Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4508/08.1TBBCL.G1
Relator: AMÍLCAR ANDRADE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - As indemnizações previstas na Portaria nº 377/2008 são apenas aplicáveis à regularização extrajudicial de sinistros, não vinculando os tribunais.
II – O chamado dano biológico traduz-se na ofensa psico-somática da pessoa, podendo dar causa tanto a prejuízos de conteúdo patrimonial como não patrimonial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


S… intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra A… Companhia de Seguros, SA -, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 50.383,95, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação.
Fundamentou a sua pretensão no facto de, em virtude de um acidente, ocorrido no dia 04.09.06, – acidente em que foi interveniente o ciclomotor 3-BCL-60-95, pertencente a F… e por ele conduzido, e que teve a sua origem no facto do BCL, que circulava, a uma velocidade não inferior a 90 km/h, encontrando-se a velocidade no local limitada a 50 km/h, pela via de Cintura Interna de Arcozelo, Barcelos, no sentido Rotunda da Bolacha/Central de Camionagem, pela via direita, da faixa de rodagem direita, atento o referido sentido, ter desviado a sua trajectória para a direita, saído da faixa de rodagem por onde seguia e invadido a berma direita, indo colher o autor, que se encontrava na berma direita da faixa de rodagem, atento o sentido Rotunda da Bolacha/Central de Camionagem, a ser autuado por um elemento da patrulha da GNR – ter sofrido ferimentos, que lhe provocaram e continuam a provocar dores, impossibilitando-o de trabalhar até 06.05.07, o que lhe acarretou um prejuízo de € 6.785,82, tendo, no entanto, já recebido, a esse título, no âmbito do acidente de trabalho, a quantia de € 4.043,16, deixando-lhe sequelas que lhe determinaram uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 10%, sendo que, segundo alega, trabalhava como motorista, auferindo a remuneração mensal de € 589,90, pelo que, tendo ficado com a sua capacidade futura de ganho reduzida, pede lhe seja arbitrada uma indemnização no montante de € 35.000, ao qual deverá ser deduzido a quantia de € 7.623,71, que, a esse título, recebeu no âmbito do acidente de trabalho, acrescendo que em virtude do embate a roupa que trazia vestida, no valor global de € 105, ficou inutilizada e gastou em honorários médicos a quantia de € 160.
A ré contestou, aceitando as circunstâncias de facto em que ocorreu o acidente e impugnando, parcialmente, a factualidade alegada quanto aos danos, argumentando que o autor, em sede de acidente de trabalho, foi já indemnizado pelos danos patrimoniais que efectivamente sofreu.
Seleccionou-se a factualidade assente e elaborou-se a base instrutória, que não foi objecto de reclamação.
Efectuado o julgamento foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente e, em consequência, condeno a ré A… Companhia de Seguros SA, a pagar ao autor:
- a quantia de € 25.000, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da presente decisão até integral pagamento;
- a quantia de € 2.902,66 (= 2.742,66+160), a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da citação até integral pagamento;
- absolvo a ré do demais peticionado pelo autor”.
Inconformada com esta decisão dela apelou a demandada A…, S.A., que, na sua alegação de recurso, concluiu:
I - A sentença de que se recorre condena a R. a proceder ao pagamento ao A. da quantia de 25.000€ a titulo de danos morais, sendo 10.000€ a titulo da danos não patrimoniais propriamente ditos e considerando a R. que a avaliação do quantum indemnizatório efectuado pelo Tribunal se mostra equilibrada e adequada, nada tendo, portanto, a alegar quanto a esta matéria.
II - A sentença recorrida considera ainda que “ para além dos danos acima descritos o A. sofreu limitações funcionais no seu corpo – ( …) e que, por via delas, ficou afectado de uma incapacidade permanente geral (IPG) de 10 pontos”, classificando-se o dano biológico sofrido como dano não patrimonial, tanto mais que , no caso concreto, “… a factualidade que ficou demonstrada leva a excluir que a incapacidade permanente geral de 10 pontos de que o A. ficou afectado tenha repercussões funcionais que impliquem uma perda de capacidade de ganho – ainda que meramente previsível”
III – Por esta IPG, assim considerada como dano moral, o Tribunal a quo atribui ao A., a título de dano não patrimonial, a quantia de 15.000€.
IV – Sendo o sinistro de que versam os autos simultaneamente de viação e de trabalho, no âmbito do processo em virtude do acidente de trabalho a R. pagou já ao A. o montante correspondente à IPG de que ficou a padecer, obviamente qualificando-se esta como dano patrimonial e não como dano moral.
V - Qualificando este dano como dano moral entende o Meritíssimo juiz a quo que as duas indemnizações, pese embora referentes ao mesmo dano, são cumuláveis.
VI – É com esta decisão que não pode conformar-se a R.: seja com o montante considerado a nível de IPG, que se afigura manifestamente exagerado, seja com a duplicação evidente de indemnizações, uma vez que a R. pagou ao A., a titulo de IPG, a quantia de 7.623,25€. (al. O) da matéria assente).
VII - Considera a R. que a indemnização atribuída ao A. pelos danos morais resultantes da IPG é, seja qual for o ângulo pela qual a mesma seja encarada, manifestamente exagerada.
VIII – Na senda da nova legislação referente ao dano corporal, vg, Portaria 377/2008 de 26/5 alterada pela Portaria 679/2009 de 25/6, e se é certo que se vem entendendo – entendimento que a A. não subscreve nem sufraga, note-se - que os valores de tais portarias não são vinculativos para os Tribunais, estes não deixam de ser um registo referencial dos valores de indemnização que o legislador entendeu actualmente adequados a ressarcir os lesados por acidente de viação, o que não sucedeu no presente caso, em que se faz tábua rasa de tais indicações.
IX – E, pese embora sendo o acidente anterior à entrada em vigor desta legislação, não pode a mesma deixar de ser uma referência para as sentenças e processos que se encontram a correr e que chegam ao seu término já na vigência de tais diplomas legislativos.
X – Ora, a decisão contida na sentença ora recorrida, no que à IPG diz respeito, viola claramente os princípios legislativos vigentes, sejam os contidos no art. 566 nº 2 do CC – à luz do qual a mesma tem que ser entendida – sejam os preceitos que emanam da novel legislação sobre o dano corporal já citada, e que se não pode ser aplicada como legislação, tout court, sempre pode servir de princípio orientador da decisão.
XI – Sendo esta legislação posterior ao acidente e podendo a mesma ser vista como de aplicar, unicamente, em sede extra judicial, também é certo que a mesma corresponde a uma tendência e a um registo referencial, apontando a mesma, no caso concreto, para valores que se situam entre os 707,94 e os € 807,76.
XII - Tendo em vista estas considerações, a sentença recorrida aumenta em mais de 20 vezes (!!!) a quantia que hoje caberia ao lesado em sede de direito civil, se este não tivesse sido indemnizado (que foi…) pelo acidente de trabalho.
XIII - Para proceder à cumulação das duas indemnizações, o Meritíssimo juiz do Tribunal a quo vem considerar que o dano biológico é um dano de natureza NÃO PATRIMONIAL, o que se não aceita, pois o dano biológico tem de ser considerado, como aliás sempre foi, um dano patrimonial, diferente e autónomo dos danos morais.
XIV – Este tem vindo a ser o entendimento maioritário, sendo concretamente entendimento da Relação de Guimarães, de acordo com o acórdão supra citado, e sendo, obviamente, tomando em consideração o sentido da Incapacidade – como potencial afectadora da capacidade de ganho – o entendimento mais curial e que faz mais sentido.
XV – Assim sendo, não pode o A. cumular a indemnização que recebeu do Tribunal de trabalho com aquela que vier a receber em sede civilística, pelo que ao computo que vier a ser encontrado pelo Tribunal ad quem sempre se terá que subtrair o montante recebido a titulo de indemnização pelo dano patrimonial da IPP em sede laboral.
XVI – Classificado o dano em causa como dano patrimonial, o critério de determinação do mesmo há-de ser, afastada a portaria acima citada por ser posterior ao acidente, o das tabelas financeiras, que de uma ou de outra maneira nos dão a ideia do ressarcimento do lesado, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data, se não fossem os danos, podendo tal critério ser temperado com a equidade.
XVII – Seja qual for o critério adoptado, tendo em linha de conta as várias opções possíveis, sempre a sentença recorrida vem a condenar a R. em dobro e em triplo dos valores por estas encontradas, com a agravante de que não subtrai a estes valores a quantia já recebida pelo lesado no Tribunal de trabalho - OU SEJA, EXCEDENDO EM MUITO O CRITÉRIO DO ART. 566 Nº 2.
XVIII - PECA, PORTANTO POR EXCESSO A VERBA ATRIBUIDA AO LESADO PELA IPG COM QUE FICOU EM VIRTUDE DO SINISTRO DOS AUTOS, CONSIDERANDO ESTA À LUZ DOS CRITÉRIOS OBJECTIVOS DOS DANOS PATRIMONIAIS.
XIX - Tendo em conta o melhor cenário para o A. – o que nos é apontado pela fórmula de cálculo do Acórdão do STJ de 5/5/1994 in CJ, STJ, II, pág.86, este deveria ser indemnizado na quantia de 8821,26€ - 7.212,25, ou seja, 1609,01€, seja a titulo de dano patrimonial, o que se advoga, seja a titulo de dano não patrimonial.
XX - Afigura-se à R. que, tendo em consideração que o A. foi já indemnizado em sede de direito de trabalho; que o Tribunal já o indemnizou na quantia de 10.000€ de danos morais, pelos padecimentos sofridos; e que, portanto, os danos em causa, pela sua natureza, tem de ser vistos de forma complementar, o resultado, com base na equidade, tomando os mesmos como danos morais não pode ser muito diferente, pois, recorde-se, o A. encontra-se efectivamente indemnizado nos termos da teoria da diferença!
XXI - E assim, nesta sede, é adequada a quantia de 1600€ como indemnização dos danos sofridos pelo A. – a condenação da R. nesta quantia, repete-se, no presente contexto, satisfaz adequadamente as previsões dos nºs 2 e 3 do art. 566 do CPC… Ficando, aliás e mesmo assim, muito além ( no dobro!) da quantia prevista pela legislação actualmente em vigor para o mesmo dano, como acima se demonstrou.
XXII – Condenando a R. no pagamento de 15000€ a titulo de danos morais sofridos pelo A. com a IPG de 10%, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 566, nº 2 e 3 do CCC., entre outras, tendo o Juíz do Tribunal a quo feito uma incorrecta subsunção do Direito aos factos dados como provados, pelo que deve a sentença recorrida ser substituída por outra que condene e absolva a R.
nos precisos termos aqui alegados.
NESTES TERMOS DEVE O PRESENTE RECURSO PROCEDER, REVOGANDO-SE, NOS PONTOS ORA ALEGADOS, A DOUTA SENTENÇA EM CRISE ASSIM SE FARÁ COMO SEMPRE INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!

Contra-alegando, o Recorrido pugna pela confirmação do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação de facto
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:
a) Cerca das 11 horas e 30 minutos, do dia 4 de Setembro de 2006, ocorreu um embate na via rápida da Cintura Interna de Arcozelo, do concelho de Barcelos (alínea A) dos factos assentes);
b ) Nesse acidente, em que o demandante foi atropelado, interveio o ciclomotor 3 BCL-60-95, conduzido pelo seu proprietário F… , e o veículo ligeiro de passageiros, matrícula nº 05-85-MU, propriedade do Estado Português, pertencente a uma patrulha da G.N.R. (alínea E), 1ª parte, dos factos assentes);
c) O veículo ligeiro de passageiros, matrícula nº 05-85-UM, encontrava-se no local a proceder a uma acção de fiscalização de trânsito (alínea E), 2ª parte, dos factos assentes);
d) O veículo ligeiro de passageiros, matrícula nº 05-85-UM, encontrava-se estacionado na berma direita, totalmente fora da faixa de rodagem, atento sentido “Rotunda da Bolacha” – Central de Camionagem (alínea E), parte final, do factos assentes);
e) Na traseira desse veículo e na referida berma encontrava-se igualmente o demandante a ser autuado por um elemento da patrulha da GNR (alínea F) dos factos assentes);
f) O ciclomotor 3 BCL-60-95 circulava pela via de Cintura Interna, no mesmo sentido de trânsito, ou seja, “Rotunda da Bolacha” - Central de Camionagem, pela via direita, da faixa de rodagem direita, atento o referido sentido (alínea G) dos factos assentes);
g) O ciclomotor 3 BCL-60-95 circulava a uma velocidade não inferior a 90 km/h (alínea H) dos factos assentes);
h) O ciclomotor 3 BCL-60-95 desviou a trajectória do seu veículo para a direita, saiu da faixa de rodagem por onde seguia e invadiu a berma direita onde foi colher o demandante projectando-o numa distância de 10 metros, indo em seguida embater lateralmente no carro da patrulha da GNR e a imobilizar-se a cerca de 15 metros para além do local de embate (alínea H) dos factos assentes);
i) No local a velocidade está limitada a 50 km/h (alínea H) dos factos assentes);
j) O local do acidente configura uma recta, com ligeiro declive ascendente, possuindo uma via de tráfego em cada sentido, dividida por um separador central (alínea B) dos factos assentes);
l) Cada via de tráfego tem duas faixas da rodagem em cada sentido, com uma largura de 7 metros, sendo delimitada por uma berma com 3,4 metros de largura (alínea C) dos factos assentes);
m) O tempo estava bom e o piso seco (alínea D) dos factos assentes);
n) Em consequência do acidente o autor sofreu traumatismo do tornozelo direito com fractura do pilão tibial direito (resposta ao número 2 da base instrutória);
o) Do local do acidente o autor foi transportado para o Hospital de Barcelos onde foi submetido a estudo radiológico e a tratamento conservador, tendo permanecido em observação até ao dia seguinte (alínea J1) dos factos assentes);
p) Daí foi transferido para os serviços clínicos da companhia de seguros Império- Bonança, onde foi submetido a intervenção cirúrgica, uma vez que o acidente foi concomitantemente acidente de trabalho (alínea J2) dos factos assentes);
q) Após a alta hospitalar o autor recolheu a casa tendo ficado em repouso (reposta ao número 3 da base instrutória);
r) Após a alta hospitalar o autor iniciou a partir de data não concretamente apurada e durante um período de tempo não concretamente determinado tratamento fisiátrico (resposta aos números 4 e 6 da base instrutória);
s) Foi obtida alta definitiva, por consolidação médico-legal das suas lesões, em 06 de Maio de 2007 (alínea M2) dos factos assentes);
t) Apesar dos tratamentos a que se submeteu o autor ficou a padecer de:
- limitação da mobilidade (rigidez) articular tibiotársica direita na flexão dorsal entre 0º e 10º.
- limitação da mobilidade (rigidez) articular tibiotársica direita na flexão plantar entre 0º e 20º e
- sequelas de entorse tibiotársica por insuficiência do ligamento deltóide e persistência de dores (alínea P1) dos factos assentes);
u) As dores físicas provocadas pelo acidente, pelos ferimentos, pelo internamento hospitalar, pelos tratamentos a que foi submetido, conferem-lhe um quantum doloris quantificável em 4 numa escala crescente de 1 a 7 (alínea J3) dos factos assentes);
v) As sequelas de que o autor ficou a padecer continuam a causar-lhe dores físicas, transtornos e mal-estar, sobretudo, na locomoção, ao subir e descer escadas e ao utilizar o pedal do acelerador do veículo que conduz (resposta ao número 8 da base instrutória);
x) Nas ocasiões em que sente dores o autor toma medicação para atenuar e controlar essas dores (resposta ao número 9 da base instrutória);
z) O demandante nasceu em 24 de Dezembro de 1955 (alínea J) dos factos assentes);
aa) O autor despendeu em honorários médicos a quantia de € 160 (resposta ao número 13 da base instrutória);
bb) Por causa do acidente, esteve totalmente incapaz para o trabalho desde 05/09/2006 até 02/04/2007 e com incapacidade temporária parcial de 03/04/2007 a 06/05/2007, altura em que obteve alta médica (alínea M) dos factos assentes);
cc) A ITP referida em bb) foi de 20% (alínea M1) dos factos assentes);
dd) A título de perda de salários e subsídio de férias e Natal já foi paga ao demandante no âmbito do acidente de trabalho a quantia de € 4.043,16 (alínea N) dos factos assentes);
ee) Mercê dos factos referidos em bb) e cc), o demandante deixou de ganhar em salários e subsídio de férias e Natal a quantia de € 6.785,82, tendo já recebido, a esse título, a quantia referida em dd) (alínea N1) dos factos assentes);
ff) As sequelas de que o autor ficou a padecer determinaram-lhe uma incapacidade permanente geral (IPG) de 10 pontos, sendo que, tendo o acidente em causa sido concomitantemente de trabalho, no processo que correu termos, sob o nº 409/07.9 TTBCL, no Tribunal de Trabalho de Barcelos, foi fixada ao autor, com base em tais sequelas, uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 8,74% (resposta aos números 7 e 10 da base instrutória);
gg) Na data do acidente, o demandante trabalhava para a empresa G…, Lda., com a categoria de motorista, auferindo nessa actividade a remuneração mensal de € 589,90, acrescida de igual quantia de subsídio de férias e Natal e do subsídio de alimentação no montante de € 111,98 (alínea L) dos factos assentes);
hh) A título de redução da sua capacidade futura de ganho já foi paga ao demandante no âmbito do acidente de trabalho a quantia de € 7.623,71 (alínea O) dos factos assentes);
ii) À data do embate referido em a) a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação com a circulação do ciclomotor 3-BCL-60-95 encontrava-se transferida para a ré, mediante acordo de seguro titulado pela apólice nº 45/00314912/07 (alínea Q) dos factos assentes e documento de fls. 49).

Do Recurso
São as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvo as questões que são de conhecimento oficioso e aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigos 660º, n.ºs 1 e 2, 514º, 684º, n.º 3, 685º-A e 713º, n.º 2 CPC).
Donde, visto o teor das alegações da recorrente, as questões que consubstanciam o objecto do recurso são as seguintes:
1. Saber se é aplicável aos autos a Portaria nº 377/2008, de 26-05.
2. saber se o dano biológico deve ser qualificado como dano não patrimonial.

1ª questão
Vejamos antes de mais, se ao caso dos autos devem ser aplicados os critérios e valores previstos na Portaria n.º 377/2008, de 26-05.
E a resposta terá de ser negativa, por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, porque o acidente em causa ocorreu antes da sua entrada em vigor – cfr. art.12º, nº 1 do CC.
Acresce que na fixação de indemnização em consequência de acidente de viação no âmbito de acção judicial, o tribunal não está vinculado às normas constantes dos art°s 31° e ss do Dec. Lei 291/2007 de 21 de Agosto e da Portaria 377/2008 de 26 de Maio, apenas aplicáveis à regularização extrajudicial de sinistros e que impõem às empresas de seguros regras e procedimentos, designadamente na avaliação dos danos dos lesados, de modo a permitir, de forma pronta e diligente, a assunção das suas responsabilidades e o pagamento das indemnizações.
Os valores indicados na Portaria n.° 679/2009, de 25 de Junho (que alterou a Portaria n.° 377/2008, de 26 de Maio), sobre a indemnização do dano corporal em caso de sinistralidade automóvel, não substituem os critérios legais previstos no Código Civil.
O preâmbulo da Portaria n° 377/2008, de 26-05, é claro, ao esclarecer que o mesmo não se propõe a fixação definitiva dos valores indemnizat6rios, mas "um conjunto de regras e princípios que permitam agilizar a apresentação de propostas razoáveis"; por isso é que o n° 2 do art. 1° da Portaria diz que "As disposições da presente portaria não afastam o direito a indemnização de outros danos, nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos".
Nesta linha de pensamento não pode a mesma ser uma referência para as sentenças e processos que se encontram a correr e que chegam ao seu término já na vigência de tais diplomas legislativos, como defende a recorrente, pelo que pretender a redução dos valores fixados à luz desta Portaria, careceria de respaldo legal.

2ª questão
A recorrente discorda da sentença recorrida, por considerar o valor indemnizatório de € 15.000,00, atribuído ao demandante a título de dano biológico, manifestamente excessivo e, por outro lado, discorda da classificação do dano biológico sofrido como dano não patrimonial. Entende a recorrente, que o dano biológico sofrido pelo demandante deve ser qualificado como um dano de natureza estritamente patrimonial.
Vejamos.

Conforme se provou, as sequelas de que o autor ficou a padecer determinaram-lhe uma incapacidade permanente geral (IPG) de 10 pontos, sendo que, tendo o acidente em causa sido concomitantemente de trabalho, no processo que correu termos, sob o nº 409/07.9 TTBCL, no Tribunal de Trabalho de Barcelos, foi fixada ao autor, com base em tais sequelas, uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 8,74%.
Por esta IPG, considerada pelo tribunal a quo como dano moral, foi atribuído ao A., a quantia de 15.000€.
O artº 562º do C C prevê que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, e o nº 1 do art. 564º do C C estipula que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como ainda “os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”.
O nº 2 deste preceito acrescenta, entre o mais, que o tribunal pode atender aos danos futuros desde que sejam previsíveis.
Integrado no dano futuro, contar-se-á, evidentemente, a frustração de ganhos que previsivelmente o lesado iria receber, em virtude do exercício de uma actividade profissional, mas para o qual se tornou total ou parcialmente incapaz.
O chamado dano biológico enquanto “dano à saúde (…) a separar da noção tradicional de dano moral”( cf. Sinde Monteiro in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, pag. 248-) aflorou em termos legislativos na Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, em cujo preâmbulo se diz que, “ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial, o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica ”. E o art. 3º al. b) do diploma considera indemnizável o dano biológico, resulte dele, ou não, perda da capacidade de ganho. A jurisprudência do Supremo Tribunal tem acolhido de modo muito relevante a noção de dano biológico, sem escamotear a dificuldade de o integrar nas clássicas categorias de dano patrimonial ou moral. A questão foi superiormente tratada no Acórdão de 27/10/2009 (Pº 560/09.0 YFLSB), cuja fundamentação transcrevemos:
“ Já o Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal, de 4 de Outubro de 2005 – 05 A2167, julgou no sentido de que “o dano biológico traduz-se na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.”
Certo que se trata de um dano (que na definição do Prof. A. Varela “é perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses [materiais, espirituais ou morais] que o direito viola ou a norma infringida visam tutelar.” – in “Das Obrigações em Geral”, I, 591, 7.ª ed.)
Mas há que proceder à integração do dano biológico, ou na categoria do dano patrimonial – como “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado.” – Prof. A. Varela, ob. cit.) abrangendo não só o dano emergente, como perda patrimonial, como o lucro frustrado, ou cessante –, ou na classe dos danos não patrimoniais (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestigio ou de reputação e que atingem bens como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, o bom nome, que não integram o património do lesado).
A maioria da jurisprudência, e certa doutrina, consideram o dano biológico como de cariz patrimonial. (cf., entre outros, o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009 e os Acórdãos de 4 de Outubro de 2007 – 07B2957, de 10 de Maio de 2008 – 08B1343, 10 de Julho de 2008 – 08B2101, e de 6 de Maio de 1999 – 99B222, e Prof. Sinde Monteiro, in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, 248).
Em abono deste entendimento refere-se que, mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua actividade profissional concreta - pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute.
Mas também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso como decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessáriamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”
Volvendo ao caso dos autos, temos que o Autor reclama uma indemnização no montante de € 35.000, por ter ficado com a sua capacidade futura de ganho reduzida.
Estamos aqui, sem sombra de dúvida, face a uma questão de ressarcibilidade dos danos futuros, determinando a lei - artigo 564º, n.º 2 do Código Civil - que, “na fixação da indemnização, pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior”, através de liquidação em execução de sentença.
O dano futuro previsível mais típico prende-se com os casos de perda ou diminuição da capacidade de trabalho e da perda ou diminuição da capacidade de ganho, perda esta caracterizada como efeito danoso, de natureza temporária ou definitiva, que resulta para o ofendido do facto de ter sofrido uma dada lesão, impeditiva da sua obtenção normal de determinados proventos certos, como paga do seu trabalho.
A incapacidade funcional constitui, desde modo, um dano patrimonial futuro, que os artigos 562º e 564º impõem se indemnize, independentemente da prova de um prejuízo pecuniário concreto dela resultante, não tendo o lesado, pois, sequer de alegar ou provar qualquer perda de rendimentos.
Basta a alegação dessa incapacidade para, uma vez demonstrada, servir de fundamento ao pedido de indemnização pelo dano patrimonial futuro, cujo valor, por ser indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do preceituado no artigo 566º, n.º 3 CC.
Pretendendo-se, como se pretende, uma indemnização em dinheiro, o critério da sua atribuição, tendo em conta o princípio que dimana do artº 562º CC deverá ser o que desde há muito foi jurisprudencialmente consagrado e que se exprime do seguinte modo:

A indemnização a pagar ao lesado deve, no que concerne aos danos futuros, «representar um capital que se extinga no fim da sua vida activa e seja susceptível de garantir durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho». Um tal critério cumpre, mas só parcialmente, o princípio geral válido em matéria de indemnizar: reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562º do Código Civil). Por isso, os seus resultados não podem ser aceites de forma abstracta e mecânica, devendo, antes, ser temperados por juízos de equidade (artigo 566º, n.º 3 CC). Isso implica que se entre em linha de conta com a idade da vítima ao tempo do acidente, o prazo de vida activa previsível, actividade profissional por esta desenvolvida, suas condições de saúde ao tempo do evento, rendimentos auferidos ao longo desta, os encargos, grau de incapacidade, entre outros elementos.

Relembrados estes princípios, retornemos à hipótese em análise.
Comprovam os autos que:
z) O demandante nasceu em 24 de Dezembro de 1955 (alínea J) dos factos assentes);
ff) As sequelas de que o autor ficou a padecer determinaram-lhe uma incapacidade permanente geral (IPG) de 10 pontos, sendo que, tendo o acidente em causa sido concomitantemente de trabalho, no processo que correu termos, sob o nº 409/07.9 TTBCL, no Tribunal de Trabalho de Barcelos, foi fixada ao autor, com base em tais sequelas, uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 8,74% (resposta aos números 7 e 10 da base instrutória);
gg) Na data do acidente, o demandante trabalhava para a empresa Granitos do Cávado Lda, com a categoria de motorista, auferindo nessa actividade a remuneração mensal de € 589,90, acrescida de igual quantia de subsídio de férias e Natal e do subsídio de alimentação no montante de € 111,98 (alínea L) dos factos assentes);
hh) A título de redução da sua capacidade futura de ganho já foi paga ao demandante no âmbito do acidente de trabalho a quantia de € 7.623,71 (alínea O) dos factos assentes);

Para a determinação do valor do dano decorrente da perda de capacidade aquisitiva, a jurisprudência tem usado, ao longo dos tempos de vários critérios ou fórmulas para o cálculo aproximado desse valor.
Um dos critérios usados, logo desde o início, foi o recurso puro e simples às tabelas ou regras financeiras usadas no foro laboral para a determinação de pensões de vida por incapacidades permanentes. Mas depressa este critério foi posto em causa, porque tais tabelas não são garantia segura da justa medida do ressarcimento, porquanto «na avaliação dos prejuízos verificados, o juiz tem de atender sempre à multiplicidade e à especificidade das circunstâncias que concorram no caso e que o tornarão sempre único, diferente», como se escreveu no Ac. do STJ, de 4/2/93 – CJ-ASTJ, ano I, tomo 1,129.
Mas tendo em conta que a quantia a atribuir ao lesado o há-de ressarcir, durante a sua vida laboralmente activa, da perda sofrida e mostrar-se esgotada no fim do período considerado, pode alcançar-se esse objectivo através da utilização da seguinte fórmula preconizada nos Acs. do STJ, de 4/2/93 e 5/5/94 (CJ – ASTJ. Ano I, tomo 1, 128; e Ano II, tomoII, 86), que servirá apenas como instrumento de trabalho, como bússola norteadora, no sentido de nos aproximar do cálculo do valor da indemnização a arbitrar, pois, como vimos, a lei apenas manda atender à equidade (e não à arbitrariedade):

C=

C – capital a depositar logo no 1º ano
P - prestação a pagar anualmente
i - taxa de juro.

Assim, considerando os 70 anos como o limite da vida activa, o que representa uma esperança de vida de 18 anos, contados desde a data da alta, tendo presente a taxa de 3% (as taxas de juro têm vindo a baixar, manifestando-se tendência para que essa baixa se acentue, no entanto, cremos não se justificar para já o uso de uma taxa inferior a esta, porque temos de trabalhar com verbas ilíquidas, abstraindo dos impostos que o lesado teria de pagar), a IPG de 10% de que o Autor ficou afectado e que à data do acidente o A. ganhava o salário mensal de 588,90€, ( o que, considerada a IPG de 10% nos dá o rendimento anual de 824,46€) , temos:

C = (0,702433061/ 0,051072991) x 824,46
C = 11.340,00 € (por arredondamento).
Logo 11.340,00€ seria o capital que durante 18 anos permitiria realizar a pensão anual de 824,46€, o correspondente à perda de vencimento sofrida pela vítima. Mas este montante apenas se poderá ter como referência.
Sendo, como dissemos, que é à luz da equidade que deve ser fixado o montante da indemnização a atribuir ao autor pelos danos futuros, afigura-se-nos ajustada a quantia de 12.000€, a esse título.

A este valor terá que se subtrair o montante já pago, a titulo de indemnização pelo dano patrimonial da IPP em sede laboral - quantia de € 7.623,71, pelo que o Autor terá a receber, a esse título, a importância de 4.376,29€.


Decisão
Pelo exposto, decide-se
Julgar parcialmente procedente a apelação.
Revogar parcialmente a sentença e, em consequência, decide-se condenar a Ré A… Companhia de Seguros SA -, a pagar ao Autor:
- a quantia de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da presente decisão até integral pagamento;
- a quantia de €7.278,95 ( 2.902,66+ 4.376,29), a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da citação até integral pagamento;
- absolve-se a Ré do demais peticionado pelo Autor.
Custas em ambas as instâncias, pelo autor e ré, na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao primeiro.

Guimarães, 12 de Julho de 2011
Amílcar Andrade
José Rainho
Carlos Guerra