Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2162/12.5TABRG .G2
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
CONDIÇÕES DE PUNIBILIDADE
OMISSÃO
FACTOS
ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: 1. Traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime p. e p no artº 348º, nº 1, al. b), do CP, quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem.
2. Não constando da acusação pública factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam com segurança concluir que o arguido tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar, impõe-se a absolvição da recorrente do ilícito em causa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Nestes autos de processo especial abreviado nº 2162/12.5TABRG, e por sentença proferida em 24 de Abril de 2014, o tribunal singular do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga condenou a arguida Magnina B... pelo cometimento de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal na pena de setenta dias de multa à razão diária de cinco euros.

2. A arguida interpôs recurso pedindo a revogação da decisão proferida e a absolvição da prática do crime de desobediência.

3. O Ministério Público, por intermédio da magistrada no Tribunal Judicial de Braga formulou resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.

4. Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Exm.º. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer concluindo pela improcedência do recurso.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

5. Para fundamentação da presente decisão impõe-se transcrever parcialmente a sentença recorrida.

O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:

a) Por decisão judicial proferida no âmbito do processo de execução comum n.º 1353/12.3TABRG do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi ordenada a apreensão do veículo automóvel de matrícula 63-96-..., pertença da arguida; ----

b) No dia 4 de Setembro de 2012 foi efectivamente apreendido o veículo automóvel supra referido, tendo a arguida sido nomeada fiel depositária do mesmo;------

c) Nesse mesmo dia, a arguida MAGNINA B... foi pessoalmente notificada pela Guarda Nacional Republicana para, no prazo dez dias úteis, fazer a entrega dos documentos do veículo apreendido no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, à ordem do processo n.º 1353/12.3TABRG do 2.º Juízo Criminal, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência; -----------------

d) Não obstante ciente das consequências do não acatamento daquela ordem, a arguida não procedeu à entrega dos referidos documentos naquele processo, apesar de bem saber que a tal estava obrigada;

e) A arguida sabia que a ordem em causa era formal e substancialmente legítima, emanada de autoridade competente para o efeito e regularmente comunicada e que o seu não acatamento a faria incorrer na prática de crime;

f) A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo proibida e punida por lei a sua descrita conduta;

g) A arguida encontra-se desempregada;

h) Encontra-se divorciada;

i) É sustentada pelo seu ex-marido;

j) Completou o 12.° ano de escolaridade; -

k) Nada consta do seu certificado de registo criminal.”

O tribunal fez constar o seguinte sobre a motivação da decisão da matéria de facto:

A convicção deste Tribunal quanto à matéria de facto provada e não provada baseou-se na adequada ponderação de toda a prova documental junta aos autos a fls. 02 a 04 e 28.

Relativamente às alíneas a) a f) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise dos documentos juntos aos autos a fls. 02 a 04, dos quais resulta inequívoco que o veículo automóvel descrito na acusação foi alvo de penhora, tendo sido efetivamente apreendido e a arguida pessoalmente notificada para, no prazo de dez dias úteis, proceder à entrega dos documentos do veículo automóvel, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência. Esgotado o prazo a arguida não procedeu à sua entrega, não tendo justificado por qualquer forma a sua omissão. Não requereu a prorrogação do prazo e nem, no caso de extravio dos documentos, requereu a emissão de segunda via para juntar o comprovativo ao processo. A arguida, pura e simplesmente, não cumpriu a ordem de entrega dos documentos, mantendo-se numa omissão e falta de colaboração absoluta, a essência do crime pelo qual se encontra acusada.

No seguimento do ordenado superiormente pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, procedeu-se então à repetição dos atos processuais subsequentes às alegações orais, tendo a arguida comparecido à audiência designada e utilizado a faculdade de prestar últimas declarações nos termos do artigo 361 .° do Código de Processo Penal, aplicável por via da remissão do artigo 391 .°-E, n.° 1 , do Código de Processo Penal.

Sucede que a arguida prestou declarações de forma confusa, não tendo apresentado qualquer justificação plausível, aceitável e credível para o não cumprimento da ordem que lhe foi transmitida pessoalmente. Anota-se que a arguida insistiu no sentido de desconhecer a ordem, invocando não ter recebido a mesma devido a uma duplicação de número de caixas de correio existente na sua rua, o que leva a que não receba muita correspondência. Sucede que a notificação em causa no presente processo, conforme resulta de fls. 03, foi realizada pela autoridade policial competente e através de contacto pessoal com a arguida, pelo que, desde logo, a sua versão em nada abalou a convicção deste Tribunal formada com base na prova documental supra referida. Por outro lado, a versão da arguida não mereceu igualmente qualquer credibilidade pela circunstância de os factos datarem de 2012 e a arguida, a pergunta deste próprio Tribunal, ter declarado nada ter feito relativamente à alegada duplicação de número de caixas de correio existente na sua rua. Ora, caso existisse a referida duplicação de números de caixas de correio na mesma rua e a arguida estivesse normal e legitimamente interessada em receber o seu correio sem qualquer problema, certamente já teria procurado resolver o assunto quer junto dos CTT, quer junto da Junta de Freguesia e/ou da Câmara Municipal.

Advertida para o teor do documento junto aos autos a fls. 03, o qual comprova inequivocamente que foi notificada pessoalmente para entregar os documentos do veículo automóvel, a arguida acabou por declarar, como última e nova forma de procurar eximir-se à sua responsabilidade criminal, que entregou toda a documentação do caso ao seu advogado, lançando sobre o mesmo as responsabilidades sobre o sucedido, embora não tendo particularizado em que data o fez e nem tendo sido capaz de esclarecer o motivo pelo qual nada disse no processo em causa.

Assim, por terem surgido de forma confusa e isolada, as declarações da arguida não mereceram qualquer credibilidade.

Relativamente às alíneas g) a j) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou das declarações da arguida, as quais, quanto a esta parte, surgiram de forma coerente, não tendo sido contrariadas por qualquer outro meio de prova.

Quanto à alínea k) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise do teor do certificado de registo criminal, junto aos autos a fls. 138.

6. Vem a arguida acusada e condenada pelo cometimento de um crime de desobediência por não ter entregue no Tribunal Judicial de Braga

os documentos do veículo automóvel de matrícula 63-96-..., apreendido pela autoridade policial em 4 de Setembro de 2012.

No seu recurso, a arguida invoca que na data da penhora e no prazo fixado na notificação não tinha os referidos documentos em sua posse devido a uma penhora anterior.

Ao longo do processo, a arguida nunca apresentou qualquer meio probatório tendente a convencer da efectiva impossibilidade de entrega dos documentos, nem sequer formulou requerimento ao tribunal para que procedesse a diligências probatórias nesse âmbito (seria fácil, pela simples consulta do processo pendente no então 2.º juízo cível do Tribunal Judicial de Braga, apurar se aí se encontravam apreendidos os documentos em causa).

Contudo, a questão fundamental neste âmbito coloca-se num estádio processual anterior, ou seja, na formulação da própria acusação pública.

Como tem sido sublinhado, o princípio da acusação constitui um princípio fundamental do processo penal e beneficia de tutela constitucional – artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República, significando essencialmente que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205).Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste precisamente nesta “vinculação temática” : os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1981, p. 144).

A vinculação temática do tribunal é considerada assim como a “pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido” e assegura, também, os seus direitos de contraditoriedade e audiência: é indispensável que o arguido saiba com precisão de que facto em concreto se encontra acusado, para que possa apresentar os seus argumentos e os seus meios de contra prova.

Como escreveu Castanheira Neves, a identidade do objecto do processo não poderá definir-se tão rígida e estreitamente que impeça um esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade, mas não deverá também ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo princípio acusatório e que a definição do objecto do processo se propõe justamente realizar” (Sumários de Processo Criminal 1967/1968, Coimbra, in Textos AAFDL 1992, pag. 135 a 138).

Em todo o caso, tem-se entendido que a acusação deve conter a narração clara e inequívoca de todos os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Ora, o preenchimento do tipo de crime de desobediência depende da efectiva detenção do bem que deve ser entregue, uma vez que “só se deve obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida, como é próprio dum comando dirigido a alguém em concreto, pela situação e capacidades do particular destinatário. De impossibilia nemo tenetur. (…) A impossibilidade de praticar o acto pode ser física ou até legal. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, III, p. 357.

Dito de outro modo: traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem.

A consequência lógica deste entendimento consiste em considerar como indispensável que na acusação pública constem os factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam concluir com segurança que o arguido tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-03-2014, Relator Des. Fernando Monterrroso, processo 5/12.9PABRG.G1, in www.dgsi.pt, que seguimos de perto..

Ora, o texto da acusação destes autos (fls. 10 e 11) contém os factos da apreensão do veículo automóvel, da notificação pessoal da arguida para entrega dos documentos no Tribunal em determinado prazo, sob cominação do crime de desobediência; Assim como se escreveu no requerimento para julgamento que a arguida não procedeu à entrega desses documentos, sabendo que encontrava obrigada a cumprir essa ordem, assim agindo de forma livre, deliberada e consciente, com conhecimento da proibição dessa conduta.

Contudo, não consta na acusação, nem de forma explícita nem implícita, que no período de tempo relevante, ou seja na data da notificação pessoal e no prazo subsequente de dez dias, a arguida detinha os documentos do veículo ou podia de alguma forma dispor deles ou obtê-los e assim cumprir a ordem de entrega no Tribunal.

Acresce que a alusão genérica aos elementos subjectivos, referentes ao conhecimento da proibição da conduta, não dispensa a anterior prova dos elementos objectivos do crime.

Teremos de considerar como razoável ou plausível que por força de anterior penhora, o dono do veículo tenha entregue esses mesmos documentos no âmbito de um outro processo judicial ou, de alguma forma tenha ocorrido um extravio e a pessoa notificada não tivesse possibilidade de obter novos documentos.

Em todo o caso, a aplicação do princípio do acusatório impede agora o Tribunal de se substituir ao Ministério Público e alargar o conhecimento a eventos que permitam a condenação, ficando assim inviabilizada a formulação de um juízo segundo o qual a arguida podia efectivamente cumprir a ordem que lhe tinha sido transmitida.

Nesta fase processual, essa insuficiência da acusação na narração dos factos tem forçosamente de conduzir a absolvição da arguida do cometimento do crime de desobediência, assim procedendo o recurso.

7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso e em absolver a arguida Magnina B....

Sem tributação.

Guimarães, 12 de Janeiro de 2015.