação da al. i) será, no entanto, eliminado o segmento «e impedindo-as de telefonar à polícia», pois foi eliminado do facto da al. d) a referência à intenção da Maria A. telefonar para a polícia, quando se dirigiu ao escritório.
*
Passam, assim, os factos provados sob as alíneas a) a j) a ter a seguinte redação:
a) No dia 11 de Agosto de 2011, pelas 15.20h, os arguidos Emílio e Libânia, na concretização de um plano previamente engendrado por ambos, deslocaram-se à fábrica …., sita na Rua …, nesta comarca de Fafe, acompanhados por um outro indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, por forma a recuperar os cerca de 1800 pólos que haviam ali deixado para serem bordados.
b) Ali chegados, os arguidos entraram na referida fábrica e, por força da não entrega voluntária, salvo pagamento de uma dívida aí contraída pelos arguidos, o arguido Emílio, dirigindo-se à funcionária Maria F. que ali se encontrava, disse-lhe que queria os 1800 polos referidos na al. a).
c) Nisto, as funcionárias Maria F. e Maria A. disseram ao arguido para ter calma, que iriam telefonar ao patrão para resolverem a situação, tendo o arguido se aproximado da funcionária Maria A. e lhe desferido uma sapatada na mão, fazendo com que o telemóvel que esta trazia na mão caísse para o chão, impedindo-a de realizar qualquer chamada telefónica.
d) Em ato contínuo, a funcionária Maria A. dirigiu-se para dentro do compartimento do seu escritório, tendo o arguido Emílio seguido no seu encalço, e depois de forçar a entrada no escritório com um pé, abeirou-se da Maria A. e apontou-lhe um objecto que se assemelhava a uma arma junto do pescoço enquanto lhe dizia repetidamente que a matava.
e) Por força disto, Maria F., acompanhada da arguida Libânia e do terceiro elemento não identificado, abriu a porta do armazém, disponibilizando o acesso às peças de vestuário exigidas.
f) De seguida, a arguida Libânia e o terceiro elemento, carregaram cerca de 1800 polos para dentro do veículo automóvel onde se faziam transportar naquele dia, após o que os três ausentaram-se daquele lugar.
g) Atuaram os arguidos na concretização de um plano previamente elaborado por ambos, em conjugação de esforços e intentos, com o propósito conseguido de amedrontar como amedrontaram as referidas funcionárias, bem como constrangê-las a entregar as referidas peças de vestuário.
h) Em razão da seriedade das referidas ameaças proferidas pelo arguido Emílio e por acreditarem que o arguido seria capaz de as executar, sentiram as funcionárias medo e inquietação, tendo receado a sua concretização e temido pela sua vida e integridade física.
i) Quiseram os arguidos privar, como privaram, as duas ofendidas da sua liberdade de movimentos, obrigando-as, mediante ameaça, a entregar os ditos polos, detendo-as nos seus movimentos e impedindo-as, assim, de se deslocarem livremente.
j) Atuaram os arguidos de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei.
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Quanto aos factos «não provados» nenhuma discordância existe dos recorrentes quanto a eles, pois não pretendem que algum passe a constar dos «provados».
5 – O enquadramento penal dos factos
Toda a argumentação dos recorrentes pressupõe a alteração da matéria de facto em pontos que se mantêm intocados. Nomeadamente, não terem “engendrado qualquer esquema ou plano”; os factos “não terão passado duma altercação ou discussão”; “não quis a arguida a preparação de atos, nem meios, nem execução, nem resultados”.
Mantendo-se, nesta parte, a matéria de facto, o recurso fica sem objeto.
6 – A pena
Para o caso de se manter a condenação, não vêm especificamente impugnadas as penas parcelares fixadas, nem a pena única.
Igualmente, não se questiona a suspensão da execução da prisão decidida para ambos os arguidos.
Questionam, no entanto, os recorrentes a condição a que ficou sujeita suspensão - pagamento à Maria A. do montante de € 5.000,00.
Alegam que tal indemnização é “legalmente inadmissível”, porque a Maria A. poderia ter deduzido pedido cível – art. 71 e ss do CPP.
Porém, afigura-se inegável a possibilidade de se suspender a execução da prisão mediante a condição de entrega de dinheiro ao ofendido, mesmo quando não tiver sido deduzido pedido cível.
Trata-se de um dever expressamente previsto no art. 51 nº 1 al. a) do Cod. Penal. Tem uma dimensão predominantemente económica. Destina-se a «reparar o mal do crime» (cfr. corpo do nº 1), sem deixar de visar a realização das finalidades da punição e de participar da natureza penal do instituto da suspensão.
Em casos como o destes autos justifica-se o recurso a esta faculdade. A Maria A. esteve com uma arma apontada a si, daí decorrendo uma perturbação emocional óbvia. O pagamento permitirá aos arguidos interiorizar mais facilmente o mal que causaram, além de confortar a vítima com a indemnização a que tem direito.
Mas o nº 2 deste artigo dispõe que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de exigir”.
Ora, na sentença, nenhum facto consta, como provado ou não provado, sobre a concreta situação económica dos arguidos, que permita aferir da razoabilidade dos € 5000,00 fixados.
É certo que na última alínea dos factos provados se remete genericamente para o teor dos relatórios sociais de f. 121-127 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Mas um relatório social não é um «facto» que deva ser considerado «provado» ou «não provado» para os efeitos indicados. Contém «factos» e «juízos». Ao julgador compete selecionar os factos que considere demonstrados e pertinentes para a sua decisão, discriminando-os na sentença.
Pois bem, sobre a condição económica do arguido Emílio consta a fls. 122 que “a situação económica da família é descrita como suficiente para a manutenção dos encargos do quotidiano, não se verificando dificuldades a este nível”.
É uma frase meramente conclusiva, que nada concretiza no sentido de permitir aferir da razoabilidade dos € 5.000,00 fixados. Numa família dos mais baixos estratos sociais, o “suficiente para a manutenção dos encargos do quotidiano” pode significar não sobrar nada do rendimento mensal, depois dos gastos com a alimentação, vestuário e habitação, enquanto numa família das classes altas pode equivaler à possibilidade de férias no estrangeiro.
O relatório relativo `arguida Libânia é ainda mais parco.
Tendo ao sr. juiz decidido o pagamento de uma indemnização à Maria A. (decisão que, em abstrato, não merece censura) e não tendo ao seu dispor elementos que lhe permitiam fazer um juízo suficientemente seguro sobre a situação económica e financeira dos condenados, impunha-se que que tivesse reaberto a audiência para produção de prova suplementar para o efeito, como previsto nas normas conjugadas dos arts. 369 nº 2 e 371 do CPP, o que se determina.
A reabertura da audiência poderá ser precedida da elaboração do relatório social a que alude o art. 370 do CPP, onde expressamente se solicite que o mesmo se pronuncie sobre a concreta situação económica dos arguidos.
É o que se decide neste acórdão.
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Em resumo: ordena-se a reabertura da audiência apenas para o efeito da determinação da indemnização em causa (se a situação económica dos condenados o permitir), mantendo-se inalterado o mais que consta da parte decisória da sentença.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães ordenam que pelo mesmo sr. juiz que realizou o julgamento, seja reaberta a audiência para os fins indicados.
Sem custas nesta instância.