Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
795/12.9TBFAF.G1
Relator: PAULO DUARTE BARRETO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
CONCESSIONÁRIO
EMPREITEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O exercício de prerrogativas do poder público esgota-se na concessionária, não se estende às empreiteiras e subempreiteiras que são contratadas para a execução da obra.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2.ª) do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
Nesta acção declarativa, com processo ordinário, em que são Autores B… e M… e Réus N…, ACE e M…, SA, e Intervenientes Companhia de Seguros… e E…, o tribunal a quo proferiu decisão a julgar proceder a excepção dilatória de incompetência material (são competentes os tribunais administrativos), com a consequente absolvição das rés da instância.
Não se conformando com tal decisão, dela recorreram os Autores, tendo formulado as seguintes conclusões:
“ I – Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 2, alínea b) do NCPC, vem o presente recurso interposto do douto despacho a que alude os art.ºs 593.º, n.º 2, al. a) e 595.º, n.º 1, al. a), do NCPC de fls. (Ref.ª 3168945), que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta, declarando-se o tribunal judicial de Fafe materialmente incompetente para conhecer o litígio emergente dos autos supra à margem identificados, absolvendo as Rés da instância;
II – O art.º 211.º, n.º 1, da CRP, bem como os artigos 18.º, n.º 1, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), 26.º, n.º1 da sucedânea Lei 52/2008, de 28 de Agosto (vigente em algumas comarcas) e 64.º do NCPC, estatuem o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais;
III – Nos termos do art.º 212.º, n.º 3, da CRP, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, o que é reafirmado pelo art.º 1.º, n.º 1, do ETAF, de acordo com o qual, “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, são os órgãos de competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”;
IV – A competência do tribunal deve ser apreciada “em função da acção proposta, tanto na vertente objectiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjectiva, respeitante às partes”;
V – Os AA., na petição inicial, configuraram a acção invocando os vários pressupostos do instituto da responsabilidade extracontratual e formulando um pedido de condenação das Rés na reparação dos danos ocasionados na sua habitação pelas obras que executaram, na qualidade de construtoras, na construção da auto-estrada A7/IC5/IC25 – Lanço Fafe IP-3, Sublanço Fafe-Basto ou no pagamento da correspondente indemnização;
VI – As Rés são pessoas colectivas de direito privado, têm como finalidade primordial o lucro e não são pessoas jurídicas de direito público, nem visam a prossecução de finalidades ou a realização de interesses públicos;
VII – Conforme alegado pelos AA. na petição inicial, a “dona da obra” e concessionária da dita auto-estrada é a A…, SA -, sendo esta a responsável pela concepção, projecção, construção, financiamento, exploração e conservação da referida auto-estrada, tendo subcontratado à Ré “N…” a projecção e construção dos referidos lanços e esta, por sua vez, celebrado com a Ré “M…” um contrato de subempreitada, entregando-lhe a execução integral da obra;
VIII - As Rés não são concessionárias, nem subconcessionárias da dita auto-estrada, não se vislumbra a fonte jurídica de onde lhe emanam poderes públicos ou administrativo e nem sequer a função de realizar interesses públicos gerais;
IX - São meras empreiteiras, agindo no quadro dos direitos e obrigações decorrentes do contrato e da lei (art.º 1207.º a 1230 do Código Civil);
X - Pelo que, ao executarem os contratos de empreitada e subempreitada, a sua conduta não se subordina a disposições ou princípios de direito administrativo, já que estes, originariamente, regem a actuação do Estado e se é certo que este, para realizar certas tarefas de interesse público, pode, no âmbito da respectiva concessão, delegá-los em concessionário, ou, este, ainda, subconcessioná-los, não resulta dos autos, nem parece razoável, que eles se transmitam numa cadeia que, desvanecendo-se de qualquer interesse público, poderia comportar ainda mais elos até aos simples empreiteiros, executantes da obra;
XI - A acção intentada pelos AA. não se enquadra, por isso, na norma do art.º 4.°, n.º 1, al, i) do ETAF, nem em nenhuma outra que atribua competência a uma jurisdição específica, pelo que é residualmente competente pela sua apreciação e julgamento o Tribunal Comum;
XII – Devendo o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a competência material do tribunal judicial de Fafe.”
Não houve contra alegações.
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II – Fundamentação
O objecto do recurso afere-se do conteúdo das conclusões de alegação formuladas pela recorrente (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º - A, do Código de Processo Civil, redacção do DL 303/2007). Isso significa que a sua apreciação deve centrar-se nas questões de direito nele sintetizadas e que, in casu, se restringe à excepção dilatória da incompetência material do tribunal recorrido.
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O tribunal a quo motivou do seguinte modo a sua decisão:
“ Por despacho de fls. 478 foram as partes convidadas a pronunciar-se sobre a eventual verificação da excepção de incompetência material deste Tribunal para conhecer do presente litígio.
Os autores vieram pronunciar-se nos termos que melhor constam do seu requerimento de fls. 484 e ss. no qual pugnam pela não verificação da mencionada excepção, referindo, em síntese, que o caso não se inclui no disposto no art. 4º, nº1, i) do ETAF em virtude de, nos termos de contrato de concessão, ser aplicável o regime geral de responsabilidade civil e não o regime específico de responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Por seu turno, a chamada …Companhia de Seguros, S. A. veio defender a verificação da excepção por entender o oposto conforme resulta do requerimento junto a fls. 489 e ss.
Apreciando e decidindo.
Para se determinar a competência material do Tribunal é necessário antes de mais saber qual a causa de pedir considerando que os Tribunais judiciais comuns têm competência meramente residual nos termos do art. 64º do Código de Processo Civil.
No caso apreço, verifica-se que os autores intentaram contra as rés a presente acção peticionando a condenação destas a procederem à reparação dos danos ocasionados na sua habitação pelas obras de construção de auto-estrada ou em alternativa a condenação no pagamento da indemnização correspondente à reparação.
De tal relato resulta que os actos de construção de uma infra-estrutura terão de ser havidos como actos de administração ou gestão pública porque cometidos no uso de um poder público e porque através dos mesmos se prosseguem interesses públicos – construção de vias de comunicação - ainda que praticados por entidades particulares.
Decorrendo os alegados danos sofridos pelos autores da realização dos aludidos actos de administração ou gestão pública tem de se concluir que se aplica o regime geral da responsabilidade do Estado e demais entes públicos nos termos do art. 1º, nº5 da Lei nº67/2007, de 31/12, não afastando a aplicação de tal regime o contrato de concessão que apenas estatui os termos em que se efectiva a responsabilidade civil.
De acordo com o disposto no art. 4º, nº1, i) do ETAF os tribunais da jurisdição administrativa são competentes para a apreciação de litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Sendo esse o caso dos autos, conclui-se não ser este o Tribunal materialmente competente face ao disposto no art. 64º do Código de Processo Civil mas antes os Tribunais administrativos e fiscais (neste sentido vejam-se os Acs. do TRP de 13/06/2013, p. 1399/12.1TBAMT.P1 e do Tribunal de Conflitos de 05/03/2013, p. 09/12, disponíveis in http://www.dgsi.pt)”.
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O julgamento dos litígios sobre responsabilidade civil extracontratual é atribuído à jurisdição administrativa (i) quando o agente seja uma pessoa colectiva de direito público (art. 4º, al. g) do ETAF); (ii) quando seja órgão ou agente ou servidor público (al. h) do ETAF); ou, (iii) nos casos em seja um sujeito de direito privado lhe “seja aplicável o regime específico da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos” (al. i) do ETAF).
Vem da petição inicial que, com a aprovação pelo Ex.mo Senhor Secretário de Estado das Obras Públicas, no exercício de poderes delegados pelo Ex.mo Senhor Ministro das Obras Publicas, Transportes e Habitação, conferidos pelo Despacho n.º 12 403/2002 (2.ª Série), de 30 de Maio, publicado na 2.ª Série do DR, n.º 125, de 31 de Maio de 2002, deu-se início ao processo com vista à construção da Auto-Estrada A7/IC5/IC25, Lanço Fafe/IP3 – Sublanço Fafe/Basto, inserido na “Concessão Norte”, nos termos da alínea c), do n.º 1, da Base II, das Bases de Concessão, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 248-A/99, de 6 de Julho de 1999, bem como a alínea c), do art.º 51, do referido contrato de concessão, cuja minuta foi aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 67-A/99, de 6 de Julho.
Mais se alega que o referido contrato de concessão foi celebrado entre as E…, SA, enquanto representante do Estado Português pelo serviço público de planeamento, gestão, desenvolvimento, fiscalização e execução da política de infra-estruturas rodoviárias definidas no Plano Rodoviário Nacional e a concessionária A…, SA, que assim passou a assumir o papel de “dono da obra”, sendo a responsável pela concepção, projecção, construção, financiamento, exploração e conservação da referida auto-estrada, denominada A7/IC5/IC25 – Lanço Fafe-IP3, Sublanço Fafe-Basto, tendo sido publicadas as bases da concessão pelo Decreto-Lei n.º 248-A/99, de 6 de Julho.
Ainda que, por sua vez, para a execução da referida obra, a referida A…, SA constituiu um agrupamento complementar de empresas, a aqui 1.ª Ré N…, com a qual sub-contratou a projecção e construção dos lanços de Auto-Estrada objecto do Contrato de Concessão.
E, finalmente, que a 1.ª Ré celebrou com a 2.ª Ré M…, S.A, um contrato de subempreitada, entregando a esta a execução integral da obra de construção da referida A7/IC5/IC25.
Aqui chegados, e sabendo nós que é com base na forma como o autor configura a acção – pedido e causa de pedir – que se afere do tribunal materialmente competente para dela conhecer (cfr. acórdão desta Relação de 26.09.2013, processo n.º 1265/12.0TBVCT-A.G1, dgsi.pt), se o contrato de concessão é celebrado entre as E…, SA, enquanto representante do Estado Português pelo serviço público de planeamento, gestão, desenvolvimento, fiscalização e execução da política de infra-estruturas rodoviárias definidas no Plano Rodoviário Nacional e a A…, SA, que assim passou a assumir o papel de “dono da obra”, não se vê como possam as Rés - apenas empreiteira e subempreiteira – estar no exercício de prerrogativas do poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
As Rés não são donas da obra. Foram apenas contratadas para a execução da obra, sendo a 1.ª Ré N… directamente pela A…, e a 2.ª Ré M…, S.A, através de um contrato de subempreitada celebrado com a 1.ª Ré.
As Rés foram apenas contratadas para realizar uma obra.
A presente acção foi intentada contra pessoas de direito privado, pelo que só está em causa, para efeitos de jurisdição administrativa, o disposto no art.º 4.º, al. i), do ETAF, ou seja, se lhes for “aplicável o regime específico da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos”.
O art.º 1.º, n.º 5, da Lei n.º 67/2007, de 31.12, que aprova o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, prevê que as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Como tem sido decidido pelo Tribunal de Conflitos, o que distingue o contrato administrativo do contrato de direito privado é, justamente, a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às finalidades de interesse público que esse ente prossiga, bem como as marcas de “administratividade” e os traços reveladores de uma “ambiência de direito público” existentes nas relações que neles se estabelecem, e ainda, segundo Maria João Estorninho, o critério para a delimitação da competência dos Tribunais administrativos parece passar a ser, nesta matéria da actividade contratual (…), o da sujeição a normas de direito público: ou relativas à própria execução do contrato ou relativas aos procedimentos pré-contratuais, caso em que (…) essa sujeição a normas procedimentais jurídico-públicas acaba por contagiar todo o regime jurídico aplicável aos contratos, nomeadamente para efeitos de contencioso administrativo.” – citados em Acórdão da Relação do Porto, de 30.05.2013, processo n.º 1385/12.1TBVRL.P1.
Por conseguinte, tudo visto, sendo as Rés empreiteira e subempreiteira e estando apenas obrigadas à construção de uma obra, não se vê como se possa a elas estender as marcas da administratividade ou os traços reveladores de uma ambiência de direito público. As demandadas não são concessionárias.
Os contratos de empreitada e de subempreitada que outorgaram não estão sujeitos a normas de direito público, nem a normas procedimentais jurídico-públicas.
No presente caso, discute-se a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito privado, fundada em contrato de empreitada e de subempreitada que não foram feitos ao abrigo de qualquer prerrogativa de autoridade, nem sob a invocação de normas ou princípios de direito administrativo (cfr acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 09/12, citado na decisão recorrida).
E isto porque o exercício de prerrogativas do poder público esgota-se na concessionária, não se estende às empreiteiras e subempreiteiras que são contratadas para a execução da obra.
E assim procede a apelação.
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III – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, julga-se improcedente a excepção dilatória (oficiosamente conhecida) e, consequentemente, declara-se competente, em razão da matéria, o tribunal a quo, devendo os autos neste prosseguir, em conformidade, a sua normal tramitação.
Sem custas.
Guimarães, 16 de Janeiro de 2014
Paulo Barreto
Filipe Caroço
António Santos