Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
148/13.1YRGMR
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: SUSPEIÇÃO
RECUSA DE JUÍZ
ESCUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA PENAL
Decisão: PEDIDO INDEFERIDO
Sumário: A circunstância de um juiz ter rejeitado uma acusação, por considerar que os factos nela narrados não constituíam crime, não é motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade no julgamento dos mesmos factos posteriormente ordenado pelo tribunal de recurso.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

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I- Relatório

Sofia R..., Juiz de Direito no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, veio deduzir escusa, ao abrigo do disposto no artigo 43º., nº. 4, do Código de Processo Penal, relativamente ao julgamento a levar a cabo no Processo Comum singular nº. 141/12.1 PABCL, do mesmo Tribunal, invocando, para o efeito, os seguintes fundamentos:

“Sofia R..., Juiz de direito, em exercício de funções no 2° Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, vem, pelo presente meio, solicitar a V. Exªs. se dignem considerar que, nos presentes autos, concorre razão que justifica seja escusada de nos mesmo intervir no acto de julgamento da causa, pelos fundamentos que, a seguir, se expõem:

a) Conforme dos autos avulta, no culminar da fase de inquérito, e na sequência de notificação que, para esse efeito, lhe foi dirigida, a assistente Maria P... deduziu acusação, para julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular, contra Florbela M..., a esta imputando a prática, em autoria material, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.181° do Cód. Penal;

b) Sustentou a acusação deduzida no complexo factual que fez verter a fls. 77 e 78;

c) Na primeira intervenção que a signatária teve nos autos, para os efeitos previstos pelo art. 311° do Cód. de Proc. Penal, considerou que os factos que sustentam a acusação deduzida não constituíam, ainda que a demonstrar-se em fase de julgamento, o crime pelo qual a assistente concluiu nem qualquer outro ilícito penal;

d) Na sequência do juízo que assim formulou, e que melhor consta de fls. 95 a 98, a signatária rejeitou a acusação deduzida;

e) Em recurso que foi interposto do correspondente despacho, veio esse Venerando Tribunal a conceder provimento ao mesmo, determinando a substituição do despacho recorrido por outro que fizesse prosseguir os autos para julgamento, com cumprimento das concorrentes normas legais.

Isto posto e tendo sido dado cumprimento ao superiormente determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães - de recebimento da acusação deduzida e determinação de cumprimento dos normativos legais aplicáveis -, entende, porém, a signatária que concorrem razões que legitimam seja escusada de proceder ao julgamento da causa.

É que, para o efeito, de proceder pelo modo supra reportado em c), a signatária teceu considerações a respeito da inadequação do comportamento imputado à arguida para integrar a prática do crime que lhe vem atribuído. Ou seja, formulou, antecipadamente, um juízo a respeito de matéria que, agora, se vê na contingência de poder vir a julgar.

Sendo, como é, incontestável que a signatária se encontra obrigada a cumprir as determinações desse Venerando Tribunal - que, na circunstância, acatou, proferindo o competente despacho de recebimento da acusação -, parece-lhe incontestável, também, não estar adstrita, em julgamento, ao juízo de fundo formulado em sede de recurso, de sentido contrário ao posicionamento que assumiu já nos autos e que ditou a prolação do despacho reportado em c).

Crê, assim, concorrer, no caso, fundamento que justifica a formulação de pedido de escusa, nos termos e para os efeitos previstos pelo nº 4 do art. 43° do Cód. de Proc. Penal, que, em consequência, se requer seja reconhecida.

V. Exªs, porém, fazendo uso de mais elevado e superior critério, melhor decidirão”.

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Nesta Relação, o Exº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer no sentido do indeferimento do pedido por entender que o facto da decisão tomada por um Tribunal superior ser de sentido contrário ao posicionamento que a requerente assumira nos autos, aos olhos de um cidadão médio, não consubstanciará por si só motivo grave e sério que ponha em causa a imparcialidade da requerente.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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II- Fundamentação

Dispõe o artigo 43º., nºs 1, 2 e 4, do CPP:

“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2- Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

(....)

4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2”.

Por sua vez, prescreve o artigo 45º., nº.1, al. a), do mesmo diploma legal, que a escusa deve ser pedida, a ela se juntando logo os elementos comprovativos, perante o tribunal imediatamente superior.

No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou, como princípio inalienável, constitucionalmente consagrado (art. 32º., nº.9 da Constituição da República Portuguesa), o do juiz natural, pressupondo tal princípio que intervém no processo o juiz que o deva ser segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito.

Contudo, perante a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, estabeleceu o sistema o seu afastamento em casos-limite, ou seja, unicamente quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu munus.

Subjacente ao instituto em análise encontra-se a premente necessidade de preservar, até ao possível, a dignidade profissional do magistrado visado, e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num estado de direito democrático como o nosso, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa.

Como decorre do teor literal do artigo 43º., nº.1 do CPP, o juiz pode ser recusado ou pedir escusa quando a sua intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Analisada a imparcialidade do juiz nas diferentes perspectivas observadas do mundo exterior, surpreendem-se, complementarmente, dois modos distintos de a abordar e compreender:

- No plano subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, o que ele pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real e se, internamente, tem algum motivo para o favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro. Deste ponto de vista subjectivo impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão, e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário.

- Porém, para se afirmar a ausência de qualquer preconceito em relação ao thema decidendum, ou às pessoas afectadas pela decisão, não basta a visão subjectiva, sendo também imprescindível, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida no art. 6º., §1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma apreciação objectiva, alicerçada em garantias bastantes de a intervenção do juiz não gerar qualquer dúvida legítima.

Neste plano objectivo, e como bem se escreve no Ac. do STJ de 13-4-2005 (pr. 05P1138 disponível em www.dgsi.pt/jstj), “intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (vd., por ex., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz”.

Ainda nesta perspectiva objectiva, e para salientar a sua importância, refere Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, reimpressão da Universidade Católica, 1981, vol. I, pág. 237) o facto de não importar apenas que o Juiz permaneça, na realidade das coisas, imparcial, interessando “sobretudo considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados”.

O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito.

Como se salienta no citado Ac. do STJ de 13-4-2005, “a gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos, seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão”.

No presente caso invoca a requerente que teceu considerações a respeito da inadequação do comportamento imputado à arguida para integrar a prática do crime que lhe vem atribuído. Ou seja, que formulou, antecipadamente, um juízo a respeito de matéria que, agora, se vê na contingência de poder vir a julgar.

Sucede que, como a própria refere tal despacho que proferiu foi revogado em recurso por ter sido considerado incorrecto, não apreendendo o exacto sentido (a extensão total) da interpretação relativa à matéria em discussão, donde processualmente o mesmo deixou de produzir quaisquer efeitos, tudo se passando como se não tivesse sido proferido.

Trata-se, aliás, de situação comum no desenrolar dos processos - a verificação de recursos providos -, o que por forma alguma implica de imediato a recusa ou a escusa do respectivo julgador no tocante ao processado subsequente.

E tanto bastaria só por si para objectar às preocupações da Ex.ª requerente, inexistindo qualquer motivo - muito menos sério e grave - para colocar em causa a confiança na sua imparcialidade.

Importa ter presente também que o princípio do juiz natural não se esgota na sua dimensão garantística, constituindo ainda factor de segurança e certeza do ponto de vista da organização judiciária e da equidade entre juízes, pelo que a exigência de que o motivo invocado seja sério e grave traduz igualmente a excepcionalidade da concessão de recusa ou escusa.

Por outro lado, a requerente no seu primitivo contacto com os autos limitou-se a tecer considerações sobre uma mera peça de cariz jurídico, independentemente das pessoas que lhe subjazem e do respectivo contexto que urge apurar em julgamento, - tal qual se chamou a atenção no acórdão desta Relação - pelo que o processo criativo da convicção sobre os factos está bem longe de se mostrar ultimado, jamais podendo dizer-se que o mesmo esteja afectado por um qualquer pré-juízo condicionador e nocivo seja para o arguido ou para com a assistente.

Relembre-se, aliás, o que se escreveu com relevo para a análise do presente caso no Ac. Rel. Guimarães de 7-10-2013, rel. Paulo Silva:

“… Enquanto aspectos do tipo objectivo em presença, a «honra» diz respeito à dignidade inerente à pessoa, a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social, ao passo que a «consideração» refere-se à reputação de que a pessoa goza no meio social.

Relevante à apreciação juspenal é o contexto dos factos imputados e/ou palavras proferidas.

No caso em apreço.

Está em causa o envio pela Arguida à Assistente de um sms do seguinte teor:

"Vai arranjar quem te monte, vai te foder".

Ora, é manifesto que em causa não está a imputação de qualquer facto à Assistente, mesmo sob a forma de suspeita: no apontado sms não é assacada à Assistente o cometimento de qualquer conduta.

Em apreço está antes em causa o emprego de palavras.

Têm elas carga pejorativa tal que representem um ultraje à honra e/ou consideração da Assistente?

Ao contrário do entendimento do Tribunal recorrido entendemos que sim.

­As palavras em causa não se quedam por um conselho, uma sugestão, um apelo à Assistente.

Encerram em si uma carga valorativa tal que denigrem a pessoa da Assistente na medida em que a colocam no foro animalesco do trato sexual: deste ponto de vista, a utilização do verbo montar não é próprio ao ser humano, antes caracteriza uma sexualidade animal.

Além disso, sem outra contextualização, que por ora inexiste nos autos, o "vai arranjar quem te monte" assaca à Assistente uma falta ou frustração sexual que em si mesmo a desacreditam enquanto pessoa.

A utilização no contexto do termo foder consolida um tal entendimento.

Com efeito, aquele vocábulo revela a baixeza de carácter que o "montar" em si já pressupunha e procura associar a Assistente a um tal contexto torpe, manifestamente ofensivo da sua honra e consideração.

«Portugal é uma República (...) baseada na dignidade da pessoa humana».

­«Antes de mais, a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto».

A dignidade da pessoa humana «explica (...) os direitos (...) ao bom nome e reputação» constitucionalmente consagrados no artigo 26.º n.º 1, da nossa Constituição.

Ora, o sms sub judice põe em causa a dignidade da pessoa da Assistente na medida em que a trata de forma desonrosa e com desconsideração nos termos explicitados, colocando em crise o seu bom nome, a sua dignidade de pessoa.

Não se pode aceitar que alguém sem mais se dirija a outrem em tais termos sob pena de se diminuir a protecção da dignidade humana a patamares assaz reduzidos, colocando em causa o Estado de Direito Democrático que urge salvaguardar.

Claro que no caso vertente o apuramento do contexto em que foram proferidas as palavras injuriosos pode arrastar a situação para fora do âmbito de protecção legal, conferindo ao caso falta de dignidade penal e civil.

Contudo, por ora, face aos elementos constantes da acusação, e só eles relevam neste momento, é prematuro entender que a conduta da Arguida nela descrita não é objectivamente injuriosa para a Assistente…”.

Importa ponderar por fim que à medida que se possibilitasse o alargamento do universo de situações reconhecidas como sérias e graves do ponto da vista da imparcialidade dos juízes, mais os directamente envolvidos e a comunidade em geral considerariam como tais um número crescente de outras situações.

Ou seja, as valorações justificadoras de um maior número de escusas e recusas constituiriam elas mesmas fundamento de novos juízos positivos em casos cada vez mais distantes de um núcleo duro de situações comunitariamente inaceitáveis, que se encontra subjacente ao critério do motivo sério e grave acolhido no art. 43º., nº.1 do CPP.

Em suma, afigura-se-nos que a situação patenteada in casu não reveste gravidade e seriedade bastantes para ser susceptível de gerar desconfiança nos intervenientes e sujeitos processuais e na comunidade em geral sobre a imparcialidade da Mmª Juíza requerente e, como tal, inexiste fundamento válido e relevante para o pedido de escusa formulado.

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III- Decisão

Termos em que acordam os Juízes desta Relação em indeferir o pedido de escusa da Mmª Juíza Sofia R... para intervir no Processo comum (singular) nº. 141/12.1 PABCL.

Sem tributação.