Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
140/12.8TAGMR.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO
EXECUÇÃO POR CUSTAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Não é legalmente admissível a execução autónoma para obter o pagamento de custas de processo de insolvência que constituem encargo da massa insolvente, no caso de aquele processo prosseguir a via da liquidação.
II – Neste último caso, o pagamento dessas custas deverá ter lugar no processo de liquidação, à custa da massa insolvente.
III- A sentença declaratória da insolvência que determina o pagamento das custas da insolvência, não constitui título executivo para fundamentar acção executiva autónoma, quando há lugar a liquidação.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
No processo que com o n° 1169/11.4TBGMR corre termos no 3° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, foi proferida decisão que declarou a insolvência de C…, Unipessoal, Lda., responsabilizando a massa insolvente pelas custas.
O processo seguiu os seus normais trâmites em vista da liquidação (designadamente com a apreensão de bens).
Entretanto, foi elaborada conta de custas, a qual foi notificada à Sr.ª Administradora.
Constatando a falta de pagamento do montante de € 4.141,20 apurado na referia conta, o Sr. Funcionário lançou, em vista para tanto aberta à Magistrada do Ministério Público, a informação de que a insolvente possuía bens (“os bens relacionados no apenso da apreensão de bens - fls. 2 a 7”).
Promoveu então a Digna Magistrada do Ministério Público que, atenta tal informação, fosse extraída certidão da “decisão de condenação em custas, conta e de fls. 2 a 7 do apenso C” e a mesma fosse remetida electronicamente aos Serviços do Ministério Público para instauração de execução.
Sobre tal promoção recaiu despacho que determinou se procedesse como promovido.
Tal certidão baseou (enquanto título executivo) requerimento executivo instaurado no Juízo de Execução do Tribunal Judicial de Guimarães pelo Ministério Público contra a Massa Insolvente de C…, Unipessoal, Lda. (que deu origem aos presentes autos).
Em tal requerimento, o Ministério Público, sustentando-se exclusivamente nos factos constantes do título executivo, pretende obter o pagamento das custas já contadas no processo de insolvência da referida insolvente no referido montante de € 4.141,20.
Depois de emitir mandado em vista da realização da penhora de bens da insolvente, a Sr.ª Escrivã conclui o processo à Sr.ª Juíza para que, se assim fosse entendido, julgasse o Juízo de Execução “incompetente, em razão da matéria”, com o consequente “indeferimento liminar” do requerimento executivo, porquanto a execução para pagamento de custas decorre de autos de insolvência a correr termos nos Juízos Cíveis do Tribunal Judicial de Guimarães.
A Sr.ª Juíza proferiu despacho que julgou o Juízo de Execução incompetente, em razão da matéria e, em consequência, indeferiu liminarmente o requerimento executivo.
Inconformada com essa decisão, apelou a Digna Magistrada do Ministério Público, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que julgue competente o Juízo de Execução de Guimarães e ordene o prosseguimento e a tramitação do presente processo até final.
Termina as suas alegações formulando as seguintes conclusões:
«1ª - Os Juízos de Execução foram criados pelo Decreto-Lei no 148/2004 de 2 1/0 1, tendo o Juízo de Execução de Guimarães sido instalado pela Portaria no 262/2006 de 16/03, com efeitos a partir de 20 de Março de 2006.
2ª - De acordo com o disposto no artigo único do Decreto-Lei n° 3 5/2006, de 20/02, as acções executivas instauradas ao abrigo do regime introduzido pelo Decreto-Lei n° 38/2003, de 8 de Março, que se encontrem pendentes nos Tribunais das Comarcas de Guimarães, nos termos da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, que sejam da competência dos juízos de execução transitam para o juízo de execução.
3ª - De acordo com o disposto no artigo 102°-A da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei n° 3/99, de 13/01, com as alterações posteriores - compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil.
4ª - De acordo com o disposto no artigo 89°, n° 1, ai. a), da mesma Lei, compete aos tribunais de comércio preparar e julgar os processos de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
5ª- Porém, na comarca de Guimarães não existe tribunal de comércio, pelo que, de acordo com o disposto nos artigos 94° e 97° da citada Lei Orgânica, tal competência é exercida pelos juízos cíveis e pelas varas de competência mista.
6ª - Acresce que a execução por custas não está conexionada com qualquer execução de decisão proferida no âmbito de um processo da jurisdição dos tribunais de comércio, da competência exclusiva destes.
7ª - O título executivo consiste tão-só numa liquidação (conta) efectuada pela secretaria, cujo montante não foi voluntariamente pago.
8ª - A douta decisão viola, além do mais, o disposto nos artigos 102°-A e 82°, n° 1, al. a), da LOFTJ (Lei n° 3/99, de 13/01 e alterações posteriores) e o disposto no artigo 35° do RCP (Regulamento das Custas Processuais), pelo que deve ser substituída por outra que, julgando competente o Juízo de Execução de Guimarães em razão da matéria, ordene o prosseguimento e a tramitação do processo até final.
O recurso foi admitido, ordenando-se a citação da executada nos termos e para os efeitos previsto no art. 234°-A, nº 3, do CPC, não constando que tenham sido apresentadas contra-alegações.
Remetidos os autos a esta Relação, foi pelo então Exm.º Relator proferida a decisão sumária constante de fls. 48 a 64, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, em razão da inadmissibilidade legal da sua instauração e, bem assim, em razão da ausência de título executivo, rejeita-se a presente execução (arts. 820º e 812°-E, n° 1, a) e b) do CPC) - nestes termos se alterando a decisão recorrida que havia indeferido liminarmente o requerimento executivo por ter considerado verificada a excepção dilatória da incompetência material do tribunal».
O Exm.º Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal da Relação, alegando não ter encontrado qualquer decisão jurisprudencial sobre a questão específica tratada naquela decisão sumária, requereu, ao abrigo do disposto no nº 3 do art. 700º do CPC, que sobre a mesma fosse proferido acórdão.
A executada, notificada na pessoa da Sr.ª Administradora, nada disse.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – OBJECTO DA RECLAMAÇÃO
A questão a decidir na presente reclamação, consubstancia-se em saber se deve ou não ser rejeitada a execução proposta pelo Ministério Público para se obter o pagamento das custas devidas em processo de insolvência, com fundamento na inadmissibilidade legal da execução e, bem assim, por falta de título executivo.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Os factos com relevância para a análise e decisão da presente reclamação são os que decorrem do que acima ficou enunciado no relatório.

B) O DIREITO
Na decisão sumária objecto da presente reclamação entendeu-se que a apreciação da questão relativa à inadmissibilidade da execução (e à inexequibilidade extrínseca da pretensão, que se lhe associa umbilicalmente) precedia, lógico-juridicamente, a questão relativa à competência material do tribunal. Tal resulta evidente, como se afirmou na decisão sumária em apreço, “pela consideração de que se a execução (a causa) não puder ser instaurada (admitida) cm juízo, não há que apurar do tribunal materialmente competente para ela. Não admitindo o ordenamento jurídico a instauração da execução, não há que apurar se ela (causa) se inclui na fracção de jurisdição que a um tribunal (designadamente o recorrido) corresponde”.
E, como decorre do artigo 660.º do CPC, “a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica”, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 288.º.
Nenhuma dúvida se coloca, portanto, sobre a legalidade da decisão sumária proferida no que tange ao conhecimento da inadmissibilidade da execução, a qual se situa a montante da questão da competência material, questão esta objecto do recurso interposto pelo Ministério Público.
O que determinou a apresentação do requerimento do Exm.º Magistrado do Ministério Público a solicitar que sobre a matéria tratada na decisão sumária recaia um acórdão, prende-se com o facto de aquela decisão se ter baseado na simplicidade da questão, a qual, em regra, de acordo com o artigo 705.º do CPC, se aferir pela circunstância de a questão ter sido já objecto de tratamento jurisdicional, de modo uniforme e reiterado e, sobre a questão específica tratada na decisão em crise, não ter sido encontrada qualquer decisão jurisprudencial.
Sendo embora certo que a existência de jurisprudência uniforme e reiterada sobre a questão a decidir constitua um elemento a ter em conta quando o relator decide proferir decisão liminar sobre o objecto do recurso, não é necessário que assim suceda.
Na verdade, “[a]s expressões empregues pelo legislador para delimitar o campo de intervenção individual do relator sobre o mérito do recurso revelam a sua natureza inequivocamente exemplificativa, ainda que não se possa concluir que se trate de emanação de um poder discricionário”[1].
Deixada esta breve nota, de carácter formal, vejamos agora a questão substantiva.
À data da prolação da decisão sumária, tanto quanto é do nosso conhecimento, a questão da inadmissibilidade da execução nos moldes em que aí foi feita, não havia, efectivamente, sido objecto de anterior decisão judicial, nomeadamente por parte desta Relação.
Na presente data, porém, já não é assim, pois entretanto foi proferido um acórdão por esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães[2], onde se decidiu exactamente da mesma maneira, acórdão esse que, aliás, ancorou parte substancial da sua fundamentação na decisão sumária aqui posta em crise.
E pensamos que se decidiu bem.
O processo de insolvência, que é um processo de execução universal visa, no essencial, a satisfação dos credores, designadamente através da liquidação do património do devedor, cujo produto obtido deve ser repartido pelos credores (sem prejuízo de tal satisfação se poder fazer através de insolvência baseado na recuperação da empresa insolvente).
É o património do devedor à data da declaração de insolvência, ou seja, a massa insolvente que responde pelas dívidas da insolvência, - as que já existiam antes da declaração de insolvência - e pelas dívidas da massa insolvente – aquelas que decorrem do processo de insolvência (arts. 46.º, 47.º e 51.º do CIRE).
Assim, constituem dívidas da massa insolvente as custas judicias, que, como as demais custas desta natureza, são pagas com precipuidade, o que significa que os créditos sobre a insolvência são preteridos no confronto com os créditos da massa (art. 172.º do CIRE).
Será, pois, através do processo de liquidação regulado nos artigos 156.º e ss. do CIRE, que tem a natureza de processo executivo, que deve realizar-se o pagamento das custas do processo de insolvência, tanto mais que é na liquidação que se procede à venda dos bens do devedor, para com o produto da venda serem satisfeitos os créditos da massa e os créditos da insolvência.
Acresce que, no caso das dívidas relativas a custas do processo de insolvência, nem sequer é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 89.º do CIRE, como bem se observou na decisão sumária aqui colocada em crise: “O preceito (art. 89º do CIRE) não quadra às custas do processo de insolvência, como decorre da valorização do disposto nos arts. 182°, n° 1 do CIRE e 29°, n° 1, e) do Regulamento das Custas Processuais.
Apesar da conta de custas ser elaborada ao longo do processo, deve o seu balanço ser efectuado, nos processos de insolvência e quando elas (custas) constituam encargo da massa, 10 dias após a liquidação do activo.
A secretaria do tribunal deverá efectuar a distribuição e rateio final depois de encerrada a liquidação e de elaborada a conta.
É exactamente por o apuramento do que ainda sobra para pagar aos credores depender do apuramento do que seja necessário para pagar as custas (que, como dívida da massa, goza da garantia da precipuidade) que, em linha com a nossa tradição, o rateio e distribuição final são postos a cargo da secretaria (ao contrário do que acontece com os rateios parciais, que têm de ser propostos pelo administrador e aprovados pelo tribunal). Nessa altura, e só nessa altura, procederá o administrador ao pagamento das custas e dos restantes créditos.
Resulta dos considerandos expostos que, seguindo o processo de insolvência (em vista de alcançar a sua finalidade precípua — a satisfação do interesse dos credores) a via da liquidação, a satisfação das custas do processo obedece aos termos e trâmites especialmente previstos no CIRE — é em seguida ao rateio final, encenada a liquidação da massa insolvente (e por isso com o produto da alienação dos bens aí alcançado) que tal dívida da massa é satisfeita, não podendo ela ser satisfeita com recurso a autónoma execução (sendo certo que se fosse possível recorrer à execução, autónoma, ela sempre seria da competência material do tribunal competente para a insolvência — art. 89°, n°2 do CIRE).
Entendemos deste modo não ser admissível a instauração de execução autónoma por custas devidas no processo de insolvência.
Ademais, a sentença declaratória da insolvência acompanhada da respectiva liquidação de custas não constitui título executivo suficiente para fundamentar uma execução autónoma nos casos em que, como no presente, o processo de insolvência segue a via da liquidação.
As razões que possibilitam o accionamento pelo Estado do devedor de custas a fim dele obter o pagamento das custas devidas (cfr. art. 35.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento das Custas Processuais) não se verificam no caso.
Porque toda a acção executiva pressupõe um direito de executar o património do devedor, “um poder resultante da incorporação da pretensão num título executivo, pois que é desta que resulta que o credor possui não só a faculdade de exigir a prestação, mas também a de executar, em caso de incumprimento, o património do devedor”[3], a lei confere força executiva à certidão da liquidação, juntamente com a sentença transitada em julgado.
Já no processo de insolvência que siga a via da liquidação, como se escreveu na decisão sumária em análise, “o património do devedor já está a ser executado, e nele (processe de insolvência), através da garantia da precipuidade reconhecida ao crédito por custas, o Estado tem já assegurada a faculdade de (e os meios processuais adequados e ordenados à) satisfação coerciva desse seu direito, Melhor: o processo de insolvência prevê os meios coercivos especificamente destinados à satisfação desse crédito de custas.
Por isso que a sentença declaratória da falência, acompanhada da certidão da liquidação, não constitui título executivo para (autónoma) execução por custas contra a massa insolvente — tal qual ocorre nas execuções para pagamento de quantia certa, que prosseguem os seus termos até que seja efectuado o pagamento das custas devidas (arts. 916°, no i a 4, 917°, n°1 a 5 e 919°, no 1, a) do CPC — sendo certo que também aí elas gozam da garantia da precipuidade, nos termos do art. 455° do CPC), também no regime processual da insolvência as custas são satisfeitas pela observância dos trâmites próprios aí especificamente estabelecidos. Como acima afirmamos, as custas do processo de insolvência (dívida da massa insolvente) têm uma única forma de satisfação coerciva, qual seja a prevista nos mecanismos próprios do processo de insolvência.
Assim vistas as coisas, só podia concluir-se, como se concluiu, pela rejeição da presente execução com fundamento na inadmissibilidade legal da sua instauração e, bem assim, em razão da ausência de título executivo.

Sumário (art. 713º, nº 7, do CPC)
I - Não é legalmente inadmissível a execução autónoma para obter o pagamento de custas de processo de insolvência que constituem encargo da massa insolvente, no caso de aquele processo prosseguir a via da liquidação.
II – Neste último caso, o pagamento dessas custas deverá ter lugar no processo de liquidação, à custa da massa insolvente.
III- A sentença declaratória da insolvência que determina o pagamento das custas da insolvência, não constitui título executivo para fundamentar acção executiva autónoma, quando há lugar a liquidação.

IV - DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em indeferir a reclamação, mantendo-se a decisão sumária reclamada.
Sem custas, por delas estar isento o Digno Reclamante.
*
Guimarães, 14 de Fevereiro de 2013
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Rita Romeira
____________________________________
[1] Abrantes Geraldes, Recurso em Processo Civil – Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, 2010, p. 287.
[2] Acórdão de 17.01.2013, proc. 1169/11.4TBGMR.G1, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 626.