Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4520/07.8TBBRG
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: JUÍZO DE VALOR
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Buscar saber se “o réu sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas na quantidade em que o fez, o poderá influenciar negativamente na sua condução”, e se “um homem médio diligente e cuidadoso, que não tivesse ingerido bebidas alcoólicas, teria tido um comportamento diferente que impediria a verificação do acidente”, não se resolve numa questão de facto, mas sim numa questão jurídico-conclusiva.
II - Como tal, tendo tais questões sido levadas à base instrutória e sido objecto de resposta, consideram-se não escritas as respostas.
III - Na vigência do art. 19º c) do DL nº 522/85, o direito de regresso da seguradora pressupõe a prova, a fazer pela seguradora, de que o álcool esteve na causa ou foi concausa do sinistro.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO
“A… - Companhia de Seguros, S.A”, instaurou a presente acção com processo ordinário contra Manuel… , pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de €30.125,42, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo pagamento.
Para tanto alega que: celebrou com o réu um contrato de seguro de responsabilidade civil através do qual lhe transmitiu a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação do seu motociclo com a matrícula 95-90-FP; ocorreu um acidente de viação envolvendo este motociclo e um outro; tal acidente deveu-se a culpa do segurado que realizou manobra de mudança de direcção proibida; o réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida por lei, o que influenciou negativamente a sua condução, sendo causa do acidente; como consequência do mesmo, foram causados danos a terceiros que a autora indemnizou, pelo que lhe assiste direito de regresso relativamente ás quantias que pagou em virtude do acidente.
O réu contestou, apresentando versão do acidente de onde conclui não ter tido responsabilidade na sua verificação, negando também que a taxa de alcoolemia que apresentava tenha influído negativamente na sua condução.
Proferido despacho saneador tabelar, foram organizadas a matéria de facto assente e a base instrutória que não mereceram reclamação.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.
Após decisão que incidiu sobre a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, condenando o réu a pagar à autora a quantia de três mil e quinze euros e três cêntimos, acrescida de juros à taxa de 4%, contados desde a citação até efectivo pagamento.
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da sentença, que foi recebido, apresentando alegações que concluiu do seguinte modo:
1. A Apelante considera que a matéria de facto foi mal decidida pelo Tribunal a quo porquanto, a prova produzida em audiência, designadamente o depoimento de Maria…, Anselmo… e Alberto… , gravado em CD, conforme actas da audiência de julgamento de 15/01 e 6/02/2009, não contrariados por qualquer outra prova, impunham que o tribunal a quo considerasse provados na íntegra os quesitos 9.°, 10.º, 12.º a 16.º da base instrutória.
2. A testemunha Maria… , gestora do processo de sinistro, que acompanhou o processo "desde o início até aos pagamentos finais do processo", confirmou os factos alegados, conforme se verifica do seu depoimento gravado em CD e parcialmente transcrito.
3. A testemunha Anselmo… fez alguns contactos com os sinistrados Vítor… e Sandra… , conforme resulta do depoimento gravado em CD e também parcialmente transcrito, também confirmou alguns dos factos alegados.
4. Por outro lado, resulta do próprio auto de ocorrência que o condutor do motociclo, Vítor… , e a ocupante, Sandra… , sofreram lesões em consequência do acidente dos autos.
5. Nestes termos, solicita-se ao Tribunal ad quem que, ao abrigo dos poderes que processualmente lhe são atribuídos, reaprecie a prova gravada e altere a matéria de facto conforme supra requerido, considerando provados na íntegra os factos constantes nos artigos 9.º, 10.º, 12.° a 16.° da base instrutória.
6. Mesmo que se entenda não ser de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que não se concede, entende a Apelante que devia o Tribunal a quo ter considerado totalmente procedente a acção sub júdice, condenando o réu no pedido.
7.Ficou provado nestes autos que a Autora despendeu a quantia de € 30.125,42 em consequência do acidente dos autos, que o réu foi o responsável pelo acidente dos autos, que conduzia sob o efeito do álcool e o nexo de causalidade entre tal condução e o acidente.
8. Ficaram, pois, demonstrados os pressupostos de que dependia a procedência do direito de regresso da Autora, nos termos do disposto no art. 19.°, alínea c) do D.L. 522/85, de 31/12.
9. Para se eximir à condenação e pagamento das quantias despendidas e reclamadas pela Autora, o réu teria que alegar — e provar — que a Autora pagou mal ou pagou a mais, como factos impeditivos, extintivos ou modificativos do direito invocado (cfr. art. 342.°, n.° 2, do COdigo Civil), o que não logrou fazer.
10. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto no art. 19.°, alínea c) do D.L. 522/85, de 31/12 e art. 342.º, n.° 2, do Código Civil.

Também o réu interpôs recurso de apelação, que foi recebido, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1. Da prova produzida e assente não resulta que a condução sob a influência do álcool foi a causa adequada do acidente dos autos.
2. Não basta ao desiderato prendido pela Autora o facto do Réu conduzir com uma TAS de 0,66 g/I.
3. A Autora não alegou nem provou que o álcool diminuiu as capacidades de condução do Réu.
4. Não provou igualmente que foi o grau de álcool no sangue que determinou a falta de sensibilidade e reflexos que o levaram a fazer a manobra dada como provada nos autos.
5. Não é líquido que foi o grau de alcoolemia que determinou o eclodir do sinistro e que apesar do réu ser portador do referido grau de alcoolemia na altura do acidente não está excluído que este não possa ter ocorrido exclusivamente por outra causa que não o excesso de álcool, como por exemplo, por imperícia do condutor ou dos condutores que consubstancia também uma forma de culpa.
6. O concreto grau de álcool no sangue pode não ter constituído em si mesmo causa ou concausa adequada ao acidente.
7. Acresce que ficou provado que o réu até já conduzia há 10 km, sem acidentes.
8. Perante a factualidade apurada sempre seria de concluir haver concorrência de culpas na produção do acidente ao contrário do que concluiu o tribunal a quo,
9. De facto, foi apurado que foi o motociclo BT que embateu no motociclo conduzido pelo Réu e que vinha a uma velocidade superior a 50 km/h, quando a permitida para o local é de apenas 50 km/h;
10. Facto que igualmente levou à ocorrência do acidente e contribuiu para os concretos danos provocados.
11. Se o réu praticou uma contra ordenação estradal que faz presumir a sua culpa, conforme é concluído na sentença sob censura, igualmente praticou uma contra-ordenação estradal o condutor do motociclo BT ao circular a velocidade acima da permitida para o local.
12.É lícito presumir que se o condutor do motociclo BT circulasse à velocidade permitida, teria tempo de se desviar do motociclo conduzido pelo réu no qual foi embater.
13.Alem disso a extensão dos danos seriam inferiores aos verificados.
14.O grau de álcool que o Réu era portador (0,66 g/l) não era significativo.
15.O tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação das normas jurídicas em causa, nomeadamente, da aliena c) do artigo 19° do D.L. no 522/85, de 31 de Dezembro, porquanto os factos provados não permitem a subsunção àquele preceito legal.
16.A interpretação feita pelo tribunal a quo vai contra o estabelecido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 6/2002 do STJ, publicado na 1ª Serie do DR de 18,07, porquanto não basta a prova da violação de regras estradais mas igualmente a prova da causalidade adequada entre o acidente e a condução sob a influência do álcool.
17.O tribunal a quo vai de uma presunção de culpa do réu no acidente, por ter violado regras estradais, para desde logo, considerar preenchido os pressupostos do direito de regresso a favor da Autora, previsto no artigo 19° do D.L. n.° 522/85, de 31.12.
18.Desta feita violou este mesmo artigo 19° alínea c) do D.L. n.° 522/85, de 31.12, pois não devia funcionar o direito de regresso a favor da Companhia de Seguros, mas o Réu ser absolvido do pedido formulado pela Autora.
19. Considerando V. Exas. que não pode o Réu ser absolvido pelos motivos supra alegados, sempre o deveria ser face a matéria de facto que foi mal decidida pelo Tribunal a quo quanto aos quesitos 20° a 22° da Base Instrutória.
20. De facto, estes quesitos de 20° a 22° da B.I. foram dados por provados quando o não deveriam face a prova produzida em audiência de julgamento e dado a natureza conclusiva e hipotética dos mesmos.
21.Assim, designadamente o depoimento da testemunha Mário… , médico, que sustentou e fundamentou a resposta positiva a esta mesma matéria pelo tribunal a quo, esclareceu que em termos abstractos, a taxa de álcool, é susceptível a alterar os reflexos do condutor.
22. Não esclarece a situação em concreto do Réu.
23.Acresce que referiu que a alteração dos reflexos varia de pessoa para pessoa, nomeadamente do seu estado físico e do ter ou não ingerido comida.
24. No entanto, a matéria dos artigos 20° a 22° não questiona a questão dos reflexos do condutor sob a influência do álcool.
25. A esta matéria foram ainda indicadas as testemunhas António… , agente da PSP, que nada sabe da matéria, e
26. Arnaldo… que declarou que não percebeu qualquer alteração no comportamento do Réu.
27. Disse ainda que o Réu é pessoa saudável e que não notou qualquer alteração dos reflexos do Réu na sua condução.
28. Assim, entende o recorrente que a prova produzida impunha que o tribunal a que considera-se não provado os quesitos 20° a 22° da Base Instrutória.
29. Pelo que, se solicita ao tribunal ad quem que reaprecie a prova gravada supra indicada e altere a matéria de facto, considerando não provado os quesitos de 20° a 22° da Base Instrutória.
30. Fazendo-o, deve ser o réu absolvido também por esse motivo, faltando em absoluto o nexo de causalidade adequada entre a ingestão de álcool e o acidente, que igualmente impede o accionamento do direito de regresso estabelecido no artigo 19° alínea c) do D.L, n.° 522/85, de 31 de Dezembro.
31. Dos depoimentos das testemunhas, Hélder… , José… , Arnaldo… e Parcídio… acima transcrito, resultou que o motociclo BT circulava a par de outro motociclo antes de embater no motociclo conduzido pelo Réu.
32. Da mesma feita, tal facto igualmente resulta do auto de notícia junto como documento n ° 3 à petição inicial apresentada pela Autora.
33. A circulação a par dos motociclos constitui uma violação do artigo 90° alínea e) do Código da Estrada.
34. Da conjugação deste facto como o excesso de velocidade do motociclo BT é licito presumir que o condutor do motociclo BT contribuiu total ou concomitantemente para o acidente de viação.
35.E a culpa do Réu deve ser atenuada ou mesmo excluída.
36. Este facto não foi alegado pelo Réu, mas constitui facto instrumental que indirectamente interessa a solução do pleito.
37.Ao abrigo do principio do dispositivo consagrado nos artigos 664° e 264.° do CPC, o tribunal a quo, oficiosamente, podia e devia ampliar a base instrutória, nos termos do artigo 650° n.° 1 alinea f) do CPC.
38. Não o tendo feito, o tribunal a quo violou o principio do dispositivo e o principio da verdade material, violando os supra citados artigos 664° e 264°, ambos do CPC.
39. O tribunal ad quem ao abrigo dos poderes que lhe são atribuídos, nomeadamente pelo artigo 712° do CPC, tem poderes para reapreciar esta prova e ampliar a matéria de facto com este novo facto, o que se requer.
40.E desta feita igualmente concluir pela absolvição do Réu.

Remetidos os autos a esta instância, foi proferido acórdão que viria a ser anulado, por se ter verificado nulidade processual, decorrente de notificação irregular à autora, das alegações de recurso do réu.
Repetida tal notificação de forma regular, veio a autora apresentar contra alegações, pugnando pela improcedência do recurso do réu.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
Objecto dos recursos
Considerando que:
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º nºs 3 e 4 e 690 nº 1 do Código de Processo Civil);
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
As questões a decidir são as seguintes:
I. Se deve ser alterada a matéria de facto nos termos pretendidos por cada um dos apelantes;
II. Verificação dos pressupostos necessários á procedência do direito de regresso invocado pela Autora.
III. Concorrência de culpas de ambos os intervenientes no acidente;
IV. Violação do princípio do dispositivo.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Os factos provados que fundamentaram a sentença recorrida são os seguintes:
1. A autora exerce a indústria de seguros em vários ramos, tendo, no exercício da sua actividade, celebrado com Manuel… , um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n° 90.00951774, que transmitiu para si a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação, do motociclo com a matrícula 95-90-FP.
2. No dia 27 de Maio de 2001, pelas 0,50 horas, ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo motociclo de matrícula 95-90-FP, conduzido pelo réu, de sua propriedade, de marca Kawazaki, modelo ZXR 750, com a cilindrada de 749 cm3 e com o peso de 234 Kg e o motociclo com a matrícula 13-28-BT, pertencente a Paulino… , conduzido por Vítor… , transportando a passageira Sandra… .
3. O acidente ocorreu na EN 101, perto da rotunda de Infias, caracterizando-se o local do acidente como uma recta com boa visibilidade, apresentando uma faixa de rodagem de sentido unico, com 3,2 metros de largura, sendo que o pavimento se encontrava em bom estado de conservação, havendo boas condições atmosféricas.
4. Os dois condutores seguiam na mesma faixa de rodagem, no sentido Palmeira/Braga, circulando o motociclo de matrícula BT à retaguarda do motociclo conduzido pelo réu, sendo que um pouco mais a frente desse motociclo circulavam outros motociclos.
5. Poucos metros antes do local do acidente, existe um entroncamento com uma saída para a esquerda para Chaves, tendo o réu seguido em frente e, posteriormente, se encostado a direita, entre os dois separadores, por forma a iniciar uma manobra de inversão de marcha.
6. O motociclo de matricula BT embateu com a roda da frente na lateral esquerda/centro do veiculo conduzido pelo ora réu.
7. Pelo menos um dos motociclos que seguia à frente do réu era conduzido por amigo dele e que, como ele/réu provinha de uma concentração motard e dirigindo-se para o mesmo destino, tendo esse motociclo que vinha frente virado na saída descrita em 5).
8. Depois de ter efectuado a manobra referida em 5), o réu, repentinamente, começou a inverter o seu sentido de marcha, atravessando-se na trajectória do motociclo de matricula BT, o qual não teve tempo de travar, atenta a rapidez da manobra efectuada pelo réu.
9. Do acidente descrito resultou perda total do veículo de matrícula 13-28-BT, o qual valia 2.992,79, quantia esta que foi paga pela autora ao proprietário do BT.
10. A autora pagou a quantia de €517,59 à passageira do BT Sandra… , a título de perda, por parte desta, de umas calcas de ganga, um par de botas de cano alto, um capacete e um relógio de pulso.
11. A autora pagou a Sandra… a quantia de €591,9, a título de esta ter sofrido fractura de três dentes, traumatismo no coxis, traumatismo no 5º dedo direito, hematomas e escoriações diversas.
12. O condutor do BT e a referida passageira deram entrada no Hospital de S. Marcos, tendo a autora pago em honorários médicos a quantia de €23,14.
13. O condutor do BT instaurou acção declarativa de condenação contra a aqui autora, que correu termos neste Tribunal, sob o n° 1208/04.5TBBRG, tendo sido elaborado termo de transacção entre a autora e aquele condutor, devidamente homologado por sentença, pelo qual a autora se comprometeu a pagar àquele condutor a quantia de €26.000, o que efectivamente cumpriu.
14. O réu conduzia o seu motociclo com uma taxa de álcool no sangue de 0,66 g/1.
15. No local onde o réu efectuou a manobra acima descrita existia uma linha longitudinal contínua.
16. O réu sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas na quantidade em que o fez poderia influenciar negativamente a sua condução, o que realmente sucedeu.
17.Um homem médio diligente e cuidadoso, que não tivesse ingerido bebidas alcoólicas, teria tido um comportamento diferente que impediria a verificação do acidente.
18. O réu vinha a conduzir o seu motociclo há, pelo menos, cerca de 10 Km desde a última paragem na freguesia de Prado, Concelho de Braga.
19. O réu iniciou a manobra de inversão de marcha, durante a qual foi embatido pelo BT, que vinha a uma velocidade superior a 50 Km/h, sendo a velocidade permitida para o local a de apenas 50 Km/h.
20. O réu nasceu em 15.01.63.

O DIREITO
Alteração da matéria de facto nos termos pretendidos pela Autora
Nada impede que este tribunal reaprecia a decisão da primeira instância que incidiu sobre a matéria de facto tal como solicitado por ambos os recorrentes, uma vez que estão reunidos os pressupostos a que aludem os artºs 712º nº 1 al a) e 690-A do CPC, na versão aplicável aos autos.
Discorda a autora das respostas que foram dadas aos itens 9º, 10º, 12º a 16º da base instrutória.
(…)

Alteração da matéria de facto nos termos pretendidos pelo réu.
Discorda o réu da resposta dada aos itens 20º, 21º e 22º da base instrutória
O teor de tais itens e respectivas respostas, têm o seguinte teor:
Item 20º : “O réu sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas na quantidade em que o fez, o poderá influenciar negativamente na sua condução?
Respondeu-se: “Provado”.
Item 21º: “O que realmente sucedeu?”
Respondeu-se : “Provado”.
Item 22º: “Um homem médio diligente e cuidadoso, que não tivesse ingerido bebidas alcoólicas, teria tido um comportamento diferente que impediria a verificação do acidente?”
Respondeu-se: “Provado”.

Para sustentar a sua discordância argumenta em primeiro lugar o réu que estes “quesitos” são conclusivos e que, por isso, não deveriam merecer uma resposta positiva e lata, tal como sucedeu.
Particularmente no que concerne ao “quesito” 22º, entende que o mesmo descreve um comportamento hipotético que não deveria ser objecto de resposta positiva, já que através dos presentes autos buscam-se comportamentos concretos ocorridos e não suposições.
Mais acrescenta que nenhuma prova foi feita que permita dar os aludidos factos como provados, designadamente através dos depoimentos das testemunhas inquiridas sobre esta matéria, António…, Mário… , Arnaldo… , Parcídio… e António… .

Para fundamentar a resposta de provado aos aludidos quesitos escreveu o Mmº Juiz a quo na motivação da decisão de facto:
“A existência, no local, de linha contínua encontra-se traduzida no auto de ocorrência, que igualmente revela a taxa de álcool com que seguia o réu, taxa esta que reportada às regras da experiência comum e ás declarações de Mário… – médico – permitiram extrair as consequências no caso concreto para a condução exercida pelo réu, não sendo de olvidar que uma taxa superior à permitida por lei diminui, ainda que eventualmente em grau diferente de pessoa para pessoa, os reflexos e contribui para uma maior desinibição e desatenção aos riscos.”

Importa analisar, em primeiro lugar, se efectivamente o teor dos aludidos itens devia constar da base instrutória e se, consequentemente, as respostas que aos mesmos foram dadas podem ser consideradas por este tribunal.
Como resulta do disposto no art.º 511º do CPC, o juiz deve organizar a base instrutória procedendo à selecção da matéria de facto controvertida relevante para a decisão da causa.
A questão de saber o que constitui matéria de facto que pode ser objecto de quesitação nem sempre se afigura linear.
Como refere Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, 1950, Vol. III, pgs 207 e ss. é questão de facto determinar o que aconteceu.

Os “quesitos” devem assim ser redigidos de modo a que contenham apenas factos materiais, isto é, acontecimentos, ocorrências da vida real, fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente actos ou factos dos homens”.
No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos) — neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, pp. 180/181, e Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268.
Não deve pois incluir-se na base instrutória matéria de direito, isto é noções, conceitos ou fórmulas jurídicas de que a lei faça uso. Assim como não devem da mesma constar juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios ou valoração de factos, relativamente aos quais não pode incidir a instrução da causa. “O tribunal… há-de ser perguntado sobre factos simples e não sobre factos complexos, sobre factos puramente materiais e não sobre factos jurídicos, sobre meras ocorrências concretas e não sobre juízos de valor, induções, ou conclusões a extrair dessas ocorrências. A. dos Reis, obra citada.
Se as respostas do tribunal de primeira instância ao que é questionada na base instrutória contiverem matéria de direito, juízos de valor, ou conclusões, nada impede que, em sede de recurso, tais resposta se dêem como não escritas ou eliminadas, pois os tribunais superiores têm competência para distinguir matéria de facto da de direito, ou factos de conclusões ou juízos de valor. CFR Ac. do STJ de 23/11/1994, BMJ, 441/183.
Trata-se de situação prevista no artº 646º nº 4 no que respeita ás respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito, que se “têm por não escritas”. Tem-se entendido que às conclusões de direito “são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos…” Cfr Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, 2ª edição, Volume 2º, pag. 637 e Ac. do STJ de 23/09/2009, in www.dgsi.pt., de modo que, também as respostas que contenham tais conclusões ou juízos, se devem igualmente ter como não escritas.

No caso das respostas á matéria da Base instrutória em análise, é nosso entendimento que a resposta dada ao item 22º não configura seguramente matéria de facto no sentido supra explicitado.
Desde logo ali se refere o “homem médio diligente e cuidadoso”. Trata-se obviamente de um conceito de natureza jurídica, que se equivale ao conceito de “bom pai de família”. A resposta em causa não se refere a uma ocorrência da vida real, ainda que hipotética, ou a um comportamento de uma concreta pessoa. Ficciona o comportamento de um homem médio que não tem existência senão enquanto conceito, daí extraindo uma dedução, a saber, a não verificação do acidente.
Pelo exposto e não integrando matéria de facto, deve eliminar-se a resposta ao item 22º da base instrutória.

Quanto aos itens 20º e 21º da BI, que se deram como provados, concordamos com o réu apelante quando refere que têm natureza conclusiva.
Não se tratam de factos simples mas antes complexos, que em princípio não deviam ser “quesitados”.
Admitimos como possível que se tenham em conta factos conclusivos, mas apenas quando os mesmos resultem de operações lógicas sobre outros factos naturalísticos ou simples. Ou seja, esses "factos conclusivos" devem estar num acordo lógico com outros factos simples.
Não é o que sucede no caso em apreço. Quando se questiona se o réu sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas na quantidade em que o fez, o poderia influenciar negativamente na sua condução, o que efectivamente sucedeu, ficamos sem saber em que se traduziu essa influência “negativa”. Não se alegou nem se provou qualquer facto concreto de onde se possa concluir que o réu, por causa da taxa de alcoolemia que apresentava, ficou por exemplo, com a acuidade visual e os reflexos diminuídos, ou afectado em qualquer outra capacidade concreta, que tenha interferido no exercício da condução.
Assim sendo, a entender-se que devem também considerar-se não escritas as respostas que contêm conclusões de facto, apenas se poderia dar como provado no que concerne aos ditos itens da BI, que o réu ingeriu bebidas alcoólicas.
Mas, mesmo que assim não se entenda, analisada a prova produzida, concluímos que a mesma é insuficiente para se retirar a dita conclusão de facto.
No fundo, o que está em causa é saber se a taxa de alcoolemia que o réu apresentava, está relacionada com a verificação do acidente.
Sabemos que relação causal entre o excesso de álcool no sangue e o acidente não se demonstra de forma directa, mas por presunções a partir de um conjunto de circunstâncias concretas.
A taxa de alcoolemia com que o réu conduzia a sua viatura, 0,66 gramas por litro de sangue, excede, é certo, o limite permitido por lei, igual ou superior a 0,50g/l. Contudo, também não assume grandeza tal que permita concluir inequivocamente e sem mais que, em face das regras da experiência comum, afectou concretamente o exercício da condução por parte do réu, sendo causal do acidente em causa nos autos.
Vejamos então se, da restante prova produzida, designadamente dos depoimentos das testemunhas devidamente registado, que depuseram sobre este factualidade, podemos retirar alguma conclusão.
(…)
Do exposto resulta que a prova produzida se afigura insuficiente para que se conclua que a taxa de alcoolemia que o réu apresentava influenciou, de algum modo, a sua condução. Não se provaram (nem se alegaram) quaisquer outras circunstâncias concretas de onde se possa retirar tal conclusão. Acresce que, a taxa de alcoolemia em causa, de 0,66g/l, por si só, ou conjugada com as próprias circunstâncias do acidente, não permitem presumir com segurança que o evento lesivo foi determinado, total ou parcialmente, pela ingestão de álcool.
Assim e pelo exposto, deve ser alterada a resposta aos quesitos 20º e 21º (que será uma resposta conjunta) nos seguintes termos:
Quesitos 20º e 21º: Provado apenas que o réu ingeriu bebidas alcoólicas.
Procede pois na medida supra exposta a impugnação da matéria de facto pretendida pela ré.

Em face da alteração da resposta aos itens 20º e 21º da BI e da eliminação da resposta ao item 22º da BI, a matéria de facto provada passa a ser a seguinte:
1. A autora exerce a indústria de seguros em vários ramos, tendo, no exercício da sua actividade, celebrado com Manuel… , um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n° 90.00951774, que transmitiu para si a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação, do motociclo com a matrícula 95-90-FP.
2. No dia 27 de Maio de 2001, pelas 0,50 horas, ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo motociclo de matrícula 95-90-FP, conduzido pelo réu, de sua propriedade, de marca Kawazaki, modelo ZXR 750, com a cilindrada de 749 cm3 e com o peso de 234 Kg e o motociclo com a matrícula 13-28-BT, pertencente a Paulino… , conduzido por Vítor… , transportando a passageira Sandra… .
3. O acidente ocorreu na EN 101, perto da rotunda de Infias, caracterizando-se o local do acidente como uma recta com boa visibilidade, apresentando uma faixa de rodagem de sentido unto, com 3,2 metros de largura, sendo que o pavimento se encontrava em bom estado de conservação, havendo boas condições atmosféricas.
4. Os dois condutores seguiam na mesma faixa de rodagem, no sentido Palmeira/Braga, circulando o motociclo de matrícula BT a retaguarda do motociclo conduzido pelo réu, sendo que um pouco mais a frente desse motociclo circulavam outros motociclos.
5. Poucos metros antes do local do acidente, existe um entroncamento com uma saída para a esquerda para Chaves, tendo o réu seguido em frente e, posteriormente, se encostado a direita, entre os dois separadores, por forma a iniciar uma manobra de inversão de marcha.
6. O motociclo de matricula BT embateu com a roda da frente na lateral esquerda/centro do veiculo conduzido pelo ora réu.
7. Pelo menos um dos motociclos que seguia à frente do réu era conduzido por amigo dele e que, como ele/réu provinha de uma concentração motard e dirigindo-se para o mesmo destino, tendo esse motociclo que vinha frente virado na saída descrita em 5).
8. Depois de ter efectuado a manobra referida em 5), o réu, repentinamente, começou a inverter o seu sentido de marcha, atravessando-se na trajectória do motociclo de matricula BT, o qual não teve tempo de travar, atenta a rapidez da manobra efectuada pelo réu.
9. Do acidente descrito resultou perda total do veículo de matrícula
13-28-BT, o qual valia 2.992,79, quantia esta que foi paga pela autora ao proprietário do BT.
10. A autora pagou a quantia de €517,59 à passageira do BT Sandra… , a título de perda, por parte desta, de umas calcas de ganga, um par de botas de cano alto, um capacete e um relógio de pulso.
11. A autora pagou a Sandra… a quantia de €591,9, a título de esta ter sofrido fractura de três dentes, traumatismo no coxis, traumatismo no 50 dedo direito, hematomas e escoriações diversas.
12. O condutor do BT e a referida passageira deram entrada no Hospital de S. Marcos, tendo a autora pago em honorários médicos a quantia de €23,14.
13. O condutor do BT instaurou acção declarativa de condenação contra a aqui autora, que correu termos neste Tribunal, sob o n° 1208/04.5TBBRG, tendo sido elaborado termo de transacção entre a autora e aquele condutor, devidamente homologado por sentença, pelo qual a autora se comprometeu a pagar àquele condutor a quantia de €26.000, o que efectivamente cumpriu.
14. O réu conduzia o seu motociclo com uma taxa de álcool no sangue de 0,66 g/1.
15. No local onde o réu efectuou a manobra acima descrita existia uma linha longitudinal contínua.
16. O réu ingeriu bebidas alcoólicas.
17. O réu vinha a conduzir o seu motociclo há, pelo menos, cerca de 10 Km desde a última paragem na freguesia de Prado, Concelho de Braga.
18. O réu iniciou a manobra de inversão de marcha, durante a qual foi embatido pelo BT, que vinha a uma velocidade superior a 50 Km/h, sendo a velocidade permitida para o local a de apenas 50 Km/h.
19. O réu nasceu em 15.01.63.

II - Dos pressupostos necessários á procedência do direito de regresso invocado pela Autora.
Cumpre, agora, averiguar se, perante os factos tidos como assentes nos autos, pode concluir-se que assiste à seguradora direito de regresso contra o réu, ao abrigo do disposto no artigo 19º, alínea c), do Dec.lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, segundo o qual "satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso... contra o condutor, se este... tiver agido sob a influência do álcool".
É facto constitutivo do direito de regresso exercido na presente acção pela seguradora, o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, como, de resto, foi decidido no acórdão de uniformização de jurisprudência 6/2002, de 28.5.02.
Como se refere no Ac. do STJ de 9/10/2003 in www,dgsi.pt), a questão do direito de regresso nestes casos teve, por parte da nossa jurisprudência, três perspectivas diferentes de abordagem e de resposta, relativamente ao reembolso pela seguradora do que efectivamente pagou ao lesado pelo acidente rodoviário cujo risco assegurou.
Para alguns o reembolso seria sempre devido (efeito automático) porque traduz a censura ou juízo de desvalor da acção ou omissão do condutor, já que a seguradora não assume, pelo contrato de seguro, o risco da circulação da viatura em relação a condutores que provocam acidentes sob influência do álcool. Para outros o reembolso só teria lugar se a situação de alcoolemia fosse causa do acidente, embora tal relação se presuma, nos termos do artigo 1º, nº 2, da Lei nº 3/82, do artigo 351º (e 346º) do Código Civil e do artigo 81º, nº 2, do Código da Estrada. Finalmente, para outros, o reembolso só teria lugar se a seguradora fizesse a prova de que o sinistro apenas teve lugar por causa (normativamente adequada) da influência do álcool na produção do acidente.
Segundo a tese que fez vencimento no Acórdão Uniformizador é preciso fazer a prova da adequação causal. Não é suficiente que o condutor estivesse sob a influência do álcool, sendo necessário que esse facto tenha sido a causa ou pelo menos uma “concausa” do sinistro estradal.
Competia à Autora fazer prova dessa adequação causal, nos termos do disposto no art.º 342º nº 1 do CC.
O que é certo é que, da matéria de facto provada não resultou provado tal adequação ou nexo causal.
Assim sendo, não pode proceder o invocado direito de regresso da autora sobre o réu, que deve ser absolvido do pedido.
Deve pois ser revogada a sentença recorrida em conformidade, sendo certo que, pelo exposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões objecto do recurso.

III DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta secção cível em:
Julgar improcedente a apelação da autora e procedente a apelação do réu;
Revogar em conformidade a sentença recorrida, julgando improcedente a presente acção e, consequentemente, absolve-se o réu Manuel… do pedido que contra ele foi formulado pela autora “A… , SA”.

Custas pela autora apelante, tendo em conta o seu decaimento no recurso.
Notifique.
Guimarães, 22 de Setembro de 2011
Isabel Rocha Amílcar Andrade
José Rainho