Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
619/10.1TBCMN.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL POR QUOTAS
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
SUPRIMENTOS
REMUNERAÇÃO AO GERENTE
DELIBERAÇÕES NEGATIVAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Uma deliberação social viola o princípio da igualdade de tratamento dos sócios “quando dela resulta tratamento desigual de um ou mais sócios relativamente a outro sem que para tanto exista justificação objectiva”. A sociedade não procede ao pagamento dos suprimentos quando bem lhe aprouver, nem lhe é legítimo deliberar no sentido da recusa do pagamento por razões que nada têm que ver com a as finalidades sociais que justificaram os empréstimos.

II - Se o contrato social não atribui um direito especial à gerência e o exercício das funções de gerência está associado ao estatuto de sócio, a perda da qualidade de sócio implica “ipso facto”, a perda do cargo de gerente.

III - Em regra a finalidade das acções intentadas nos termos dos artigos 59º e 60º do CSC é unicamente a anulação de deliberações sociais positivas que enfermem de vícios de procedimento ou de conteúdo (artºs 56º e 58º), pois sendo a deliberação negativa não existe utilidade na declaração da sua invalidade e não cabe na atribuição do juiz substituir-se à assembleia na tomada de decisões em nome do interesse social da sociedade, declarando a aprovação de propostas que foram recusadas pela maioria legal dos sócios.

IV – Porém, admite-se a possibilidade de o pedido de anulação das deliberações negativas ser cumulado com o pedido de decretamento da deliberação positiva (aprovação da proposta) nos casos em que votos emitidos ilegalmente foram contados e determinantes para a tomada da deliberação.

V - Nenhum obstáculo de índole processual impedia o duplo pedido, pois que, na perspectiva da recorrente, as deliberações negativas foram tomadas à custa de votos ilegais, por existir conflito de interesses entre os sócios votantes e a sociedade (artigo 251º CSC).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. A autora “X – Imobiliária e Gestão, S.A.” recorre da sentença, absolutória da ré “Y – Sociedade de Animação Turística, Lda, do pedido de declaração de nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia-geral desta sociedade 24.11.2010, e condenatória da demandante como litgante de má fé.

A recorrente pugna pela modificação da matéria de facto provada dos pontos 4, 5, 7, 14, 16, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 33 e a inclusão no acervo provado dos factos considerados não provados, as conclusões que versa a matéria de direito, depois do “esforço” despendido no seu aperfeiçoamento (1) (logrou reduzir a 104 as 110 conclusões inicialmente formuladas), parece ressumar que o pretende obter a anulação das seguintes deliberações tomadas naquela assembleia geral:

a). Do não pagamento de quaisquer suprimentos à sócia X até que a sua gerente H. R. cumpra com todas as suas obrigações perante a sociedade, e de os restantes sócios poderem, querendo, requerer a liquidação dos seus suprimentos, autorizando desde já a sua liquidação, até como modo de premiar o esforço e empenho dos demais gerentes da sociedade, concluindo que essa deliberação viola a lei, constitui abuso de poder e abuso de direito, pelo que deve ser declarada anulada ao abrigo do disposto no artigo 58º, nº1 alíneas a) e b), do CSC. (ponto um da ordem de trabalhos);

b). Da atribuição ao Manuel duma remuneração anual de seis mil euros, concluindo que não é sócio nem gerente, a remuneração é desproporcionada em relação ao trabalho e à situação da sociedade, e que é inconstitucional a interpretação dada aos artigos 168º, nºs 2 e 4, e nº 3 do artigo por violar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da segurança jurídica e da protecção da confiança que não é sócio nem gerente, devendo ser a deliberação anulada ao abrigo do artigo 58º, nº1/a do CSC (ponto dois da ordem de trabalhos);

c). Da não aprovação da proposta contida no ponto 3 da ordem do dia - no sentido da organização pelos gerentes da sociedade de um programa de concurso escrito, contendo normas claras, objectivas, gerais e abstractas, com os princípios as regras, os critérios, as condições mínimas de preço anual da concessão da exploração ou da renda, as garantias a prestar pelos cessionários/inquilinos do pagamento daquele preço/rendas, o período mínimo de duração do contrato de concessão/arrendamento, a obrigação do concessionário ou arrendatário indemnizar a sociedade em caso de não respeitarem as leis do ruído, da permanência na discoteca de menores de 16 anos e da venda de álcool e de tabaco, a exigência do concessionário/arrendatário fazer um seguro a favor da sociedade cobrindo os riscos de perecimento dos bens sociais, designadamente que cubram o risco de roubo, de incêndio e lucros cessantes e demais condições que acautelem o património social e os interesses económicos e financeiros da sociedade, designadamente e de entre outras que imponha aos concessionários/inquilinos a realização de obras de conservação ordinária e extraordinária do edifício, bem como a publicitarem a referida concessão ou arrendamento em jornais, revistas e em programas de rádios da especialidade, pois só dessa forma se poderão obter as melhores vantagens económicas e financeiras e de garantias para a sociedade relativamente ao único acto importante de gestão que é a adjudicação da exploração ou do arrendamento do estabelecimento da sociedade denominada Discoteca A, a partir do corrente ano de dois mil e dez em diante- concluindo que deve ser declarada anulada ao abrigo do disposto nas als a), e b), do nº1 do artº 58º (ponto três da ordem de trabalhos)

d). A não aprovação da proposta de que do programa com as normas para a concessão da exploração ou do arrendamento da Discoteca A conste que o acto de concessão ou arrendamento da Discoteca A será sempre independente do acto de concessão ou arrendamento da Discoteca B (ponto 4 da ordem de trabalhos)..
Conclui que, quanto a esses deliberações das anteriores alíneas c) e d) havia conflito de interesses com os sócios António, A. G. e W Consultores, Lda, conforme o disposto no artigo 251º, nº1, alínea a) do CSC, pelo que devem ser aprovadas as propostas.

e). A deliberação que não aprovou que fosse instaurado um processo de inquérito à sociedade a fim de responsabilizar os gerentes António e A. G. e eventualmente o gabinete de contabilidade responsável pela execução da contabilidade, pelos prejuízos causados aos sócios por não terem apresentado à assembleia geral anual, dentro do prazo legal, nem ainda nesta data, o balanço, a demonstração de resultados líquidos, o relatório de gestão, o anexo ao balanço e à demonstração de resultados e demais documentos de prestação de contas dos anos de dois mil e oito e de dois mil e nove, inviabilizando as deliberações sobre a distribuição dos resultados líquidos daqueles anos, devendo ser anulada e subsituída por outra que aprove a proposta, dado que aqueles sócios estavam impedidod de votar ao abrigo do artº 251º, nº1, al a), do CSC (ponto 5 da ordem de trabalhos).

f). A deliberação que não aprovou a instauração de um processo judicial contra a sociedade e os gerentes António e A. G., destinado a responsabilizá-los caso se prove que, sem a deliberação de sócios, aqueles gerentes tiverem distribuído apenas a alguns dos sócios, lucros ou adiantamentos sobre lucros, ou restituído também apenas a alguns dos sócios suprimentos ou prestações suplementares de forma arbitrária e sem deliberação social, e a sua validação ofende os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade, segurança jurídica e confiança devendo ser subsituida por outra que aprove a proposta dado o impedimento daqueles sócios em votar nos termos do artº 251º, nº1, als a) e b) (ponto seis da ordem de trabalhos);

g). A deliberação que não aprovou a destituição de funções, com justa causa, dos gerentes António, A. G. e Manuel, este último porque nem sequer é sócio da sociedade tomada, devendo ser substituida por outra que aprove a proposta, dado o impedimento daqueles sócios em votar (ponto 7 da ordem de trabalhos);

II. A recorrida respondeu, concluindo no essencial e em síntese: não deve ser admitido o documento com as alegações; no recurso sobre a matéria de facto o recorrente não cumpriu o ónus do artº 640º, do CPC; sendo a acção de anulação das deliberações sociais não pode obter-se a aprovação das propostas não aprovadas (als H1 a H5); não há fundamento para declarar a nulidade da deliberação sobre o não pagamento de suprimentos nos termos do artigo 56º, nº1, c), nem constitui um abuso de poder, antes uma forma lícita de constranger a sócia à entrega de documentos; não sendo invocada expresssamente a justa causa de destituição dos gerentes, não se verificava o impedimento de voto do artº 251º, nº1-f), nem o tribunal se pode substituir aos sócios sobre a destituição; a remuneração do gerente emerge do disposto no artigo 255º, nº1, e não há conflito de interesses entre a sociedade e o sócio; deve manter-se a condenação da autora como litigante de má fé, face aos factos provados elencados nos itens 16º, 24º a 27º, e 29º a 32º.

III. Factos considerados provados (indicam-se em itálico os que são objecto de impugnação):

1) A autora “X – Imobiliária e Gestão, S.A.” encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial– 1ª Secção, sob o número único de matrícula ….

2). A Ré “Y – Sociedade de Animação Turísticas, Ldª.” está matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação fiscal …, conforme teor do documento nº. doc. 1 junto aos autos.

3). São sócios da Ré “Y – Sociedade de Animação Turísticas, Ldª.”, a sociedade autora: “X – Imobiliária e Gestão, S. A.” titular de três quotas na ré, duas no valor nominal de € 5.710,00 e outra do valor nominal de € 11.753,00; António, titular de uma quota do valor nominal, de € 12.642,00; A. G., titular de uma quota com o valor nominal de € 10.345,00; “W – Consultores, Lda.”, titular de uma quota do valor nominal de € 3.840,00.

4). São gerentes da Ré, H. R., em representação da autora “X – Imobiliária e Gestão, Ldª.”, A. G., António e Manuel.

5). O Manuel deixou de ser sócio da Ré, em 21 de Junho de 2007, quando vendeu a sua quota mas continua, porém, a exercer as funções de gerente, às quais não renunciou até à data, conforme resulta do teor da certidão permanente junta aos autos, em especial, da menção Dep 116/2007.06.21, referente à aludida operação de transmissão.

6). A autora foi convocada para uma assembleia-geral extraordinária a realizar na sede social da ré, no passado dia 24 de Novembro de 2010, pelas 22:00 horas, por convocatória que lhe foi endereçada pelos gerentes António e A. G., com a seguinte ordem de trabalhos: Ponto um: Apreciação do trabalho e postura da gerente H. R., que por actos e omissões praticadas em prejuízo da sociedade nos últimos anos, tem posto em causa o seu normal funcionamento, nomeadamente: Omissão de toda a informação e documentação em seu poder, relativamente quer aos exercícios dos anos dois mil e oito e dois mil e nove, quer em relação aos anos anteriores, que retendo indevidamente toda a documentação e informação da sociedade, tem obstado o trabalho dos restantes gerentes, bem como do gabinete que assumiu por decisão da maioria do capital da sociedade, a elaboração da contabilidade -“P.-ORGANIZAÇÃO, CONTABILIDADE E FINANÇAS LDA”; Posse indevida do livro de actas da sociedade, que tendo-lhe já por diversas vezes sido solicitada a sua entrega, não o disponibilizou até à data, para que nele possam ser lavradas as actas das assembleias celebradas, manuscritas em papel e assinadas pela totalidade dos sócios presentes, e que a sócia H. R., se comprometeu a transpor para o correspondente livro de actas, tal como sempre fez. - Representação indevida, há vários anos, em inúmeras Assembleias Gerais de sócios e reuniões de gerência, pelo Sr. Dr. A. C. que, exercendo de facto em seu nome a gerência da sociedade tem ultimamente praticado actos e assumindo posturas perante a sociedade, os seus sócios e gerentes, que poderão merecer o repúdio da assembleia. - Apresentação de proposta para exploração da discoteca “A.”, alegadamente vantajosa para a empresa, mas que desistindo dela em pleno início do verão de dois mil e dez, pôs em causa a honorabilidade, seriedade e honra dos restantes gerentes, provocando a desistência de outros interessados, e dificultando nesta data a celebração de outros contratos. Ponto dois: Deliberar sobre a(s) eventual(ais) remuneração(ões) e o(s) respectivo(s) montante(s) do(s) gerente(s), que maior responsabilidade e dedicação têm dado à sociedade, e que pelo tempo disponibilizado deverão ser justamente remunerados.

7). A pedido da sociedade autora, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral, na qualidade de representante legal daquela aditou à ordem do dia da referida assembleia, os seguintes assuntos que todos os sócios presentes deliberaram por unanimidade permitir que fossem aditados à ordem de trabalhos os pontos 3 a 7, a seguir indicados: Ponto três: Discutir e deliberar sobre a organização de um programa de concurso para efeitos da adjudicação da exploração ou do arrendamento do estabelecimento da sociedade denominada “Discoteca A”, a partir do corrente ano de dois mil e dez em diante, contendo normas objectivas, claras, gerais e abstractas que os interessados terão de satisfazer contendo as condições mínimas de preço anual da cessão da exploração ou da renda, as garantias a prestar pelos cessionários/inquilinos do pagamento daquele preço/rendas, o período mínimo de duração do contrato de concessão/arrendamento e demais condições que acautelem o património social, designadamente e de entre outros, um seguro de roubo e de incêndio, o respeito pelas leis do ruído, da venda de álcool, de tabaco e da permanência na discoteca de menores de dezasseis anos. Ponto quatro: Discutir e deliberar sobre a atribuição, em caso de igualdade de preço, de preferência na adjudicação da cessão da exploração/arrendamento do referido estabelecimento da sociedade denominada “Discoteca A”, à sociedade cessionária/inquilina do estabelecimento denominado “Discoteca B”, pertencente à sociedade “O.-ORGANIZAÇÃO DE ESPECTÁCULOS MUSICAIS, LDA.” Ponto cinco: Discutir e deliberar sobre a falta de apresentação na assembleia geral anual, do balanço, da demonstração de resultados líquidos, do relatório de gestão, do anexo ao balanço e à demonstração de resultados e demais documentos de prestação de contas do ano de dois mil e nove. Ponto seis: Discutir e deliberar responsabilizar os gerentes que, sem deliberação de sócios se venha a verificar que procederam à restituição de suprimentos e de prestações suplementares de forma arbitrária apenas a alguns dos sócios. Ponto sete: Discutir e deliberar sobre a destituição das funções de gerentes da sociedade de António, A. G. e Manuel.

8). A assembleia foi presidida por A. C. em representação da autora, titular da maior participação social.

9). A autora requereu aos gerentes que a acta da assembleia-geral extraordinária fosse lavrada, por Notário e nela estiveram presentes os sócios representando a totalidade do capital social, António, A. G., por si e em representação da sócia “W – Consultores, Ldª.” e A. C., em representação da autora.

10). A acta da assembleia, foi lavrada pela Notária do Cartório Notarial, B. H., conforme cópia junta a 38 a 67 aos autos que aqui se dá por reproduzida.

11). As contas da sociedade sempre foram aprovadas e registadas pelo menos até ao ano de 2013, conforme resulta das inscrições dos registos da certidão permanente junta aos autos que aqui se dá por reproduzida de fls. 24 a 29 e296 a 299.

12). A gerente H. R. nunca delegou quaisquer dos seus poderes de gerência em nenhum dos outros gerentes, apesar de a partir de 2007, os gerentes António e A. G., juntamente com o gerente Manuel, terem assumido a gerência da sociedade ré.

13). Durante a sua existência, a sociedade ré promoveu, com a necessária regularidade, reuniões informais entre sócios e gerentes.

14). Os gerentes António e A. G. foram reembolsados dos seus suprimentos (Ano 2010) e, votaram a proposta de deliberação aprovada com votos favoráveis de 53,65% do capital social e contra da autora, com o esclarecimento que melhor se mostra exarado na acta e que aqui se dá por integralmente por reproduzido.

15). Os gerentes António, A. G., Manuel adjudicaram directamente trabalhos e serviços sem previamente organizarem processos de consulta aos diferentes e diversos potenciais fornecedores por escrito, com cadernos de encargos previamente definidos, do conhecimento de todos os gerentes.

16). Estão na posse da autora que, na qualidade de presidente da mesa da assembleia-geral guarda o livro de actas da sociedade, os documentos contabilísticos e de prestação de contas da sociedade referentes o exercício económico que terminou em 31 de Dezembro de 2007, que já haviam sido objecto de votação e de aprovação.

17). No âmbito da discussão do ponto um da ordem de trabalhos, o sócio António, propôs o seguinte: “O mesmo sócio António propôs ainda não proceder ao pagamento de quaisquer suprimentos à sócia “X, S.A.” até que a sua gerente H. R. cumpra com todas as suas obrigações perante a sociedade. Os restantes sócios poderão, querendo, requerer a liquidação dos seus suprimentos, autorizando desde já a sua liquidação, até como modo de premiar o esforço e empenho dos demais gerentes da sociedade.”.

18). A qual foi aprovada com os votos favoráveis dos restantes sócios, totalizando 53,65% do capital social e o voto contra do representante da autora, representando 46,35% do capital social.

19). A exploração directa do objecto social só é possível com o acordo da autora, tal como se alcança do contrato de sociedade social actualizado, conforme cópia que se junta e dá por integralmente reproduzida para os legais efeitos (doc. 2).

20). Na actualidade, a sociedade ré não exerce directamente qualquer actividade comercial, industrial ou de serviços, limitando-se a arrendar ou a ceder à exploração o estabelecimento comercial denominado “Discoteca A”.

21). Foi deliberado e aprovado no ponto dois da ordem de trabalhos atribuir a remuneração anual de gerência de € 6.000,00 ao gerente Manuel, conforme resulta do teor da acta junta como documento nº. que aqui se dá por integralmente por reproduzido.

22). A partir do ano de 2009, os gerentes António, A. G. e Manuel decidiram dar de arrendamento e/ou concessionar a “Discoteca A”.

23). O Dr. A. C. que presidiu à Assembleia-Geral da ré de 24 de Novembro de 2010, para além de outras actividades, presta serviços, como profissional liberal, na área da contabilidade desempenhando as funções de revisor oficial de contas (ROC).

24). A sócia-gerente H. R. trabalha com o Dr. A. C., com que partilha o mesmo escritório e trabalho.

25). Por sugestão da sócia-gerente Henriqueta há alguns anos, a ré celebrou com esta e com o citado Dr. A. C. um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual estes se obrigaram a tratar contabilisticamente todos os assuntos da ré, nomeadamente, organizando toda a contabilidade desta, lançando nos locais próprios todos os movimentos, preparando toda a documentação necessária a apresentar junto da administração fiscal, elaborando minutas de actas das assembleias gerais da sociedade e praticando todos os actos directa ou indirectamente relacionados com a contabilidade da ré.

26). Foram entregues à H. R. e ao citado Dr. A. C. os livros de actas da ré e foi-lhes ainda entregue toda a documentação referente à escrituração da contabilidade, nomeadamente, as facturas e os recibos.

27). No ano de 2008, a ré prescindiu dos serviços de prestação de serviços, na área de contabilidade, do Dr. A. C. e, desde então, a ré tem vindo a solicitar aos referidos H. R. e A. C. que procedam à entrega de toda a documentação pertencente à sociedade, que se encontra na sua posse, nomeadamente, documentos contabilísticos, livros de actas e quaisquer outros documentos pertencentes à requerente.

28). A execução dos serviços de contabilidade foi novamente entregue à “P. – Organização de Contabilidade e Finanças, Ldª.”, com sede à Av. … Viana do Castelo.

29). No dia 29.10.2010, a ré notificou aquela H. R. nos seguintes termos: “(…) Vêm por este meio, e na sequência das inúmeras solicitações pessoais sem sucesso, feitas a Vossa Exª., e ao Sr. Dr. A. C. (que exerceu também as funções de técnico oficial de contas da referida sociedade Y, com quem comparte escritório e trabalha , notificar Vª. Exª. para, no prazo máximo de oito dias, entregar toda a documentação pertencente à sociedade “Y – Sociedade de Animação Turística, Ldª.” que se encontra ainda na Vª. posse, nomeadamente: documentos contabilísticos, livros de actas e quaisquer outros documentos pertencentes à sociedade em mérito. Findo o referido prazo de oito dias sem que se mostrem entregue os aludidos documentos, não nos restará outra solução senão a de que, sem qualquer outra interpelação para o efeito, recorrer à via judicial e, consequentemente, apresentação de queixa às autoridades competentes, nomeadamente, à Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e Revisores Oficiais de Contas, por estar eventualmente em causa o vosso comportamento ético, deontológico e profissional. Os documentos e pastas acima solicitadas deverão ser entregues ao cuidado da actual firma responsável pela contabilidade “P. – Organização, Contabilidade e Finanças, Ldª.”, na Avenida … Viana do Castelo, de modo a que todos os sócios da “Y – Sociedade de Animação Turística, Ldª.” possam a ela ter acesso e com a ajuda da empresa responsável pela contabilidade, possam analisar e consultar os documentos solicitados”, conforme resulta do teor do documento nº.1 junto com a contestação que aqui se dá por integralmente por reproduzido.

30). Apesar da notificação que antecede, a H. R., em representação da autora e o A. C., na qualidade de Presidente da mesa da Assembleia mantém na sua posse os livros selados, as diversas pastas com lançamentos de despesas e receitas, as pastas onde se encontram arquivadas as facturas e recibos, os livros de actas e muita outra documentação da ré recusando-se a devolvê-la.

31). Os documentos que estão na posse da H. R. e Dr. A. C. eram necessários para que a “P.” fizesse o devido tratamento da documentação e elaborasse a contabilidade da sociedade Ré, nomeadamente, para efeitos de IRC e de IVA e encerramento do ano contabilístico de 2010.

32). Por sentença proferida e transitada em julgado em 17.09.2012, no proc. nº. 916/11.9TBVCT (1º. Juízo Cível), acção especial para entrega de documentos, processo que correu os seus termos pelo TJ da Comarca de Viana do Castelo, sob o nº. 916/11.9TBVCT (1º. Juízo Civel), em que a autora é a sociedade “Y – Sociedade de Animação Turística, Ldª.” e réus A. C. e H. R., transitada em julgado, foi parcialmente julgada procedente a presente acção e, por consequência, decidiu condenar o réu A. C. a entregar à autora os livros selados, pastas, livros de actas e todos os elementos e documentos contabilísticos à mesma pertencentes, no prazo de 10 dias a contar da data do trânsito em julgado da presente sentença, tendo sido absolvida a ré H. R. dos pedidos contra si formulados e ainda o réu A. C. do pedido de pagamento da quantia de € 500,00, a título de sanção pecuniária compulsória e nos demais termos que aqui se dão por reproduzidos.

33). A partir do ano de 2008, a H. R., gerente da ré, em representação da sócia “X, S.A.”, aqui autora afastou-se voluntariamente da vida e gestão da sociedade Ré “Y, Ldª.”, tendo deixado de comparecer às assembleias apesar de devidamente convocada, alheou-se por completo dos assuntos da sociedade.

Factos considerados não Provados:

-que os lucros sociais dos anos de 2008 e de 2009, não foram distribuídos.
- que os gerentes António, A. G., Manuel não tivessem promovido as reuniões do conselho de gerência para aprovação dos Relatórios de Gestão e as contas dos anos de 2008 e de 2009.
- que os gerentes António, A. G., Manuel nunca tivessem fornecido ou disponibilizado aos demais sócios, com a antecedência legal, o Balanço, a Demonstração de Resultados Líquidos, o Anexo ao Balanço e aos Resultados Líquidos, o Relatório de Gestão e os demais documentos de prestação de contas dos exercícios dos anos de 2008 e 2009.
- que as Assembleias Gerais Anuais para aprovação de contas dos anos de 2008 a 2009, não tivessem sido convocadas nos prazos legais.
- os documentos de prestação de contas dos anos de 2008 e de 2009, nunca tivessem sido objecto de qualquer deliberação social.
- os gerentes António, A. G., Manuel tivessem inviabilizado a participação da gerente H. R. na formação da decisão conjunta de todos os actos de gestão da sociedade ré pelo menos desde 01/01/2008.
- os gerentes António, A. G., Manuel tivessem inviabilizado também o acompanhamento pela gerente H. R., a fiscalização e o controlo das obras executadas e dos serviços prestados.
- pelo menos desde 01.01.2008, os referidos gerentes tivessem agido, durante todo o tempo, no desempenho daquelas funções sem a diligência que se exige a um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade.
- os gerentes, a partir de 01.01.2008, nunca tivessem permitido que a gerente H. R. participasse na formação das decisões previamente necessárias e indispensáveis à prática dos mais elementares e diversos actos de gestão, designadamente, autorizar compras e despesas correntes e de investimento para a sociedade e os respectivos pagamentos; de proceder ao reembolso de suprimentos sem a necessária deliberação social a apenas alguns sócios; de não distribuírem lucros sociais; de cederem e/ou arrendarem o único estabelecimento comercial da sociedade sem um programa de concurso escrito contendo todo um conjunto de condições que tivessem por objectivo ceder e/ou arrendar o estabelecimento de forma transparente e ao mesmo tempo obter o melhor resultado financeiro para a sociedade com as melhores garantias de pagamento e de protecção dos bens que integram o único estabelecimento pertencente à sociedade, cedido e/ou arrendado.

IV. Cumpre decidir as questões enunciadas, importando esclarecer que a Relação se limita a conhecer da temática inserta nas conclusões, e não pode extravasar os pedidos da acção (artigo 608º, nº2, do CPC), esclarecimento que se justifica desde logo em função da circunstância de a recorrente pretender obter a anulação da deliberação que aprovou as propostas do ponto 3 apresentadas por A. G. – antecipadamente se consigna que não se tomará conhecimento do objecto dessa questão- quando o pedido da acção é apenas de anulação do segmento da deliberação negativa supra enunciado sobre alínea c), e consequente aprovação da proposta.

Matéria de facto.

1. Pontos 4 e 5.

É questionado no recurso o estatuto de gerente reconhecido a Manuel e, consequentemente, a deliberação da sociedade de 24 de Novembro de 2010 que lhe atribui a correspondente remuneração anual de €6.000,00, sustentando a apelante que a posição do tribunal – entendeu que o referido Manuel é gerente desde que para tal foi nomeado em 27.04.1990, mesmo após ter vendido as quotas em 21.06.2007, pela simples razão de que não renunciou ao cargo nem dele foi destituído - contraria a deliberação de alteração do contrato da sociedade realizada em 7 de Maço de 2009, segundo a qual a gerência fica a pertencer a todos os sócios.

É pacífico que os estatutos sociais de qualquer sociedade comercial por quotas não é uma realidade estática e imutável (2), e quanto ao mandato da gerência a vida societária pode ditar a qualquer altura tanto a designação de novos gerentes (3), como restrições à sua revogabilidade (4) (estabelecendo por exemplo o direito especial à gerência, podendo passar pela previsão da obrigatória intervenção de um dos diversos gerentes em exercício para vincular a sociedade na relação com terceiros).

Relativamente à sociedade ré, orientados pelos critérios legais definidos nos artigos 236º, nº1, e 238º, nº1, do Cód. Civil (5), pode concluir-se que decorre do contrato inicial e das posteriores alterações que a gerência sempre foi um cargo inerente à condição de sócio, sendo essa a vontade real dos sócios expressa na deliberação de 7 de Março de 2009 ao estabelecerem que a «a gerência da sociedade e a sua representação em juízo ou fora dele fica a pertencer a todos os sócios». A circunstância de na assembleia geral de 27 de Novembro de 2010 o referido Manuel ter sido tratado como gerente, sendo pedida a sua destituição por um dos sócios (a autora) e deliberando os demais atribuir-lhe uma remuneração pelo exercício das funções de gerência, explica-se pelo contexto de conflitualidade existente entre os sócios, não traduzindo propriamente a derrogação da vontade real por eles expressa na assembleia de Março de 2009 onde procederam às alterações do pacto social.

Nunca lhe tendo sido atribuído um direito especial à gerência (a existir, implicaria que, sem a sua anuência, só poderia ser demovido do cargo com justa causa em acção judicial), ao perder a qualidade de sócio deixou ipso facto o cargo de gerente, e também nenhum elemento permite afirmar que ele exercia efectivamente esse cargo.

Assim, impõe-se a alteração dos pontos 4 e 5 da matéria de facto, que passam a ter a seguinte redação:

4. São gerentes da Ré, H. R., em representação da autora “X – Imobiliária e Gestão, Ldª.”, A. G. e António; 5. «O Manuel deixou de ser sócio da Ré, em 21 de Junho de 2007, quando vendeu a sua quota».
2. Em consonância com o teor da acta deliberativa de 07.03.2009, elimina-se o vocábulo “legal” escrito na segunda linha do ponto 7;
3. A certidão permanente da Conservatória de Registo Comercial apenas autoriza que se considere provado que «as contas da sociedade sempre foram registadas pelo menos até ao ano de 2013”, sendo essa a redação que passa a constar do item 11
4. A alteração reclamada para o ponto 14 é inócua para a decisão, sendo aliás de índole conclusiva a alegação de que o pagamento foi feito em benefício dos sócios António e A. G. e em prejuízo da autora. O relevante é saber se a deliberação que recaíu sobre essa matéria violou o princípio da igualdade de tratamento dos sócios, e se a condição prevista para o pagamento dos suprimentos da autora é ilegal e constitui um abuso de poder.
5. A decisão das questões de direito suscitadas no recurso dispensam a ponderação da factualidade elencada nos itens 16, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 33, pois a actuação que lhe está subjacente é a da sociedade ré e/ou dos seus gerentes, e não a da autora.
6. O ponto 24, como pretende a recorrente e merece a concordância da recorrida, passa a ter a seguinte redação: «A gerente H. R. trabalha com o Dr. A. C., com quem partilha o mesmo escritório e trabalho”;
7. Os factos considerados não provados estão relacionados com as propostas que a autora apresentou na assembleia de 27.Novembro.2010, mormente com o inquérito à sociedade (a fim de responsabilizar os gerentes António, A. G. “pelos prejuízos causados aos sócios por não terem apresentado à assembleia geral anual, dentro do prazo legal, o balanço, a demonstração de resultados líquidos, o relatório de gestão, o anexo ao balanço e à demonstração de resultados e demais documentos de prestação de constas dos anos de 2008 e 2009, inviabilizando as deliberações sobre a distribuição dos resultados líquidos daqueles anos”) , e a propositura de uma acção contra a sociedade e os sócios António e A. G. (“caso se prove que distribuiram apenas a alguns sócios lucros ou adiantamentos sobre lucros, ou restituido também apenas a alguns sócios suprimentos ou prestações suplementares de forma arbitrária e sem qualquer deliberação social”).
Mas não tem utilidade a apreciação da impugnação que incide sobre esses pontos, e as razões que nos levam a assim decidir são as seguintes: primeiro: das respostas negativas dadas não resulta o seu contrário; segundo: não recaía sobre o recorrente o ónus de provar a veracidade dos factos, mas tão só demonstrar que foram alegados na assembleia e eram idóneos a produzirem a deliberação positiva, ou seja, a aprovação das propostas apresentadas; terceiro: os poderes de cognição do juiz está confinado em ações desta natureza por regra a um “controlo da legalidade” das deliberações tomadas pelos sócios e não propriamente a produzir um juízo de mérito sobre as propostas por eles apresentadas (6), âmbito em que o juiz não deve substituir-se à assembleia, covertendo minorias em maiorias.

O direito.

1. Suprimentos.

A recorrente impugna a deliberação tomada na assembleia de 27.11.2010 no sentido do «não pagamento de quaisquer suprimentos à sócia X até que a sua gerente H. R. cumpra com todas as suas obrigações perante a sociedade (v.g. entrega de documentação em seu poder), e de os restantes sócios poderem, querendo, requerer a liquidação dos seus suprimentos, autorizando desde já a sua liquidação, até como modo de premiar o esforço e empenho ..., concluindo que essa deliberação viola a lei, constitui abuso de poder e abuso de direito, pelo que deve ser declarada anulada ao abrigo do disposto no artº 58º, nº1 als a) e b), do Código das Sociedades Comerciais (a ele pertencem as demais normas que sejam eguidamente indicadas sem expressa referência a qualquer outro diploma legal).

Os suprimentos obedecem ao regime estabelecido nos artigos 243º a 245º do CSC (7), sendo um contrato «pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência».

São por regra empréstimos de dinheiro que visam a satisfação de relevantes interesses sociais da sociedade, ocorrendo a situações de insuficiência de capital necessário para o exercício da sua actividade, daí o seu carácter de permanência. O seu regime legal afasta-se nalguns aspectos do mútuo regulado no Código Civil, designadamente quanto à possibilidade de qualquer das partes por termo ao contrato desde que o denuncie com a antecedência mínima de 30 dias (nº 2 do 1148º do Código Civil), pois a natureza e finalidade dos suprimentos é incompatível com a absoluta liberdade do sócio mutuante de exigir o reembolso (Vaz Serra, RLJ, Ano 110, p. 22). Daí que, havendo conflitos entre o sócio titular de suprimentos e a sociedade, o artigo 245º, nº1, do CSC, mande aplicar o artigo 777º, nº2, do C.Civil, ou seja, deferindo ao tribunal a fixação do prazo de reembolso, que não deixará de atender à natureza do empréstimo, às circunstâncias que determinaram a prestação, e às condições económico-financeiras da sociedade.

Mas o que está em causa nesta demanda não é a denúncia do contrato por parte do titular dos suprimentos mas a oportunidade de pagamento unilateralmente anunciado pela sociedade ré, que na deliberação tomada em 27.11.2010 comunica a possibilidade de liquidação dos suprimentos de alguns sócios logo que exigidos, ao mesmo tempo que condiciona o reembolso de outros (os da autora) ao cumprimento de obrigações que são alheias ao contrato e à própria finalidade social que justificou a entrada do capital, e isso constitui um distinto e injustificado tratamento de sócios que se encontravam em igualdade de circunstâncias (é a presunção que se extrai dos factos apurados subre essa matéria), o que é motivo de anulabilidade da deliberação nos termos do artigo 58º, nº1, al. a) , normativo que segundo Coutinho de Abreu (8) «é aplicável aos casos de violação não somente de “disposições específicas da lei” mas também de princípios jurídicos com força equivalente ao das leis – nomeadamente os princípios da igualdade e da actuação compatível com o interesse social (ou lealdade)», e refere que uma deliberação viola o princípio da igualdade de tratamento dos sócios «quando dela resulta tratamento desigual de um ou mais sócios relativamente a outro sem que para tanto exista justificação objectiva (a deliberação revela-se arbitrária, não fundada no interesse social)».

É certo que, como diz Raul Ventura, “a cada um dos sócios compete zelar pelos seus interesses, procedendo, se quiserem, às devidas interpelações”, mas a sociedade deve observar a igualdade de tratamento dos sócios «quando dela parta a iniciativa do reembolso, ou por antecipação de prazos estipulados ou por espontâneo cumprimento, se a obrigação não estiver sujeita a prazo» (9). A sociedade não procede ao pagamento dos suprimentos quando bem lhe aprouver, nem lhe é legítimo deliberar no sentido da recusa do pagamento por razões que nada têm que ver com a as finalidades sociais que justificaram os empréstimos, pois em última instância quem decide em que prazo se deve fazer o reembolso é o tribunal (nº2 do artº 777º), sob pena da actuação deliberativa se tornar abusiva e ofender os bons costumes, e é o que a nosso ver os factos noticiam na situação em apreço, pelo que a deliberação, como é pretensão dos recorrentes, é anulável nos termos do artigo 58º, nº1, alíneas a) e b).

2. Remuneração ao “gerente”.

A interpretação da vontade dos sócios expressa no contrato social inicial e sucessivas alterações é no sentido de que não existe um direito especial à gerência (a existir, implicaria que, sem a sua anuência, o titular só poderia ser demovido do cargo com justa causa em acção judicial) e que o exercício das funções de gerência está associado ao estatuto de sócio. Significa que o referido Manuel, ao deixar a qualidade de sócio perdeu ipso facto o cargo de gerente, e também nenhum elemento permite afirmar que ele exercia essas funções, anotando-se que as propostas relativas à sua destituição e remuneração apresentadas na assembleia de 27.11.2010 se devem a um contexto de conflitualidade entre os sócios, e não propriamente à derrogação da sua vontade real expressa na assembleia de 2009 onde atribuem a gerência da sociedade aos sócios.

Por consequência, a deliberação que lhe atribuíu uma remuneração anual contraria os fins sociais e não encontra bom abrigo na lei (v.g. artº 192º, nº4), pelo que deve ser anulada ao abrigo do artº 58º, nº1/a. A acta da assembleia refere que foi uma proposta apresentada em alternativa à deliberação que recaíu sobre a remuneração ao gerente A. G., relativamente à qual a não obtenção da maioria necessária resulta do facto de se ter considerado existir impedimento de voto desse sócio nos termos do artigo 251º, ou seja, o conflito de interesses com a sociedade. Erradamente, porquanto é sobretudo no interesse da sociedade que são exercidas e remuneradas as funções de gerência.

3. As demais questões estão relacionadas com as deliberações negativas tomadas na dita assembleia de 27 de Novembro/2010, que a recorrente pretende ver anuladas e, por consequência, obter a sua conversão em deliberações positivas, alegando que as maiorias estão viciadas com os votos dos demais sócios, que sobre a materia tinham uma conflito de interesses com a sociedade (artigo 251º).

A sentença recorrida concluíu pela inexistência de quaisquer vícios de procedimento ou de conteúdo relativamente às deliberações negativas (pontos 3, 4, 5, 6 e 7 da ordem de trabalhos), e quanto à aprovação das correspondentes propostas conforme o peticionado sob as alíneas H! A H5 foi do entendimento de que não cabia ao tribunal “declarar a aprovação das propostas nos termos indicados, uma vez que essa pretensão da autora extravasa o âmbito da acção de anulação formulado”.

Como princípio-regra, é correcto afirmar-se que a finalidade das acções intentadas nos termos dos artigos 59º e 60º é unicamente a anulação de deliberações sociais positivas que enfermem de vícios de procedimento ou de conteúdo (artºs 56º e 58º), pois sendo a deliberação negativa não existe utilidade na declaração da sua invalidade – diz Raul Ventura que “não se vê justificação para destruir aquilo que nada produziu” (obra citada, II- p. 239) - e não cabe na atribuição do juiz substituir-se à assembleia na tomada de decisões em nome do interesse social da sociedade, declarando a aprovação de propostas que foram recusadas pela maioria legal dos sócios.

Mas é conhecida doutrina que defende a possibilidade de o pedido de anulação das deliberações negativas ser cumulado com o pedido de decretamento da deliberação positiva (aprovação da proposta) nos casos em que votos emitidos ilegalmente foram contados e determinantes para a tomada da deliberação, e só nesses casos mesmo para os defensores da aplicação dessa teoria (disso dá nota Raul Ventura na citada obra “Sociedades Por Quotas” vol. II, pág. 270 e ss), o que equivale a dizer que ficam de fora outras situações de cumulação de pedidos que impliquem uma conversão das minorias em maiorias das assembleias de sócios por via unicamente da apreciação do mérito da proposta não aprovada (10).

Pinto Furtado conclui em Deliberações De Sociedades, edição 2005, pág. 131, que “uma proposta for rejeitada pela maioria dos votos expressos mas estiver uma parte desses votos ferida de invalidade, de tal modo que possam constituir maioria aqueles que tinham sido favoráveis à proposta, poderá...mediante pedido cumulativo de invalidação dos votos viciados e de apreciação de que, com a respectiva invalidação se tornará maioritária a aprovação, fazer-se prevalecer a prova de resistência e obter-se o acertamento de que foi afinal a deliberação positiva aquela que vingou e a que deverá ter-se por legalmente adoptada”

Raul Ventura coloca objeções ao duplo pedido à luz do direito positivado (cfr. citada obra, pág. 273)- não ser possível, sem texto legal expresso “fixar um prazo de caducidade para a acção de apreciação, igual ou não àquele que a lei fixa para a acção de anulação, mesmo a pretexto de que o pedido de declaração faz parte da acção de anulação; também não será possível estender à acção declarativa da verdadeira deliberação tomada as regras especiais de legitimidade passiva (acção proposta contra a sociedade, art. 60º, nº1) e de eficácia de caso julgado”; admitindo-se o pedido declarativo, o pedido de anulação é supérfluo”- achando que «a solução mais satisfatória consiste em proceder, sem necessidade de qualquer acção, ao desconto dos votos ilegais, considerando como directamente tomada a deliberação positiva que dessa operação resultar. Assim, o sócio que entenda ser o desconto dos votos incorrecto, poderá propor acção de anulação de deliberação positiva, não tendo cabimento nem acção anulatória da deliberação negativa, nem acção declarativa de deliberação positiva”.

Pinto Furtado entende que em contexto de litígio entre os sócios é difícil implementar o desconto de votos sem a intervenção coerciva do tribunal, e as situações podem até justificar a divergência sobre a legalidade ou ilegalidade dos votos – por exemplo, quando se trata de saber se existe ou não conflito de interesses entre o sócio e a sociedade, e explica a razão por que do seu ponto de vista são transponíveis os obstáculos processuais colocados por Raul Ventura (v.g. da caducidade, da legitimidade passiva e eficácia do caso julgado), e quanto à caducidade escreve: «A acção de duplo pedido há-de ser tempestivamente proposta contra a sociedade, e esta terá, então, o prazo processual adequado para contestar os dois pedidos. Se a deliberação positiva cuja apreciação se pede é ela também anulável, caberá à demandada, para além de impugná-la na contestação, com os argumentos de facto e de direito que possa opor-lhe, arguir no mesmo articulado a sua anulabilidade, mediante excepção peremptória” (cfr. obra citada, p. 130/131).
Também Coutinho de Abreu é dessa opinião (Curso de Direito Comercial, edição 2017-pág. 518/519) referindo:«é certo que, sendo (também) o segundo pedido julgado procedente e enfermando a deliberação positiva de anulabilidade, o prazo para a acção anulatória já terá decorrido. Mas é um facto que a sociedade contra a qual foi proposta acção de duplo pedido pôde contestar e arguir a anulabilidade dessa deliberação”.

Em abono dessa solução doutrinal do duplo pedido, que se perfilha, é de ponderar também que qualquer sócio poder intervir na causa na qualidade de assistente por via do incidente regulado no artigo 326º a 332º do CPC, auxiliando a ré sociedade se tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a essa parte.

Voltando ao caso concreto, podemos então concluir que nenhum obstáculo de índole processual impedia o duplo pedido, sabendo-se que na perspectiva da recorrente as deliberações negativas foram tomadas à custa de votos ilegais por existir conflito de interesses entre os sócios votantes e a sociedade (artigo 251º), que segundo Vaz Serra, pressupõe que o sócio «tenha na deliberação um interesse directo, imediato, oposto ao da sociedade, isto é, tal que a boa fé e os bons costumes o inibam de votar» (11).

a).Relativamente às deliberações enunciadas sob as alíneas c) e d), não detectamos em que medida existe o invocado conflito de interesses com a sociedade dos sócios que votaram desfavoravelmente as propostas apresentadas pela autora, pois não significam mais do que a mera discordância sobre opções e procedimentos a tomar relativos à gestão da sociedade;

b).A autora não especifica que natureza de inquérito pretendia que fosse instaurado, se o inquérito do artigo 67º que é uma prerrogativa de qualquer sócio de reagir contra a falta das contas e da deliberação sobre elas (12), sendo promovido contra a sociedade e os seus gerentes, se o inquérito judicial previsto no artº 1479º do CPC/2007 (o vigente à data da assembleia), promovido por qualquer interessado titular do direito à informação sobre aspectos relevantes da vida societária (artºs 216º, 288º e 291º), em que a sociedade é nessariamente demandada. Em qualquer caso, constituindo os votos dos sócios a manifestação da vontade da sociedade, não faz sentido que seja ela própria a lançar mão de um procedimento em que é principal visada (uma sociedade comercial não pode requerer inquérito a si própria -cfr. Acórdão RL de Lisboa, de 5.12.1991, proc. n.º 003342), daí que a sua instauração esteja subtraídao à deliberação dos sócios.

c). A pretendida propositura de uma acção contra a sociedade e os sócios António e A. G. não faz sentido nem apoio de índole processual ou substantivo. A tratar-se da acção social prevista no artigo 75º como forma de responsabilizar os sócios gerentes pelos danos causados à sociedade com preterição dos seus deveres legais ou contratuais em matéria de distribuição de lucros e suprimentos, a sociedade figura nela necessariamente como autora e não como demandada numa situação de litisconsórcio com os sócios incumpridores das alegadas obrigações (cfr. Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, pág. 284); por outro lado, a pretensão está baseada mais na alegação de hipóteses do que propriamente em factos - “caso se prove que distribuiram apenas a alguns sócios lucros ou adiantamentos sobre lucros, ou restituido também apenas a alguns sócios suprimentos ou prestações suplementares de forma arbitrária e sem qualquer deliberação social”;

d).Quanto à deliberação negativa de destituição dos gerentes, na falta da especificação dos factos que na perspectiva da proponente integravam a justa causa (ou seja, de matéria que indiciasse a impossibilidade de continuação da relação de confiança que o exercício do cargo pressupõe) temos de concluir que estava em discussão a livre destituibilidade dos gerentes por parte da sociedade nos termos do artigo 257º, nº1, casos em que os visados podem sempre votar (cfr. Vaz Serra, RLJ, Ano 110, pá. 119), daí não poder afirmar-se que a maioria foi formada à custa de votos ilegais.

Da condenação da autora como litigante de má-fé:

A decisão não é desprovida de fundamentação de molde a poder dizer-se que nesse segmento enferma da nulidade de julgamento prevista no artigo 615º, nº1, al. c), do CPC, no entanto é deficiente por mor de não conter a factualidade concreta que levou o tribunal a afirmar haver uma actuação/litigância de má-fé por parte da autora.

E a verdade é que não vislumbramos razões válidas para se concluir que a actuação da autora cai na alçada da previsão do disposto no artigo 542º do Código de Processo Civil, não podendo lançar-se mão do instituto de litigância de má fé quando existe uma «defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe» (cfr. ac. STJ de 11.09.2012).

Decisão.

Em face das considerações expostas, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e consequentemente:

1. Consideram anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade de 27 de Novembro de 2010 no sentido do não pagamento de quaisquer suprimentos à sócia X até que a sua gerente H. R. cumpra com todas as suas obrigações perante a sociedade, e fixação de remuneração a Manuel pelo exercício de funções de gerência;
2. Revoga-se a sentença recorrida no tocante à condenação da autora/recorrente como litigante de má-fé;
3. No demais, mantém-se o decidido em 1ª instância.

Custas a cargo da apelante e apelada, em partes iguais.
Tribunal da Relação de Guimarães, 3 de Maio de 2018


Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade
Tem voto de conformidade de Carvalho Guerra, que não assina por não se encontrar presente.


1. Teor do convite ao aperfeiçoamento das conclusões de direito. Apesar do tempo e esforço despendidos na elaboração do projecto de acórdão a submeter à conferência, persistem dificuldades sérias quanto à identificação das reais questões de direito suscitadas nas conclusões de recurso, dada a forma prolixa e desorganizada como se apresentam (a par da sua complexidade). .Essas deficiências são passíveis de aperfeiçoamento nos termos da previsão do artigo 639º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, pelo que se convida a recorrente a fazê-lo no prazo de 5 dias, sob a cominação prevista nesse mesmo normativo. O aperfeiçoamento é circunscrito unicamente às conclusões e à matéria de direito, devendo ser enunciadas de forma sintética (na medida do possível isoladas das questões de facto), sem extravasarem ou inovarem o objecto do recurso, e também se recomenda que sejam sistematizadas por referência ao concreto segmento da deliberação impugnada. 2. Mais se convida a recorrente a providenciar, dentro do prazo de 5 dias, pela junção de documento comprovativo do contrato social da ré (estatutos sociais), dado que pode ter relevância no âmbito da apreciação da questão da validade da deliberação que atribuiu uma remuneração a Manuel Luís dos Santos Teixeira a título do exercício do cargo de “gerente” da sociedade.
2. - Coutinho de Abreu, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, vol. II, p. 15, referindo-se ao contrato social, diz que tratando-se de um “contrato duradouro e de execução continuada, não poderá deixar de se permitir a sua modificação, por forma a que seja possível a sua adaptação e adequação à concreta realidade (…), isto é, a alterabilidade é requisito essencial para afirmar a perenidade da sociedade, consubstanciando uma regra de direito natural em matéria societária” .
3. A designação de gerentes tanto pode ser feita no contrato inicial como por alteração do contrato deliberada nos termos legais ou contratuais (Raul Ventura, in Sociedade Por Quotas, Vol. III, pág. 15).
4. «no interesse da sociedade e do nomeado: a sociedade pode ter interesse sério e atendível em assegurar certa estabilidade aos seus gerentes, e estes em a obter, sem prejuízo porém de poder o gerente ser destituído por justa causa. Assim se conciliam, de maneira razoável, os interesses da sociedade e os dos gerentes”(Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 108, pág. 110).
5. Conforme doutrina dominante, em matéria de estatutos sociais não é de admitir o recurso a elementos estranhos: cfr. Almeida Costa e Henrique Mesquita, "Natureza imperativa do artigo 184 do Codigo Comercial. Elementos atendiveis na interpretação de clausulas estatutárias, in Rev. D. Est. Sociais, ano XVII, n. 1, paginas 43 e seguintes; e Vaz Serra, RLJ, ano 110.
6. Pinto Furtado, in deliberações sociais, pág. 456, que seguidamente indica casos pontuais em que terá de haver um juízo de mérito.
7. Segundo o nº1, do artº 243º «considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o cr´dito fique tendo carácter de permanência».
8. Curso de Direito Comercial, Volume II, 5ª edição, pág. 498.
9. Sociedade Por Quotas, Volume II, pág 137.
10. Isto é, as deliberações foram proclamadas como negativas mas são verdadeiramente positivas, por exemplo “foram computados como votos contra votos não emitidos ou inválidos, ou não foram computados votos a favor e, em qualquer caso, feitas as correcções, verifica-se que a proposta concitou afinal a maioria exigida dos votos” -Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, 5ª ed, pág. 518. O remédio seria a renovação do processo deliberativo para se chegar à deliberação positiva correcta, mas alerta Raul Ventura que esta esperança pode ser ilusória “basta que numa segunda, terceira, quarta, etc. (pois o processo pode reproduzir-se indefinidamente) deliberação repareçam os mesmos votos ilegais, para o «vazio» assim se manter” (obra citada, pág. 239).
11. RLJ, ano 108, pág. 243 e segs.
12. Cfr. António Menezes Cordeiro in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª edição, pág. 266.