Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
894/14.2T8GMR.G2
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROCESSO PENDENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 – A razão de ser do artigo 8.º do CIRE é de que não corram em simultâneo dois processos de insolvência contra o mesmo devedor.
2 – Tendo sido declarado o caráter limitado da insolvência (artigo 39.º CIRE) por insuficiência da massa insolvente, após o respetivo trânsito em julgado, pode qualquer credor intentar novo processo de insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 7, alínea d) do CIRE.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
F… requereu a declaração de insolvência de “D…, Lda.”, pedido que veio a ser indeferido liminarmente.
Interposto recurso, veio este Tribunal da Relação a julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos, com a citação da requerida.
Citada a requerida, esta nada disse.
A 27/02/2015 é lavrada conclusão nos autos, com o seguinte teor:
“Com informação a V. Exª de que a aqui devedora foi declarada insolvente nos termos do artigo 39.º, n.º 1 do CIRE, no processo n.º 1725/14.9TBGMR, Inst. Local Cível – Guimarães – J4”
A que se seguiu o seguinte despacho:
“ Por consulta electrónica do mencionado processo, decorre que a referida sociedade foi declarada insolvente em 29.7.2014, por sentença transitada em julgado, pelo que quando foi citada, nestes autos, deveria ter referido esse facto e não remeter-se ao silêncio.
Aliás quando a requerente deduziu o pedido para a declaração de insolvência em 22.10.2014, já a referida sociedade encontrava-se insolvente, com sentença transitada em julgado.
Não obstante e atendo o disposto no artigo 8.º n.º 4 do CIRE, declara-se extinta a presente instância.
Dê a competente baixa”.

Discordando deste despacho, dele interpôs recurso a requerente, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1 - A Mma Juiz “a quo” declarou extinta a presente instância, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 8º do CIRE, em virtude de a presente acção de insolvência ter dado entrada em 22/10/2014, data em que já havia uma sentença de declaração de insolvência transitada em julgado da requerida;
2 - No entanto, o desiderato que subjaz ao art. 8°, nº4 do CIRE é de que não corram termos dois ou mais processos de insolvência em simultâneo a respeito do mesmo devedor ou que, pelo menos, não haja de ser decretada a insolvência em mais do que um dos vários processos pendentes que tenham sido instaurados a respeito do mesmo devedor;
3 - Com efeito, o dito artigo 8° do CIRE erige dois critérios para se decidir em qual dos dois processos, simultaneamente pendentes e relativos ao mesmo devedor, deve ser declarada suspensa a instância.
4 - Sendo o segundo critério, que aqui importa apurar, constante do n° 4 de acordo com o qual: o de ter sido declarada a insolvência em um dos vários processos (simultaneamente pendentes),o que não é o caso, uma vez que como refere a própria Mma Juiz “a quo”, no despacho de que se recorre, o presente pedido de insolvência foi deduzido em 22/10/2014, isto é, em data posterior e não simultânea à data da declaração de insolvência no primeiro processo, a qual, inclusive, já se encontrava transitada em julgado. (sublinhado nosso)
5 - Pelo que, a única questão a decidir neste recurso consiste em saber se decretada a insolvência e ocorrendo o encerramento do processo conforme o previsto nos art.º 39, nºs 1 e 9 e 1910 do CIRE., isto é, concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas presumíveis da massa insolvente, poderão ou não os credores, na sequência da declaração de insolvência nesses moldes, pedir nova declaração de insolvência da sociedade.
6 - Acresce que, o caso dos autos configura uma situação com contornos especiais, uma vez que como resulta do anúncio da sentença que declarou a insolvência da requerida, proferida em 29/07/2014, nela foi nomeado um administrador da insolvência e declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter limitado, conforme o previsto nos art.º 39, nºs 1 e 9 e 191 do CIRE.
7 . Ora, decorre do nº1 do art.º 39 do CIRE , que concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas presumíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma garantida, dará cumprimento, apenas, ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do art. 36, declarando aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter limitado.
8 ~ Neste caso, qualquer interessado poderá pedir, no prazo de cinco dias, que a sentença seja complementada com as restantes menções do art.º 36 - o que levará ao prosseguimento do processo de acordo com o modelo típico comum, cf. Nºs 2 a 4 do art.º 39 do CIRE
9 ~ E conforme as alíneas a) e b) do nº7 do mesmo art.º 39, "não sendo requerido o complemento de sentença a declaração de insolvência não desencadeia a generalidade dos efeitos que normalmente lhe estão ligados, ao abrigo das normas do Código, mantendo-se o devedor também na administração e disposição do património que exista.(sublinhado nosso)
10 - Deste modo, aquela declaração de insolvência não determinará os efeitos previstos nos art.ºs 85 e 88 do CIRE, continuando a requerida na administração e disposição do património que eventualmente exista.
11 ~ Acresce ainda que a recorrente não podia ir ao processo de insolvência reclamar o respectivo crédito pois tal fase não chegou a ter lugar.
12 - Assim, no presente caso, o primitivo processo de insolvência não culminou com a liquidação do património do insolvente e com o pagamento aos credores pelo respectivo produto.
13 - Sendo que, com o encerramento do processo de insolvência cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, podendo os credores exercer os seus direitos contra o devedor sem restrições e os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos (cfr. alínea d) do nó1 do art. 2330). (sublinhado nosso)
14 ~ Aliás, o encerramento do processo de insolvência implica, entre outras coisas, a extinção do processo de verificação de créditos pendentes em que não tenha sido proferida a sentença de verificação e graduação correspondente (cfr art° 233 nº 2 b) do CIRE). Ou seja, em tais casos, não haverá sequer lugar a sentença de verificação e graduação de créditos, tal como sucedeu no presente caso.
15 - Seja como for, o reconhecimento do direito de crédito da recorrente não foi ainda atingido por qualquer outro meio, pelo que lhe é legítimo que instaure a presente acção e a prossiga.
16 - Assim, tendo a mencionada declaração de insolvência da requerida sido proferida nos termos dos arts. 39°, nºs 1 e 9 e 1910 do CIRE nunca poderá conduzir à extinção da instância nos termos do artigo 80, n04 do CIRE, tanto mais que como supra se referiu tal artigo apenas se aplica a acções simultaneamente pendentes, o que não é manifestamente o caso.
17 - O despacho recorrido fez assim incorrecta interpretação e aplicação, entre outros, do disposto nos artigos 8°, nº 4, 39°, nºs 1 e 9 e 191° do CIRE.
Termos em que deverá ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos Autos, tudo com as legais consequências.
Assim decidindo, farão V.Ex.as, Venerandos Desembargadores, a habitual JUSTIÇA

Não houve contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
A única questão a resolver traduz-se em saber se o processo deve prosseguir ou se foi correta a decisão de extinção da instância.

II. FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida não fixou os factos em que se fundou, não dando, assim, cumprimento ao disposto no artigo 607.º, n.º 3 do CPC.
Importa suprir tal deficiência, elencando os factos assentes:
1 – Os presentes autos de pedido de declaração de insolvência deram entrada, a requerimento de uma ex-trabalhadora, no dia 21/10/2014.
2 – A 06/11/2014 a petição inicial foi indeferida liminarmente, com fundamento na falta de legitimidade da autora e insuficiência dos factos alegados.
3 – Interposto recurso, foi proferido acórdão deste Tribunal da Relação, em 17/12/2014, que revogou a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento dos autos, com a citação da requerida.
4 – A requerida foi citada, a 23/01/2015 e não deduziu oposição.
5 – A 27/02/2015 foi proferida a decisão sob recurso.
6 – Só nessa data houve conhecimento no processo de que a requerida já havia sido, anteriormente, declarada insolvente, com sentença proferida a 29/07/2014, transitada em julgado em 20/08/2014.
7 – Na declaração de insolvência considerou-se que “o património da insolvente não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, para os efeitos do artigo 39.º, n.º 1 do CIRE”
7 – Em 27/01/2015 foi proferido, no primeiro processo, despacho de encerramento do processo nos termos do disposto no artigo 39.º, n.º 7 b) do CIRE, por não ter sido requerido o complemento da sentença de declaração de insolvência, despacho que foi notificado e transitou em julgado em 18/02/2015.

A decisão sob recurso declara a extinção da instância ao abrigo do disposto no artigo 8.º, n.º 4 do CIRE.
Nos termos desse artigo “Declarada a insolvência no âmbito de certo processo, deve a instância ser suspensa em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor e considerar-se extinta com o trânsito em julgado da sentença, independentemente da prioridade temporal das entradas em juízo das petições iniciais”.
Vejamos.
O regime do artigo 8.º do CIRE obriga à suspensão dos processos de insolvência instaurados posteriormente, quando já exista a correr contra o mesmo devedor processo de insolvência instaurado com prioridade temporal ou, independentemente da prioridade temporal, logo que seja declarada a insolvência no âmbito de certo processo (suspendendo-se quaisquer outros que corram contra o mesmo devedor), obrigando, ainda à extinção da instância em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor, logo que transite em julgado a declaração de insolvência – cfr. Ac. Relação do Porto de 19/02/2008 (processo n.º 0820217), in www.dgsi.pt.
A razão de ser deste normativo é de que não corram em simultâneo dois processos de insolvência contra o mesmo devedor.
No nosso caso, como resulta dos factos assentes, quando a ação deu entrada (21/10/2014), havia já transitado em julgado a sentença que declarou a insolvência da requerida em processo anterior (20/08/2014).
Daí que não seja de aplicar ao caso presente o disposto neste artigo 8.º do CIRE.

Mas, nesse caso, subsiste a dúvida de saber se outro credor pode, posteriormente, intentar novo processo de insolvência.
A resposta a esta questão prende-se com a análise ao disposto no artigo 39.º do CIRE.
Já vimos que a devedora foi declarada insolvente com menção expressa de que o seu património não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente – artigo 39.º, n.º 1 do CIRE - não tendo sido pedido o complemento da sentença, ao abrigo do n.º 2, alínea a) desse artigo, motivo pelo qual foi declarado findo o processo - n.º 7, alínea b).
Ora, nos termos do disposto no n.º 7, alínea d) deste artigo 39.º do CIRE, não tendo sido requerido o complemento da sentença, após o respetivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência.
É o caso de qualquer trabalhador que pretenda ver reconhecida a reclamação do seu crédito por salários não pagos pela entidade insolvente, com vista ao disposto na alínea a) do artigo 324.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho (que regulamenta o Código de Trabalho, designadamente, no que aqui diz respeito – artigo 380.º -, quanto ao Fundo de Garantia Salarial, prevendo-se que este Fundo pague os créditos do trabalhador, sendo necessário instruir o requerimento com certidão comprovativa dos créditos reclamados pelo trabalhador emitida pelo tribunal onde corre o processo de insolvência), podendo instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, quando o primeiro foi encerrado nos termos do artigo 39.º do CIRE (por insuficiência da massa insolvente), sem que lhe seja exigido o depósito prévio de qualquer quantia à ordem do tribunal – a alínea d) do n.º 7 do artigo 39.º do CIRE foi já julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.º 602/2006 e 323/12 do Tribunal Constitucional – ou requerer o complemento da sentença, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo – também já julgado inconstitucional quanto à obrigação de o requerente, beneficiando de apoio judiciário, depositar a quantia necessária ao pagamento das custas e dívidas (Acórdão n.º 83/2010) – veja-se, neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 26/06/2007, in www.dgsi.pt.
Veja-se o teor da alínea a) da decisão do Tribunal Constitucional de 14/11/2006, no processo n.º 602/2006: “Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, um e outro da lei fundamental, a norma vertida no preceito da alínea d) do n.º 7 do artigo 39.º do CIRE, quando interpretada no sentido de que dele decorre, nos casos em que foi proferida sentença nos termos do n.º 1 daquele artigo, a imposição, ao trabalhador que não desfrute de condições económicas suficientes e que pretenda instaurar novo processo de insolvência para efeitos de nele ser reconhecida a reclamação do seu crédito por salários não pagos pela entidade insolvente, com vista ao disposto na alínea a) do artigo 324.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, do depósito de um montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das dívidas previsíveis da massa insolvente, não contemplando o benefício do apoio judiciário a possibilidade de isenção desse depósito…” de onde, claramente, resulta a possibilidade de se intentar novo processo de insolvência após a extinção do anterior.
Como já decidimos anteriormente (processo n.º 713/13.7TBBCL-C.G1), não se compreenderia bem, aliás, que, podendo ser intentado novo processo após o primeiro ter sido declarado findo ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do artigo 39.º do CIRE, não pudesse prosseguir o processo de verificação ulterior de créditos já intentado, motivo pelo qual aí se entendeu que “pode e deve prosseguir o processo intentado pelo trabalhador com vista à obtenção de uma decisão judicial comprovativa de que reclamou no processo de insolvência para, com essa comprovação, poder garantir o pagamento, pelo Fundo de Garantia Salarial, dos seus créditos incumpridos pela entidade patronal declarada insolvente”.
E, de igual modo, aqui se conclui que, após o trânsito em julgado de sentença que declarou a insolvência com caráter limitado, ao abrigo do disposto no artigo 39.º do CIRE, pode qualquer legitimado instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência.
E, conforme já deixámos expresso no primeiro acórdão proferido nestes autos: “Um trabalhador, mesmo que o seu crédito ainda não esteja reconhecido por sentença do Tribunal de Trabalho, tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência do devedor, desde que, claro, se verifique algum dos factos referidos nas diversas alíneas do artigo 20.º do CIRE – neste sentido, veja-se os Acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 18/12/2006 (processo n.º 2338/06-2) e de 18/05/2005 (processo n.º 664/05-2), e da Relação de Évora de 10/05/2007 (processo n.º 840/07-3), todos disponíveis em www.dgsi.pt e Luís M. Martins, in “Processo de Insolvência”, 2.ª edição, pág. 102”.
Com o que se julga procedente a apelação e se revoga a decisão recorrida.

Sumário:
1 – A razão de ser do artigo 8.º do CIRE é de que não corram em simultâneo dois processos de insolvência contra o mesmo devedor.
2 – Tendo sido declarado o caráter limitado da insolvência (artigo 39.º CIRE) por insuficiência da massa insolvente, após o respetivo trânsito em julgado, pode qualquer credor intentar novo processo de insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 7, alínea d) do CIRE.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, e ordenando-se o prosseguimento dos autos nos termos supra expostos.
Sem custas.
Guimarães, 4 de junho de 2015
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Maria Purificação Carvalho