Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6651/13.6TBBRG.G2
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CONTRATO DE ADESÃO
INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO
FURTO DE VEÍCULO
ABUSO DE CONFIANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I-A interpretação das cláusulas gerais dos designados contratos de adesão deve ser feita em conformidade com a disciplina prevista nos artigos 236.º a 238.º do C.Civil ex vi art.º 10.º do Dec.-Lei n.º 446/85, sendo que, nos termos do disposto no art.o 11.º. em caso de dúvida, deverá prevalecer o sentido mais favorável ao aderente.

II-Num contrato de seguro, em que o tomador de seguro é uma empresa de aluguer de veículos, a cláusula que garante o desaparecimento de um veículo em caso de roubo, furto e furto de uso do veículo, deve ser interpretada no sentido de que abrange as situações enquadráveis no crime de abuso de confiança.

III-Este sentido, resultante da aplicação das regras de interpretação, é aquele que respeita, por um lado, a vontade real do tomador do seguro, que se limitou a aceitá-las, sem possibilidade de negociação, não lhe sendo exigível o conhecimento rigoroso de conceitos jurídicos e, por outro, corresponde ao sentido mais favorável ao aderente atenta a actividade por ele desenvolvida, que era do conhecimento da seguradora, e se mostra consentâneo com um maior equilíbrio das prestações”.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

X-Aluguer de Automóveis sem Condutor, Lda. intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra “Seguradoras Y, S.A.”, antes designada de “Companhia de Seguros T., SA.” melhor identificadas nos autos, pedindo a sua condenação:

- A pagar-lhe a quantia de € 15.346,24 (quinze mil trezentos e quarenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos), correspondente ao valor comercial da viatura ET (€ 10.653,02) e ao valor das rendas que a Rent., S.A., debitou à autora (€ 4.693,22) acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento, ou a quantia de € 10.653,02 (dez mil seiscentos e cinquenta e três euros e dois cêntimos), relativamente ao valor comercial da viatura ET, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento.

Ou, caso assim não se entenda,
- a pagar à sociedade comercial “Rent. - Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, SA”. a quantia de € 15.346,24 (quinze mil trezentos e quarenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento, ou a quantia de € 10.653,02 (dez mil seiscentos e cinquenta e três euros e dois cêntimos), acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento.

Para tanto alegou, em suma, que, na sequência de contrato de aluguer operacional celebrado entre a “Rent.–Companhia de Aluguer de Viatura, S.A.” foi-lhe entregue a viatura Renault Megane, com a matrícula ET, razão porque celebrou de seguida a autora um contrato de seguro com a seguradora Ré, o qual incluía as coberturas de responsabilidade ilimitada e danos próprios, com a cobertura de furto, roubo ou mesmo de abuso de confiança.
No âmbito da actividade que desenvolve de aluguer de automóveis sem condutor, a autora obrigou-se a proporcionar, mediante retribuição, o gozo do aludido veículo ET e por determinado período, a pessoa que se apresentou como sendo Joaquim e a quem entregou a viatura ET com a obrigação de a devolver a 27 de Outubro de 2008. Contudo, essa pessoa que se apresentou como sendo Joaquim, não devolveu a viatura TE à Autora, antes a mesma se apropriou e fez coisa sua, ilicitamente, tendo, assim furtado a viatura.

Accionado o seguro outorgado com a Ré e o qual incluía as coberturas de responsabilidade ilimitadas e danos próprios, a Ré recusou-se a indemnizar de todo a Autora, alegando injustificadamente que os factos em causa integravam a práctica de uma crime de abuso de confiança e não de furto ou roubo, sendo que o abuso de confiança não se mostra incluído nas coberturas da apólice.
A Ré contestou alegando a ilegitimidade da Autora relativamente ao pedido de pagamento da quantia corresponde ao valor do veículo que está em discussão nos presentes autos. Em sede de impugnação, veio dizer que o contrato de seguro celebrado não cobre a situação invocada pela autora.
Requereu a intervenção da “Rent.–Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A.”, como parte principal associada à Autora, o que veio a ser indeferido.
Foi proferido saneador/sentença, que julgou ser a Autora parte ilegítima relativamente ao pedido de pagamento da quantia corresponde ao valor do veículo que está em discussão nos presentes e conheceu imediatamente de mérito da causa, sendo a acção julgada integralmente improcedente.
Foi interposto recurso pela Autora, o qual foi julgado parcialmente procedente, decidindo-se, além do mais, revogar a sentença no tocante à decisão de absolvição da Ré da instância relativamente ao pedido subsidiário de condenação da Ré no pagamento à “Rent. – Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A.” da quantia correspondente ao valor do veículo ET, de € 10.653,02, determinando o prosseguimento dos autos, tendo o objecto do litígio sido circunscrito à referida questão.
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Foi realizada audiência prévia onde, tendo em conta a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães e por acordo das partes, foi enunciada a matéria considerada provada e aquela que deveria ser objecto de prova.
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Proferiu-se sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido.
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Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso, terminando com as seguintes

Conclusões:

I.Por força do Douto Acórdão deste Tribunal proferido em consequência de recurso interposto do saneador-sentença, sobrou para decisão o pedido de condenação da Ré a pagar à RENT. - Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S. A. a quantia de € 10.653,02, relativamente ao valor da viatura ET.
II. O Tribunal a quo enquadra a matéria de facto provada no "crime de abuso de confiança" (cfr. art.º 205 do Código Penal).
III. Efetivamente, dos factos provados 25 a 30, 35 a 37, 39 a 47 resulta que a pessoa que se apresentou a alugar a viatura (e que, assim, lhe foi entregue por título não translativo de propriedade) apropriou-se ilegitimamente da mesma (cfr. art° 205 do Código Penal).
IV. Mas por entender que o risco associado a este tipo de crime não está expressamente previsto na apólice, considerou a sentença que o mesmo não estava coberto, pelo que julgou improcedente a ação.
V. Para alcançar esta conclusão, o Tribunal a quo tomou como premissa o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Novembro de 2000, invocado pela A., único Acórdão conhecido que se pronunciou nesta matéria, em situação exatamente idêntica à dos autos, o qual, em abono da tese da A., decidiu que, Num contrato de seguro, em que outorgou, por adesão, uma empresa de aluguer de automóveis, a cláusula que responsabiliza a seguradora em caso de roubo, furto e furto de uso do veículo, não deve ser interpretada como abrangente apenas dos factos integrantes destes ilícitos criminais." A actividade da empresa -conhecida da seguradora- e consequente razão de ser do próprio contrato de seguro, permite abranger em tal cláusula os casos -integrantes de abusos de confiança- em que alguém tomou um veículo de aluguer e o fez desaparecer."
VI. Em face deste Acórdão da Relação já transitado em julgado, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito a que se reporta os presentes autos, decisão essa tomada como premissa, a dedução silogística lógica seria a de julgar no mesmo sentido desse Acórdão e condenar a Ré no pedido.
VII.Mas a sentença não faz isso, limitando-se a argumentar sem a correspondente justificação, o contrário do vertido na aludida decisão da Relação, saltando diretamente para o diametralmente oposto, ou seja, afirmando de imediato à citação do sumário do Acórdão que se A ré tinha conhecimento de que a autora/tomadora se dedicava ao aluguer de veículos automóveis sem condutor, sabendo que o veículo se destinava a ser alugado pela Autora a seus clientes, no desenvolvimento da sua atividade comercial de aluguer de automóveis sem condutor, Por isso mesmo, a característica singular desta atividade desenvolvida pela Autora exigiria que o risco de não lhe ser devolvido algum veículo entregue a um cliente estivesse especialmente previsto.
VIII.Resulta para a recorrente como indubitável que as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão, designadamente as normas dos artigos 2360 e 2370 do código civil, face à matéria provada e não provada, deviam ter sido interpretadas no sentido plasmado no Acórdão da Relação do Porto de 21/11/2000.
IX.Nessa conformidade, não só não se provou o alegado pela Ré na sua contestação que antes de subscrever e entregar à Ré a proposta de seguro foram lidas, comunicadas e explicadas à A. as cláusulas respeitantes à Condição Especial de "Furto ou Roubo" tendo-lhe sido explicado que apenas desaparecimento do veículo por furto ou roubo e já não por abuso de confiança estaria coberto.
X.Como se provou o seu contrário, ou seja, que nem antes, nem aquando da celebração dessa apólice, alguma vez a seguradora Ré comunicou ou negociou com a Autora a exclusão ou inclusão do abuso de confiança na cobertura dos danos próprios ou esclareceu essa exclusão ou inclusão.
XI. Sendo a atividade da Ré conhecida pela seguradora antes e no momento da elaboração do contrato de seguro (facto provado 23).
XII.Sendo inquestionável que a Autora pretendeu, com a celebração do contrato de seguro, nos moldes em que o "aceitou", cobrir o risco da perda do veículo por apropriação de outrem, sem pensar no tipo legal de crime que a apropriação pudesse assumir.
XIII.Segundo a "teoria da impressão do destinatário", a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário razoável a interpretaria, colocado na posição concreta do declaratário real.
XIV. Sendo que, na combinação das normas dos art°s 237° e 236° do C.Civil e art°s 10° e 11° do DL 446/85, de 27/10 e da teoria da impressão do destinatário, resulta que a interpretação adequada in casu é considerar, ao contrário da posição da decisão recorrida, que o risco da situação dos autos se encontra coberto pela Recorrente seguradora.
XV. Até porque é que o Acórdão da Relação do Porto é de novembro de 2000 e apólice é feita vários anos depois.
XVI. As seguradoras, como é o caso da Ré Recorrida, dispõe de um corpo jurídico especializado, profundo conhecedor de todas as decisões judiciais que são proferidas em matérias de seguros e que prestam o necessário aconselhamento na elaboração das apólices.
XVII. A Recorrida não podia, aquando da celebração do seguro, desconhecer o teor do Acórdão da Relação do Porto de 2000, único conhecido sobre a matéria.
XVIII. Bem conhecia a Ré qual a posição da jurisprudência dos Tribunais, exatamente no sentido de incluir na cobertura de danos próprios o abuso de confiança, no caso das rent-a-car.
XIX. Não ignorando essa questão, antes bem a conhecendo, a A, mais obrigação tinha de se precaver quanto à orientação no sentido da inclusão do abuso de confiança neste seguro e de informar a recorrente antecipadamente que só aceitava a celebração do seguro com a exclusão deste risco.
XX. Não o tendo feito, resta-lhe assumir, sem surpresas, o risco inerente ao abuso de confiança.
XXI. O recurso versa sobre matéria de direito.
XXII. A sentença recorrida, violou ou interpretou erradamente o disposto nos art°s 426° e 427° do C. Comercial, 236° a 238° do C.Civil e art°s 10° e 11° do DL 446/85, de 27/10.
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A Ré contra-alegou, concluindo que:

I-As circunstâncias nas quais se provou ter desaparecido o ET integram a prática de um crime de abuso de confiança e não os de furto ou roubo;
II- Nos termos da apólice de seguro celebrada com a Ré, só o desaparecimento do bem seguro por furto ou roubo ficou garantido e já não o de desaparecimento por abuso de confiança;
III- O contrato de seguro é um negócio formal, o qual se rege pelas suas condições, não podendo as suas cláusulas ser interpretadas com um sentido que não tenha a mínima correspondência com o respectivo texto;
IV- O conceito de furto ou roubo é o que resulta do código penal, não se confundível com o de abuso de confiança.
V- O texto do contrato de seguro é claro, estabelecendo em que circunstâncias fica garantido o desaparecimento do bem, não sendo possível interpretá-lo no sentido de abranger ainda o desaparecimento por abuso de confiança;
VI- Não estando preenchida a previsão contratual, já que o veículo não foi furtado (tendo antes sido entregue voluntariamente pela A ao seu cliente), não está a Ré constituída na obrigação de pagar qualquer uma das prestações previstas no seguro.
VII- Para além de não resultar do texto do contrato de seguro a cobertura do risco de desaparecimento do bem por abuso de confiança, resulta dos factos provados, de forma clara, que nunca foi vontade das partes incluir na respectiva garantia este último risco.
VIII-O contrato de seguro foi proposto à Ré pela A para cumprimento do contrato de aluguer operacional que esta tinha celebrado com a Rent.;
IX- As coberturas cuja subscrição foi imposta à A pela Rent. não incluíam o risco de desaparecimento do veículo por abuso de confiança, mas apenas por furto ou roubo;
X- Em consonância com a extensão das obrigações contratuais que assumiu com a Rent., a A, como se provou, não propôs à Ré a cobertura do risco de abuso de confiança (cfr ponto 48° dos factos provados);
XI- O que resulta da factualidade dada como provada nos pontos 18.º, 19.º e 48.º é que nunca foi vontade das partes a inclusão nos riscos cobertos pelo seguro o desaparecimento do veículo por abuso de confiança cometido por um cliente da demandante;
XII- De resto, no âmbito da sua actividade comercial a A está sujeita a um conjunto de riscos conexos com danos e perda de viaturas;
XIII- Alguns desses riscos (como a destruição ou danificação do carro por acidente viário, ou a sua subtração por terceiros alheios ao contrato de aluguer) não são domináveis pela demandante, justificando-se que os transfira para uma seguradora, caso esta os aceite;
XIV- Porém, outros riscos dessa actividade, como o da não devolução do veículo alugado por um seu cliente, é susceptível de ser eliminado ou reduzido pela demandante, mediante um rigoroso escrutino dos clientes que se propõem a alugar um carro, com a sua devida identificação e prova de residência;
XV-Consoante seja mais ou menos ampla a cobertura de um seguro, será também maior ou menor o seu prémio;
XVI-À A competia decidir quais os riscos que estava ou não disposta a suportar e aqueles que considerava justificarem a transferência para uma seguradora;
XVII-Apesar de a Ré conhecer a actividade desenvolvida pela recorrente, não poderia assumir que a A pretendesse acautelar o risco de não devolução do carro pelo seu cliente por abuso de confiança, já que nada lhe foi solicitado nesse sentido aquando da contratação (cfr ponto 48° dos factos provados);
XVIII-Assim, independentemente do conhecimento que a Ré tivesse da existência do risco de desaparecimento de um veículo da A. por abuso de confiança, a esta competia propor a sua garantia no âmbito do contrato de seguro, na medida em que conhecia esse risco.
XIX-Logo, porque não resulta do contrato de seguro a garantia desse risco, nem o mesmo alguma vez foi proposto à Ré, não está esta constituída na obrigação de pagar qualquer prestação, por não se ter verificado a previsão contratual.
XX-Apesar de nos merecer todo o respeito o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto invocado pelo A, a solução jurídica aí encontrada não será, salvo melhor opinião, a que se impõe no presente caso;
XXI-Tanto mais que, como se tentou explicitar no corpo destas alegações, a situação de facto ponderada não é, sequer, a mesma que está em causa nesta acção;
XXII-Não é relevante o facto de não se ter provado que a Ré comunicou à A as cláusulas contratuais;
XXIII-Não tendo a A proposto à Ré a inclusão da cobertura de desaparecimento por "abuso de confiança" ainda que a Ré tivesse lido e explicado à demandante todas as estipulações contratuais, disso não resultaria para a demandante qualquer informação relevante, na medida em que não estava em causa saber se essa cobertura estava ou não incluída na apólice.
XXIV-Ademais, nenhuma das cláusulas do contrato excluiu (ou inclui) expressamente a cobertura de desaparecimento do veículo por abuso de confiança;
XXV-A questão que se coloca não é outra senão a da interpretação que deve ser dada à cláusula que define a garantia da apólice, mais precisamente a que define furto ou roubo.
XXVI-As regras respeitantes à interpretação de cláusulas contratuais gerais não é substancialmente diferente das que definem a forma como devem ser interpretados os demais negócios formais (cfr artigo 10° do DL 446/85, de 25/10);
XXVII-E só se se tratar de uma cláusula "ambígua" se deverá optar pela interpretação que for mais favorável ao aderente (cfr artigo 11.º n.o 2 do citado diploma).
XXVIII-No caso, como já vimos, a única interpretação possível das cláusulas contratuais é a de que só o desaparecimento do veículo por furto ou roubo - e não por abuso de confiança - está coberto pela apólice.
XXIX-Logo, não existe qualquer ambiguidade no texto da norma contratual que justifique interpretação distinta, o que impõe a confirmação da douta sentença.
XXX-A presente acção foi intentada pela A contra a Ré tendo como pressuposto o facto de a Rent., proprietária do ET, lhe ter solicitado o pagamento da verba de 10.653,02€ a título de reparação pelo desaparecimento do veículo, montante esse que se alegou corresponder ao valor comercial do veículo.
XXXI-Não se provou que o dito montante corresponda ao valor comercial do veículo desaparecido e não se sabe a que título a Rent. o reclamou da demandante.
XXXII-A A celebrou com a Rent. um contrato de "aluguer operacional de viaturas" e é perfeitamente possível que da sua execução tenha resultado para a locadora créditos, de origem contratual, os quais seriam devidos independentemente do desaparecimento do carro e que tenha reclamado à recorrente.
XXXIII-A obrigação da Ré no âmbito do contrato de seguro cinge-se ao pagamento de uma indemnização pelo desaparecimento (por furto ou roubo) do veículo, a qual seria devida à sua proprietária, a Rent..
XXXIV-Não se tendo provado a natureza do crédito reclamado pela Rent. à A, também não se pode concluir que o pagamento pela Ré àquela primeira empresa do valor peticionado de cerca de 10.000,00€ permitisse a liquidação da concreta dívida reclamada pela locadora.
XXXV-Assim, salvo melhor opinião, a A não demonstrou o seu interesse em demandar a Ré para pagamento à Rent. desse valor, o qual poderá dizer respeito a alguma obrigação contratual que emerge do próprio contrato de "aluguer operacional de viaturas" e não do desaparecimento do carro e pode não exonerar a demandante de pagar à locadora o indicado valor.
XXXVI-Face à factualidade dada como provada entende a Ré que a A não tem interesse em agir contra a Ré, pelo que, mesmo que se viesse a considerar incluída na apólice a cobertura de desaparecimento do veículo por "abuso de confiança", sempre se imporia a absolvição da demandada da instância.
XXXVII-A falta de interesse em agir é uma excepção inominada de conhecimento oficioso, cuja verificação se revelou da factualidade dada como provada e deve, portanto, ser agora conhecida.
XXXVIII-Julgada a causa ficou por apurar o prejuízo da Rent. com o desaparecimento do ETN, desconhecendo-se, inclusive, se a verba de l0.653,02€ corresponde ao valor comercial do veículo.
XXXIX- Logo, podendo admitir-se que a Rent. tenha sofrido um prejuízo em resultado do desaparecimento do ET, não se provou a quanto monta.
XL- Logo, não restaria outra solução senão a de, dentro dos limites do pedido deduzido, ou seja, até ao valor de 10.653,02€ e do que se provou na accão, condenar a Ré no paqamento à Rent. da quantia que se vier a liquidar ulteriormente e que corresponda ao prejuízo sofrido.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir

II- Delimitação do Objecto do Recurso

A questão decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se o contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré garante o desaparecimento do veículo, objecto do contrato, em consequência da falta de entrega, ilícita, do mesmo pelo locatário.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

1. A autora dedica-se ao aluguer de veículos sem condutor;
2. No dia 6 de Março de 2006, a autora celebrou com a sociedade comercial RENT. - Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A. um acordo de aluguer operacional de viaturas;
3. No âmbito deste acordo, a sociedade comercial RENT. - Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A. entregou à autora o veículo de marca Renault, modelo Megane, com a matrícula ET, para que esta o utilizasse no exercício da sua actividade, mediante a entrega da quantia mensal de € 367,77;
4. O veículo foi entregue à autora no mês de Dezembro de 2007;
5. Ficou acordado que a autora restituía o veículo à sociedade comercial RENT. - Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A. no mês de Junho de 2009;
6. Por contrato de seguro titulado pela Apólice nº001780615.000011 a autora transferiu para a ré a responsabilidade civil pela circulação do veículo;
7. A cobertura de furto ou roubo do veículo foi definida no contrato de seguro como o desaparecimento ou destruição do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso tentados ou consumados;
8. Esta cobertura incluía os prejuízos causados no veículo, quer estes se traduzissem no desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo ou dos seus componentes ou na subtracção de peças fixas indispensáveis à sua utilização;
9. Do contrato de seguro indicado em 6. consta cláusula que alude/prevê a cobertura de danos próprios, nomeadamente a de furto ou roubo;
10. O contrato referido em 6. foi celebrado entre a A., como tomadora, e a Ré, como seguradora, sendo um contrato de seguro do Ramo Automóvel, titulado pela apólice 1780615 e subordinado às Condições Gerais, Especiais e Particulares juntas de fls. 135 a 163 e cujo teor se dá aqui por, no âmbito do qual foram ressalvados os seus direitos em caso de perda total a favor da “Rent.”.
11. Consta na cláusula 1ª das Condições Especiais de “Furto ou Roubo” que, “Para efeito da presente Condição Especial considera-se: FURTO OU ROUBO: O desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentados ou consumados).”
12. Consta na cláusula 2ª da condição especial dessa cobertura que “A presente Condição Especial garante ao Segurado o ressarcimento dos danos causados ao veículo seguro por furto ou roubo, quer estes se traduzam no desaparecimento, na destruição ou deterioração do veículo e/ou dos seus componentes, quer na subtracção de peças fixas e indispensáveis à sua utilização”.
13. Consta no nº 2 da Cláusula 4ª da respectiva Condição Especial dessa cobertura que “Ocorrendo furto ou roubo que dê origem ao desaparecimento do veículo, o Segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, se ao fim desse período não tiver sido encontrado.”
14. Acordaram as partes que o capital do seguro sofreria, desde o início da vigência do contrato, uma desvalorização mensal e anual, de acordo com a tabela de desvalorização acordada e constante das condições particulares da apólice, junta de fls. 109 a 113, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
15. O contrato de seguro teve o seu início em 30/11/2007, sendo o capital indicado pela A. para a viatura, nessa data, o de 21.875,23€.
16. O capital para a cobertura de “furto ou roubo”, mercê da aplicação da tabela de desvalorização acordada entre as partes e constante das condições particulares da apólice e ainda da aplicação do disposto na Lei 214/97, de 16 de Agosto, era, à data de 27 de Outubro de 2008 (e 30 de Outubro do mesmo ano), de 17.281,43 (dezassete mil duzentos e oitenta e um euros e quarenta e três cêntimos), por aplicação de uma desvalorização de 21% relativamente ao capital inicial.
17. Estabelece o artigo 45º das Condições Gerais da Apólice que “Em caso de Perda Total e quando o Segurador haja aceite a ressalva de direitos desta Apólice a favor das pessoas ou entidades indicadas nas Condições Particulares, com domicílio também indicado nessas condições, e enquanto tal se mantiver, não poderá proceder ao pagamento de qualquer indemnização ao Segurado, sem dar conhecimento prévio às pessoas ou entidades a favor de quem os direitos da Apólice ficam ressalvados”.
18. Esse seguro foi celebrado pela A. em cumprimento das obrigações decorrentes do contrato celebrado com a Rent., referido em 2., que se encontra junto de fls. 14 a 19 e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
19. Resulta do disposto na cláusula 18ª, n.º 1 desse contrato, que a A. e a Rent. acordaram que “para cobertura das eventualidades de perda ou deterioração, causais ou não, do veículo, deverá ser contratado um seguro, nomeadamente, com as seguintes coberturas:
a. Responsabilidade Civil de €50.000.000,00€
b. Danos Próprios – que constituirá a garantia dos prejuízos ou danos que advenham ao veículo em virtude de Choque, Colisão ou Capotamento; Incêndio, Raio ou Explosão, Furto ou Roubo, Quebra Isolada de Vidros; Riscos da Natureza; Actos de Vandalismo”.
20. A A. é uma empresa de aluguer de veículos que iniciou a sua actividade no ano de 1984, a qual vem desenvolvendo, ininterruptamente, desde então.
21. O automóvel em causa pertencia, como pertence, à Rent..
22. Tal viatura ET destinava-se a ser alugada pela Autora a seus clientes, no desenvolvimento da sua actividade comercial de aluguer de automóveis sem condutor – rent-a-car.
23. Actividade essa conhecida da Ré aquando da celebração da referida apólice de seguro supra referida.
24. Nem antes, nem aquando da celebração dessa apólice, alguma vez a seguradora Ré comunicou ou negociou com a Autora a exclusão ou inclusão do abuso de confiança na cobertura dos danos próprios ou esclareceu essa exclusão ou inclusão.
25.No exercício da sua referida actividade, obrigou-se a Autora a proporcionar, mediante retribuição, o gozo do aludido veículo automóvel de matrícula ET, pelo período, inicialmente entre os dias 22/10/2008 e 25/10/2008, depois prorrogado até 27/10/2008, a alguém que se apresentou como sendo Joaquim, apresentando documentos identificadores com esse nome, como o seja um bilhete de identidade e carta de condução.
26.A dita pessoa que se apresentou como sendo Joaquim, recebeu efectivamente da Autora a viatura automóvel de matrícula ET, no dia no dia 22 de Outubro de 2008, na agência da Autora da Póvoa de Varzim.
27. Devendo fazer a devolução dessa viatura na data de 27 de Outubro de 2008, na referida agência da Póvoa de Varzim da A..
28.A aludida pessoa que se apresentou como sendo Joaquim não devolveu nem fez entrega da viatura TE à Autora em 27 de Outubro de 2008, nem em qualquer outra data anterior ou posterior.
29. A Autora fez diversas tentativas para recuperar aquela viatura ET, mas não conseguiu localizar nem a viatura nem a dita pessoa.
30. A aludida pessoa bem sabia que a viatura ET não lhe pertencia e que lhe tinha sido entregue para no final do serviço que contratara ser devolvida, querendo, apesar disso, apropriar-se da viatura, como se apropriou, fazendo-a coisa sua, contra a vontade do seu legítimo possuidor, desiderato que logrou atingir.
31. Em 31 de Outubro de 2008, a autora apresentou queixa crime na PSP da Póvoa de Varzim, pelos factos supra articulados.
32. No dia 12/11/2008, a Autora enviou uma comunicação por e-mail à Rent., na pessoa do colaborador desta Carlos, técnico comercial da mesma, com quem habitualmente lidava, para o seu e-mail «…@Rent..pt, com conhecimento a outra colaboradora da Rent., Maria, com o seguinte teor «venho por este meio informar que a viatura Renault Megane Break ET foi furtada a 25/10/2008», acrescentando o mesmo e-mail:- «foi desde logo apresentada queixa junto das autoridades competentes e perante os dados, foi dada indicação pelo nosso advogado, para accionarmos os danos próprios por furto…».
33.Tal comunicação / e-mail foi recebido pela Rent., tendo o dito Carlos respondido aquele e-mail, em nome da Rent., com um outro e-mail datado de 14 de Novembro de 2008, sob o «assunto:- RE ET (furto) enviado por: Rent.,« Ao accionar o seguro, não implica suspensão do contrato. Assim, que a seguradora confirme a Perda Total…».
34.A Rent. reencaminhou a referida comunicação do desaparecimento da viatura ET para a Ré.
35. A seguradora T. enquadrou o desaparecimento da viatura ET na figura do «abuso de confiança».
36. O processo crime que sucedeu em consequência da queixa crime a que se alude supra, que correu termos no Ministério Público da Póvoa de Varzim, sob o nº 1229/08.9PAPVZ, teve Despacho de Arquivamento com data de 31 de Maio de 2010, em virtude de se ter apurado que o denunciado, para celebrar o contrato de aluguer referente à viatura ET, usou os documentos de identificação de Joaquim, que se encontravam no interior do veículo de matrícula MX, que lhe foi furtado no dia 27/10/2008, pelo que não foi possível apurar o autor dos factos denunciados, tudo sem prejuízo dos autos serem reabertos, caso surjam novos elementos de prova, «designadamente se o veículo vier a ser apreendido».
37. A Autora não devolveu a viatura ET à Rent., porque o mesmo já não estava na sua posse.
38. A Rent. exigiu à A. o pagamento da quantia de € 10.653,02;
39.A A. e a pessoa que a contactou chegaram a acordo quanto aos elementos essenciais do dito contrato de aluguer de veículo, nomeadamente o seu objecto, período de duração e remuneração, tendo o mesmo sido devidamente formalizado num documento escrito.
40.Entre a A. e essa pessoa foi, no dia 22/10/2008, celebrado um contrato de aluguer do automóvel com a matrícula ET, mediante o qual a primeira se comprometeu a ceder ao segundo, mediante uma determinada retribuição prevista no contrato, o gozo temporário desse automóvel, e o segundo se comprometeu a pagar o preço acordado e ainda a restituir o automóvel findo o prazo do aluguer.
41.Ficou acordado entre as partes que o veículo deveria ser restituído pelo cliente à A. até ao dia 25 de Outubro de 2008.
42. A dita pessoa pagou, no dia 22/10/2008, o preço acordado pelo aluguer do automóvel pelo indicado período.
43. E, na sequência desse acordo, a A., no dia 22 de Outubro de 2008, entregou, voluntariamente, o veículo com a matrícula ET à pessoa que com a mesma celebrou esse contrato.
44. A. A entregou à pessoa que se identificou como Joaquim o automóvel ET, bem como a respectiva chave e demais pertences.
45.Tendo a pessoa em causa levado consigo esse carro, o qual terá usado com plena autorização da A. até ao dia 25 de Outubro de 2008.
46. No dia 25 de Outubro de 2008, a A. e a pessoa a quem tinha alugado o carro acordaram a prorrogação do prazo de entrega do automóvel até ao dia 27 de Outubro desse ano.
47. Aceitando, portanto, a A. que a pessoa a quem alugou o veículo se mantivesse na legítima detenção deste até a esta última data.
48. A cobertura do desaparecimento do veículo por efeito de abuso de confiança nunca foi proposto à Ré pela A..
49. No dia 27 de Outubro de 2008, a ré dispunha de 16 sucursais espalhadas pelo Norte do país.
50. Ao longo de quase 40 anos de actividade a A. já celebrou centenas de contratos de seguro com cobertura de danos próprios de veículos de aluguer.
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IV- DIREITO

No âmbito de um acordo de aluguer operacional de viaturas celebrado entre a Autora e a sociedade “Rent.-Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A.”, esta entregou-lhe o veículo de marca Renault, modelo Megane, com a matrícula ET, para que o utilizasse no exercício da sua actividade de aluguer de viaturas, mediante a entrega da quantia mensal de € 367,77.
A Autora obrigou-se ainda a celebrar um contrato de seguro “para cobertura das eventualidades de perda ou deterioração, causais ou não, do veículo, nomeadamente, com as seguintes coberturas:

a. Responsabilidade Civil de €50.000.000,00€
b. Danos Próprios – que constituirá a garantia dos prejuízos ou danos que advenham ao veículo em virtude de Choque, Colisão ou Capotamento; Incêndio, Raio ou Explosão, Furto ou Roubo, Quebra Isolada de Vidros; Riscos da Natureza; Actos de Vandalismo”.
Em cumprimento deste compromisso, a Autora, na qualidade de tomadora, celebrou com a Ré um contrato de seguro titulado pela Apólice nº001780615.000011, através do qual, transferiu a responsabilidade civil pela circulação do veículo.
Portanto, Autora e Ré celebraram um contrato de seguro, cujo beneficiário é a sociedade proprietária do veículo, “Rent.-Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A.”.

O contrato de seguro é definido por José Vasques(1) como sendo aquele pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador de seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto.
A obrigação do tomador do seguro consiste no pagamento do prémio convencionado e a obrigação da seguradora, verificado o risco, no pagamento de uma indemnização ou de capital.
O risco, como refere José Vasques (2), pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro, sendo um elemento essencial do contrato de seguro.
Apesar de estar sujeito ao princípio da liberdade contratual, o contrato de seguro em apreciação, tal como é frequente, contém cláusulas pré-definidas, sem negociação, em relação às quais os destinatários se limitam a aceitar ou a subscrever.
Enquadra-se, por isso, nos designados contratos de adesão, e consequentemente, deve ser submetido à disciplina do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10, com as alterações introduzidas pelos Dec.-Leis n.os 220/95 de 31/08 (transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva das Cláusulas Abusivas n.º 93/13/CEE de 05 de Abril de 1993), 249/99 de 07/07 e 323/2001 de 17/12).

Ficou provado que no dia 22 de Outubro de 2008, a Autora alugou o veículo, objecto do contrato de seguro, a uma pessoa que se apresentou como sendo Joaquim para o utilizar até ao dia 27 de Outubro de 2008.

Porém, esta pessoa não restituiu o veículo no dia 27 de Outubro de 2008 e nunca mais foi encontrado.
Bem sabia que a viatura ET não lhe pertencia e que lhe tinha sido entregue para, no final do serviço que contratara, ser devolvida, querendo, apesar disso, apropriar-se da viatura, como se apropriou, fazendo-a coisa sua, contra a vontade do seu legítimo possuidor, desiderato que logrou atingir.
A questão de direito nuclear deste caso consiste em saber se uma situação fáctica que integra o tipo legal do crime de abuso de confiança se encontra garantida pelo contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré.

Para tanto, é necessário interpretar as cláusulas que estabelecem as coberturas dos riscos incidentes sobre o veículo em causa, em conformidade com a disciplina prevista nos artigos 236.º a 238.º do C.Civil ex vi art.º 10.º do Dec.-Lei n.º 446/85, sendo que, nos termos do disposto no art.o 11.º. em caso de dúvida, deverá prevalecer o sentido mais favorável ao aderente.

Com efeito, as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas, segundo o referido art.º 10.º, de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.(sublinhado nosso)

O intérprete deverá ter em conta as regras vigentes nesta matéria, previstas nos arts. 236.º a 238.º do C.Civil, mas sem esquecer as especificidades e o contexto do contrato por forma a conduzir “a um resultado interpretativo adequado à ratio da tutela legal da posição do aderente.” (3)

Este afloramento do princípio de protecção do contraente, em posição desfavorecida, determina que o predisponente assuma o risco de uma declaração pouco clara, pois é ele quem dispõe dos meios para a evitar. (4)

A cobertura de furto ou roubo do veículo foi definida no contrato de seguro como o desaparecimento ou destruição do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso, tentados ou consumados (cláusula 1.ª das Condições Especiais).
E na cláusula 2ª da condição especial dessa cobertura ficou estabelecido que “A presente Condição Especial garante ao Segurado o ressarcimento dos danos causados ao veículo seguro por furto ou roubo, quer estes se traduzam no desaparecimento, na destruição ou deterioração do veículo e/ou dos seus componentes, quer na subtracção de peças fixas e indispensáveis à sua utilização”.
Aplicando a teoria da impressão do destinatário, a primeira nota que ressalta, na perspectiva de um declaratário normal, colocado na posição real da Autora, tomadora de seguro, é que esta pretendeu acautelar nomeadamente o risco de desaparecimento do veículo, pertencente à beneficiária, e que era utilizado no âmbito da sua actividade de aluguer de veículos.

Na verdade, a Autora limitou-se a aceitar as referidas cláusulas redigidas com termos jurídicos (furto, roubo), que não tem obrigação de compreender com rigor o significado, sem possibilidade de os alterar, porque o que lhe naturalmente interessava, atenta a actividade por si desenvolvida, era prevenir o risco do desaparecimento do veículo na hipótese de apropriação ilícita pelo locatário ou por outrem.

O aderente, mesmo sendo pessoa informada e instruída, pode não saber distinguir os casos que integram os crimes de furto, de roubo ou de abuso de confiança, pois apenas lhe interessa garantir o evento, em concreto, susceptível de determinar o pagamento de uma indemnização pela seguradora, caso se verifique.
Resulta da experiência de vida que a apropriação ilícita de um bem é qualificada, pela generalidade das pessoas, como um furto/roubo.

Aliás, a seguradora tinha conhecimento que a Autora exercia a actividade de aluguer de veículos, sendo, por esse motivo, expectável a preocupação de cobrir a eventualidade de perda do veículo, por apropriação ilícita de outrem.

Consideramos que esta interpretação das cláusulas contratuais gerais do contrato de seguro em apreciação é aquela que respeita, por um lado, a vontade real do tomador do seguro, que se limitou a aceitá-las, sem possibilidade de negociação, não lhe sendo exigível a compreensão rigorosa de conceitos jurídicos e, por outro, corresponde ao sentido mais favorável ao aderente, mostrando-se consentâneo com um maior equilíbrio das prestações.

A situação que se verificou de apropriação ilícita do veículo que foi entregue pela Autora ao referido locatário, configurava, no entendimento daquela e de qualquer declaratário razoável, um furto, razão pela qual nas participações que dirigiu à Rent. e à P.S.P. comunicou o furto do veículo.

Nesta conformidade, acompanhamos a posição manifestada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21 de Novembro de 2000 (5) em que se decidiu que “num contrato de seguro, em que outorgou, por adesão, uma empresa de aluguer de automóveis, a cláusula que responsabiliza a seguradora em caso de roubo, furto e furto de uso do veículo, não deve ser interpretada como abrangente apenas dos factos integrantes destes ilícitos criminais.”
Acrescentando que “A actividade da empresa-conhecida da seguradora- e consequente razão de ser do próprio contrato de seguro, permite abranger em tal cláusula os casos -integrantes de abusos de confiança- em que alguém tomou um veículo de aluguer e o fez desaparecer.”

Tendo ocorrido o evento previsto no contrato de seguro, ou seja, o desaparecimento ilícito do veículo, a Ré, nos termos da cláusula 4.ª, e da Condição Especial ficou obrigada a pagar uma indemnização, decorridos sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, por não ter sido encontrado.
O capital para a cobertura de “furto ou roubo”, mercê da aplicação da tabela de desvalorização acordada entre as partes e constante das condições particulares da apólice e ainda da aplicação do disposto na Lei 214/97, de 16 de Agosto, era, à data de 27 de Outubro de 2008 (e 30 de Outubro do mesmo ano), de 17.281,43 (dezassete mil duzentos e oitenta e um euros e quarenta e três cêntimos), por aplicação de uma desvalorização de 21% relativamente ao capital inicial.

A norma ínsita no art. 130.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) constitui uma decorrência (6) do princípio indemnizatório plasmado no artigo 128.º do RJCS : a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.

De acordo com esse princípio, nem o valor do capital seguro pode ser superior ao valor do interesse seguro, nem o valor da prestação a cargo do segurador pode ser superior ao valor do interesse lesado (7).

Por forma a ser cumprida pela Ré a obrigação a que se encontra adstrita, Ré, por força do contrato de seguro, cumpre determinar o valor do veículo uma vez que a prestação da seguradora não pode exceder o valor equivalente ao dano sofrido, sob pena de enriquecimento injustificado da beneficiária.
Segundo o disposto no artigo 609.º, n.º 2 do C.P.Civil se o tribunal não tiver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, condena no que vier a ser liquidado.

Inexistindo elementos nos autos que nos permitam quantificar o valor do veículo, tal será feito em liquidação de sentença, nos termos dos artigos 358.º, n.º 2 e 609.º, n.º 2 do C.P.Civil, até ao limite máximo de €17.281,43.
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V- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e em consequência, condenam a Ré a pagar à “Rent.-Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A.” a quantia que vier a ser liquidada, correspondente ao valor comercial do referido veículo, acrescida dos juros calculados à taxa legal, desde a notificação da sentença de liquidação até integral pagamento.
Custas do recurso a cargo da Ré.
Notifique e registe.
Guimarães, 10 de Maio de 2018


(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)
(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)


1. Contrato de Seguro, Coimbra Editora, pág. 94.
2. Ob. cit., pág. 127.
3. Cfr. Prata, Ana, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, 2010, pág. 297.
4. Cfr. ob. cit. pág. 352/353.
5. Disponível in www.dgsi.pt.
6. Cfr. Martinez, Pedro Romano,e outros, Lei do Contrato de Seguro, Anotada, 2011, 2.ª edição, pág. 443.
7. Cfr. Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiro, Estudo de Direito Civil, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, pág. 253.