Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
169/12.1TBVPA.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ESCRITURA
EFEITOS
PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 1ª CÍVEL
Sumário: I - A justificação notarial não é mais do que um expediente técnico simplificado destinado a obter uma titulação excepcional que sirva de base à efectivação do registo predial de um imóvel, não garantindo, com a necessária a realidade do direito invocado, não obstante a intervenção de três declarantes, sabida como é a pouca fiabilidade da prova testemunhal, sobretudo quando não submetida a qualquer contraditório (cfr. artigos 116º, nº 1, do Código do Registo Predial, 89º e 96º, nº 1, do Código de Notariado).
II - A escritura de justificação prova plenamente que o justificante declarou perante o notário o que consta do documento, nomeadamente que é o proprietário do prédio em causa por o ter adquirido por usucapião. Mas não constando do documento a quem pertenceu esse prédio, a mencionada escritura não prova plenamente que o mesmo tenha pertencido a determinada pessoa.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra BB e mulher CC, pedindo que:
- se declare e reconheça o direito de propriedade do autor sobre o prédio rústico denominado Cortinha de Baixo, sito em Balteiro-Salvador, melhor identificado nos artigos 1º e 2º da petição inicial;
- se declare e reconheça o direito de servidão sobre a água da nascente identificada nos artigos 9º e 10º da petição inicial a favor do prédio do autor e a onerar o prédio dos réus identificado nos artigos 3.º e 4.º, da mesma petição, nos períodos temporais identificados no artigo 25.º, a favor do prédio do autor;
- se declare e reconheça o direito de servidão de aqueduto identificada nos artigos 11.º, alínea a) e 38.º a 40.º, da petição inicial, a onerar o prédio dos réus, a favor do prédio do autor, sempre que se torne necessário inspeccioná-lo, limpá-lo, conservá-lo e repará-lo e também para acompanhamento da água;
- se declare e reconheça o direito de servidão de passagem a pé, pelo combro do rego ou aqueduto a nascente deste, ao longo de toda a sua extensão, limitada a inspeccionar, limpar, reparar e conservar o aqueduto supra referido e, bem assim, a poça e a mina, e a virar a água;
- sejam os réus condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que atentem contra os direitos do autor;
- sejam os réus condenados a pagar ao autor uma indemnização de valor não inferior a € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);
- sejam os réus condenados a pagar ao autor uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, por todos os prejuízos que resultem para o autor após a interposição da acção, da impossibilidade, causada pelos Réus, de utilização da água em toda a extensão do seu prédio;
- sejam os réus condenados a pagar ao autor a quantia diária de € 15,00, contados do trânsito em julgado da sentença, a título de sanção pecuniária compulsória.
Alegou para tanto, em síntese, que se acha inscrito a seu favor o direito de propriedade sobre o prédio rústico, composto de cultura arvense, denominado Cortinha de Baixo, sito em Balteiro-Salvador, inscrito na matriz sob o artigo 2851 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ribeira de Pena sob o nº 2318, da freguesia de Ribeira de Pena (Salvador), e aí registado a favor do autor pela inscrição Ap. 324 de 2011/07/01, sendo que este prédio e o prédio dos réus formaram um único prédio, o qual há mais de 20 anos foi atravessado por uma estrada municipal, tendo tal circunstância originado a sua divisão em duas fracções e a atribuição de dois artigos matriciais distintos, sendo que actualmente uma dessas fracções pertence ao autor e outra aos réus.
No prédio hoje pertencente aos réus existe uma poça em pedra onde nasce água subterrânea, de onde parte, há mais de 70 anos, um rego de condução de águas que segue a céu aberto, atravessando todo o primitivo prédio no sentido sul-norte e que foi mantido mesmo após esse prédio ter sido atravessado pela estrada, através da construção de um aqueduto subterrâneo à plataforma da via, formado por manilhas de cimento, sendo visíveis as embocaduras de ambos os lados da estrada.
Sucede que os réus impedem o autor de utilizar a água da nascente situada no prédio dos Réus que corre pelo rego supra referido, no período compreendido entre o São Miguel (29 de Setembro) e o São João (24 de Junho) – águas essas que vinha utilizando exclusivamente há mais de 25 anos de forma ininterrupta, à vista de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de ser seu exclusivo proprietário e de que não lesava direitos de terceiros -, o que fez com que os produtos hortícolas que o autor semeou e plantou na parte alta do seu prédio secassem, resultando para este um prejuízo não inferior a € 1.500,00.
Alegou, por último, que a delimitar o rego supra referido situado no terreno dos réus, existe um “combro” onde sempre foram depositados torrões resultantes da limpeza do rego, e por onde passavam os sucessivos proprietários de ambos os prédios, sendo que há mais de 25 anos que os sucessivos donos do prédio do autor passam, através desse combro do rego, viram a água à saída da poça situada no prédios dos réus, inspeccionam, reparam e limpam a poça e as minas, convencidos de que exercem um direito próprio, publicamente, de forma pacífica, sem oposição de ninguém e convencidos de que não lesam direitos de terceiro.
Os réus contestaram, impugnando parcialmente a factualidade alegada na petição inicial, concluindo pela total improcedência da acção e a sua absolvição de todos os pedidos formulados pelo autor.
Saneado, condensado e instruído o processo, foi, após julgamento, proferida sentença, que, na parcial procedência da acção, reconheceu o direito de propriedade do autor sobre o prédio rústico, composto de cultura arvense, denominado Cortinha de Baixo, sito em Balteiro-Salvador, inscrito na matriz sob o artigo 2851 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ribeira de Pena sob o nº 2318, da freguesia de Ribeira de Pena (Salvador), e aí registado a favor do autor pela inscrição Ap. 324 de 2011/07/01, absolvendo os réus dos demais pedidos formulados.
Inconformado com o assim decidido, interpôs o autor o presente recurso de apelação cuja motivação culminou com quarenta e cinco extensas conclusões que não satisfazem a enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o disposto no art. 639º, nº 1, do CPC, e, por isso, não serão aqui transcritas.
Das mesmas conclusões resulta que a questão essencial colocadas à apreciação deste Tribunal da Relação se consubstancia em saber se deve ser declarado e reconhecido o direito de servidão sobre toda a água de uma nascente existente no prédio dos réus, a favor do prédio do autor, no período compreendido entre 29 de Setembro e 24 de Junho.

Os réus contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), coloca como questão essencial a apreciar, saber se existe uma servidão sobre toda a água de uma nascente existente no prédio dos réus, a favor do prédio do autor, no período compreendido entre 29 de Setembro e 24 de Junho.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na sentença recorrida, depois de se responder aos artigos da base instrutória, foram dados como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrito na matriz predial da freguesia de Ribeira de Pena (Salvador), concelho de Ribeira de Pena, sob o artigo 2851º, um prédio rústico, composto de cultura arvense, denominado Cortinha de Baixo, sito em Balteiro - Salvador, com 3000 m2 de área, que confronta do norte com Augusto da Silva, nascente com ribeiro, sul com estrada municipal e poente com Manuel Gonçalves Amaro (A);
2. O prédio aludido em 1. encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ribeira de Pena, freguesia de Ribeira de Pena (Salvador), com a descrição n.º 2318/20021017, e aí inscrito, pela apresentação n.º 324 de 01-07-2011, em nome do Autor (B);
3. Inscrito na matriz predial da freguesia de Ribeira de Pena (Salvador) sob o artigo 2852º encontra-se um prédio rústico, sito em Balteiro, composto de cultura arvense, denominado Cortinha de Cima, com 4500 m2 de área, que confronta do norte com estrada municipal, nascente com ribeiro, do sul com Sérgio Manuel de Sousa e do poente com estrada velha e estrada nacional (C);
4. O prédio aludido em 3. encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ribeira de Pena, freguesia de Ribeira de Pena (Salvador) com o n.º 2062/20010116, e aí inscrito a favor dos RR. pela apresentação n.º 4553 de 2009/04/23 (D);
5. Há pelo menos 20 anos que no local referido em 1. foi aberta uma estrada municipal (E);
6. O prédio do Autor é constituído por duas partes desniveladas, separadas por um muro em pedra de suporte de terras, adiante identificadas por “parte alta”, situada a poente, e “parte baixa”, situada a Nascente (F);
7. No prédio referido em 3. existe, desde há mais de 50, 60 e 70 anos, na parte mais alta, junto à extremidade sul, uma poça para onde deitam duas minas, em pedra, abertas todas elas (poça e minas) por obra do homem (G);
8. Onde nasce (ali brota pela primeira vez no seu curso à superfície) água subterrânea com caudal estável e abundante (superior a 30 m3 dia) ao longo do ano, denominada “nascente da Cortinha de Cima” (H);
9. Dessa poça partem há mais de 50, 60 e 70 anos dois regos de condução de águas:
a) Um segue a céu aberto, atravessando todo o primitivo prédio no sentido sul – norte (atravessa o prédio dos RR. pelo seu interior e a parte alta do prédio do Autor junto à sua extremidade poente);
b) Outro segue cerca de 5 metros a céu aberto, a nascente do anterior (I);
10. Aquando do referido em 5., o curso do rego descrito em 9. a) foi mantido e assegurado através da construção de um aqueduto subterrâneo à plataforma da via, formado por manilhas de cimento, sendo perfeitamente visíveis as embocaduras de ambos os lados da estrada e a grade em ferro na embocadura de entrada da água colocada para impedir o entupimento do aqueduto (J);
11. Em 09/05/2000, DD e mulher EE outorgaram escritura pública denominada “Justificação e compra e venda”, na qual declararam, além do mais, que adquiriram o prédio identificado em 3. por usucapião, e declararam ainda vender o mesmo prédio a FF, que declarou aceitar a venda (K);
12. Na identificada escritura pública declararam os vendedores que procediam à venda daquele prédio “com as seguintes águas de rega segundo os usos e costumes:
- Do São João ao S. Miguel: da nascente da Cortinha de Cima, a cortar às zero horas de segunda-feira até às dezasseis horas do mesmo dia, de oito em oito dias;
- Da Fonte da Voz: pertence-lhe o primeiro domingo após o São João, a cortar ao meio-dia até ao pôr-do-sol e ao terceiro domingo, também após o São João, a cortar ao nascer do sol até ao meio-dia, segundo as andadas ou giro; do Ribeiro da Poça, desde o nascer do sol até ao meio dia, conforme a andada ou giro e - Da “mina” da Cortinha de Cima, pertencem-lhe, todo o ano, as águas de rega.» (L);
13. As águas da Fonte da Voz e do Ribeiro da Poça são águas que nascem fora do prédio primitivo pertencente a DD, sendo a água da “mina” da Cortinha de Cima uma água que nasce dentro dos limites daquele prédio, situando-se esta mina atualmente no prédio referido em 3., a várias dezenas de metros para noroeste da “nascente da Cortinha de Cima” (M);
14. Da descrição predial referida em 3. consta a inscrição, através da apresentação n.º 2 de 31-03-2004, em nome de GG, casado com HH, por motivo de “partilha judicial” (N);
15. GG e mulher, HH, em 20/04/2005, através de escritura pública assinada no Cartório Notarial de Esposende, declararam vender a II e mulher, JJ o prédio referido em 3. (O);
16. II e mulher JJ, em 23 de Abril de 2009, assinaram escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Francisca Maria Cerqueira da Silva Ribeiro Castro, intitulada de “compra e venda”, declarou vender a BB o prédio referido em 3. (P);
17. Em 10/12/2001, EE e DD, este representado pela esposa, por escritura pública outorgada no escritório notarial de Ribeira de Pena, intitulada “justificação e compra e venda” declararam que “dadas as enunciadas características de tal posse e durante mais de vinte anos, facultando-lhes a aquisição do direito de propriedade dos prédios, atrás identificados, por usucapião”, incluindo nesses prédios o identificado em 1. (Q);
18. Na escritura identificada em 17., os justificantes declararam vender o prédio referido em 1. a LL, casado com MM (R);
19. Na escritura pública referida em 17. declararam os vendedores que “o prédio rústico tem direito às seguintes águas:
a) Desde o S. João até ao S. Miguel e do nascente da Cortinha de Cima tem direito todos os domingos das vinte horas até às vinte e quatro horas;
b) Desde vinte e nove de setembro até vinte e quatro de junho e das águas da “Cortinha de baixo”, toda a água» (S);
20. O comprador que outorgou aquela escritura referida em 17. declarou que aceitava aquele contrato nos termos exarados (T);
21. Em 16/06/2011, os herdeiros de LL e mulher, mediante escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, intitulada “compra e venda”, declararam vender ao Autor e este comprar, o prédio identificado em 1. (U);
22. Na escritura referida em 21., consta, declarado pelos vendedores que “este prédio tem direito à água de consortes desde o São João ao São Miguel, que provém do nascente de água da Cortinha de Cima, todos os Domingos das vinte horas até às vinte e quatro horas; e ainda tem direito a toda a água que provém do nascente de água da Cortinha de Cima, do São Miguel ao São João, tudo conforme os usos e costumes, da referida localidade” (V);
23. Os RR. reconhecem ao Autor o direito de utilizar a água da nascente da Cortinha de Cima no seguinte período:
- Do São João ao São Miguel, ou seja, de 24 de junho a 29 de setembro, aos domingos, entre as 20h00 e as 24h00 (W);
24. Os RR., a partir do último São Miguel, impedem que a água atinja o prédio do Autor, designadamente a parte alta, e impedem-no de entrar no prédio referido em 3. Para encaminhar a água com vista à sua utilização para rega (X);
25. Os RR. têm dado o seguinte destino à água:
a) Ora a encaminham através de um outro rego que segue para nascente (rego por si pacificamente utilizado para regar o seu prédio entre o São João e o São Miguel, nas horas que lhes pertencem) até ao ribeiro;
b) Ora a encaminham até duas caixas de onde partem aquedutos subterrâneos para regar outros prédios em determinadas horas do São João ao São Miguel, dando-a aos donos desses prédios;
c) Ora a encaminham através do aqueduto subterrâneo para a parte baixa do prédio referido em 1., quando lhes apetece (Y);
26. Desde o São Miguel que não mais os RR. permitiram que a água corresse pelo rego a céu aberto que atravessa o prédio do Autor na extremidade poente, de onde é possível regar por gravidade quer a parte alta quer a parte baixa (Z);
27. Com data de 22 de Agosto de 2008 foi assinado um documento escrito, por NN, OO e PP e BB, do qual consta que «NN e OO declaram que vendem ao senhor PP as propriedades rústicas denominadas “Cortinha”, “As vinhas”, e Campo de Baixo, inscritos na matriz predial rústica sob os artigos n.º 4947, 4948 e 1672, pelo preço de 15 mil euros dando de sinal nesta data aos vendedores de 5 mil euros, sendo o restante pago no acto da escritura.
As referidas propriedades situam-se no lugar de Balteiro, freguesia de Salvador, do Concelho de Ribeira de Pena. Mais declaram que as referidas propriedades ficam com as águas segundo os usos e costumes conforme constam nas escrituras antigas» (AA);
28. A água em causa, subterrânea ao prédio dos RR., brota à superfície na poça existente próximo da estrema sul, sendo encaminhada até ao prédio referido em 1. (parte alta e parte baixa) pelo rego permanentemente aberto, com cerca de 0,50 m de largura (AB);
29. A delimitar o rego em causa, a nascente, existe um “combro” (montículo ou pequena elevação), onde sempre foram depositados os torrões resultantes da limpeza do mesmo (desde há alguns anos, o rego foi revestido com massa de cimento, acumulando menor quantidade de terra), combro esse por onde os sucessivos proprietários de ambos os prédios passavam até à poça para virar, seguir e acompanhar as águas e inspecionar, limpar, reparar e conservar o rego (AC);
30. O rego que atravessa o prédio referido em 3. junto à extremidade poente fá-lo ao longo de 95 metros de distância, atravessando seguidamente a estrada, com a largura aproximada de 5 metros, através do aqueduto em manilhas de cimento, e continuando através do prédio referido em 1., junto à extremidade poente da parte alta, por mais 45 metros, salientando-se que nos 45 metros de rego existentes no prédio referido em 1. sempre se abriram “tralhos”, ou seja, pequenas derivações para regar as culturas aí existentes (na parte alta e na parte baixa) e para lima da erva (AD);
31. Consta da escritura referida em 21., em epígrafe, o seguinte «Av. 1: A Requerimento do interessado, rectifico a presente escritura no sentido de que onde se lê que o prédio rústico objecto da mesma tem direito a “toda a água que provém do nascente de água da Cortinha de Baixo” deve ler-se “tem direito a toda a água que provém do nascente de água da Cortinha de Cima”, conforme requerimento apresentado em 07.10.2011 e que se arquiva (…)» (AE);
32. O rego referido em 9, b), prossegue o seu curso através de um aqueduto subterrâneo em pedra até atingir a parte baixa do prédio do Autor (5.º);
33. Devido ao referido em 24., as hortícolas que o Autor semeou e plantou na parte alta do prédio secaram (6.º);
34. Em virtude do referido em 33.º, o Autor sofreu prejuízo em montante não concretamente apurado (7.º).

O DIREITO
Questão prévia
Lendo as alegações e conclusões apresentada pelo autor, parece decorrer das mesmas que o recorrente pretende que este Tribunal da Relação proceda a uma reapreciação da matéria de facto[1].
Seja como for, para o recorrente poder obter a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, teria sempre que observar os ónus impostos pelo artigo 640º do CPC, o que de todo não se verifica no caso presente, pelo que fica desde logo arredada uma eventual alteração da matéria de facto.

Do direito do autor sobre a água da nascente existente no prédio dos réus
Segundo o recorrente, de acordo com o teor das escrituras juntas aos autos, DD e esposa haviam adquirido a Cortinha de Cima por doação verbal efectuada em 1954 pelo pai daquele e sogro desta, Manuel, e a Cortinha de Baixo por partilha verbal efectuada em 1964 por óbito deste último, pelo que, quando em 09.05.2000, o DD e a mulher justificaram a posse e venderam a Cortinha de Cima já eram donos, há muitos anos, da Cortinha de Baixo, apesar de só a terem justificado aquando da sua venda, em 10.12.2001, pelo que «não pode sentenciar-se que não resultou provado que ambos os prédios, Cortinha de Cima e Cortinha de Baixo, tivessem pertencido ao mesmo dono, in casu, ao DD e esposa, EE, porque dos documentos juntos aos autos, mormente das escrituras de justificação notarial outorgadas, cujo teor não foi posto em crise pelos réus, resulta que sim, que ambos os prédios pertenceram ao mesmo dono e pertenceram durante décadas até inícios do século XXI» (cfr. conclusões 5ª, 6ª e 7ª).
Vejamos.
Pela circunstância de em duas escrituras de justificação notarial do direito de propriedade através da usucapião constar que os prédios dos autos foram adquiridos por contrato verbal ao mesmo proprietário, não pode daí inferir-se que na realidade tais prédios pertenceram ao mesmo proprietário. Esta questão remete-nos assim, antes de mais, para o valor probatório da escritura de justificação notarial e do registo com base nela efectuado definitivamente.
Resulta do disposto no artigo 116º, nº 1, do Código do Registo Predial (C.R.P.) que o adquirente que não disponha de documento para provar o seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial, como foi o caso dos autos.
Tal justificação, como determina o artigo 89º do Código do Notariado (C.N.), consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de o comprovar pelos meios normais, sendo que, quando for alegada a usucapião, baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.
As declarações do justificante devem ser confirmadas por três declarantes/testemunhas (artigo 96º, nº 1, do C.N.).
Como observa Borges Araújo[2] «... na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo.
Partindo da ideia de que, respeitando este princípio se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer.
O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis».
É assim fácil concluir que a justificação notarial não passa de um expediente técnico simplificado destinado a obter uma titulação excepcional, para não dizer anormal (como refere o preâmbulo do D.L. 40603 de 18/5/56), que sirva de base à efectivação do registo.
Escreveu-se no Acórdão do STJ de 19.02.2013[3]:
«Assim sendo, é evidente que a escritura de justificação, assentando exclusivamente nas declarações do próprio interessado, sem qualquer controlo do notário ou de qualquer outra autoridade independente, não garante, com a necessária segurança, a realidade efectiva do direito afirmado, não obstante a intervenção dos três declarantes exigidos por lei, sabido como é a pouca fiabilidade da prova testemunhal, sobretudo quando não submetida, como é o caso, a qualquer contraditório.
Trata-se, todavia, de uma escritura pública, portanto de um documento autêntico, que, por isso há-de ter valor probatório igual à de qualquer outra escritura pública visto que a lei não faz qualquer distinção.
O que não poderá é atribuir-se-lhe valor probatório superior, não só pela aludida falta de segurança, como porque não existe preceito legal que tal determine, ou que estabeleça qualquer presunção legal a favor do declarante.
Consequentemente, como resulta do disposto no Art.º 371º n.º 1 do C.C., a escritura de justificação notarial (como qualquer outra escritura pública) apenas faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público (no caso, o notário), assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, mas não prova, porém, que sejam verdadeiras as afirmações do justificante perante o notário».
Significa isto que, no caso concreto, as escrituras de justificação de 09.05.2000 e de 10.12.2001, provam plenamente que os justificantes DD e esposa EE, declararam perante o notário o que consta do documento, ou seja, em resumo e no que aqui interessa, que eram os proprietários dos prédios dos autos por os terem adquirido por usucapião.
Mas, não constando do documento a quem pertenceram esses prédios, as mencionadas escrituras não provam plenamente que os mesmos tenham pertencido ao referido DD.
Com efeito, o que é relevante numa escritura de justificação do direito de propriedade por usucapião é que o justificante prove que está na posse do prédio há mais de 20 anos, sendo esse o fim da justificação e não apurar a quem pertenceu em tempos idos o prédio em causa.
Assim, no caso em apreço era necessário provar quando, como e por quem foi feita a separação dos prédios, o que naturalmente não pode ser provado por simples escritura de justificação notarial, sendo que tal prova não foi feita.
Na verdade, formularam-se na base instrutória os artigos 1º e 2º do seguinte teor:
- «Os prédios referidos em A) e C) formaram um único prédio?» (art. 1º).
- «Que pertenceu em meados do século XX a DD?» (art. 2º).
Ambos os artigos obtiveram a seguinte resposta: «Não provado».
As respostas negativas aos referidos artigos da base instrutória foram devidamente explicadas na motivação da decisão de facto, sendo certo, repete-se, que o recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto.
Assim, soçobrando logo o primeiro requisito exigido pela norma do artigo 1549º do Código Civil, não se pode concluir pela constituição de uma servidão de água por destinação do pai de família no prédio dos réus a favor do prédio do autor.
Improcedem, assim, as conclusões 3ª a 13ª.
Nas conclusões 14ª, 15ª e 16ª alega o recorrente a verificação dos outros requisitos previstos no citado artigo 1549º, como a existência de sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos os prédios, que revelam serventia de um para o outro e que no momento da separação não se declarou outra coisa no documento.
Tal alegação é irrelevante, uma vez que, como se viu, falta o requisito da existência de dois prédios do mesmo dono.
Ademais, os réus/recorridos aceitam e reconhecem que a Cortinha de Baixo, propriedade do autor/recorrente, tem direito à água em causa, no período compreendido entre 24 de Junho e 29 de Setembro, aos domingos, desde as 20:00 às 24:00 horas.
Donde, os sinais visíveis e permanentes existentes em ambos os prédios revelam que o autor tem direito à água em causa, mas apenas no referido período (cfr. ponto 23 do elenco dos factos provados).
Improcedem, assim, as conclusões 14ª, 15ª e 16ª.
Contrariamente ao que o recorrente verteu na conclusão 17ª, não está provado nos autos que em 06.05.2000, EE e DD também fossem proprietários da Cortinha de Baixo e muito menos que tivessem reservado a água existente na Cortinha de Cima para irrigar a Cortinha de Baixo.
O facto de na escritura pública de compra e venda da Cortinha de Cima outorgada no dia 06.05.2000 se ter exarado quais as águas que pertenciam a esse prédio e que os compradores poderiam utilizar, no período compreendido entre 24 de Junho e 29 de Setembro, deve-se seguramente ao facto de durante esse período a água em causa pertencer a vários consortes, o que se deduz do facto da Cortinha de Cima e da Cortinha de Baixo terem em conjunto 20 horas por semana, ou seja, 16 horas para a primeira e 4 horas para a segunda, ficando assim de fora o uso de mais 6 dias de água por semana.
Quanto ao restante período do ano, isto é, do dia 29 de Setembro a 24 de Junho, nada ficou a constar, nem tal era necessário, acrescentamos nós, porque a água faz parte integrante da Cortinha de Cima.
Destarte, improcedem as conclusões 17ª, 18ª, 19ª e 20ª.
Como resulta das resposta negativas aos artigos 8º a 18º da base instrutória, o autor não logrou provar que, no período compreendido entre 29 de Setembro (S. Miguel) e 24 de Junho (S. João), as águas da nascente da “Cortinha de Cima” fossem utilizadas para irrigar a Cortinha de Baixo, desde há mais de 20/25 anos, sem oposição de quem quer que seja, continuamente, convencido que exercia direito próprio, à vista de toda a gente.
Ora, a prova dessa factualidade era condição essencial e necessária para que se pudesse afirmar a constituição de uma servidão de água por usucapião a favor do prédio do autor, nos termos do artigo 1390º, nº 1, do Código Civil, com as especificidades do nº2 do mesmo preceito.
Improcede, assim, a conclusão 21ª.
A afirmação do recorrente na conclusão 22ª de que seria ilógico que os proprietários de ambos os prédios, no momento em que venderam o que se situava no plano superior, onde se situam a nascente e a mina, reservassem a totalidade da água de que podiam dispor para o prédio superior, “deixando à mercê da secura” o prédio situado na parte inferior, não faz o menor sentido, considerando o que se deixou dito a propósito das conclusões 17ª a 20ª.
Nas conclusões 23ª, 24º e 25ª, enumera o recorrente vários factos dados como provados na sentença, para dizer que não compreende como é possível considerar lícita e conforme ao direito a actuação dos réus a partir do S. Miguel de 2001 (conclusão 26ª); que quando os justificantes vendedores trataram de incluir na escritura da venda da Cortinha de Cima todas as águas que poderiam ser utilizadas nesse prédio é notório que quiseram deixar esclarecido que a aquela não beneficiava da possibilidade de utilização de quaisquer outras águas que não aquelas (conclusão 27ª); que por isso não se referiram aos demais consortes (conclusão 28ª); sendo assim evidente que a metodologia utilizada na escritura foi a de referir quais as águas que o comprador da Cortinha de Cima poderia utilizar (conclusão 29ª).
Esqueceu, porém o recorrente que pertencendo a água, durante o período compreendido entre 29 de Setembro e 24 de Junho, ao prédio dos réus, estes podem dar-lhe o destino que bem entenderem.
Ademais, como se pode ver das fotografias tiradas aquando da inspecção judicial ao local, nomeadamente a de fls. 108, e como resulta do ponto 25, alínea c) dos factos provados, o prédio do autor (Cortinha de Baixo) situa-se num plano inferior ao prédio dos recorridos (Cortinha de Cima), como é, aliás, reconhecido pelos recorrentes na conclusão 17ª, sendo que o ribeiro em causa margina o prédio do autor, no qual existe uma derivação para conduzir a água para este prédio.
Improcedendo deste modo as conclusões 23ª a 29ª.

Na escritura pública de 10.12.2001 referida no ponto 17 do elenco dos factos provados, declararam os vendedores que “o prédio rústico tem direito às seguintes águas:
a) Desde o S. João até ao S. Miguel e do nascente da Cortinha de Cima tem direito todos os domingos das vinte horas até às vinte e quatro horas;
b) Desde vinte e nove de Setembro até vinte e quatro de Junho e das águas da “Cortinha de baixo”, toda a água» [ponto 19 do elenco dos factos provados].
Quer isto dizer que quando o recorrente adquiriu a propriedade da Cortinha de Baixo ficou consignado que a este prédio pertenciam as águas acabadas de referir.
Não corresponde, por isso, à verdade, o alegado na conclusão 30ª, sendo irrelevante que o recorrente tenha feito posteriormente uma rectificação à aludida escritura, fazendo aí constar por averbamento que «onde se lê que o prédio rústico objecto da mesma tem direito a “toda a água que provém da “Cortinha de Baixo” deve ler-se “tem direito a toda a água que provém do nascente da “Cortinha de Cima”».
Contrariamente ao que está alegado na conclusão 31ª, a formulação da alínea b) da escritura celebrada em 10/12/2001 não é equívoca, sendo pelo contrário muito clara e foi aparentemente sempre respeitada pelos anteriores proprietários da Cortinha de Baixo, já que nenhum facto apurado revela o contrário.
A tese do recorrente não está sustentada nos factos provados nem na realidade das coisas, desde logo porque está provado que a água em causa nasce na Cortinha de Cima, propriedade dos recorridos (pontos 7 e 8 dos factos provados).
Está também provado que a Cortinha de Baixo fica num plano inferior à Cortinha de Cima (cfr., nomeadamente, pontos 28 e 30 dos factos provados).
Está igualmente provado que a Cortinha de Baixo tem uma área muito inferior à Cortinha de Cima (cfr. pontos 1 e 3 dos factos provados).
Está ainda provado que durante o período de verão a Cortinha de Cima tem direito a 16 horas de água por semana, enquanto a Cortinha de Baixo tem apenas 4 horas por semana (pontos 12 e 19 dos factos provados).
É facto público e notório que durante o inverno as águas caídas nos campos localizados num plano superior escorrem naturalmente para os campos situados num plano inferior, pelo que resultaria incompreensível que na Cortinha de Baixo fosse utilizada toda a água que brota na Cortinha de Cima, desde o dia 29 de Setembro a 24 de Junho, ficando esta sem qualquer água (!?).
Improcedem, por isso, as conclusões 30ª a 40ª e, necessariamente, as conclusões 41ª a 45ª, não se mostrando violadas as normas legais invocadas pelo recorrente.

Sumário:
I - A justificação notarial não é mais do que um expediente técnico simplificado destinado a obter uma titulação excepcional que sirva de base à efectivação do registo predial de um imóvel, não garantindo, com a necessária a realidade do direito invocado, não obstante a intervenção de três declarantes, sabida como é a pouca fiabilidade da prova testemunhal, sobretudo quando não submetida a qualquer contraditório (cfr. artigos 116º, nº 1, do Código do Registo Predial, 89º e 96º, nº 1, do Código de Notariado).
II - A escritura de justificação prova plenamente que o justificante declarou perante o notário o que consta do documento, nomeadamente que o proprietário do prédio em causa por o ter adquirido por usucapião. Mas não constando do documento a quem pertenceu esse prédio, a mencionada escritura não prova plenamente que o mesmo tenha pertencido a determinada pessoa.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
*
Guimarães, 12 de Março de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
____________________________________
[1] Cfr., a propósito, a conclusão 9ª do seguinte teor: «Todas, mas mesmo todas as testemunhas sabiam que ambos os prédios pertenceram ao Manuel Gonçalves Amaro e que antes dele, há mais de meio século, os mesmos pertenceram ao seu pai, Manuel Amaro.
[2] Prática Notarial, 4.ª ed., p. 339.
[3] Proc. 367/2002.P1.S, relator Moreira Alves, in www.dgsi.pt