Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
170/16.6T8VPA.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: SIMULAÇÃO ABSOLUTA
SIMULAÇÃO RELATIVA
INTERPOSIÇÃO REAL DE PESSOAS
DIREITO DE CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
INTERPOSIÇÃO FICTÍCIA DE PESSOAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A interposição fictícia de pessoas e a interposição real de pessoas são figuras distintas, mas ambas exigem a intervenção de um terceiro que, embora omisso no contrato, se introduza no acordo: o interposto.

2. Na interpretação da petição inicial são aplicáveis as regras mencionados no artigo 236º do Código Civil (ex vi artigo 295.º do mesmo diploma), assim como, por afloramento de normas gerais de interpretação, o constante do artigo 9º do Código Civil.

3. Visto que decorre das contestações que os Réus compreenderam a petição inicial, a interpretação integrada da petição inicial, no seu contexto, não viola o direito ao contraditório, como decorre do explanado no artigo 198º nº 3 do Código de Processo Civil.

4. Da mesma forma, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa impõe o afastamento da aplicação do direito de uma forma cega e puramente formalista.

Sandra Melo
Decisão Texto Integral:
I- Relatório

Na presente ação declarativa constitutiva com processo comum,
figura como Autora e apelante no recurso que foi interposto do saneador-sentença (e como apelada no recurso interposto da sentença final que conheceu da reconvenção): Maria, divorciada, residente na Rua … Vreia de Jales.

Figuram como Réus e apelados no recurso que do saneador-sentença foi interposto pela Autora: Fernanda, viúva, residente na Rua … Mem Martins e Abílio, divorciado, residente na Rua … Vreia de Jales.
A Autora formulou, na petição inicial, o seguinte pedido:

a) que seja declarada a nulidade da venda por se tratar de venda simulada, anulando-se a mesma,
b) que sejam cancelados os registos na conservatória do registo automóvel na sequência da venda simulada, revertendo o registo automóvel a favor de A. e R..
Invocou, em síntese:
A Autora e o 2º Réu, casados que foram entre si, adquiriram na constância do seu casamento os seguintes veículos automóveis:

- um trator de marca New Holland com a matrícula ZZ;
- um automóvel de marca Nissan com a matrícula FF.
O trator foi adquirido pelo casal a “CG”, em 13 de Outubro de 2006, tendo sido emitida declaração de venda em nome da autora.
O NISSAN, foi adquirido por estes com recurso a contrato de leasing, pago pelo casal, tendo sido extinto o ónus em Maio de 2011, data a partir da qual ficou registado em nome do 2º Réu.
Com o único propósito de prejudicar a aqui A., e de não submeter os veículos a inventário por motivo de divórcio, os Réus, dolosamente, conluiaram-se no sentido de forjar uma compra e venda dessas viaturas, sem que houvesse uma qualquer transação monetária e/ou depósito ou transferência de qualquer verba.
As transferências de propriedade tiveram lugar sem o conhecimento e consentimento da aqui autora, com o intuito de a prejudicar e foram registadas na competente conservatória do registo automóvel em 02/08/2011, ainda na constância do matrimónio de A. e 2º R.
Trata-se, por isso, de um negócio forjado, simulado, celebrado apenas pelos réus e com o intuito de enganar e prejudicar a Autora.

O 2º Réu contestou.
Impugnou a maior parte dos factos invocados pela Autora, afirmando, em síntese:

- adquiriu sozinho o trator e transmitiu a propriedade à Ré para pagamento de quantia que lhe devia.
- adquiriu o Nissan com dinheiro da 1ª Ré, assumindo a obrigação de posteriormente lhe transmitir a sua propriedade.
Não há vendas simuladas, porque não celebrou com a Ré qualquer contrato de compra e venda.

A Ré contestou, em súmula:

--invocando a exceção da ineptidão da petição inicial: A Autora alega que a Ré seria testa de ferro do 2º Réu e peticiona os efeitos da simulação, sem declarar qual o negócio simulado, apenas alegando meras conclusões;
-- os negócios e registos realizados são válidos e celebrados de boa-fé, tendo entregue dinheiro ao Réu para a compra do veículo de marca Nissan, e adquiriu o trator ao Réu, que por sua vez também o havia adquirido, como contrapartida dos empréstimos que lhe fez ao casal que foi constituído por este e pela Autora.
-- a Ré é possuidora há mais de 5 anos destes veículos, posse esta pacífica, continuada, à vista de todos e sem oposição de ninguém, com a convicção de exercer direito próprio.
-- Caso a Autora obtivesse os veículos ficaria enriquecida pelo montante dos empréstimos que se visou cumprir com a transmissão da propriedade dos veículos para a Ré, pelo que invoca o “abuso de direito/enriquecimento sem causa”.
-- Beneficia da presunção de propriedade que lhe advém do registo.

Reconvém com estes fundamentos, pedindo:

A ) – que seja reconhecida à Reconvinte o direito de propriedade sobre o veículo automóvel de marca Nissan, com a matrícula FF, e sobre o trator modelo New Hollande, com a matrícula ZZ;
B)–que seja declarado que os contratos celebrados são válidos e ser ordenado que os registos efetuados são válidos e eficazes, ou, subsidiariamente:
C ) – a título de enriquecimento sem causa, ser condenada a Reconvinda a pagar à reconvinte a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, correspondendo a metade do valor do veículo automóvel de marca Nissan, com a matrícula FF, e do trator modelo New Hollande, com a matrícula ZZ, cujo montante desde já se quantifica em 12.500,00 €, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
A Autora replicou, impugnando toda a factualidade invocada pela Ré.

No despacho saneador foi proferida decisão que julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial invocada pela Ré e foi julgada improcedente a ação, absolvendo-se os Réus do pedido, porquanto:

Sopesando-se a predita factualidade, desde logo se atesta que sucumbe a alegação da factualidade atinente à intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração e ao acordo simulatório, limitando-se a Autora a arguir que houve um conluio sem que houvesse uma qualquer transação monetária e/ou depósito ou transferência de qualquer verba.
Ademais, afere-se que a Autora assume que houve transferência da propriedade, limitando-se a enunciar que os Réus sabiam que o conteúdo do negócio era contrário à lei, o que contradita a invocada simulação, sendo que o consignado na petição inicial reconduz-se a uma estrita intenção de prejudicar a Autora, a qual é insusceptível de configurar a intenção de enganar exigível a título de pressuposto imprescindível da simulação.”
(Os autos prosseguiram para apreciação da reconvenção, tendo-se procedido a julgamento, proferido sentença que julgou a mesma improcedente, da qual foi também interposto recurso, cujo destino infra se apreciará)

É contra a decisão que julgou improcedente a ação que a Autora interpõe a presente apelação, pugnando pela substituição da decisão por outra que determine a submissão da matéria factual que invocou na sua petição inicial a julgamento, para se decidir com todas as provas carreadas para o efeito.
Formula as seguintes conclusões, a que se retiraram as citações das peças processuais e se compactaram:
Entende a Autora que o negócio celebrado entre os RR é, efetivamente, um negócio simulado, tendo sido aduzida factualidade demonstrativa de tal simulação, o que deve ser considerado e declarado.
Alega a Autora no seu petitório a existência de um negócio simulado, apenas e só tendo sido forjado pelo 1º R e a favor da 2ª R., celebrado com o único intuito de enganar a aqui recorrente.
Com efeito, se é certo que tais viaturas foram adquiridas pelo então casal (A. e 1º R.) com dinheiros comuns, o que torna tais bens de propriedade de ambos, e não tendo a A. sido consultada, abordada pelos intervenientes no negócio para que desse o seu assentimento, não tendo assinado qualquer documento de transmissão de propriedade a favor de quem quer, não tendo recebido qualquer quantia em dinheiro,
Só se compreende que tenha o 1º R. querido enganar, como de facto enganou, a aqui recorrente fazendo crer inexistirem tais bens móveis para efeitos de inventário, ainda que sabendo que os mesmos eram de propriedade do casal.
E, de facto, só teve a A. conhecimento desse negócio, para si absolutamente estranho e nem sequer imaginável, quando, em processo de partilhas por motivo de divórcio, ao consultar a relação dos bens comuns do casal se apercebeu da não inclusão de tais bens pelo seu ex-marido, tendo, por esse motivo, apresentado a competente reclamação que, decidida, remeteu a A. para os meios comuns.
O negócio efetuado pelo R é nulo, simulado porquanto esteve na sua génese a nítida intenção de enganar, ou seja, o 1º R. quis efectivamente enganar a A. aqui recorrente, o que conseguiu, quando “fez desaparecer” tais bens do seu alcance, concretizando formalmente uma venda mas que na verdade não corresponde à realidade já que apenas e só houve a intenção de enganar a recorrente.
Acresce que tais bens nunca saíram da posse do 2º R que os vem utilizando no dia-a-dia como sempre o fez.
A Reconvinte não é, nem nunca foi, dona daquelas viaturas, não as comprou e sobre as mesmas nunca exerceu qualquer ato de posse, nunca as conduziu, apenas figurando no registo automóvel o seu nome por ter havido uma venda simulada, com a transmissão por parte do 2º R, em formulário próprio e por este assinado, ato que nunca foi nunca autorizado pela reconvinda, nem foi do seu conhecimento.
Verifica-se existir factualidade que demonstra a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração e ao acordo simulatório já que inexistiu “uma qualquer transação monetária e/ou depósito ou transferência de qualquer verba” sendo que os intervenientes quiseram enganar a A./recorrente, conluiando-se para o efeito com o único propósito de a enganar.
Os RR são irmãos, quiseram enganar a Autora, concretizando-o, subtraindo-lhe bens móveis, sujeitos a registo, de que é comproprietária, forjando uma venda que, face aos requisitos supra indicados, dúvidas não deixa de que se trata de uma venda simulada, venda que apenas teve a intenção de enganar, como de facto se verificou.
E, o negócio efetuado é contrário à lei, pretendendo a A. dizer que o mesmo ultrapassa os limites do razoável existindo apenas e só a intenção de enganar, negócio que terá sido celebrado por apenas um dos membros do casal, sem o conhecimento e consentimento do outo, verificando-se a divergência na vontade porquanto sobressai a intenção de enganar.
Pelo que, salvo o devido respeito, verificam-se os pressupostos identificativos da simulação dos negócios efetivados entre os RR que conduzem, inevitavelmente, a que proceda a declaração de nulidade desses negócios e consequentemente o cancelamento dos registos de aquisição.
E é simulado porque entre os RR (declarante e declaratário) houve o firme propósito de realizar tal acordo que se refletiu na venda das viaturas, acordo que teve como única finalidade enganar a A. (terceiro), o que de facto se verificou.
Face a tal, deverá entender-se que houve efetiva simulação e, consequentemente, o negócio declarado simulado e nulo.

O Réu respondeu em contra-alegações, com as conclusões que se resumem:

Não deve ser admitido o recurso da matéria de facto quando viole o artigo 640º e 155º do Código de Processo Civil.
A decisão do tribunal encontra-se devidamente fundamentada nos documentos juntos aos autos, retirando daí a resposta para a matéria em apreço nos autos.
A Apelante fundamentou a sua ação numa eventual simulação em negócios celebrados entre os Réus.
Os negócios em causa não resultaram de qualquer simulação, pois não houve qualquer divergência entre a declaração negocial e a vontade real dos declarantes, nem, em momento algum, houve qualquer intenção de enganar terceiros, neste caso a Apelante.
Ambas as transmissões de propriedade dos veículos, cfr. docs. 4, 5, 6 e 7 juntos pela Apelante na sua petição inicial, e docs. 1 a 3, juntos pelo Réu na sua contestação, foram feitas de forma legítima e legal, querendo ambas as partes produzir tais declarações que foram efetuadas de boa-fé, sem qualquer concerto defraudatório, tendo ambas as partes querido que valessem com força vinculativa.

Também a Ré contra-alegou, apresentando resposta, que se concentra:

Nos presentes a autora alega que: (i) Os veículos Nissan com a matrícula FF e trator New Holland com a matrícula ZZ foram adquiridos pelo casal na constância do casamento e com dinheiros comuns; (iii) Tais viaturas se encontram registadas a favor da primeira ré desde 02 Agosto de 2011 com o único propósito de prejudicar a aqui A., e de não submeter os veículos a inventário por motivo de divórcio, os Réus, dolosamente, conluiaram-se no sentido de forjar uma compra e venda dessas viaturas; (iii) As transferências de propriedade foram efetuadas sem o conhecimento e consentimento da aqui autora e apenas com o intuito de a prejudicar, bem sabendo os Réus que o conteúdo do negócio entre si celebrado é contrário à lei, por não ter obtido o consentimento da A., é ilegal e que prejudica exclusivamente a A. nos seus direitos patrimoniais.
Assim, como bem decidiu o tribunal "a quo", sucumbe a alegação da factualidade atinente à intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração e ao acordo simulatório.
A aqui apelante assume que houve transferência da propriedade, limitando-se a enunciar que os Réus sabiam que o conteúdo do negócio era contrário à lei, o que contradita a invocada simulação.
A apelante mantém nas suas alegações de recurso a confusão entre o que pretende, se quer seja provada a simulação ou se quer que seja provado que existiu um “testa de ferro”.
Só a interposição fictícia, resultante de um conluio entre os dois sujeitos reais da operação e o interposto, constitui uma caso de simulação, analisando-se a interposição real, resultante de um acordo entre o interposto e um só dos sujeitos - alienante ou adquirente, num mandato sem representação» nos termos e para os efeitos do art. 1180 e ss do C. Civil.
Perante os factos alegados pela Autora, aqui Apelante, excluída se encontra a simulação, atentos os requisitos exigidos para o preenchimento de tal vício da declaração negocial contemplados nos arts. 240º e 241º do C. Civil, e desde logo, a existência de um qualquer "pactum simulationis " entre o declarante (alegado interposto adquirente ) e o real declaratório alienante e também qualquer intuito de enganar terceiros «animus decipiendi».
A este propósito ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-05-2002, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-06- 2010, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-10-2008, e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27-04-2005, in www.dgsi.pt.
O negócio, tal como foi realizado, foi realmente o querido, nos seus precisos termos, como aliás a Apelante aceita.
Assim, não podia o Tribunal "a quo” deixar de concluir, como concluiu, que à luz da matéria fáctica invocada pela Autora, sucumbem as premissas constitutivas da simulação dos negócios exarados entre os Réus, e consequentemente julgar a improcedência das pretensões de declaração de nulidade dos mesmos e do cancelamento dos registos de aquisição.

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Da mesma forma, não está o tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.

Importa, quanto a este recurso, decidir tão só:

---- se a Autora invocou na petição inicial factos que, a provarem-se, podem conduzir à declaração de nulidade “da venda” por se tratar de venda simulada e se invocou factos contrários a essa simulação.
Com efeito, não obstante o teor da resposta do apelado que o parece pressupor, não se vislumbra que a Autora, no recurso que interpôs do saneador-sentença, de qualquer forma tenha impugnado a matéria de facto provada: veja-se que a matéria de facto provada não foi fixada nesse momento, nem relativamente à ação, só posteriormente, em relação à reconvenção.
Aliás, a apelante requer que se opere a “submissão da matéria factual a julgamento aí se decidindo com todas as provas carreadas para o efeito”.
*
A matéria de facto a atender resume-se à verificação do que foi alegado nos articulados, pelo que, não havendo necessidade de os reproduzir, não se fixa.

III- Fundamentação de Direito

Vejamos sucintamente os pressupostos da simulação para verificar se a Autora alegou factos que os integram, mesmo que de forma pouco concretizada.

- da simulação
Uma das causas da nulidade dos negócios é a simulação – artigo 240º n.º 2 do Código Civil.
Nos dizeres do artigo 240º n.º 1 do Código Civil: “o negócio é simulado quando, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante”.
De outra forma: por simulação entende-se “a divergência intencional entre a vontade e a declaração, procedente de acordo entre o declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros” - Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, página 169).
A simulação é absoluta sempre que sob o negócio simulado não exista qualquer outro que as partes tenham querido realizar.
Nos casos de simulação relativa, ie, quando as partes quiseram realizar um negócio jurídico diferente daquele que fizeram constar das suas declarações, é aplicável ao negócio o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, observada que seja a competente forma, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado - artigo 240º n.º 1 e 2 do Código Civil.
São quatro os requisitos para que se considere preenchido o conceito civilista de simulação:
a existência ou aparência de um negócio cuja nulidade se pretende que seja declarada;
a intencionalidade da divergência entre a vontade real e a vontade declarada;
acordo entre declarante e declaratário («pactum simulationis»);
intuito de enganar terceiros («animus decipiendi»).
“Quando se invoca a simulação, afirma-se que a vontade declarada intencionalmente não correspondeu à vontade representada e querida pelas partes; através de um concerto defraudatório, fingido, as partes emitiram intencionalmente declarações não consonantes com aquilo que efetivamente queriam, com o fito de enganar terceiros (art. 240.º do CC), ou seja, simularam declarações negociais.” cf Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/22/2012 no processo 82/04-6TCFUN-A.L1.S2, (sendo este, e todos os demais acórdãos citados sem indicação de fonte, consultados no portal dgsi.pt.)
Face ao alegado nas contra-alegações da apelada, cumpre ainda aflorar a figura da “interposição de pessoas”, a fictícia e a real, onde se inclui a situação do “testa de ferro”, de que a Ré se socorre.

- da interposição fictícia de pessoas.

Verifica-se esta figura “quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real), de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa, ou seja, celebrado o contrato entre as partes, o outorgante aparente no negócio (testa de ferro ou homem de palha) figurará apenas como titular aparente, titular nominal, com o objectivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei; a simulação incide sobre a pessoa do outorgante e não sobre o conteúdo do negócio” cf Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/09/2014 no processo 199/03.4TBAVS-A.E2.S1:
“A interposição fictícia verifica-se quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real), de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa. Como exemplifica Pessoa Jorge, A declara vender determinada coisa a B, que manifesta a sua vontade de a comprar; mas sob esta aparência, esconde-se o verdadeiro contrato, não entre A e B, mas entre A e C. (cfr. Mandato sem Representação, p. 114 e segs).
Ou seja, celebrado o contrato entre as partes, o outorgante aparente no negócio (testa de ferro ou homem de palha) figurará apenas como titular aparente, titular nominal, com o objectivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei.
Logo, ele não representa o “outorgante real” nem se vincula a praticar quaisquer atos jurídicos em nome dele.”
Já fora do campo da simulação se encontra a figura

- da interposição real de pessoas

“A interposição real verifica-se quando alguém conclui um negócio jurídico em seu nome, mas por conta ou interesse ou a favor de outrem, pelo que os direitos e as obrigações emergentes do negócio se produzem em relação àquele, que, todavia, se obriga a transferir (ou automaticamente estes se transferem) os direitos para esse outro. "Por conseguinte, ao passo que na interposição fictícia, a pessoa interposta é um sujeito simulado, o interposto é, na interposição real, parte verdadeira no negócio” (cfr. Ac STJ 09-05-2002 citado).
“Na interposição real o interposto actua em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrem, por força de um acordo entre ele e um só dos sujeitos. Por exemplo: A está interessado na compra de certos bens de B, mas, sabendo que este não lhos venderia directamente, ou só lhos venderia em condições muito onerosas, acorda com C no sentido de este comprar os bens a B, não existindo conluio entre os três sujeitos. Não se nos apresenta uma simulação, mas antes um mandato sem representação (art 1180º e ss)» cf. Mota Pinto, «Teoria Geral do Direito Civil», 1976, p 361.

Estabelecidos estes conceitos, importa, pois, verificar o que foi alegado e se os factos invocados podem integrar o conceito de simulação.

- interpretação da petição inicial

Há que atender que para a interpretação desta peça processual, são aplicáveis os princípios mencionados no artigo 236º do Código Civil (ex vi artigo 295.º do mesmo diploma), assim como, por afloramento de normas gerais de interpretação o constante do artigo 9º do mesmo diploma.
Ambos remetem para a vontade real do emissor da declaração, caso esta esteja consentida pela letra da declaração e seja percetível para o seu destinatário.
Da mesma forma, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa impõe o afastamento da aplicação do direito de uma forma cega e puramente formalista.
O artigo 186º nº 3 do Código de Processo Civil também realça a importância, na interpretação da petição inicial, que se deve dar à forma como o Réu a interpreta, como sinal da intenção legal de viabilizar a petição inicial quando tal ainda se mostra possível e a adequação da sua interpretação de forma hábil, desde que alicerçada ainda no seu teor e conduza a resultados a que a contraparte podia aceder e acedeu, requisito este também imposto pelo princípio do contraditório.

- concretização

A petição inicial mostra-se efetivamente de difícil compreensão, pela falta de concretização de factos, alguma mistura de conceitos e expressões conclusivas, com raciocínios apresentados por vezes de forma menos nítida.
Mas a leitura integrada da petição inicial e da réplica, com as próprias contestações, acaba por colmatar tais dificuldades, conseguindo-se interpretar convenientemente esse articulado e obter o quadro geral e essencial do que a Autora pretendeu invocar e trazer ao litígio naquela peça.
Desde já, face ao expendido pelo recorrido, importa salientar que a mera invocação dos factos e da existência dos negócios jurídicos, com ou sem os contornos que lhe são atribuídos, não equivale à sua prova e nesta fase não se discute ainda a matéria de facto provada e não provada.
Confrontando agora o invocado na petição inicial com os pressupostos supra enunciados:

- .1- Quanto à alegação da existência ou aparência de um negócio cuja nulidade se pretende que seja declarada

.- A Autora refere que foram celebrados dois contratos de compra e venda entre os Réus, cada um relativo a um veículo automóvel que identifica, pelos quais o Réu declarou transmitir à Ré tais veículos - artigos 19º da petição inicial conjugado com a alínea a) do petitório.

- .2- da intencionalidade da divergência entre a vontade real e a vontade declarada

A Autora invoca que o Réu não quis vender os veículos e a Autora não os quis comprar, não tendo sido trocada qualquer quantia monetária entre ambos – artigos 19º, 20º, 25º da petição inicial, embora conjugados com os artigos 5º, 17º, 18, 23º, 30º da réplica.
É certo que refere, no artigo 21º da petição inicial, uma transferência da propriedade, mas esta expressão tem que ser entendida em contexto, tendo em conta que a Autora afirma que tal direito se encontra junto da sua esfera jurídica, visto que foi adquirido na pendência do casamento.
A petição inicial é, efetivamente, algo ambígua, mas não foi objeto de convite ao aperfeiçoamento, pelo que tem que ser interpretada no seu contexto, inserida no processado (e só assim se pode justificar a dispensa do convite ao aperfeiçoamento seguida no tribunal a quo).
Nesta conjuntura, mostra-se acessível o invocado pela Autora.
Também as partes o entenderam: o Réu negou a existência de qualquer contrato de compra e venda simulado e a Ré queixa-se da Autora, por não alegar factos que integram a simulação (ainda a acusa de não distinguir a simulação de um contrato com interposição real de pessoas, mas esta dúvida só podia ter sentido se existisse na versão da Autora qualquer terceiro que interviesse nos factos, como melhor se explanou supra, o que não ocorre).
Tudo posto, lida a petição inicial, com recurso à interpretação sistemática, nomeadamente ao invocado no artigo 5º da réplica, onde afirma que a Ré nunca comprou os veículos, apenas figurando no registo automóvel por haver uma venda simulada, com a transmissão por parte do 2º Réu em formulário próprio e por este assinado, encontra-se invocado também este pressuposto. Enfim, na expressiva expressão usada na petição inicial, a Autora alega que as vendas foram “forjadas”.

- .3. do acordo entre declarante e declaratário («pactum simulationis»);

A Autora invoca que os Réus se conluiaram dolosamente no sentido de criar a aparência da compra e venda dos veículos, assim afirmando o acordo que ambos realizaram para tal efeito (artigo 19º da petição inicial)

- .4. do intuito de enganar terceiros(«animus decipiendi»)

A Autora invoca que os dois Réus pretenderam prejudicá-la, de forma a não submeter os veículos ao inventário por motivo de divórcio, não sendo partilhados. (artigo 19º, 24º, 25º, 26ºº, 27º da petição inicial).

Assim, algo confusamente e por vezes, quase contraditoriamente, a Autora invocou todos os pressupostos subjacentes à simulação.
Com efeito, os problemas de expressão da petição inicial são todos sanáveis com uma interpretação integrada, teleológica e hábil da petição inicial, conjugada com a réplica e a resposta da Autora ao convite ao contraditório efetuado antes da prolação da decisão em recurso.
Visto que decorre das contestações que os Réus compreenderam a petição inicial, a interpretação integrada da petição inicial, no seu contexto, não viola o direito ao contraditório, como decorre do explanado no artigo 198º nº 3 do Código de Processo Civil.
Na réplica a Autora esclarece os sentidos dúbios de algumas expressões usadas na petição inicial, mostrando-se claro o que a Autora pretende e invoca, mencionando a divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório e a intenção das partes.
Face à resposta da Ré cumpre ainda afastar aqui a espada da “testa de ferro”.
A apelada invocou, como fizera na sua contestação, que a situação em causa se confunde com as situações denominadas de interposição de pessoas.
Como se viu, há que distinguir a interposição fictícia de pessoas da interposição real de pessoas, sendo a primeira um subtipo da simulação e a segunda figura distinta, com regime diferente.
Face à matéria de facto alegada pela Autora é, agora, muito fácil afastar esta figura (que esta não alega): a Autora defende (com menor simplicidade que isto, convenhamos, mas tal resulta dos seus articulados) que os Réus celebraram entre si contratos de compra e venda, pela qual o Réu declarou transferir a propriedade dos veículos e a Ré adquiri-la com a contrapartida do pagamento de determinada quantia, sem que no entanto o Réu pretendesse ficar despojado da mesma e sem que a Ré tivesse pago qualquer preço, nem tivesse pretendido adquirir a propriedade, o que fizeram, de comum acordo, para prejudicar a Autora.
Não houve qualquer contrato que algum dos Réus tivesse efetuado com terceiro, em que uma interposta pessoa pretendesse intervir no contrato, sem que nele tivesse presença, enfim não foi invocado que houvesse uma pessoa interposta, pelo que desde logo não há aqui qualquer interposição de pessoas.
Procede, assim, a apelação, havendo que revogar o saneador-sentença e determinar que a ação prossiga para conhecer do pedido formulado pela Autora.

Cumpre ainda referir que o eventual apuramento da falta de causa do registo da aquisição (diferente da ausência de prova dessa causa), e por maioria de razão o eventual cancelamento dos registos, influi necessariamente na decisão final proferida na sentença.

A conclusão que ora se alcançou determina que os autos prossigam para o apuramento dos factos invocados e tem como consequência necessária a anulação de todos os termos posteriores do processo (visto que com eles contende), nomeadamente o julgamento, sentença e recurso desta interposta.

IV- Decisão

Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando-se o saneador-sentença proferido e anulam-se os termos do processo posteriores a este despacho, devendo a ação prosseguir para apreciação do pedido da ação e da reconvenção.
Custas da apelação pelos recorridos.
Notifique.
Guimarães, 12 de dezembro de 2017

Sandra Melo
Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade