Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
798/08.8TBEPS.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
SOCIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Na vertente do abuso da responsabilidade limitada (que não se confunde com a do abuso da personalidade), estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias que podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando, de entre elas: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas das sociedades e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de património necessário para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal.
II – Para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual por ele assumida individualmente, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa.
III – Na desconsideração da personalidade jurídica é necessário determinar se existe e com que potencialidade uma actuação em fraude à lei. Esta verificar-se-á aquando da existência de um efeito prejudicial a terceiros.
IV – A simples prova de que a sociedade unipessoal de que o réu é sócio gerente não tem qualquer prédio inscrito em seu nome no serviço de finanças do distrito de Braga, sem a prova de que todos os proventos e bens adquiridos pelo réu para aquela sociedade, enquanto seu sócio gerente, tenham sido por este desviados para o seu património ou para o património do casal que constitui com a ré, não autoriza que se chame ao caso a figura da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
C… , M… , M… , por si e na qualidade de única e universal herdeira de A… , J… , M… e M… , intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra A… e J… , pedindo a condenação destes a pagar-lhes a quantia de € 41.461,48, acrescida dos juros moratórios vencidos até à data da interposição da acção, no montante de € 2.285,35, e dos vincendos desde essa data até efectivo e integral pagamento.
Fundamentando a sua pretensão, alegam os autores:
- por escritura pública celebrada no dia 30.05.07 venderam a S… o prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 85º e, apesar de terem declarado nessa mesma escritura que receberam o preço convencionado, tal não aconteceu, pois ficou acordado que para pagamento do preço, que ascendia a € 178.000, o réu entregaria o montante de € 40.000 e a aludida S… entregaria o remanescente, sucedendo, porém, que o réu, no dia agendado para a escritura, comunicou que não dispunha do montante de € 40.000, propondo-lhes, então, a entrega de um outro imóvel, o que aceitaram, pelo que, no dia 30.05.07, celebraram a escritura de compra e venda da fracção “M” do prédio urbano sito em Lamaçães, Braga;
- um mês após a celebração das referidas escrituras o autor C… foi notificado judicialmente no âmbito de uma acção que lhe foi movida por R… e M… , na qual estes lhe exigiam o pagamento da quantia de € 45.000 supostamente devida àqueles a título de preço pela venda da referida fracção “M”;
- o autor C… contactou o réu que lhe revelou que aquela fracção “M” não era dele mas sim de M… e que o cheque que havia entregue a esta para pagamento do preço objecto da escritura realizada no dia 30.05.06, apresentado a pagamento, tinha sido devolvido por falta de provisão;
- o autor C… acabou por celebrar com os referidos R… e M… escritura de distrate da compra e venda efectuada no dia 30.05.07, com a qual suportaram despesas que computam em € 1.461,48.
Os réus contestaram, excepcionando e impugnando.
Por excepção invocaram a ilegitimidade da autora M… , sustentando que quem devia estar em juízo era a herança jacente de A… e não aquela, bem como a ilegitimidade da ré mulher por a mesma ser absolutamente estranha aos negócios em causa.
Por impugnação negaram parte dos factos alegados pelos autores, defendendo, além do mais, que esses factos, ainda que não nos precisos termos alegados, não foram pessoalmente praticados pelo réu, mas, sim por este na sua qualidade de gerente de uma sociedade.
Na réplica os autores opuseram-se à procedência das excepções de ilegitimidade invocadas, contrapondo ainda que o réu, com os negócios descritos na petição inicial, obteve vantagem patrimonial que fez ingressar no património do casal, pelo que a entender-se que aquele agiu na qualidade de representante da sociedade M… , Lda., terá que operar-se a desconsideração da personalidade jurídica da referida sociedade, pois os réus têm, ao longo do tempo e mercê dos negócios realizados em circunstâncias similares às descritas, construído um enorme património, ao contrário da sociedade que não tem qualquer património, sendo certo que o réu, em todo o processo negocial agiu com o intuito de prejudicar os sucessivos intervenientes nos negócios, obtendo, para si, e não para a sociedade de que o mesmo é gerente, as vantagens inerentes a esses mesmos negócios.
Comprovado o óbito da co-autora M… , foram habilitados, para com eles prosseguir a causa em substituição da falecida, C… , M… , M… e J… .
Foi elaborado do despacho saneador, que julgou improcedentes as excepções da ilegitimidade activa e passiva suscitadas pelos réus e concluiu pela existência de todos os pressupostos processuais e pela validade e consistência da instância, com subsequente enunciação da matéria de facto assente e da base instrutória, sem reclamação.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, sendo a matéria de facto decidida pela forma constante do despacho de fls. 288 a 300, que não suscitou quaisquer reparos.
Foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os réus do pedido.
Inconformados com o decidido, recorreram os autores para esta Relação, encerrando o recurso de apelação interposto com as conclusões que a seguir se transcrevem:
(…)
Terminam pedindo que seja revogada a decisão recorrida, a substituir por outra que julgue a acção totalmente procedente e condene os réus no pedido.
Os réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção da sentença.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (art. 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões:
- alteração da matéria de facto;
- se a matéria de facto provada impõe decisão diversa da proferida;
- se deve, no caso em apreço, convocar-se a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
a) Por escritura pública de 29 de Janeiro de 2008, exarada de fls. 4 a fls. 4, verso, no livro de notas para escrituras diversas nº 86-A, do Cartório Notarial de Aida Manuela Rocha Sousa, em Braga, J… , A… , e B… , declararam nomeadamente, em simultâneo com a apresentação das correspondentes certidões, que A… falecera em 18 de Dezembro de 2007, sucedendo-lhe a M… como única e universal herdeira [alínea D) dos factos assentes];
b) Por escritura pública de 30 de Maio de 2007, exarada de fls. 112 e 113, verso, no livro de notas para escrituras diversas nº 65-A, do Cartório Notarial de Aida Manuela Rocha Sousa, em Braga, M… e marido, C… , este actuando por si e em representação de M… , J… e mulher, M… , M… , e A… , declararam nomeadamente vender a S… , pelo preço de €187.000,00, que já receberam, um prédio urbano composto de casa com três pavimentos, destinada a habitação, sito na Rua D. Frei Caetano Brandão, 59 e 61, freguesia de Braga (Sé), concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 384, e inscrito na matriz sob o art. 85.º, tendo aquela S… declarado nomeadamente aceitar tal venda em tais condições [alínea A) dos factos assentes];
c) Não obstante os autores C… e M… terem declarado, o primeiro por si e em representação dos autores M… , J… , M… , M… e A… , na escritura referida em b), que haviam já recebido o preço aí mencionado, a verdade é que receberam de S… apenas a quantia de € 112.229,00 [resposta ao nº 1 da base instrutória);
d) Por escritura pública de 30 de Maio de 2007, exarada de fls. 103 a 104, verso, no livro de notas para escrituras diversas n.º 65-A, do Cartório Notarial de Aida Manuela Rocha Sousa, em Braga, M… e marido, R… , declararam nomeadamente vender a C… , pelo preço de € 40.000,00, uma fracção autónoma designada pela letra “M”, habitação no segundo andar frente, lado nascente, que integra o prédio urbano, sito no lugar de Arcela ou Arcela de Cima, freguesia de Lamaçães, concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 359, e inscrito na matriz sob o art. 692.º, tendo aquele C… declarado nomeadamente aceitar tal venda em tais condições [alínea B) dos factos assentes];
e) Tempos antes da escritura referida em b), S… emitiu um cheque, no valor de € 75.000, a favor de M… , Lda., que se destinava a um investimento imobiliário, o qual não se chegou a concretizar, tendo, ao invés, sido celebrada a compra e venda plasmada na escritura referida em b), entregando, então, aquela S… para pagamento do preço de € 187.000 aí indicado a diferença entre esse montante de € 187.000 e aquele de € 75.000, aceitando, por sua vez, o autor C… haver para si, como pagamento do remanescente daquele preço, a fracção autónoma referida em d), por via da escritura aí referida, onde se consignou que o pagamento do preço da aquisição de tal fracção seria efectuado com o cheque nº 7436913446, com a data de 15.06.07, cheque esse que tinha sido sacado sob a conta pertencente a M… , Lda. [resposta ao nº 9 da base instrutória];
f) Por escritura pública de 6 de Novembro de 2007, exarada de fls. 50 a 51, verso, no livro de notas para escrituras diversas nº 3, do Cartório Notarial de Catarina Correia, em Braga, C… e mulher, M… , e M… e marido, R… , declararam nomeadamente distratar por mútuo acordo o contrato de compra e venda titulado pela escritura referida em d) [alínea C) dos factos assentes];
g) As declarações proferidas em f) resultaram do facto de M… e marido R… terem exigido ao autor C… o pagamento do preço referido em d), uma vez que o cheque nº 7436913446 entregue para pagamento do preço referido em d), sacado sob a conta pertencente a M… , Lda., não obteve pagamento [resposta ao nº 5 da base instrutória];
h) Com a realização da escritura referida em d) o autor C… despendeu € 400 em IMT, € 571,24 em custos com a própria escritura, € 159,93 em actos de registo, € 17,50 na obtenção de cópia certificada da licença de utilização do imóvel, € 5,44 na certidão matricial e € 56,66 em condomínio [resposta ao nº 6 da base instrutória];
i) A sociedade M… , Lda., não tem qualquer prédio inscrito em seu nome no serviço de finanças do distrito de Braga [resposta ao nº 8 da base instrutória].

B) O DIREITO
Da alteração da matéria de facto
(…)
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou o Tribunal de 1ª instância na decisão sobre a matéria de facto, pelo que não vemos razão para alterar a mesma, improcedendo nesta parte o recurso.

Se a matéria de facto provada impõe decisão diversa da proferida em 1ª instância
Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer - até porque tal, na atenção da alegação dos recorrentes, passava necessariamente pela alteração da decisão de facto – à sentença sindicanda -, pelo que bem poderíamos aqui acolher os seus fundamentos, sem nada mais lhe acrescentar.
Ainda assim, sempre se dirá que tendo os autores alegado que entre eles e o réu foi estabelecido um acordo segundo o qual, este último, se obrigou a entregar-lhes a quantia de € 40.000, que, na versão dos autores, correspondia ao montante do preço em falta devido como contrapartida da venda por eles efectuada a S… de um prédio urbano, competia-lhes provar, por um lado, tendo em conta a existência de uma declaração, na escritura pública de compra e venda de 30.05.07, do recebimento da totalidade do preço da venda, a falta de correspondência com o facto declarado, e, por outro lado, a obrigação assumida pelo réu de pagar a quantia de € 40.000, correspondente, na versão dos autores, ao montante do preço em falta.
Ora, pese embora tenha resultado provado que, não obstante os autores C… e M… terem declarado, o primeiro por si e em representação dos demais autores, na escritura de 30.05.07, que haviam já recebido o preço aí mencionado, receberam de S… apenas a quantia de € 112.229,00, a verdade é que não lograram provar, como lhes competia (art. 342º, nº 1, do CC), que o réu A… se comprometeu a pagar-lhes a quantia de € 40.000, que, como se disse, correspondia, na versão dos autores, ao remanescente do preço em falta, o que, por si só, obstaria à procedência da acção.
A tanto não obsta o facto de se ter provado que tempos antes da escritura de 30.05.07, S… emitiu um cheque, no valor de € 75.000, a favor de M… , Lda., que se destinava a um investimento imobiliário, o qual não se chegou a concretizar, tendo, ao invés, sido celebrada a compra e venda identificada naquela escritura, tendo a referida S… entregue para pagamento do preço de € 187.000 aí indicado a diferença entre esse montante de € 187.000 e aquele de € 75.000, aceitando, por sua vez, o autor C… a haver para si, como pagamento do remanescente daquele preço, a fracção autónoma designada pela letra “M” do prédio urbano, sito em Lamaçães, Braga, por via da mencionada escritura de 30.05.07, onde se consignou que o pagamento do preço da aquisição de tal fracção seria efectuado com o cheque nº 7436913446, com a data de 15.06.07, cheque esse que tinha sido sacado sob a conta pertencente a à sociedade M… , Lda..
Nem o facto de se ter provado que os vendedores da referida fracção autónoma “M” terem exigido ao autor C… o pagamento do preço devido pela transmissão dessa fracção, uma vez que o aludido cheque nº 7436913446 entregue para pagamento desse preço, sacado sob a conta pertencente a M… , Lda., não obteve pagamento, o que conduziu à celebração da escritura pública de 6 de Novembro de 2007, na qual os autores e aqueles vendedores declararam distratar por mútuo acordo o contrato de compra e venda titulado pela escritura de 30.05.07.
Como bem se diz na sentença recorrida, “em bom rigor, o quadro factual supra traçado, permite, quando muito, afirmar que o autor C… (e não, também, a nosso ver, os demais) é credor da sociedade M… , Lda., da referida quantia de € 40.000.
Todavia, uma vez que a referida sociedade M… , Lda., e o réu Al… (sócio e gerente dessa sociedade – cfr. documento de fls. 106) são pessoas jurídicas distintas e o seu património se encontra, obviamente, separado - cfr. art. 270º-G do Código das Sociedades Comerciais -, é evidente que o último não responde pessoalmente pela dívida da primeira».

Se deve convocar-se, no caso concreto, a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais
Acautelando a hipótese, confirmada, de o réu ter agido na qualidade de representante da sociedade M… , Lda., vieram os autores sustentar, na réplica, que deveria então operar-se a desconsideração da personalidade jurídica da referida sociedade, já que os réus têm, ao longo do tempo e mercê dos negócios realizados em circunstâncias similares às descritas, construído um enorme património, ao contrário da sociedade que não tem qualquer património, sendo certo que o réu, em todo o processo negocial agiu com o intuito de prejudicar os sucessivos intervenientes nos negócios, obtendo, para si, e não para a sociedade de que o mesmo é gerente, as vantagens inerentes a esses mesmos negócios.
Será assim?
Como é sabido, o ordenamento jurídico acolhe, a par das pessoas singulares, as pessoas colectivas. Comporta, assim, no seu seio, novos entes dotados de personalidade jurídica. Desta personalidade emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos e, inerentemente, além do mais, a distinção entre as pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa colectiva e esta. Os direitos e as obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros.
Ao longo do tempo, veio a constatar-se a existência de inúmeras situações em que o conceder àquela linha demarcadora um valor absoluto não seriam de admitir.
Progressivamente, doutrina e jurisprudência anglo-americanas e alemãs, foram construindo a figura – que julgamos ainda em evolução – da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas ou, porque, de longe, reportada a maior parte das vezes a sociedades comerciais, a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais Trata-se do “disregard of legal entity” ou “lifting the corporate veil”, do direito anglo-americano e do “Durchgriff” (penetração ou superação), da doutrina alemã..
Já Castro Mendes Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, ed. da AAFDL, I, 1995, pág. 362. escrevia que “não devemos antropomorfizar a pessoa colectiva a ponto de perdermos de vista que – ao contrário da pessoa singular, fim em si mesma – ela não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos.
Inclusivamente, a personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa. Esta atitude é o que os juristas anglo-saxónicos chamam romper o véu da pessoa colectiva”
Segundo Pedro Cordeiro A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, pág. 19, citado no Ac. do STJ de 12.05.2011, proc. 280/07.0TBGVA.C1.S1, in www.dgsi.pt. , deve entender-se por desconsideração “o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam”.
Existe assim, na desconsideração, um atingimento da pessoa jurídica diferente da visada. Será directa, se se ultrapassar a sociedade para atingir os sócios e indirecta (ou invertida) se partindo-se dos sócios, se atingir a sociedade Oliveira Ascensão, Lições de Direito Comercial, Lisboa 1986/87, I, pág. 473..
Não se trata de pôr em crise o instituto da personalidade colectiva, importante factor de cooperação e de progresso dentro do Direito: apenas de cercear formas abusivas de actuação que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema Menezes Cordeiro, em Anotação ao Acórdão do STJ de 09.01.2003, disponível in www.oa.pt. .
E é com este objectivo que surge o levantamento da personalidade jurídica como “instituto de enquadramento” Menezes Cordeiro, idem. que traduz uma delimitação negativa da personalidade colectiva por exigência do sistema.
É neste domínio do abuso da responsabilidade limitada que o instituto da desconsideração da personalidade adquire toda a sua dimensão.
Hoje, estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, nessa vertente, podem conduzir à aplicação do referido instituto.
De entre elas, avultam: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal Ricardo Costa, Boletim da Ordem dos Advogados, nº 30, págs. 13 e 14 e Menezes Cordeiro, Manual do Direito das Sociedades, I, pág. 364, ambos os autores citados no Acórdão do STJ de 03.02.2009, proc. 08A3991, in www.dgsi.pt. .
Também na vertente do abuso da personalidade se podem perfilar algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. Nessas hipóteses, desde que seja patente um comportamento abusivo e fraudulento por parte de determinado sócio, em prejuízo de terceiros, supera-se a capa da sociedade e passa a ver-se esse sócio, que responderá individualmente perante o lesado, após ser chamado a juízo Ac. do STJ de 03.02.2009 mencionado na nota anterior, citando Menezes Cordeiro, Manual …, pág. 369.
Na desconsideração da personalidade jurídica é ainda necessário determinar se existe e com que potencialidade uma actuação em fraude à lei.
Esta verificar-se-á aquando da existência de um efeito prejudicial a terceiros Ac. da Relação do Porto de 24.01.2005, proc. 0411080, in www.dgsi.pt..
A lei não contém referência expressa à figura da desconsideração da personalidade jurídica, mas a dimensão do princípio da boa fé - emergente, no essencial do que aqui nos importa, do artigo 762º, nº 2, conjugado com o artigo 334º, ambos do Código Civil - alcança-a Ac. do STJ de 12.05.2011, citado na nota 6..
A questão está assim em saber se, no caso concreto, se poderá concluir que o réu utilizou a sociedade de que é sócio gerente como instrumento da sua vontade e no seu interesse pessoal.
Tal significa, como bem se observa na sentença recorrida, que “não é licito a utilização por parte das pessoas singulares, na sua qualidade de sócios, gerentes ou administradores ou que por qualquer meio dominem uma sociedade de responsabilidade limitada, agir em moldes de levar à confusão das esferas jurídicas ou mistura do capital da pessoa colectiva com o da pessoa singular, à subcapitalização ou a prejudicar terceiros, servindo-se de forma abusiva da personalidade da pessoa colectiva, com responsabilidade limitada, para por esses meios obter benefícios pessoais”.
Porém, no caso em apreço, inexistem quaisquer factos que nos permitam concluir que a sociedade M… , Lda., foi constituída com o objectivo de iludir e prejudicar terceiros e, bem assim, que o réu, servindo-se da sua posição de domínio sobre a referida sociedade unipessoal, tenha actuado de forma manifestamente abusiva, usando a sociedade em benefício próprio.
Atente-se que, apesar de se ter provado que a sociedade M… , Lda., não tem qualquer prédio inscrito em seu nome no serviço de finanças do distrito de Braga, quedou por demonstrar que todos os proventos e bens adquiridos pelo réu para aquela sociedade, enquanto seu sócio gerente, tenham sido por este desviados para o seu património ou para o património do casal que constitui com a ré.
Perante a ausência de tal prova, nada autoriza que chamemos para aqui a figura da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas.
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso.

Sumário (art. 713º, nº 7, do CPC)
I – Na vertente do abuso da responsabilidade limitada (que não se confunde com a do abuso da personalidade), estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias que podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando, de entre elas: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas das sociedades e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de património necessário para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal.
II – Para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual por ele assumida individualmente, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa.
III – Na desconsideração da personalidade jurídica é necessário determinar se existe e com que potencialidade uma actuação em fraude à lei. Esta verificar-se-á aquando da existência de um efeito prejudicial a terceiros.
IV – A simples prova de que a sociedade unipessoal de que o réu é sócio gerente não tem qualquer prédio inscrito em seu nome no serviço de finanças do distrito de Braga, sem a prova de que todos os proventos e bens adquiridos pelo réu para aquela sociedade, enquanto seu sócio gerente, tenham sido por este desviados para o seu património ou para o património do casal que constitui com a ré, não autoriza que se chame ao caso a figura da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas.


IV - DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
*
Guimarães, 17 de Novembro de 2011

Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Rita Romeira