Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1053/15.2T8GMR-C.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: INSOLVÊNCIA
REABERTURA DO PROCESSO
NULIDADE DO DESPACHO
VIOLAÇÃO DE CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A nulidade do despacho, por falta de fundamentação, prevista no art. 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação incompleta, deficiente ou pouco persuasiva;

II - Existe violação do caso julgado formal, previsto no art. 620º, do Código de Processo Civil, quando o Tribunal, no mesmo processo, com as mesmas partes e reportando-se aos mesmos factos, verificados e atendidos já na primeira decisão, volta a decidir a mesma questão, nesse mesmo contexto processual, de forma diversa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES NA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

No presente processo comum o Recorrente apresentou-se à insolvência em 10.2.2015, requerendo em simultâneo a exoneração do passivo restante.

Em 12.1.2018, foi proferido o seguinte despacho:

Vistos os requerimentos que antecedem, o disposto no venerando Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Janeiro de 2017 “Decidido num processo a anulação da venda de um imóvel e que mesmo deve ser restituído aos insolventes, passando a integrar a massa insolvente, esse imóvel deve ser apreendido e vendido como tal, mesmo que o processo de insolvência já tivesse sido encerrado nos termos do artigo 230/1-e do CIRE, estando ainda a decorrer o período de cessão de rendimentos inerentes ao pedido de exoneração do passivo restante.” e os factos resultantes da aludida anulação, determina-se a reabertura do processo, encerrado que foi nos termos do art. 230 n.º 1 al. e) do CIRE.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs, o designado insolvente, o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:

1- Vem o presente recurso interposto do despacho de fls.... com a referência 156247693, que determina a reabertura do processo de insolvência.
2- O recorrente não se conforma com o douto despacho recorrido por considerar que a decisão recorrida viola o preceituado no artigo 620º, nº 1 do C.P.C (violação do caso julgado formal), no artigo 154.º do C.P.C (falta de fundamentação) e no art. 616.º do C. C.
3- Em 13/10/2015 o Tribunal a quo proferiu despacho inicial de exoneração de passivo restante e de nomeação de fiduciário, tendo sido ordenado que se solicitasse “ao processo que corre termos na Instância Central Cível de Coimbra, J3- n.º 497/12.6TBPCV, informação sobre o estado dos autos de impugnação pauliana”.
4- Em 22/02/2016 foi enviado ao Tribunal a quo o acórdão proferido no âmbito da ação de impugnação pauliana com indicação do seu trânsito em julgado.
5- Em 25/02/2016 o Tribunal a quo proferiu despacho no qual se referia que, considerando o acórdão do Tribunal de Coimbra, não se procedia ao encerramento do processo de insolvência pois o património do insolvente aumentaria.
6- Por requerimento remetido ao Tribunal a quo em 14 de Março de 2016, a credora P., S.A. requereu o encerramento do processo de insolvência, alegando, em síntese: que intentou a ação de impugnação pauliana contra o aqui insolvente e outros, tendo a mesma sido julgada procedente; que nessa ação foi declarada a ineficácia das doações relativamente à P. S.A., na medida do seu interesse até onde for necessário para a cobrança dos seus créditos; que “face aos interesses e efeitos da ação pauliana, os bens objecto das escrituras, declaradas ineficazes em relação à Autora, não poderão ser apreendidos nos presentes autos”; que “os efeitos da impugnação pauliana aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido (artigo 616.º, n.º 4, do Código Civil), uma vez que o negócio impugnado é válido, não padecendo de qualquer vício de nulidade ou de anulabilidade”; e que “a ação de impugnação pauliana não opera em benefício dos demais credores que não a tenham requerido, razão pela qual os bens imóveis objecto dos atos impugnados não podem vir a ser apreendidos nos presentes autos”.
7- Em 05/07/2016, o Tribunal a quo proferiu despacho de encerramento do processo.
8- Por requerimento remetido a 15/112017, a P., S.A. requereu a reabertura do processo de insolvência invocando o acórdão proferido no âmbito da ação de impugnação pauliana.
9- A este requerimento respondeu o ora recorrente alegando, em síntese, que não havia fundamento para o pedido de reabertura do processo, que já se havia formado caso julgado, que o requerimento da P. S.A. se traduzia num venire contra factum proprium e que os bens objeto de impugnação pauliana não integram a massa insolvente, havendo uma mera ineficácia do acto.
10- Como referido supra, o processo de insolvência foi encerrado já depois de conhecido e transitado em julgado o acórdão proferido na acção de impugnação pauliana, o que só pode querer significar que foi entendido que os bens objecto de impugnação não integram a massa insolvente.
11- Desse despacho de encerramento não houve recurso, pelo que constituiu caso julgado.
12- Conforme já foi decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/2014 “Essa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.” § Deste modo, compreende-se que se admita o chamado “caso julgado implícito”, quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência necessária, outra a que o caso julgado se alarga.” (in www.dgsi.pt)
13- Conclui-se, assim, que existe um caso julgado implícito, formado pelos fundamentos lógico-jurídicos de todo o processado.
14- Nos termos do diposto no art. 17.º, n.º 1 do CIRE “Os processos regulados no presente diploma regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”.
15- Nos termos do disposto no art. 154.º, n.º 1 do C.P.C. “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. 16- Acresce o n.º 2 que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição...”.
17- Ora na decisão de que se recorre o Tribunal a quo limita-se a referir que “Vistos os requerimento que antecedem, o disposto no venerando Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Janeiro de 2017” (...) “e os factos resultantes da aludida anulação, determina-se a reabertura do processo (...) ”.
18- E não se diga que a transcrição de um acórdão em que se analisa a anulação de uma venda é suficiente para fundamentar uma decisão de reabertura de processo tendo por base uma ação de impugnação pauliana!
19- É assim claro que a decisão proferida não tem qualquer fundamentação, o que a torna nula nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1 alínea b) do C.P.C.
20- Mais: a falta de fundamentação implica que não se possa aferir da constitucionalidade da norma, ou da sua interpretação, que subjaz à decisão proferida.
21- O Tribunal a quo profere despacho decidindo pela reabertura do processo de insolvência considerando o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa “e os factos resultantes da aludida anulação”.
22- Ao contrário do que é referido no despacho de que se recorre, não houve qualquer anulação de uma venda de bens anteriormente pertencentes aos insolventes.
23- Na verdade, e citando a credora P., S.A. “o negócio impugnado é válido, não padecendo de qualquer vício de nulidade ou de anulabilidade”.
24- E outra conclusão não é possível considerando, não só a letra da lei, mas todos as demais regras interpretativas do nosso ordenamento jurídico.
25- O artigo 1044.º do Código Civil de 1867, integrado no Capítulo XI (Dos actos e contratos celebrados em prejuízo de terceiro) dispunha que “Rescindido o acto ou contrato, revertem os valores alienados ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores”.
26- Por sua vez, o n.º 4 do art. 616.º do actual Código Civil dispõe que “Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.
27- Resulta, assim claro, que foi afastada a doutrina anterior segundo a qual os bens objecto de uma impugnação pauliana revertiam ao património do devedor.
28- Resulta também claro que o ato impugnado não está ferido de qualquer vício intrínseco que origine a sua nulidade ou anulabilidade, mas apenas a sua ineficácia relativamente ao credor impugnante.
29- Neste sentido, os Acórdãos de 30/04/2015 proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães e de 15/01/2004 pelo Supremo Tribunal de Justiça (in www.dgsi.pt).
30- Mais: o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) dispunha, no seu art. 157.º, que “São impugnáveis em benefício da massa falida todos os actos susceptíveis de impugnação pauliana nos termos da lei civil”.
31- Resulta, assim, que à data em que se encontrava em vigor o CPEREF a impugnação pauliana, quando procedente, tinha como efeito a reversão dos bens para o património dos devedores insolventes, aproveitando a todos os credores.
32- No entanto, o novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) veio afastar este regime, não existindo qualquer norma semelhante à anteriormente em vigor.
33- No novo código o legislador reforçou o instituto da resolução a favor da massa insolvente, que aproveita a todos os credores, ou seja tem carater universal.
34- Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 9.º do C.C. “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”
35- Ora, analisando a letra da lei, bem como o seu espírito, dúvidas não restam que o legislador, nas suas diversas alterações, pretendeu excluir a restituição dos bens à massa insolvente no caso em que um credor obteve vencimento numa ação de impugnação pauliana.
36- Assim, não pode agora o Tribunal a quo decidir reabrir uma processo de insolvência tendo por base uma ação de impugnação pauliana intentada por um credor em manifesta violação da letra e do espírito da lei.

Nestes termos deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência revogar-se o douto despacho recorrido por violação do caso julgado;
Caso assim não se entende, deve verificar-se a falta de fundamentação do despacho recorrido e, em consequência, ser declarada a sua nulidade;
Caso assim não se entenda, deve revogar-se o despacho recorrido por violação da letra e espírito das normas relativas à impugnação pauliana.

A Recorrida P. apresentou contra-alegações onde conclui pela manutenção do decidido.

II – Delimitação do objeto do recurso a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial. (1) Esta limitação objectiva da função do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas (2) que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. (3)

As questões enunciadas podem ser sintetizadas da seguinte forma:

- Nulidade por falta de fundamentação do despacho recorrido, prevista no art. 154º, do Código de Processo Civil, de acordo com o ditado pelo art. 615º, nº 1, al. b), do mesmo Código;
- Violação do caso julgado formal, por via do disposto no art. 620º, do Código de Processo Civil;
- Violação do dispositivo do art. 616º, do Código Civil.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos Relevantes

Os infra e supra relatados, tendo por fonte probatória o que ressalta do processo digital e o que as partes entretanto documentaram neste recurso.

1. Em 25.3.2015, foi, por sentença, decretada a insolvência do Recorrente.
2. Em Assembleia de Credores de 21.5.2015, ficou registado, além de mais, em ata o seguinte: De seguida, a Mmª. Juiz, ordenou a passagem imediata aos trabalhos da presente Assembleia de Apreciação do Relatório notificando os credores presentes para se pronunciarem quanto à exoneração do passivo, bem como ao encerramento do processo como proposto pelo Srº. Administrador de Insolvência, nos termos do disposto no artº 232º, nº 2 do C.I.R.E.. Dada a palavra à Ilustre Mandatária presente pela mesma foi dito que corre termos uma acção de impugnação pauliana intentada pelo credor P. S.A. (cfr. fls. 247). Dada novamente a palavra à Ilustre Mandatária presente para se pronunciar sobre o relatório a mesma disse que vota favoravelmente ao pedido de encerramento do processo e vota contra o pedido de exoneração do passivo restante face aos elementos apresentados pelo Srº Administrador de Insolvência, uma vez que o seu crédito está vencido desde 2011 e o insolvente não se apresentou à insolvência nos termos da al.d), do nº 1º, do artº 238º, do C.I.R.E.- Nesta altura, a Mmª. Juiz proferiu o seguinte: DESPACHO: Relativamente ao pedido de exoneração do passivo, o Tribunal determina a notificação dos credores que não compareceram para em 10 dias, querendo, se pronunciarem sobre o mesmo. (…).
3. No referido relatório o Administrador fazia referência aos imóveis doados pelo Insolvente em 2010 (nas datas infra citadas em 6.) e à acção de impugnação nº 497/12, concluindo, contudo, ser inviável aplicar o disposto no art. 186º, nº 1, do CIRE e desconsiderando assim tais bens para dizer que inexistem bens a apreender e que o processo deve tender para o encerramento, nos termos do nº 1, als. e) ou d, do art. 232º, do CIRE.
4. Em 13.10.2015, foi proferida decisão que admitiu a oportuna exoneração do passivo restante, verificadas a condições nela estabelecidas, tendo pedido informação sobre o estado daquele processo 497/12.
5. Em 25.2.2016, o Tribunal, em face da informação de que havia sido proferida sentença nesse processo, decidiu aguardar, sic: Face ao teor do requerimento com a referência 3232203 este Tribunal não determina, por ora, o encerramento dos autos, uma vez que existindo o trânsito em julgado da sentença proferida na Instância Central Cível de Coimbra, o património do insolvente vai aumentar, de forma a possibilitar a liquidação nestes autos e a apreensão dos bens. Assim com cópia do mesmo, notifique imediatamente o senhor administrador judicial, bem como os demais credores. Solicite ao processo referido, que informe do trânsito em julgado da mencionada sentença.
6. Nessa ficou decidido, sic: Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente provada e procedente e, em consequência: A) Declaro ineficaz em relação à autora o ato de doação realizada no dia 20 de Janeiro de 2010 no Cartório sito na Rua …, na cidade de Braga, perante a notária M. A. de: a) Prédio urbano sito no Lugar …, freguesia e concelho de Penacova, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º … (cfr. doc. n.º 3); b) Prédio urbano sito na Rua … antigo Lugar da …, freguesia e concelho de Penacova, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ... (cfr. doc. n.º 4); c) Prédio rústico sito no Lugar …, freguesia de …, concelho de Penacova, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º … (cfr. doc. n.º 5); e ainda d) Quota nominal no valor de € 12.469,95 titulada em nome do 1.º Réu Joaquim … da sociedade “X, Lda.”, com o NIPC xxxxxxxxx com sede na Avenida …., concelho e freguesia de ….. b) Declaro ineficaz em relação à autora o ato de doação realizada no dia 1 de Abril de 2010 no Cartório sito na Rua do…, na cidade de Braga, perante a notária M. A., do prédio urbano composto por parcela de terreno destinado a construção, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º 518 e inscrito na matriz sob o artigo …, da freguesia de …, concelho de Penacova. C) Ordeno a restituição dos imóveis ao património dos Réus …., para aí serem executados na medida do interesse da Autora e até onde for necessário para cobrança dos seus créditos supra descritos. D) Absolvo os RR. do resto do pedido.
7. Em ofício que entrou nestes autos em 4.3.2016, o referido Proc. 497/12, informou que a sentença proferida transitara em julgado.
8. Notificadas as partes, em 14.3.2016, a Recorrida P. requereu o encerramento do processo nos termos exarados no requerimento junto a fls. 48 e ss., que aqui se dá por reproduzido e em que, em suma, se defende que o resultado da decisão proferida no processo 497/12 só a si (impugnante nesses autos) e na medida dos seus créditos, aproveita, dado que o administrador desta insolvência não o fez para pedir o encerramento do processo por “manifesta insuficiência da massa insolvente nos termos do disposto no art. 230º, nº 1, al. d)”.
9. Segue-se, sem mais qualquer registo no processo, que em, 5.7.2016, o Tribunal recorrido declarou, sem qualquer impugnação das partes, encerrado o processo de insolvência, ao abrigo do disposto no art. 230º, nº 1, al. e), do C.I.R.E., determinando o cumprimento do disposto no seu nº 2 e, em simultâneo, declarando iniciado o período de cessão.

Disse para o efeito, sic: “Do encerramento do processo:

Da conjugação dos artigos 232.º, n.º 6, e 248.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa resulta que o processo de insolvência não pode ser encerrado por insuficiência da massa quando o devedor tenha apresentado um pedido de exoneração do passivo restante, e até que seja proferida decisão final desse pedido.
Para resolver o impasse criado por estas normas, e tendo em conta que o encerramento do processo de insolvência é pressuposto do início do chamado “período de cessão”, ou seja, dos cinco anos para a cessão do rendimento disponível (cfr. o artigo 239.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril aditou uma nova alínea ao elenco das causas de encerramento do processo de insolvência [cfr. Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, Almedina, 5.ª edição, pág. 144].

Assim, o artigo 230.º, n.º 1, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção aprovada pela mencionada Lei n.º 16/2012, estatui contudo que o processo de insolvência é declarado encerrado quanto «este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º».”
10. Em 15.11.2017 a mesma Recorrida apresentou novo requerimento, desta feita a pedir a reabertura do processo com vista à liquidação do património do insolvente, conforme escrito junto a fls. 53 destes autos alegando, em suma: a existência do processo 268/11; o historial do processo 497/12; a sua visão do que aconteceu neste processo, em que teria ocorrido o seu encerramento em 21.5.2015; a circunstância de, em resultado da sentença proferida naquele processo 497/12, ter passado a integrar a massa insolvente os bens mencionados no dispositivo da sentença supra referida. Cita-se o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.1.2017 e pede-se, sem mais, a reabertura do processo.
11. O Recorrente opôs-se (30.11.2017), invocando a inexistência dos devidos pressupostos e a violação do caso julgado, conforme escrito junto a fls. 88 e ss..
12. O Administrador nada opôs (28.11.2017), ressalvando, contudo, as dúvidas que tinha sobre o relevo de tal decisão para a massa.
13. A Recorrida P. retorquiu salientando que só tivera conhecimento da decisão da A.E. que impossibilitava a penhora dos bens em causa depois do seu requerimento de 14.3.2016.
14. Seguiu-se o despacho recorrido, acima transcrito.

2. Direito

2.1. Da nulidade por falta de fundamentação

Nos termos do Artigo 615º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
Esta norma é aplicável aos simples despachos (cf. art. 613º, nº 3, do C.P.C.) e aos processos de insolvência, ex vi art. 17º, do CIRE (4).

É incontroversa a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, como condição da sua própria legitimação e da verificação de um processo equitativo.
No plano do direito fundamental internacional, esta última exigência emerge, v.g., do disposto nos arts. 6º, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem das Liberdades Fundamentais, e 10º Declaração Universal dos Direitos do Homem. A nível constitucional, estipula-o art. 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
Ao nível da legitimação decisória, estabelece o disposto no art. 205º, nº 1, da mesma Constituição que (1.) As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

Esta estabelece no art. 154º, do Código de Processo Civil, que (1) as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. (2) A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Acerca de tal exigência já dizia Alberto dos Reis (5): «A exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser.
Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão o tribunal tem de justificá-la, pela razão simples de que a decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão; mas mal vai a força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que decisão é conforme à justiça.

A função própria do juiz é interpretar a lei e aplicá-la aos factos em causa; por isso, deixa de cumprir o dever funcional o juiz que se limita a decidir, sem dizer como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto. A decisão é um resultado, é a conclusão dum raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge».

Todavia ensinava ainda a este propósito este mesmo Professor que (6)

«Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto

Nas palavras precisas de TOMÉ GOMES, (7) «Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»

Conforme se refere de forma lapidar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, Raul Mateus (8), “ (...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.” O mesmo Tribunal precisou que a nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final (Acórdão de 15.12.2011, Pereira Rodrigues, 2/08). Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº1 do Artigo 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11. «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (9).

Visto isto, segundo uma orientação doutrinal e jurisprudencial há muito sedimentada, para que a sentença ou despacho careça de fundamentação, não basta que esta seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
Portanto, a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, enfraquecendo somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso.

Assim, a nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação incompleta, deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que permita descortinar as razões que conduziram à decisão proferida a final.

Como se refere no Ac. dessa Relação, de 21.5.2015 (10): «O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), repetidamente aconselha que: a extensão da obrigação de motivação pode variar consoante a natureza da decisão e deve analisar-se à luz das circunstâncias do caso concreto; a motivação não deve revestir um carácter exageradamente lapidar, nem estar por completo ausente (cf. Vincent e Guinchard, Procédure Civile, Dalloz, §1232, e arestos aí citados). Mostra-se ainda útil esclarecer, a este propósito, que a exegese do disposto no art.º 668º nº1 al. b) C.P.Civ., de há muito vem entendendo que a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso – veja-se, por todos, Teixeira de Sousa, in «Estudos», página 222. Só a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão. Ao aludir-se a “ausência de qualquer fundamentação” quer referir-se a falta absoluta de fundamentação, a qual porém pode reportar-se seja apenas aos fundamentos de facto, seja apenas aos fundamentos de direito.

Também a doutrina se pronuncia em sentido idêntico. Veja-se Teixeira de Sousa in «Estudos sobre o Processo Civil», pág. 221, «esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208.º, n.º 1 CRP e artigo 158.º, n.º 1 CPC) …o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».

Lebre de Freitas in «Código de Processo Civil Anotado», vol 2.º, pág. 669, refere que «há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação».

De igual modo Antunes Varela in «Manual de Processo Civil», 2.ª edição, pág. 687, entende que a nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação.
Assente esta interpretação das normas em apreço, vejamos se a decisão em crise está afectada desse vício fundamental.
Olhando ao julgado por último pelo Tribunal recorrido, constatamos que a decisão, ainda que de forma parca, revelou ter-se reportado aos requerimentos das partes que acima assinalámos e que antecedem o seu juízo, ter invocado a jurisprudência que identifica e a doutrina que a ela subjaz, bem como o disposto no art. 230º, nº 1, al. e), do CIRE, para a sustentar juridicamente e, aplicando-a aos factos da referida acção pauliana, discutidos pelas partes, decidir, como decidiu.

No seu percurso, essa fundamentação deixa completamente de lado outras questões, que podem ou não estar prejudicadas por esse julgado e, pelo menos uma, aliás de conhecimento oficioso, que seguramente não o está e não foi decidida: não se aborda de forma alguma a violação do caso julgado, invocada pelo insolvente no contraditório que a antecedeu, como exigia o dispositivo do art. 608º, do Código de Processo Civil.

Sem prejuízo da verificação de todas essas lacunas e de não se ter sequer tentado repará-las antes da subida do recurso (cf. art. 617º, nº 1 do C.P.C.), essa decisão não pode ser classificado como completamente omissa porque contém uma fundamentação, ainda que deficiente e silogisticamente incompleta, o que retira sustento à nulidade arguida pelo Recorrente, que assim se indefere.

2.2. Da violação de caso julgado anterior

Neste outro capítulo, o Recorrente alega que existe caso julgado formal, na génese do qual se encontra a decisão proferida pelo Tribunal em 5.7.2016.

Da opinião significativa da Recorrida/alegante, ainda aqui sem qualquer sustento normativo que em concreto o sustente, retém-se que sic, estamos perante circunstâncias supervenientes que determinam a existência de património em nome do Insolvente, o qual faz parte integrante da massa insolvente. No seu novíssimo entender, (…) conforme resulta dos presentes autos de insolvência, a Credora P., S.A. veio a ter posteriormente conhecimento de que o registo de penhora dos bens imóveis não era possível uma vez que a acção executiva n.º 268/11.7TBVRM se encontrava suspensa relativamente ao ali Executado ….. Com efeito, a Credora P., S.A. viu rejeitada a penhora dos bens imóveis objecto da acção de impugnação pauliana n.º 497/12.6TBPCV, pelo que, em 15 de Novembro de 2017, veio requerer a abertura do presente processo de insolvência.

Vejamos a quem assiste razão.

Como já dizia o Código Civil de Seabra de 1867, no seu art. 2502º (Do Caso Julgado), caso julgado é o facto ou o direito, tornado certo por sentença de que não há recurso.
O actual Código de Processo Civil, dita nessa linha, no seu art. 619º, que (1) Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.

Por sua vez, o art. 620º, do mesmo Código, reportando ao caso julgado formal que aqui se discute, dita que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo. (2) Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º.

Esse art. 580º, esclarece que (1) as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado. (2) Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

Concretiza-se nesse art. 581º (1) repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. (2) Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. (3) - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. (4) Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

Por sua vez, o seu artigo 621.º, reportando-se ao seu alcance, estipula que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.

Estamos assim, apesar de o legislador qualificar o caso julgado como excepção peremptória, de alguma forma no âmbito dos pressupostos processuais que, como refere Miguel Teixeira de Sousa (11), definem as condições nas quais o direito subjectivo alegado pelo autor pode obter a tutela jurisdicional concedida através de uma decisão de procedência. Nesta perspectiva, os pressupostos processuais constituem limites intrínsecos à concessão da tutela jurisdicional e realizam uma função reguladora ou ordinatória, pois que determinam os condicionalismos processuais nos quais essa tutela pode ser concedida à parte requerente. (…) A consagração legal destes pressupostos visa acautelar determinados interesses que devem ser observados na concessão da tutela judiciária. (…) No direito positivo, que qualifica como peremptória a excepção de caso julgado (496º, al. a)), parece restar apenas a competência absoluta (quer a interna, quer a tendencialmente internacional) como exemplo dos pressupostos que acautelam interesses da titularidade do Estado e relativamente aos quais se justifica a precedência da sua apreciação, como, de algum modo (…). Em contrapartida, a generalidade dos pressupostos processuais visa salvaguardar os interesses das partes garantindo um equilíbrio de forças e de oportunidades entre os litigantes. (…) Mas a grande maioria dos pressupostos processuais tem por função preservar o réu de sacrifícios inúteis ou desnecessários, dado que a concessão de tutela judiciária à situação subjectiva alegada pelo autor não pode postergar todos os interesses desta parte passiva: assim, o réu não pode ser obrigado a discutir um certo objecto quando está pendente um outra causa sobre o mesmo objecto ou quando esse objecto já foi decidido noutra acção (o que justifica a previsão das excepções de litispendência e de caso julgado), quando a concessão da tutela judiciária em nada aproveita ao autor ou pode ser obtida através de outro meio processual menos oneroso para o réu (o que fundamento a exigência do interesse processual) do autor (…).

Trata-se de um instituto com raízes no direito fundamental, constitucional. O caso julgado está intimamente ligado ao princípio do Estado de Direito Democrático e uma garantia basilar dos cidadãos onde deve imperar a segurança e a certeza. Não obstante, o respeito pelas decisões no poder judicial, já anteriores à república, e que se encontram presentes na actualidade consubstanciam ao valor máximo de justiça aliado ao princípio da separação de poderes (12).

O fundamento do caso julgado reside, por um lado, no prestígio dos tribunais, o qual «seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente» e, por outro lado, numa razão de certeza ou segurança jurídica, pois «sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa. (…) Seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu.“. (13)
“Se assim não fosse, os tribunais falhariam clamorosamente na sua função de órgãos de pacificação jurídica, de instrumentos de paz social”. (14)

Dito isto, no que concerne à tríplice identidade mencionada no citado art. 581º, menciona o mesmo texto que quanto à identidade de sujeitos, o que é essencial não é a sua identidade física, mas a mesmidade da posição ou da qualidade jurídica na titularidade direitos e obrigações contemplados pelo julgado (15). Todavia, a relatividade subjectiva do caso julgado não obsta a que este se possa estender a terceiros, mormente nos casos em que da lei resulte tal extensão (16).
Também, no que respeita à identidade do pedido e da causa de pedir, importa aferi-la não de um modo global, mas sim em função de cada pretensão parcelar em que se possa decompor o objecto das causas em confronto e dos correspectivos segmentos decisórios. (…)

No presente processo, estão em confronto duas decisões acima notadas: a decisão de 5.7.2016, transcrita em 9., supra, e a agora impugnada e também acima reproduzida.

Tendo em mente que as decisões dos Tribunais não deixam de ser declarações que, em última instância devem ser interpretadas à luz das regras gerais, como a do art. 236º, do Código Civil, apesar da natureza lacónica das que aqui se analisam, temos como dado adquirido que aquela decisão original de 5.7.2016, envolvendo as mesmas partes, no mesmo processo, decidiu sobre o encerramento da insolvência na sequência dos pedidos acima reproduzidos, que a antecederam, do factualismo que foi sendo oficiosamente adquirido nos autos, designadamente o relativo ao famigerado processo nº 497/12, não se podendo no entanto esquecer a sua letra e o que dela se pode retirar ou deduzir, razoavelmente.

Quando emitiu a sua pronúncia, que devia ter obedecido melhor a todos os cuidados acima enunciados, o Tribunal recorrido, tendo em conta os dados relativos ao definitivo desfecho dessa acção pauliana e a posição do Administrador da Insolvência e da Requerente P., entendeu que, por um lado, seria inviável extinguir o processo por insuficiência do património do devedor, segundo o disposto nos arts. 232º, nº 6, e 248º, nº 1, do CIRE, salientando expressamente que isso se devia à circunstância de estar em curso a fase de consolidação da condicionalmente deferida exoneração do passivo restante, que a isso obstaria.

De seguida, citando a recente norma do art. 230º, nº 1, al. e), do mesmo Código, a decisão considera actualmente resolvido com esta o “impasse” criado por aquelas normas e julga encerrado o processo.

Tendo em conta esse texto e o seu enquadramento, julgamos que o Tribunal a quo considerou na sua decisão que, não obstante aquela decisão do Proc. 497/12, o património do devedor era insuficiente e que, não obstante a previsão daquelas primeiras normas, poderia decretar o encerramento, como decretou e pretendia a P. a contento do aqui Recorrente: por um lado, dita-o o silogismo do processo contraditório e instrutório anterior e, o bom senso que presumimos existir no Tribunal, dado que seria absurdo que, com essa interpretação, se estivesse a admitir tal benefício ao devedor, supondo que se entendia que os bens acima citados poderiam alguma vez ser da massa e ainda assim se deixava encerar o processo sem mais; por outro, lado, o uso da expressão “impasse” só pode querer significar que, na posição assumida pelo Tribunal, essa insuficiência existia e que, só a interpretação daquelas normas, impediam o seu efeito.

Na verdade, essa norma do art. 230º, visa precisamente os casos de insuficiência, como defende precisamente a autora, obra e texto da passagem que a decisão em crise teve em conta na fundamentação dessa decisão que, por isso, julgamos aqui ser relevante para a interpretação não jurídica do seu sentido: Catarina Serra (17), in O Regime Português da Insolvência, p. 144 – reportando-se ao objecto dessa norma, afirma respeitar a: “situações em que se verifica a insuficiência de bens do insolvente e este beneficia do diferimento do pagamento de custas”.

Ora, na decisão agora impugnada, embora com uma linguagem que se mantem lacónica, a exigir um esforço de interpretação similar, não nos restam dúvidas atendíveis sobre cerne da questão decidida – a factualidade decorrente do dispositivo da sentença proferida naquela acção de impugnação - que a decisão recorrida classifica de “anulação”, embora se trate de “ineficácia” (18) – e o seu efeito neste processo de insolvência. Dita-o a interpretação possível mas exigível da sua letra e o contexto processual em que foi emitida (cf. art. 236º, nº 1, do Código Civil).

Nessa decisão não vemos qualquer referência à invocada pertinência de dados, alegadamente supervenientes, relativos à frustração das suas intenções em sede executiva, que a Recorrida P. só introduziu em articulado de resposta à Recorrente (aliás inadmissível no incidente em apreço (cf. arts. 299º e ss., do Código de Processo Civil).

Estamos assim, perante duas decisões de sentido oposto, que incidiram sobre os mesmos factos (19) (que ao contrário do previsto no citado Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, se verificaram antes da decisão de encerramento e são de natureza distinta), invocando a final a mesma norma (citado art. 230º, nº 1, al. e)), no mesmo processo, envolvendo as mesmas partes, razões pelas quais julgamos que a agora impugnada excedeu o poder jurisdicional antes exercido e, por isso, viola o caso julgado em 5.7.2016, formado intra processo, entre aquelas mesmas, subsumindo-se, portanto, à previsão do citado art. 620º, do Código de Processo Civil.

Em face do exposto, julgamos fundada a excepção invocada pelo Recorrente e, por isso, procedente o recurso, com prejuízo para o conhecimento da terceira questão suscitada e acima enumerada (20).
*

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação e declarar ineficaz, por violação do caso julgado, a decisão recorrida.

Custas da apelação pela Recorrida (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
Guimarães, 17.5.2018

José Flores
Sandra Melo
Heitor Gonçalves


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
2. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
3. Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
4. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
5. Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, págs. 172-173.
6. Código de Processo Civil Anotado, V Volume, p. 140
7. Da Sentença Cível, p. 39
8. C.J. 1995 – II, p. 58
9. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, Gilberto Jorge, 91/09
10. In http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/98ce9149fb316f8e80257e84004c2c5a?OpenDocument
11. In Sobre o Sentido e a Função dos Pressupostos Processuais (Algumas Reflexões Sobre o Dogma da Apreciação Prévia dos Pressupostos Processuais Na Acção Declarativa), p. 102 e ss.
12. MIGUEL PIMENTA DE ALMEIDA, in A INTANGIBILIDADE DO CASO JULGADO NA CONSTITUIÇÃO (BREVÍSSIMA ANÁLISE), p. 18
AUTOR:
13. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 306.
14. Antunes Varela e outros, in Manual de Processo Civil, 2ª Ed., p. 705
15. Neste sentido, vide, entre outros, Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1981, pp. 97-99.
16. Vide Alberto dos Reis, ob. cit. p. 99.
17. Cf. citação a p. 597, in Um Curso de Direito da Insolvência, de Alexandre de Soveral Martins.
18. A final irrelevante para a massa, tal como se defendeu originalmente neste processo e é jurisprudência deste Tribunal no Ac. de 26.1.2017: I – O atual regime insolvencial apenas impede a pendência e/ou interposição de acção de impugnação pauliana se e na medida em que esta possa contender com resolução do ato respectivo levada a cabo pelo Administrador da Insolvência. II - Em caso de inexistência ou improcedência da resolução do Administrador da Insolvência, o processo de insolvência em nada contende com acção de impugnação pauliana pendente ou a interpor em Juízo. III - Nem poderia ser de outra forma: actualmente a acção pauliana traduz-se num direito pessoal de restituição, em nada afectando o ato translativo de situações jurídicas para terceiro. Por inerência, não ocorrendo resolução do ato jurídico em causa pelo Administrador da Insolvência, o objecto do ato translativo para terceiro não pode ser considerado como integrando a massa insolvente, por pertencer a terceiro.
19. …por sinal reproduzidos em dois requerimentos da Recorrida Parvalorem em que, pelos mesmos, se defendem, em cada um, teses diversas
20. Que de resto, já teve jurisprudência no arresto deste Tribunal da Relação de Guimarães, acima anotado…