Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1134/14.0EAPRT.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PRESCRIÇÃO
DILIGÊNCIAS DE PROVA
EFEITO INTERRUPTIVO
ARTº 28º
Nº 1
B) E C) DO RGCO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Impõe-se proceder a uma leitura restritiva da al. b) do n.º 1 do art. 28º do Regime Geral das Contraordenações, no sentido de as diligências de prova suscetíveis de interromperem o prazo de prescrição se apresentarem como diligências necessárias para a instrução dos autos, e não como quaisquer diligências de prova, de iniciativa da autoridade administrativa, sem relevância processual e manifestamente dilatórias.

II) Nos casos, como o dos autos, em que os agentes autuantes, ao serem inquiridos como testemunhas por iniciativa da autoridade administrativa, não se limitaram a confirmar o conteúdo do auto de notícia e em que as questões que lhes foram colocadas assumem pertinência face ao alegado na defesa apresentada pelo arguido e confirmado pelos depoimentos das testemunhas aí indicadas, deve ser reconhecido à realização daquela diligência de prova o efeito interruptivo da prescrição do procedimento contraordenacional previsto na al. b) do n.º 1 do art. 28º do Regime Geral das Contraordenações, por, manifestamente, não se traduzir num ato processual inútil ou dilatório e, portanto, um expediente abusivo daquela autoridade, com o propósito claro de interromper o prazo de prescrição.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo de contraordenação com o NUICO 1134/14.0EAPRT, foi proferida decisão pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), com data de 21-07-2017, a condenar a arguida "O. L., UNIPESSOAL, LDA." na coima de € 800 (oitocentos euros), pela prática da contraordenação de falta de livro de reclamações, prevista na al. a) do n.º 1 do art. 3º do DL n.º 156/2005, de 15 de setembro, com a nova redação do DL n.º 371/2007, de 06 de novembro, e punível nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 9º do mesmo diploma legal.

2. Não se conformando, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial, o qual, por sentença datada de 21-12-2017, depositada no dia seguinte, foi julgado improcedente, com a consequente manutenção daquela decisão administrativa.

3. Mais uma vez inconformada, a arguida veio interpor o presente recurso dessa sentença, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição [1]):

«CONCLUSÕES

1. O tribunal a quo, não só não se pronunciou acerca de todas a questões invocadas pela Recorrente, assim como, salvo melhor opinião e com todo o respeito pela decisão ora em crise, mal andou na análise, interpretação e decisão acerca de alguns dos pontos sobre os quais se pronunciou.

2. Dispõe do artigo 27.º do DL n.º 433/82 de outubro, na sua versão atualizada, que tem como epígrafe “Prescrição do procedimento”, que o procedimento por contraordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contraordenação hajam decorrido: “b) Três anos, quando se trate de contraordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a (euro) 2493,99 e inferior a (euro) 49879,79”.

3. Face à moldura da coima (€ 1.500,00 a € 15.000,00) aplicável ao caso, já ao abrigo da lei mais favorável, em virtude do DL n.º 74/2017 de 21 de junho, o prazo de prescrição da contraordenação imputada à Recorrente seria de três 3 anos, como de resto, nesta parte bem decidiu o tribunal a quo.

4. Os artigos 27.º-A e 28.º do RGCO preveem as situações em que a prescrição do procedimento se suspende ou interrompe, respetivamente, sendo certo que o n.º 3 do artigo 28.º do RGCO, dispõe que “A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.

5. Caso não se tivesse verificado qualquer motivo de interrupção e/ou suspensão, forçoso seria concluir que o procedimento contraordenacional ter-se-ia prescrito em 10 de Fevereiro de 2017.

6. Se é verdade que o tribunal a quo não especifica qualquer situação de suspensão, é igualmente verdade que, apenas vislumbra nos presentes autos, a possibilidade de aplicação do caso de suspensão previsto na alínea c) do artigo 27.º - A do RGCO, ou seja, considerar-se-ia suspensa a prescrição do procedimento “(…) a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.”, não podendo essa suspensão nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, ultrapassar seis meses.

7. Já quanto à interrupção do procedimento, considerou o tribunal a quo terem sido verificados nos presentes autos, factos suscetíveis de interromper os prazos prescricionais, sendo que, especifica o tribunal a quo nesta parte, considerando tal facto como interruptivo da prescrição que, “(…) a 1 de outubro do mesmo ano (2014) é realizada diligência de prova (inquirição de testemunha – fls. 35)”.

8. É pois, quanto a esta parte em concreto, no que à prescrição diz respeito, que a Recorrente está em profundo desacordo com a decisão e motivação do tribunal a quo, porquanto, entende que, jamais poderia a diligência invocada e realizada a 01/10/2014 constante a fls. 35 ter virtualidade de fazer interromper o prazo prescricional.

9. A Recorrente não subscreve o entendimento espelhado na decisão ora em crise, entendendo que o procedimento contraordenacional se encontra prescrito, conforme procurará demonstrar infra.

10. Desde logo, a inquirição de testemunhas de fls. 35 e, já agora, também a inquirição de fls. 34 correspondem às inquirições dos senhores inspetores P. R. e F. C., respetivamente que incorporaram a brigada da ASAE que realizou em 10/02/2014 a inspeção ao estabelecimento da Recorrente.

11. A Recorrente foi notificada para exercer o seu direito de defesa, nos termos do art.º 50 do RGCOC, em 07.04.2014 (fls. 13), tendo apresentado defesa escrita em 23.04.2010 (fls. 14).

12. Na defesa apresentada pela Recorrente, foi requerida a inquirição de três testemunhas, sendo que, duas dessas testemunhas, foram inquiridas em 23/05/2014, como melhor resulta dos autos de inquirição de testemunhas de fls. 29 e 30 e a inquirição da terceira testemunha que, afinal seria o representante legal da Recorrente, veio a ser prescindida em 30/06/2014, conforme requerimento de fls. 31.

13. Não foi a Recorrente destinatária de qualquer outra notificação até à data em que foi notificada da decisão final, que lhe aplicou uma coima no montante de € 800,00, ou seja, até 28/07/2017.

14. Tendo presente que entre a apresentação de defesa escrita (23.04.2010) e mesmo entre a data da inquirição da última testemunha por si apresentada (23/05/2014) ou até a data em que prescindiu da inquirição do legal representante da Recorrente (30/06/2014) e a data da notificação da decisão final da entidade administrativa (21.07.2017), não ocorreu nenhum facto interruptivo, constata-se que o prazo de prescrição de 3 anos já havia sido ultrapassado.

15. E não se diga aqui, como entendeu o tribunal a quo que não foi possível proceder a prescrição invocada com fundamento na inquirição de 01/10/2014 que determinou a interrupção da prescrição.

16. Salvo o devido respeito, não entende a aqui Recorrente qual a natureza de tal diligência, sendo certo que da análise do documento a fls. 35, se constata que a “testemunha” é o próprio agente de fiscalização da ASAE que elaborou o auto de notícia e que a “inquirição” se trata apenas de uma confirmação do teor do auto de notícia.

17. De igual modo, o documento de fls. 34 trata-se igualmente de uma inquirição em que a “testemunha” inquirida mais não é do que o outro agente de fiscalização da ASAE que integrou a brigada, composta por dois elementos, que levou a cabo a ação de fiscalização no estabelecimento da Recorrente.

18. A Recorrente não entende, por isso, a finalidade/pertinência de tal diligência.

19. Certo é que, a diligência em causa não tem a virtualidade de interromper o decurso do prazo prescricional.

20. Tendo em consideração que a inquirição dos inspetores da ASAE se resumiu a uma confirmação do auto de notícia, resulta que a única finalidade se prende com a obtenção da interrupção da prescrição.

21. Acontece que, a interrupção da prescrição não se basta com a prática de qualquer ato.

22. Importa ter presente o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.11.2009, proferido no âmbito do processo n.º 142/09.7TAILH.C1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário dispõe o seguinte: “Uma corriqueira inquirição dos dois autuantes não tem a virtualidade de interromper o prazo prescricional”.

23. Pode ler-se ainda no referido Acórdão que “A referência a “exames e buscas” transmite a ideia de necessidade de realização de diligências de prova (que sejam estritamente necessárias) que revelem alguma complexidade e morosidade ou que, requeridas pela defesa, atrasem relevantemente o decurso do processo”.

24. Mais resultando exarado no douto Acórdão que “O que se não pode permitir é que a simples inquirição dos autuantes por iniciativa da entidade administrativa seja usada como uma medida de “gestão” das interrupções do prazo prescricional. Esse é um uso abusivo que a al. b) do nº 1 do artigo 28º do RGCO não permite. O direito à decisão em prazo razoável também é operante em processo contraordenacional, não podendo a entidade administrativa “gerir” os momentos adequados à interrupção do prazo prescricional. (...) Assim uma corriqueira inquirição dos dois autuantes não tem a virtualidade de interromper o prazo prescricional, pois que se impõe uma leitura restritiva da al. b) do nº 1 do artigo 28º do RGCO: a referência a “exames e buscas” transmite a ideia de necessidade de realização de diligências de prova estritamente necessárias e que revelem alguma complexidade e/ou morosidade” (sublinhado nosso).

25. No sentido que ora se defende, decidiu igualmente o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.09.2015, proferido no âmbito do processo n.º 67/14.4TBVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt onde se refere que: “A inquirição do agente autuante, por iniciativa da autoridade administrativa, para vir aos autos confirmar o conteúdo do auto de notícia, quando esse mesmo conteúdo não foi colocado em causa na defesa da arguida, resulta inequivocamente e sem qualquer dúvidas como um expediente abusivo por parte da ASAE para obstar ao decurso do prazo de prescrição (…)”,

26. Mais pode ler-se no mencionado acórdão que: “A alínea b) do n.º 1 do art. 28º do RGCC deverá ser interpretada no sentido de as diligências de prova suscetíveis de interromperem o prazo de prescrição se apresentarem como diligências necessárias para a instrução dos autos, e não quaisquer diligências de prova, de iniciativa da autoridade administrativa, sem relevância processual e manifestamente dilatórias.

27. O que se não pode permitir é que a simples inquirição dos autuantes por iniciativa da entidade administrativa – como sucedeu nos presentes autos - seja usada como uma medida de “gestão” das interrupções do prazo prescricional.

28. Trata-se pois de um uso abusivo que a al. b) do nº 1 do artigo 28º do RGCO não permite.

29. Sempre se dirá ainda que, o direito à decisão em prazo razoável também é operante em processo contraordenacional, não podendo a entidade administrativa “gerir” os momentos adequados à interrupção do prazo prescricional.

30. A Recorrente entende que a inquirição realizada no âmbito dos presentes autos no dia 01/10/2014 carece de qualquer justificação e que, por isso e em face do que ficou já dito, tal inquirição não tem a virtualidade de interromper a prescrição.

31. O prazo de prescrição do procedimento por contraordenação vem a interromper-se com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima, o que se verificou, no caso dos autos, em 21 de Julho de 2017 [2].

32. A interrupção validamente existente nos autos havia ocorrido no limite em 30/06/2014 [3], a prescrição do procedimento contraordenacional, na data em que foi proferida a decisão administrativa já havia ocorrido.

33. Assim sendo, o terminus do prazo prescricional ocorreu em 30-06-2017 [4], antes, portanto, da decisão final da entidade administrativa, não podendo o procedimento contraordenacional já prescrito, ser objeto de qualquer interrupção ou suspensão.

34. Devendo, em face do exposto, ser reconhecida e ser ordenado o oportuno arquivamento dos autos.
SEM PRESCINDIR

35. Resultou provado pelo tribunal a quo que, os factos praticados pela Recorrente e que deram origem à instauração do procedimento contraordenacional, o foram a título de negligência.

36. Ponderando as circunstâncias da prática do ilícito imputado à Recorrente, cometido a título meramente negligente, o facto de no período em que alegadamente não existia livro de reclamações não ter sido o mesmo pedido por qualquer cliente e consequentemente, ninguém ter ficado privado de usar o referido livro, bem como a ausência de qualquer benefício e uma vez que se trata de situação que não tem antecedentes, deverá considerar-se desnecessária a condenação da Recorrente numa sanção pecuniária, bastando-se as exigências preventivas gerais e especiais com a aplicação de uma admoestação, nos termos do artigo 51º, n.º1, do RGCC (DL 433/82, de 27.10), o que se requer.

37. A decisão proferida pelo tribunal a quo violou as disposições conjugadas dos artigos 18.º, 27.º, al. b), 28.º, nº 1, als. a), b), c) e d), e nº 3 e 51.º n.º 1 do R.G.C.O.

TERMOS EM QUE,

deve conceder-se provimento ao presente recurso, alterando a douta sentença recorrida no sentido exposto nas conclusões supra apresentadas, farão Vossas Excelências a habitual,
J U S T I Ç A!»

4. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, em resposta à motivação da recorrente, concluiu nos seguintes termos (transcrição):

«CONCLUSÕES:

1- Tendo a arguida invocado a prescrição do procedimento contraordenacional, impunha-se necessariamente ao Tribunal a quo a análise do processo administrativo no qual foi aplicada e, consequentemente a verificação da ocorrência ou não de causas de interrupção e suspensão para poder pronunciar-se sobre a questão por si suscitada.
2 – O prazo de prescrição do procedimento contraordenacional era no caso de 3 (três) anos, pelo que o mesmo não se encontra prescrito, porquanto verificam-se causas de interrupção, nomeadamente realização de diligências probatórias necessárias à prolação da decisão administrativa.
3 - No caso em apreço, atenta a defesa escrita apresentada pela arguida em sede de audição nos termos do art.º 50º do RGCO e depoimentos prestados pelas testemunhas ali arroladas, a inquirição dos Srs inspetores da ASAE não pode ser considerada como “diligência corriqueira” destinada a interromper o prazo de prescrição.
4 - Considerando a defesa escrita apresentada pela arguida e depoimentos prestados pelas testemunhas por si indicadas, que se opunham ao teor do auto de notícia e ao e-mail remetido pelo gerente da sociedade arguida no qual reconhecia que o livro de reclamações não se encontrava no estabelecimento comercial mas no contabilista, o facto de, não obstante o termo de abertura do livro ser datado de 03 de Fevereiro de 2014, a fatura da sua compra datar de 10 de Fevereiro de 2014, ou seja, da data da fiscalização, a inquirição dos Srs inspetores da ASAE autuantes não pode ser reputada diligência inútil. Tratava-se, antes, de diligência útil ao esclarecimento dos factos noticiados e, por isso, teve a virtualidade de interromper o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional.
5 - Não se nos afigura suficiente face à gravidade da conduta da arguida e face às necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir a aplicação de uma admoestação à arguida, tanto mais que toda a conduta da arguida – no momento da inspeção, posteriormente referindo que o livro estava no contabilista (fls. 4), mas vindo depois alegar que afinal se encontrava no estabelecimento mas em lugar diverso do habitual, para logo apresentar uma fatura relativa à sua compra datada de 10/02/2014 – demonstra cabalmente que não interiorizou o desvalor da sua conduta nem alcançou a gravidade da mesma. A coima aplicada deve ser mantida.
6- A douta sentença em recurso procedeu a uma correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, não sendo merecedora de qualquer juízo de censura e, consequentemente, deve ser integralmente mantida.

Termos em que,
deverá ser negado provimento ao recurso interposto, e confirmada a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.

Vossas Excelências, porém, melhor decidirão e farão, como sempre, a habitual JUSTIÇA».

5. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento ao recurso, declarando-se extinto o procedimento por contraordenação por efeito da prescrição, na medida em que, entre os atos de interrupção do procedimento contraordenacional traduzidos na inquirição das testemunhas de defesa na fase administrativa (ocorrida em 23 de maio de 2014) e na prolação da decisão da autoridade administrativa (com data de 21-07-2017), não ocorreu qualquer outro ato com relevo interruptivo da prescrição, concordando, neste ponto, com a recorrente, ao sustentar que a simples inquirição dos autuantes sobre o conteúdo do auto de notícia não tem a virtualidade de interromper o prazo de prescrição, como é sustentado na jurisprudência que a mesma cita na sua motivação de recurso e a que adere, termos em que, quando aconteceu aquela segunda causa de interrupção da prescrição, já o prazo de três anos tinha decorrido.

6. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a recorrente não respondeu a esse parecer.

7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso [5].

Assim, as questões a apreciar são as seguintes:

a) – Saber se o procedimento contraordenacional se encontra prescrito, o que passa por aferir se a inquirição dos agentes autuantes, por iniciativa da autoridade administrativa, teve a virtualidade de interromper do prazo de prescrição.
b) – Saber se estão verificados os pressupostos legais para aplicar à recorrente uma admoestação.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição):

«Factos provados:

1) A 10 de fevereiro de 2014, pelas 16h, a recorrente não tinha no seu estabelecimento denominado “O. L.”, que estava aberto ao público, livro de reclamações.
2) Apesar de ser bem sabedora da obrigação legal de ter o livro de reclamações naquele estabelecimento, a recorrente não teve tal cuidado, que lhe era exigível e de que era capaz.

Factos não provados:

A recorrente no dia e hora referidos em 1) tinha o livro de reclamações no estabelecimento “O. L.” mas em local diverso do habitual, noutro sítio onde a funcionária da recorrente, de nome M. C., o deixou, contra as ordens dos representantes legais da arguida.
*
Motivação dos factos provados e não provados

As testemunhas F. e P., Inspetores da ASAE, prestaram depoimento esclarecedor que, no essencial, confirma o teor do auto de notícia. Relataram a forma como se apresentaram no estabelecimento, a razão por que pediram o livro de reclamações (para aferir do correto reencaminhamento das reclamações – constitui procedimento padrão), e o posterior abandono da loja sem que qualquer livro de reclamações lhes fosse apresentado. Contaram ainda que o estabelecimento nem sequer tinha exposto o aviso tipificado de existência de livro de reclamações.
Não mereceu por isso qualquer credibilidade o depoimento das testemunhas apresentadas pela recorrente (prestado no sentido de que o livro de reclamações estaria no estabelecimento inspecionado, mas em lugar diverso do habitual), desde logo porque foram totalmente incapazes de explicar a razão para a existência do e-mail com o teor de fls. 4, bem como a data do recibo e da fatura juntos a fls. 9 e 10, que indiciam de forma clara e segura que a 10 de fevereiro de 2014 o estabelecimento não tinha qualquer livro de reclamações. Nem sequer tinha sido comprado.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Da prescrição do procedimento contra-ordenacional

3.1.1 – Relativamente à questão da prescrição do procedimento contraordenacional suscitada pela recorrente, o ponto controvertido reside em saber se ao ato processual de inquirição como testemunhas dos agentes da ASAE que levantaram o auto de contraordenação deve ser atribuído efeito interruptivo da prescrição, nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 28º do Regime Geral das Contraordenações – doravante designado abreviadamente por RGCO e aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de outubro, que instituiu o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo - conforme entendeu a decisão recorrida e defende o Ministério Público junto da primeira instância, ou se, ao invés, tal ato não tem essa virtualidade, como, por seu lado, sustenta a recorrente, com a concordância do Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação.
Da resposta a essa questão dependerá, efetivamente, a conclusão de o procedimento estar ou não prescrito.

Com efeito, como corretamente considerou a primeira instância, ao apreciar a questão prévia da prescrição, e não é sequer posto em causa no recurso, de acordo com o disposto no art. 27º, al. b), do RGCO, o prazo de prescrição aplicável ao presente procedimento contraordenacional é de três anos, uma vez que a contraordenação imputada à arguida - por não possuir o livro de reclamações no estabelecimento em que exerce a atividade de fornecimento de bens ou de prestação de serviços - é punível com coima de € 1.500 a € 15.000 (art. 9º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15 de setembro, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 74/2017, de 21 de junho, que, nomeadamente, procedeu à redução dos limites mínimo e máximo da moldura da coima para aqueles montantes, traduzindo-se em lei mais favorável que a vigente ao tempo da prática dos facto, devendo, por isso, ser aplicável, nos termos do disposto no art. 3º, n.º 2, do RGCO).

Esse prazo iniciou-se na data dos factos suscetíveis de integrar a prática da contraordenação imputada à arguida, ou seja, em 10-02-2014, termos em que, não ocorrendo qualquer motivo de interrupção ou de suspensão, o prazo de prescrição perfetibilizar-se-ia em 10-02-2017.

A única causa de suspensão que se verificou, traduzida na pendência do procedimento a partir da notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa, até à decisão final do recurso, com o limite de seis meses (art. 27º-A, n.º 1, al. c), e n.º 2, do RGCO), ocorreu para lá desses três anos, porquanto tal despacho, proferido a 15-09-2017, foi notificado à arguida em 22-09-2017 (prova de receção da via postal junta a fls. 84) e ao seu Exmo. mandatário em 25-09-2017.

Porém, ocorreram várias causas de interrupção da prescrição, com a consequente inutilização do tempo já corrido desde que se iniciou a contagem do respetivo prazo, até à verificação de cada um dos factos interruptivos, iniciando-se novamente, a partir de cada um deles, a contagem do prazo de prescrição, não se aproveitando o tempo anteriormente decorrido (art. 121º, n.º 2, do Código Penal).

Em primeiro lugar, verificou-se a causa de interrupção prevista na al. c) do n.º 1 do art. 28º do RGCO, traduzida na notificação à arguida para exercício do direito de audição, o que sucedeu em 07-04-2014 (conforme resulta do carimbo aposto no aviso de receção junto da fls. 13), data a partir da qual se iniciou, de novo, o prazo de prescrição.

Em 23-05-2014, com a inquirição das duas testemunhas arroladas pela arguida no seu requerimento de defesa (cf. autos de fls. 29 e 30), ocorreu nova causa de interrupção da prescrição, desta feita prevista na al. b) do citado preceito, segundo a qual a prescrição do procedimento por contraordenação se interrompe "com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedidos de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa".

Entretanto, em 01-10-2014, teve lugar a inquirição como testemunhas, por iniciativa da autoridade administrativa, dos dois agentes autuantes.

É aqui que reside a discordância da recorrente face à decisão recorrida, sustentando que, ao invés do entendido pelo Mmº. Juiz a quo, tal diligência de prova jamais poderia ter a virtualidade de fazer interromper o prazo prescricional, por não se entender a finalidade e pertinência da mesma, uma vez que a inquirição dos dois inspetores da ASAE se resumiu a uma confirmação do teor do auto de notícia, visando apenas obter a interrupção da prescrição.

Louva-se a recorrente nos acórdãos da Relação de Coimbra de 18-11-2009 [6] e da Relação do Porto de 09-09-2015 [7], que cita em abono da sua posição.

Com efeito, considerando que o instituto da prescrição deve ser enquadrado numa preocupação legislativa mais vasta de se obter, num prazo razoável, a certeza e a segurança jurídica junto daqueles que ela beneficia, bem como que a pendência processual, sem um fim temporal fixado, significaria a possibilidade de manter indefinidamente uma incerteza quanto à culpabilidade e responsabilidade do agente, o que é incompatível com um Estado de direito democrático e colide frontalmente com os direitos, liberdades e garantias assegurados aos seus cidadãos, essa jurisprudência afirma que a relevância e a necessidade da diligência de prova, no âmbito da instrução dos autos, surge como fundamento da interrupção do prazo de prescrição ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 28º do RGCO.

Assim, a referência específica nesse texto legal à realização de “exames e buscas”, transmite a ideia da necessidade de realização de diligências prova que revelem alguma complexidade e morosidade ou que, requeridas pela defesa, atrasem relevantemente o decurso do processo, o que leva a concluir que não são todas as diligências que têm o mérito de interromper o prazo prescricional, e muito menos diligências de prova perfeitamente irrelevantes, injustificadas e sem qualquer utilidade para o apuramento da responsabilidade contraordenacional do agente.

Será o caso, na sugestiva expressão utilizada no primeiro dos referidos arestos, de uma "corriqueira" inquirição do agente autuante, por iniciativa da autoridade administrativa, para vir confirmar o conteúdo do auto de notícia, quando esse mesmo conteúdo não é colocado em causa na defesa do arguido, circunstâncias em que tal diligência de prova surge inequivocamente como uma medida de "gestão" das interrupções do prazo prescricional e, consequentemente, como um expediente abusivo para obstar ao decurso do mesmo.

Por conseguinte, impõe-se proceder a uma leitura restritiva da al. b) do n.º 1 do art. 28º do RGCO, no sentido de as diligências de prova suscetíveis de interromperem o prazo de prescrição se apresentarem como diligências necessárias para a instrução dos autos, e não quaisquer diligências de prova, de iniciativa da autoridade administrativa, sem relevância processual e manifestamente dilatórias, como sucedia nos casos em apreciação nos dois acórdãos citados pela recorrente.

Esta jurisprudência tem apoio na doutrina, nomeadamente Figueiredo Dias [8], citado por Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa [9], ao escrever que «nem todos os atos do juiz ou do MP devem, todavia, possuir aquela virtualidade, mas antes só aqueles que, no decurso do processo penal, assumam um relevo e um significado que dê claramente a entender que o Estado, como intérprete das exigências comunitárias, continua interessado em efetivar, no caso, o seu ius puniendi. As causas de interrupção da prescrição dependem assim não só de características subjetivas [pertencerem à competência de uma «autoridade judiciária», na aceção que dela faz o art. 1º-1, b), do CPP], como objetivas (assumirem um relevo processual que traduza a afirmação solene da pretensão estadual de efetivação do seu ius puniendi)».

3.1.2 – Não desconhecendo a existência de uma posição diferente [10], segundo a qual o legislador considera que a realização de quaisquer diligências de prova, sem distinção (e, portanto, também a inquirição de testemunhas, de acusação ou de defesa), representa a afirmação solene da pretensão estadual do exercício do ius puniendi, o que justifica a interrupção da prescrição do procedimento criminal, afigura-se-nos ser de aderir àquele outro entendimento.

Não obstante, o certo é que, no caso vertente, contrariamente ao que sucedia nas situações objeto dos referidos acórdãos, de modo algum se pode concluir que a diligência de inquirição dos dois agentes autuantes se apresenta como meramente dilatória, constituindo um expediente abusivo da autoridade administrativa com vista a obstar ao decurso do prazo de prescrição do procedimento.

Desde logo porque, ao invés do alegado pela recorrente, as testemunhas não se limitaram a confirmar o conteúdo do auto de notícia.

Com efeito, do auto de fls. 34, relativo à inquirição do inspetor da ASAE F. C., consta, além do mais, o seguinte, que se transcreve:

«(...)
- Que no momento da inspeção ao estabelecimento, foi solicitado o Livro de Reclamações à funcionária presente, nunca tendo esta apresentado qualquer livro de reclamações durante o ato inspetivo, e que a inspeção em causa demorou cerca de trinta minutos.
- Perguntado se a funcionária presente no momento efetuou diligências no sentido de encontrar o livro de reclamações, afirmou que a mesma tentou procurar o livro de reclamações em diversas zonas do interior do estabelecimento, tendo mesmo no momento contactado telefonicamente o explorador do estabelecimento, não tendo, depois disso, apresentado qualquer livro de reclamações.
- Disse ainda, que foi solicitado verbalmente aquando da inspeção o envio da cópia do termo da abertura do livro de reclamações que o explorador disse que tinha, tendo o mesmo remetido a cópia que consta de fls. 5 dos autos, com referência à data "3 de Fevereiro de 2014".
- Afirmou, ainda, que no dia 27 de Fevereiro de 2014, pediu, via e-mail, informação à Associação Empresarial de Ponte de Lima, sobre a aquisição do livro de reclamações, tendo aquela entidade enviado cópia de uma fatura de compra de um livro de reclamações datada de 10 de Fevereiro de 2014, conforme consta dos autos.
- Disse, ainda, que não se encontrava afixado em qualquer lugar aviso ou letreiro relativo à existência de Livro de reclamações.»
Por seu turno, do auto de inquirição da testemunha P. R., junto a fls. 35, consta, nomeadamente (transcrição):

«(…)
- Que no momento da inspeção ao estabelecimento, foi solicitado o Livro de Reclamações à funcionária presente, nunca tendo esta apresentado qualquer livro de reclamações durante o ato inspetivo, e que a inspeção em causa demorou cerca de trinta minutos.
- Perguntado se a funcionária presente no momento efetuou diligências no sentido de encontrar o livro de reclamações, afirmou que a mesma tentou procurar o livro de reclamações em diversas zonas do interior do estabelecimento, tendo mesmo no momento contactado telefonicamente uma pessoa, que julgar ser o explorador do estabelecimento, não tendo depois disso apresentado qualquer livro.»
Acresce que as questões colocadas às testemunhas assumem pertinência em face da defesa apresentada pela arguida, mormente ao alegar que tem em seu poder livro de reclamações desde 03 de fevereiro de 2014, o qual sempre permaneceu no estabelecimento, sendo que, no dia da inspeção (10 de fevereiro de 2014), a funcionária que habitualmente aí trabalha (M. C. A.) teve necessidade urgente de alterar a sua folga, tendo sido inesperadamente chamada para a substituir a funcionária M. F. A., a quem aquela não informou que, por razões de limpezas/mudanças, tinha alterado o lugar onde costumava estar guardado o livro de reclamações nem indicou onde o mesmo se encontrava, pelo que ela, ao não o ver no local habitual, depreendeu que estivesse no contabilista da empresa, razões pelas quais, sustenta a arguida não se poder concluir que o seu estabelecimento não possuía o livro de reclamações, pelo que não foi praticada qualquer contraordenação.
E tendo tais factos sido confirmados pelas referidas funcionárias, indicadas como testemunhas de defesa (cf. autos de inquirição de fls. 29 e 30), maior pertinência assumia proceder à inquirição dos agentes autuantes, de forma a procurar averiguar se a forma como decorreu a ação inspetiva, mormente o comportamento e as reações da funcionária presente, era suscetível de corroborar aquela alegação.

Além disso, o depoimento do agente autuante F. C. foi ainda relevante para compreender a junção aos autos, pela arguida, da cópia do termo de abertura do livro de reclamações, com data de 03 de fevereiro de 2014, bem como a solicitação à Associação Empresarial de Ponte de Lima, por parte da autoridade administrativa, de informação sobre a aquisição de tal livro.

Refira-se ainda que a inquirição dos agentes autuantes teve lugar menos de oito meses após a data dos factos, período de tempo que não é revelador de uma menor diligência por parte da autoridade administrativa na instrução do processo, sobretudo se tivermos em conta que o lapso temporal entre a inquirição das testemunhas de defesa e aquele ato processual (cerca de 4 meses) se encontra cabalmente justificada nos autos, por se dever a uma situação de baixa prolongada da inspetora a quem o processo estava distribuído, que levou à necessidade da sua redistribuição a outro inspetor, como se colhe da conclusão e do despacho de fls. 32 e 33.

Pelo exposto, afigura-se-nos que à realização da diligência de prova traduzida na inquirição dos dois agentes autuantes, por iniciativa da autoridade administrativa, no dia 01-10-2014, deve ser reconhecido o efeito interruptivo da prescrição do procedimento contraordenacional previsto na al. b) do n.º 1 do art. 28º do RGCO, por, manifestamente, não se ter traduzido num ato processual inútil ou dilatório e, portanto, um expediente abusivo daquela autoridade, com o propósito claro de interromper o prazo de prescrição.

Assim sendo, naquela data iniciou-se novamente o prazo prescricional, o qual, antes do seu termo (3 anos), sofreu nova interrupção, com a decisão da autoridade administrativa que procedeu à aplicação da coima (art. 28º, n.º 1, al. d), do RGCO), o que se verificou em 21-07-2017 (fls. 37 a 40), decisão essa notificada à arguida em 28-07-2017 (cf. prova de receção junta a fls. 43), o que consubstancia nova interrupção do prazo (al. a) do n.º 1 do mesmo artigo).

Também ainda não decorreu o prazo máximo de prescrição previsto n.º 3 do citado artigo, ou seja, quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão (6 meses), tiver decorrido o prazo de prescrição (3 anos), acrescido de metade (1 ano e meio), o que perfaz 5 anos.
Pelo exposto, conclui-se que o procedimento contraordenacional ainda não se encontra prescrito, pelo que improcede a questão em apreço.

3.2 - Da verificação dos pressupostos legais para aplicar uma admoestação

Subsidiariamente, a recorrente propugna pela aplicação de uma mera admoestação, ao abrigo do disposto no art. 51º do RGCO, alegando, para tanto, que os factos foram praticados a título de negligência, que durante o período em que alegadamente não existia livro de reclamações não foi o mesmo pedido por qualquer cliente do estabelecimento, não tendo, consequentemente, ninguém ficado privado de o usar, que não teve qualquer benefício e que se trata de uma situação sem antecedentes.

3.2.1 - De acordo com o disposto no n.º 1 do citado preceito, nos casos em que a reduzida gravidade da contraordenação e da culpa do agente o justifique, a autoridade administrativa pode proferir uma admoestação em vez da coima e sanções acessórias abstratamente aplicáveis.
Essa possibilidade está desde logo reservada para as contraordenações de reduzido grau de ilicitude.

Por seu lado, a referência à culpa tem como objetivo aludir aos casos em que o respetivo grau seja reduzido, designadamente quando haja uma atuação negligente ou circunstâncias que atenuem a culpa, particularmente circunstâncias externas que tenham constituído um incentivo para a prática dos factos ou que, à face da lei, permitam uma atenuação especial, como é o caso de erro censurável sobre a ilicitude e de tentativa, nos termos previstos nos arts. 9º, n.º 2, e 13º, n.º 2, do RGCO [11].

3.2.2 – No caso dos autos, o Mº. Juiz a quo, não obstante considerar que a contraordenação em apreço foi cometida por negligência, expressamente afastou a pretensão da arguida com o fundamento de a inexistência de livro de reclamações, quanto mais não seja por ter um custo de aquisição, acarretar sempre um benefício económico e de a violação das normas que visam assegurar os direitos do consumidor – entre os quais avulta o que garante que uma reclamação tenha sempre um reencaminhamento tipificado – não se coadunar com o proferimento de uma mera admoestação.

Em face da matéria de facto dada como provada no ponto 2º, o Mº. Juiz considerou a contraordenação como tendo sido cometida a título de negligência, sendo de acrescentar que, em face daqueles factos, esse tipo de culpa reveste a forma mais intensa (negligência consciente).

Como bem acentua a Exma. Procuradora Adjunta na sua resposta, o comportamento da arguida, ao sustentar, quer no próprio momento da inspeção, quer posteriormente, que sempre teve o livro de reclamações, o qual apenas se encontraria fora do local habitual, quando a autoridade administrativa veio a apurar que a respetiva fatura de compra, a pronto pagamento, tem a data do próprio dia da inspeção, é revelador de que não interiorizou devidamente o desvalor da sua conduta.

Para além disso, nada autoriza a conclusão de que o grau de ilicitude é reduzido, desde logo em face dos consideráveis limites mínimo e máximo da moldura abstrata da coima aplicável (€ 1.500 a € 15.000), reveladores da relevância atribuída pelo legislador à infração em causa, por atentar contra importantes direitos do consumidor, cuja tutela constitui uma preocupação crescente [12].

Com efeito, a toda a evolução legislativa nesta matéria está subjacente a garantia de uma boa prestação de serviços ao consumidor em geral, nomeadamente, através da possibilidade de fiscalização efetiva do modo como se prestam os serviços.

Aliás, como se pode ler no preâmbulo do DL n.º 156/2005, de 15 de setembro, «o livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu.
A criação deste livro teve por base a preocupação com um melhor exercício da cidadania através da exigência do respeito dos direitos dos consumidores.
A justificação da medida, inicialmente vocacionada para o sector do turismo e para os estabelecimentos hoteleiros, de restauração e bebidas em particular, prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho».

Daí que o principal objetivo desse diploma tenha sido alargar a lista de setores de atividade abrangidos pela obrigatoriedade de existência de livro de reclamações, de forma a abranger todos os fornecedores de bens e prestadores de serviços que tenham contacto com o público, alargamento esse que em 2007 sofreu nova ampliação, com o DL n.º 371/2007, de 06 de novembro, que alterou aquele diploma, introduzindo novos estabelecimentos obrigados à disponibilidade do livro de reclamações e criando uma obrigação geral, para todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que não se encontrem identificados no anexo do DL n.º 156/2005, de possuírem e disponibilizarem o livro de reclamações.

Por fim, refira-se não estar comprovado nos autos que no período em questão, o livro de reclamações não foi pedido por qualquer cliente do estabelecimento, que se tenha, assim, visto impedido de o utilizar, conforme alegado pela recorrente.

Pelo exposto, concorda-se inteiramente com a decisão do Mmº. Juiz a quo, ao considerar não estarem reunidos os apontados pressupostos legais para sancionar a recorrente com a aplicação de uma mera admoestação, impondo-se a aplicação da coima, aliás, já fixada num valor (€ 800) muito próximo do mínimo legal (€ 750, atenta a redução a metade em virtude de a contraordenação ter sido cometida por negligência).

Assim, improcede também este segmento do recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela arguida "O. L., UNIPESSOAL, LDA.", confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ex vi do art. 74º, n.º 4, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, art. 93º, n.º 3, deste último diploma, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 23 de abril de 2017

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
[2] - E não 21 de Julho de 2014, como, por lapso, escreveu a recorrente.
[3] - E não 30/07/2014, como, mais uma vez por lapso, consta das conclusões e resulta do corpo da motivação do recurso.
[4] - E não 30-07-2017, como novamente a recorrente incorreu em lapso de escrita.
[5] - Cf. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[6] - Proferido no processo n.º 142/09.7TAILH.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] - Proferido no processo n.º 67/14.4TBVFR.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] - Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1992, págs. 708-709.
[9] - Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, Coleção Direito, Áreas Editora, 6ª edição, 2011, pág. 270.
[10] - Cf., nomeadamente, o acórdão do TRP de 26-10-2017 (processo n.º 7/17.9T8ETR.P1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[11] - Vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., pág. 394.
[12] - Neste sentido, se pronunciou, num caso semelhante, o acórdão do TRC de 10-03-2010 (processo n.º 918/09.5TBCR.C1), disponível em http://www.dgsi.pt.