Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2842/16.6T8AVR.G1
Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
SUBSIDIARIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Não ocorre nulidade por “omissão de pronúncia” quando o tribunal, na decisão proferida, deixa de apreciar determinada questão suscitada pela parte, porque necessariamente prejudicada (art. 608º, n.º 2, do C. P. Civil) face à solução adotada sobre outra questão que compromete irremediavelmente o sucesso daquela.

II- O funcionamento do instituto do “enriquecimento sem causa”, atenta a sua natureza subsidiária, pressupõe necessariamente a ausência de outro meio jurídico alternativo para o ressarcimento do empobrecido (art. 474º, do C. Civil).

III- Assim, nos casos em que as regras da invalidade ou da resolução dos contratos resolverem a deslocação patrimonial decorrente do negócio, não há que recorrer ao “enriquecimento sem causa”.

IV- Estando em causa um negócio jurídico, a eventual deslocação patrimonial daí adveniente, tem, em princípio, a sua causa no cumprimento daquele mesmo negócio, o que invalida o recurso ao “enriquecimento sem causa” por falta de um dos pressupostos legais (ausência de causa justificativa).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

X – Hóstias Para Ovos Moles, Lda. intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Maria, pedindo que:

a) Seja a ré condenada a pagar à autora a quantia global de € 11.271,72, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;
b) Seja a ré condenada a pagar à autora os danos não patrimoniais causados à mesma, em valor a liquidar pelo tribunal, mas que não deverá ser inferior a € 3.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Sem prescindir (subsidiariamente), pede a condenação da ré a restituir à autora a quantia global de € 11.271,72, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.

Para o efeito, alegou, em suma, que celebrou um contrato de prestação de serviços com a ré, nos termos do qual esta se vinculou a proceder ao registo de desenho ou modelo industrial dos moldes industriais para hóstia em ovos moles a nível comunitário.

Mais alega que, entre finais de 2012 e meados de 2014, a R. foi-lhe comunicando que estaria a realizar distintas operações junto do IHMI tendentes aos pretendidos registos, comunicações essas efectuadas por e-mail; sendo que aquando dessas comunicações a demandada aproveitava para lhe solicitar que procedesse ao pagamento de determinados montantes, que enumera, e que, segundo a visada, correspondiam a taxas de justiça devidas pela apresentação dos supostos pedidos de registo comunitário em nome dela, A.

Aduz que sempre que lhe foi solicitado procedeu à transferência das quantias pedidas pela R. para conta bancária titulada por esta, ascendendo a € 11.271,72 o valor total transferido.

Contudo, afirma que, até à data, nenhum registo comunitário está realizado, não tendo a maioria dos pedidos de registo do modelo ou desenho de moldes em hóstia para ovos moles sido sequer submetidos pela R. junto do IHMI e aqueles que efectivamente o foram, foram recusados, por falta de liquidação das taxas devidas.

Reclama, por isso, a devolução dos € 11.271,72 já transferidos para a R., bem como o pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais, pelos “enormes transtornos e incómodos e principalmente, uma imensa revolta e indignação” que a conduta da demandada lhe provocou.

Regularmente citada, a R. não contestou.
Na sequência, por sentença de 28 de Novembro de 2017, veio a julgar-se totalmente improcedente a ação e, consequentemente, foi a ré absolvida do pedido.

Inconformada com o assim decidido, veio a autora X – Hóstias Para Ovos Moles, Lda. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, na firme convicção que a mesma enferma de nulidades insanáveis, violando disposições legais que imperam no nosso ordenamento jurídico, mormente o disposto na alínea b) e d) do nº 1 do art. 615º do CPC, o que constitui inequívoca causa de nulidade da sentença bem como, que a mesma resulta de uma errada e insuficiente qualificação jurídica que serviu de base à decisão, a qual vai em sentido bem diferente daquele que, Vossas Excelências, elegerão, certamente, como mais acertada, depois da necessária reponderação dos pertinentes pontos da matéria de facto e de direito, e à luz do meios probatórios disponíveis.
2. O objeto do presente recurso é a impugnação da decisão proferida quanto à absolvição da Recorrida, nos precisos termos dos pedidos constantes da Petição Inicial, designadamente:
- ser a Ré condenada a restituir à Autora a quantia global de € 11.271,72 ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
3. Pois bem, com todo o respeito, que é muito e bem devido, o Tribunal recorrido decidiu incorretamente em relação aos referidos factos, o que, em consequência, determinou a prolação da decisão ora posta em crise.
4. Efetivamente, é firme convicção da Apelante que, do cotejo de toda a prova produzida, dir-se-á que a decisão recorrida constitui uma errada aplicação das regras de direito.

I – DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA:

VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NAS ALÍNEAS B) E D) DO Nº 1 DO ART. 615º DO
C.P.C.:

5. A Apelante instaurou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum peticionando pela sua total procedência e, consequentemente, pela condenação da Apelada a pagar-lhe a quantia global de € 11.271,72, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, o que até à data de 15 de Setembro de 2016 se liquidou em € 977, bem como no pagamento de danos não patrimoniais em valor não inferior a € 3.500, acrescido de juros moratórios contados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento e, não procedendo, mas sem prescindir, subsidiariamente, a Apelante peticionou ainda a condenação da Apelada a restituir-lhe a quantia global de € 11.271,72 ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
6. SUCEDE QUE, a Apelada é uma sociedade comercial que tem por objeto a produção artesanal de hóstias alimentares para o fabrico de ovos moles e outras aplicações.
7. Em finais de 2012 a Apelante celebrou um contrato de prestação de serviços com a Apelada, nos termos do qual a Apelada se comprometia a proceder ao registo de desenho ou modelo industrial dos modelos de hóstias em placa para ovos moles, a nível comunitário.
8. Com efeito, durante o período temporal compreendido entre finais de 2012 e meados de 2014, a Apelada foi comunicando à Apelante a suposta realização de diversas operações tendentes à prossecução desse objetivo junto do Instituto de Harmonização do Mercado Interno (doravante designado por IHMI) e, em face disso, a Apelada solicitava à Apelante que procedesse ao pagamento de determinados montantes que, segundo ela, correspondiam às taxas de justiça que eram devidas pela apresentação dos alegados pedidos de registo comunitário em nome da Apelante.
9. Nesta senda, durante o período temporal supra citado, a Apelante transferiu para a conta bancária titulada pela Apelada a quantia global de € 11.271,72.
10. Porém, a verdade é que, até á data, não foi concluído qualquer registo comunitário.
11. Aliás, a grande maioria dos pedidos de registo do modelo ou desenho de moldes em hóstia para ovos moles que a Recorrida alegou ter realizado nem sequer foram submetidos junto do IHMI, e aqueles que o foram acabaram por ser recusados por falta de liquidação das taxas devidas.
12. Sucede que, em Outubro de 2014, tendo a aqui Apelante finalmente se apercebido que havia sido ludibriada pela Apelada, solicitou-lhe a restituição de todos os valores de que esta, ilícita e indevidamente, se havia apropriado, mas a Apelada recusou-se a fazê-lo, pelo que, não restou à aqui Apelante outra alternativa senão o recurso à via judicial para fazer valer os seus direitos e interesses.
13. PORÉM, o Tribunal recorrido decidiu julgar a presente acção improcedente e consequentemente absolveu a Recorrida do pedido contra ela formulado.
14. ACONTECE QUE, a Meritíssima Juiza a quo não se pronunciou sobre todas as questões alegadas pela Autora na respetiva Petição Inicial e as quais estava obrigada a conhecer nomeadamente, a questão do enriquecimento sem causa, verificando-se, ainda, uma absoluta ausência de motivação sobre tal matéria.
15. E, deste modo, violou, claramente, o disposto nas alíneas b) e d) do nº 1 do art. 615º do C.P.C.
16. O que constitui inequívoca causa de nulidade da sentença.
17. Ora, conforme supra se disse, a aqui Recorrente invocou, subsidiariamente, como causa de pedir o instituto do enriquecimento sem causa, ao abrigo do qual peticiona a condenação da Recorrida a restituir-lhe a quantia de € 11.271,72.
18. Contudo, a sentença recorrida não se debruçou sobre tal questão.
19. Nos termos do nº 2 do art. 608º do CPC o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e só delas, a menos que a lei, oficiosamente, lhe imponha o conhecimento de outras.
20. É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, na verdade, em denegação de justiça.
21. A dificuldade está em saber o que deve entender-se por questões, para efeitos do disposto nos artigos 608º, n.º 2 e 615º, n.º 1, d), do CPC.
22. A resposta tem de ser procurada na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as excepções invocadas pelo réu, o que vale dizer que as questões serão apenas, as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter.
23. Portanto, questões não serão os argumentos, as razões e as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções.
24. ISTO POSTO, cumpre concluir que no caso em apreço, atento o quadro factual apurado, a sentença deveria ter apreciado a questão de saber se a Ré pretende enriquecer-se, sem causa, à custa da Autora,
25. sendo certo que, sustentar que a conduta de um contraente incorre na previsão daquele instituto não se trata de um mero argumento em defesa de uma tese.
26. Contudo, na respetiva motivação a Meritíssima Juíza a quo nem uma palavra expendeu sobre esta matéria.
27. Com efeito, tendo em consideração que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e não conheça de questões alegadas pelas partes de que devia conhecer, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, alíneas b) e d) do CPC, decidindo de modo diferente a sentença de que ora se recorre, não há dúvidas de que tal decisão enferma de nulidades insanáveis.
28. NESTES TERMOS, deverá conceder-se provimento ao recurso e revogar-se a douta sentença recorrida, considerando-a nula e de nenhum efeito, ao abrigo dos comandos normativos supra descritos, e, em face disso, deverá a Ré ser condenada a restituir à Aurora a quantia global de € 11.271,72, acrescida dos respetivos juros moratórios, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, conforme infra melhor se explanará.

II – QUANTO AO INSTITUTO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA:

29. Por último, cumpre mencionar que, apesar da Meritíssima Juíza a quo na sua motivação não ter expendido nem uma palavra sobre este instituto, a verdade é que da factualidade dada como provada verifica-se que se encontram preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa.

Senão vejamos!

30. Estamos perante o instituto do enriquecimento sem causa quando o património de alguém se valoriza à custa de outrem sem que para isso exista causa justificativa.
31. Assim sendo, o enriquecimento sem causa consiste numa vantagem patrimonial que se pode manifestar através de um aumento do activo, numa diminuição do passivo, na não realização de despesas ou na intromissão de interesses alheios.
32. Por outro lado, o enriquecimento há-de ser obtido à custa ou a expensas de quem pretende a restituição, isto é, a vantagem patrimonial alcançada por um deve resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro ou corresponder à privação do aumento do património deste.
33. Ora, no caso em apreço existe fundamento para a precedência da ação, no sentido da condenação da Apelada na restituição da quantia de € 11.271,72, acrescida de juros de mora, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
34. Na verdade, resulta da matéria de facto dada como provada, que a Recorrida beneficiou ou enriqueceu na quantia de € 11.271,72 o seu património pessoal, mediante várias transferências bancárias efetuadas pela Recorrente para a conta bancária titulada pela aqui Recorrida.
35. Ademais, resulta do quadro factual apurado que esse enriquecimento da Recorrida se realizou à custa do património da ora Recorrente e que, além do mais, não teve uma causa justificativa pois, como supra se disse e, aliás, resulta da matéria de facto provada, tais quantias foram transferidas pela Recorrente para a conta bancária da Recorrida, a pedido da mesma, com o único propósito desta proceder à liquidação das taxas devidas pelos supostos registos dos desenhos ou modelos industriais dos moldes de hóstia em placa para ovos moles que a Recorrida alegava ter solicitado junto do IHMI, contudo, conforme decorre do teor da matéria de facto provada, a Recorrida, em boa verdade, nada fez, retendo, deste modo, ilícita e indevidamente, até à presente data, tais quantias em seu poder.
36. ASSIM SENDO, não há dúvidas de que a quantia entregue pela Recorrente à Recorrida carece de causa justificativa.
37. Ora, o enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e assenta, portanto, na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia.
38. Enriquecimento (injusto) esse que tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material.
39. Todavia, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa (quer porque nunca a tenha tido, quer porque, tendo-a inicialmente, a haja entretanto perdido).
40. Ou seja, e por outras palavras, o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consente, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento.
41. Ora, in casu, atenta a matéria de facto provada, não há dúvidas de que estamos perante uma absoluta ausência de causa jurídica para a recepção da prestação que foi realizada.
42. Assim sendo, o enriquecimento da Recorrida deverá ser reputado sem justa causa porquanto, no caso concreto não se configura uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial operada.
43. Traduzindo-se, desta forma, a falta de causa justificativa na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento.
44. FACE AO EXPOSTO, cumpre concluir que, no caso sub júdice, estamos perante um enriquecimento sem causa da Recorrida mediante o aumento do activo da mesma,
45. à custa do empobrecimento da Recorrente,
46. sem a existência de qualquer causa que justifique esse enriquecimento indevido por parte da Recorrida.
47. Encontram-se, assim, preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa, pelo que, a aplicação das regras do instituto do enriquecimento sem causa desencadeia a obrigação de restituir, consagrada no art, 473º do Código Cívil,
48. sendo que, o objeto da obrigação de restituir, com fundamento em enriquecimento sem causa, encontra-se consagrado no art. 479º do Código Civil, segundo o qual, «A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecimento ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.» (sublinhado nosso).
49. Assim sendo, não restam dúvidas de que existe, no caso em apreço, um enriquecimento sem causa da Recorrida designadamente, do activo da mesma, à custa do empobrecimento da Recorrente,
50. na medida em que, a Recorrida detém, indevidamente, em seu poder a quantia de € 11.271,72,
51. não obstante as diversas interpelações da Recorrente, sem sucesso, no sentido de proceder à restituição de tal quantia indevidamente retida,
52. sendo certo que, conforme supra se expôs, tal montante pertence à Recorrente.
53. Com efeito, verificam-se, in casu, todos os requisitos de que a lei faz depender a verificação do instituto do enriquecimento sem causa.
54. ASSIM SENDO, e sempre com o devido respeito, a verdade é que, muito mal andou o Tribunal de que se recorre.
55. De facto, salvo o devido respeito por opinião diferente, não se vê nem se compreende, como é que pôde o Tribunal, atenta a matéria de facto considerada como provada, não considerar que a Recorrida pretende locupletar-se injustificadamente à custa alheia.
56. Aliás, sempre se dirá que, antes do mais, o Tribunal a quo, pura e simplesmente, limitou-se a fazer tábua rasa dos meios probatórios constantes do processo, e que, caso tivessem sido devidamente valorados na apreciação conjugada de toda a prova, como, de resto, é imperativo legal, dariam lugar à prolação de uma sentença em sentido substancialmente diverso.
57. EM SUMA, não se conforma, de modo algum, a ora Apelante com a douta decisão em crise, por entender que, em face da matéria de facto provada e do direito aplicável, o desfecho certo do pleito, e único desfecho possível, no nosso entendimento, seria a condenação da Recorrida nos termos peticionados, o que não sucedeu.

Finaliza, pugnando pela revogação da decisão recorrida e, em sua substituição, ser proferido acórdão que condene a recorrida nos termos peticionados.
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Não foram apresentadas contra-alegações por parte da ré.
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No despacho de fls. 312, o tribunal a quo pronunciou-se sobre a suscitada nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, tendo invocado que ficou expressamente consignado na sentença recorrida que é entendimento do tribunal a quo que o contrato que a própria autora alega ter celebrado com a ré se encontra ainda em vigor, pelo que fica obviamente prejudicada a apreciação da subsunção do caso em apreço ao instituto do enriquecimento sem causa, atenta a natureza subsidiária do mesmo; para, de seguida concluir que “perante o enquadramento legal efectuado e contrariamente ao alegado, não tinha o Tribunal que se pronunciar especificamente sobre a questão da subsunção da situação trazida a juízo ao instituto vindo de referir, não se verificando, por isso, a invocada nulidade.

Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Saber se sentença deverá ser considerada nula por omissão de pronúncia.
- Saber se assiste direito à autora em ser ressarcida por via do funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

Com relevância para a decisão a proferir, o tribunal de 1ª instância considerou como provados os seguintes factos:

Os arts. 11.º, 12.º, 21.º, 26.º a 28.º, 35.º, 37.º, 38.º, 40.º a 44.º, 46.º, 49.º, 53.º, 64.º a 66.º, 69.º, 70.º, 72.º, 74.º, 76.º a 79.º, 81.º, 83.º, 90.º, 92.º a 94.º, 96.º a 98.º, 103.º, 106.º, 107.º, 108.º, 110.º, 119.º, 121.º, 124.º, 125.º, 127.º, 130.º, 134.º a 136.º, 139.º a 146.º, 148.º, 149.º, 152.º, 155.º e 156.º (no que se refere ao pedido de restituição dos valores transferidos), 157.º e 158.º, todos da petição inicial.
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IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Nas suas alegações de recurso, a apelante veio, desde logo, invocar a nulidade da sentença recorrida, por “omissão de pronúncia”, invocando, em suma, que o tribunal a quo absteve-se de conhecer, por completo, sobre o pedido subsidiário formulado pela autora, a título de “enriquecimento sem causa”.
Segundo o disposto no art. 615º, n.º 1 al. d) do CPC é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta previsão legal está em consonância com o comando do art. 608º, n.º 2 do C. P. Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Importa, no entanto, não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.

De facto, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções deduzidas, desde que se apresentem, à luz das várias e plausíveis soluções de direito, como relevantes para a decisão do objeto do litígio e não se encontrem prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente das questões a decidir são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem “questões” no sentido pressuposto pelo citado art. 608.º, n.º 2 do C. P. Civil. Assim, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui uma nulidade da decisão por falta de pronúncia.

Neste sentido, colhendo a lição de J. Alberto dos Reis, refere este Ilustre Professor, que “uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.

(…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”. (1) (nosso sublinhado).

Este entendimento tem, como é consabido, sido corroborado, há muito, pela jurisprudência que sempre o acolheu defendendo que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, porquanto o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos invocados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se “sobre as questões que devesse apreciar” ou sobre as questões de que não podia deixar de tomar conhecimento”. (2)

Quer isto dizer que ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objeto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respetiva causa de pedir – cfr. art. 581º, n.º 4, do C. P. Civil, que consagra o denominado princípio da substanciação) e das exceções deduzidas. Terá, pois, de apreciar e decidir as todas as questões trazidas aos autos pelas partes – pedidos formulados, exceções deduzidas, … – e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.

A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela parte pode, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas. Porém, daí apenas pode decorrer um, eventual, erro de julgamento ou “error in iudicando”, mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia.

Feitas estas considerações prévias, cremos que, in casu, o tribunal a quo justificou, pelo despacho de fls. 312, porque não se pronunciou sobre a questão do instituto do enriquecimento sem causa, invocando, em suma, que a sua subsunção ao caso em apreço estava prejudicada.

De facto, não obstante considerámos que, para melhor perceção da subsunção jurídica às causas de pedir e pedidos (mesmo subsidiário) formulados nos autos, o tribunal deverá deixar bem claro quais as soluções que adota em relação a cada um deles, aceitamos que, estando alguma questão suscitada pelas partes prejudicada face à solução anterior sobre outra questão que se conheça e que comprometa irremediavelmente o sucesso daquela, nos termos do disposto no art. 608º, n.º 2, do C. P. Civil, é lícito ao tribunal não conhecer das questões prejudicadas, sem que daí resulte qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia; sem prejuízo, claro está, que sempre consideraríamos melhor disso mesmo dar conta o tribunal na decisão final, até por razões de certeza jurídica.

Termos em que se considera improcedente, neste âmbito, a apelação apresentada.
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B) Do enriquecimento sem causa

Importa agora averiguar se assiste direito à autora apelante em exigir da ré a restituição dos valores que liquidou a esta, por conta do mencionado contrato de prestação de serviços, a título de enriquecimento sem causa.

Realce-se que este é o único segmento da decisão recorrida que cumpre apreciar nesta sede de recurso, tanto quanto é certo que a autora não põe em causa, nas suas alegações de recurso, a decisão recorrida no que se refere à ausência de resolução do contrato por parte da autora e que, consequentemente, levou o tribunal a quo a concluir que se mantém em vigor o contrato de prestação de serviços celebrado entre autora e ré.

Alicerça, pois, a autora a sua pretensão no instituto jurídico do enriquecimento sem causa, o qual constitui uma fonte obrigacional, cujo regime vem contemplado nos arts. 473º e segs., do C. Civil.

Prescreve o disposto no art. 473º, n.º 1, do C. Civil, que: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.

Deste modo, para que exista enriquecimento sem causa, torna-se necessária a verificação de três requisitos cumulativos: i) o enriquecimento de alguém, sujeito passivo da restituição; ii) sem causa justificativa; iii) à custa de outrem, titular do direito à restituição.

Neste âmbito quanto à falta de causa justificativa, importará ter em atenção o disposto no n.º 2 do art. 473º do C. Civil, que afirma que: “A obrigação de restituir tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

Por conseguinte, o enriquecimento, à custa de outrem, verifica-se quando careça de causa justificativa, máxime por nunca a ter tido ou por a ter perdido, tornando-se, por isso, injusto e, como tal, inaceitável para o Direito. (3)

Imprescindível é ainda a ausência de outro meio jurídico, ou seja importa averiguar se a lei não faculta ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, na medida em que estamos perante uma obrigação de natureza subsidiária – cfr. art. 474º, do C. Civil.

Nas palavras de Pedro Romano Martinez (4)[P]ara haver enriquecimento sem causa é necessário que a situação injusta não fique sanada por outro instituto. Assim, se as regras da invalidade ou da resolução dos contratos resolvem a deslocação patrimonial decorrente do negócio, não há que recorrer ao enriquecimento sem causa. Do mesmo modo, se o regime da responsabilidade civil sanar os efeitos da deslocação, o enriquecimento perde sentido”.

Também Luís Menezes de Leitão esclarece, neste particular, que “[R]elativamente ao enriquecimento por prestação, a aplicação do art. 473º é naturalmente excluída sempre que exista uma pretensão fundada num negócio jurídico. Os negócios constituem causas justificativas da aquisição enquanto a ação de enriquecimento pressupõe a ausência de causa justificativa. A liquidação do negócio jurídico fundada na invalidade ou na resolução, embora tenha por base a ineficácia retroativa do vínculo continua a ter por fonte o próprio negócio jurídico, o que não deixa assim espaço para a aplicação do enriquecimento sem causa. (5)

De facto, já antes o mesmo Autor havia referenciado que “ … nos contratos bilaterais a prestação que é realizada tem por fim o cumprimento da própria obrigação que incide sobre o prestante e não a obtenção de um comportamento da contraparte, que pudesse desencadear a aplicação da “condictio ob rem”. Se a contraparte por sua vez não realizar a sua contraprestação, pode o prestante exigir o seu cumprimento mediante uma ação contratual ou proceder à resolução do contrato por incumprimento (art. 801º, n.º 2), o que não deixa espaço para a aplicação da “condictio causa data”, onde a prestação é realizada para obter um comportamento livre da outra parte, a que este não se vinculou efetivamente.(6)

Pires de Lima e Antunes Varela defendem igualmente que “ … relativamente aos exemplos apontados (ação de declaração de nulidade, de anulação, de indemnização, etc.), que o instituto do enriquecimento sem causa não será aplicável, por maioria de razão, se o enriquecimento puder ser destruído mediante simples ação (contratual) destinada a exigir o cumprimento do contrato ou por meio da ação de reivindicação.(7)

Ora, no caso concreto, como causa de pedir a autora veio invocar a celebração de um “contrato de prestação de serviços” (cfr. art. 1154º, do C. Civil) com a ré, nos termos do qual esta, mediante a respetiva retribuição, se comprometeu a proceder ao registo de desenho ou modelo industrial dos modelos de hóstias em placa para ovos moles, a nível comunitário, a favor da autora.

Invocando que a ré não cuidou de cumprir o contrato em apreço, a autora pretende exigir a restituição dos valores que pagou à ré, por conta do mesmo contrato, acrescidos dos respetivos danos não patrimoniais alegados.

Tem assim a autora ao seu dispor de outro meio, que não o enriquecimento sem causa, para exigir da autora a restituição dos valores que pagou, o qual se traduz na resolução do contrato por incumprimento definitivo da ré, resolução essa que não veio pedir pela presente ação, nem demonstra que o tenha feito anteriormente extrajudicialmente, mediante comunicação dirigida à ré nesse sentido (cfr. arts. 432º, n.º 1 e 436º, n.º 1, do C. Civil).

Deste modo, por via do incumprimento contratual, tem a autora a possibilidade de ver resolvido o contrato celebrado com a ré e de exigir desta a prestação já por si efetuada (cfr. arts. 433º e 434º do C. Civil).

Não pode pois a autora, atenta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, acionar tal meio (art. 474º, do C. Civil).

Por último, sempre se dirá que estando em causa aqui uma pretensão fundada num negócio jurídico (contrato bilateral), este, por si só, constitui causa justificativa da deslocação patrimonial (enriquecimento) operada pela autora a favor da ré, por conta da obrigação a que a primeira se vinculara, sendo assim inaplicável in casu, por falta de um dos pressupostos legais (ausência de causa justificativa), o enriquecimento sem causa (art. 473º, do C. Civil).

Concluímos, pois, que deverá soçobrar integralmente a pretensão recursiva da autora.
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V. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.

Custas pela apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
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Guimarães, 05.04.2018

António José Saúde Barroca Penha
Eugénia Marinho da Cunha
José Manuel Alves Flores

1. Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 143.
2. Vide, neste sentido, por todos, Ac. STJ de 08.02.2011, proc. n.º 842/04.8TBTMR.C1.S1, relator Moreira Alves; Ac. STJ de 21.10.2014, proc. n.º 941/09.0TVLSB.L1.S1, relator Gregório Silva Jesus; Ac. STJ de 22.11.2015, proc. n.º 24/09.2TBMDA.C2.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; Ac. STJ de 07.07.2016, proc. n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1.S1, relatora Ana Luísa Geraldes; e Ac. STJ de 04.05.2017, proc. n.º 2886/12.7TBBCL.G1.S1, relator Tavares de Paiva, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
3. Neste sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, pág. 454; e M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 11ª edição, pág. 499.
4. Direito das Obrigações Apontamentos, AAFDL, 2ª edição, 2004, pág. 69.
5. O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Social, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1996, págs. 948-949.
6. Ob. cit., págs. 545-546.
7. Ob. cit., págs. 459-460.