Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
59280/09.8YIPRT.G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
FALSIDADE DE DEPOIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A procedência do recurso de revisão com fundamento na falsidade dos depoimentos de testemunhas exige que se demonstre não só a falsidade dos depoimentos dessas testemunhas, mas também a existência de nexo causal entre essa falsidade e a sentença a rever, ou seja, que a falsidade dos depoimentos dessas testemunhas determinou a decisão que se pretende destruir.

II - A demonstração da falsidade de depoimento não se basta com a mera comparação do depoimento de uma determinada testemunha prestado num processo com o que prestou noutro processo ou com os prestados por outras testemunhas. É ainda necessário que os elementos de prova, globalmente considerados, forneçam uma indicação clara de que o teor do primeiro depoimento é manifestamente contrário à verdade dos factos.

III - Ainda que demonstrado posterior depoimento da mesma testemunha, noutro processo, de sentido contrário, tal não constitui prova bastante da falsidade do depoimento anteriormente prestado, sendo necessário demonstrar adicionalmente qual dos dois depoimentos não corresponde à verdade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
*
A “Massa Insolvente de “PC, Ldª” interpôs recurso de revisão contra E. G..

Em síntese alegou que, no dia 12-06-2017, no âmbito da audiência de julgamento realizada no processo n º 92/16.0T8MTR-B, as testemunhas J. V., F. M. e R. C. prestaram depoimentos reveladores de que, nos autos a que estes estão apensos, onde também haviam anteriormente prestado depoimento como testemunhas, foram prestados depoimentos, “com grande probabilidade falsos” e que determinaram o sentido da decisão revidenda.

Tal falsidade reconduz-se essencialmente ao seguinte:

a) a testemunha J. V. relatou no 1º processo, que fiscalizava a obra todas as semanas e no 2º processo referiu que só fiscalizou a obra no seu início e não também no seu fim;
b) a testemunha M. O. referiu no 1º processo que apareceu um problema de humidade quando o Autor estava a executar a obra, mas que o mesmo foi logo resolvido pelo Autor, ao invés da testemunha F. M., que referiu nesse 1º processo não ter havido nenhum problema de humidade na obra (resultando também das fotografias juntas aos autos nesse processo, que tais problemas de humidade não surgiram aquando da execução da obra); ao que acresce o facto de, no 2º processo, a testemunha J. V. ter afirmado não ter memória de ter havido algum problema extraordinário na obra, mas julgar que havia lá uma nascente de água e que o Autor teve que fazer aí um enrocamento (e que acompanhou essa parte da obra) e de a testemunha F. M. ter referido, no 2º processo, que as obras ficaram bem executadas e que não se recordava de ter havido algum problema no decurso da obra e de a testemunha R. C., ter referido, no 2º processo, achar que não houve nenhum problema no decurso da execução da obra.
E daí concluiu que, do teor dos depoimentos prestados no 2º processo pelas testemunhas F. M. e R. C., executantes da obra, fica demonstrado que o Autor não procedeu à rectificação da obra defeituosa.

Foi admitido o recurso.

Notificado o recorrido, apresentou resposta, defendendo que os depoimentos prestados pelas testemunhas em causa nos processos em questão não foram contraditórios, não havendo falsidade de depoimentos e que a sentença a rever não se fundou apenas nos depoimentos destas testemunhas considerando, em consequência, não haver fundamento para que o recurso possa proceder.
Designou-se data para realização de audiência prévia, diligência a que se procedeu, não tendo sido requerida e produzida prova.
Foi então proferida sentença que julgou improcedente o recurso interposto.
Desta sentença apelou a Recorrente, que conclui a sua alegação da seguinte forma:
- nestes autos foi quesitado em sede de despacho saneador/base instrutória, entre o mais, o que segue infra, tendo merecido as seguintes respostas por banda do tribunal:

14 ° (Provado)
Para a realização dos trabalhos sobreditos, o Requerido tinha de proceder à regularização e compactação do terreno, de acordo com as suas características e, posteriormente, proceder à aplicação do paralelo?

15° (Não provado)
Sucede que, quando os referidos trabalhos estavam quase a terminar, devido às infiltrações de água e deficiente execução dos trabalhos de regularização e compactação do terreno, a calceta aplicada começou a levantar, fazendo com que o pavimento ficasse extremamente irregular e com bastantes ondulações?

16° (Não provado)
Logo que a dona da obra (Câmara Municipal X) se apercebeu da existência das referidas irregularidades e ondulações no pavimento advertiu a Requerida de que não iria aceitar a obra enquanto os defeitos não fossem eliminados, uma vez que, os defeitos tornavam a obra inadequada ao fim a que se destinava?

17" (Não provado)
(...) já que não possibilitava a utilização em segurança dos pavimentos?

18° (Não provado)
(...) bem como apresentava um dano estético?

19° (Não provado)
A Requerida logo informou o Requerente da posição da dona da obra e alertou-o para a necessidade de proceder à eliminação dos referidos defeitos?

20° (Provado)
Igualmente, a Requerida informou o Requerente de que se encontrava agendado para o dia 20 de Setembro de 2008 a inauguração do quartel por parte do Ministro da Administração Interna e de que os trabalhos teriam de estar necessariamente concluídos antes da referida data?

21 ° (Não provado)
Apesar de o Requerente ter tomado conhecimento dos referidos factos, não concluiu a obra nem reparou os referidos defeitos?

22" (Não provado)
Ao invés, o Requerente abandonou a obra e retirou do local o pessoal e o material lá depositado?

23° (Não provado)
Perante o comportamento do Requerente, a Requerida, por diversas vezes, intimou-o, por telefone, a regressar à obra afim de concluir a empreitada e eliminar tais defeitos?

24° (Não provado)
Este, porém, recusou-se a voltar à obra para concluir os trabalhos e/ou reparar os defeitos?

25° (Não provado)
Dado o abandono da obra por parte do Requerente e como a data da inauguração do Quartel dos Bombeiros Voluntários estava iminente - 20 de Setembro de 2008 – a Requerida foi pressionada pela Câmara Municipal X para finalizar os trabalhos e eliminar os defeitos (tanto mais que, a construção do referido Quartel já se arrastava há mais de 20 anos - facto público e notório -e a dona da obra não estava disposta a protelar por mais tempo uma obra considerada essencial ao desenvolvimento do concelho?

26° (Não provado)
Daí que, a Requerida tenha sido obrigada a contratar duas empresas -HS & AL Lda e Calceteiros Y, Unip. Lda -para eliminar os defeitos da obra e finalizar a empreitada abandonada pelo Requerente?

27" (Não provado)
A sociedade Calceteiros Y, Unip. Lda procedeu à regularização do terreno e assento de cubos e lancis e ao alinhamento do muro em perpianho?

28° (Provado apenas o teor da factura em causa)
Posteriormente, a sociedade Calceteiros Y, Unip. Lda procedeu à emissão da factura n. ° 0086, em 3 de Dezembro de 2008, no valor de e 17,800,00, para pagamento dos trabalhos supra?

29° (Não provado)
Por sua vez, a sociedade comercial HS & AL Lda. realizou o levantamento e reposição do paralelo?

30° (Provado apenas o teor da factura em causa)
A sociedade antedita procedeu à emissão da factura n. ° 091, em 8 de Novembro de 2008, no valor de e 5,855,00, para pagamento dos trabalhos supra descritos?

31 ° (Não provado)
Para proceder à eliminação dos defeitos e conclusão da obra, a Requerida despendeu a quantia de e 23,655,00.

5o ° (Provado)
Logo que surgiram os problemas com infiltrações de água na obra, a A. procede de imediato ao levantamento do cubo aplicado, efectuou a drenagem das águas e procedeu à reposição do cubo?
- o tribunal, para fundamentar as referidas respostas, entre o mais, muito considerou o depoimento da testemunha J. V., engenheiro civil, fiscal da CM X, que teria acompanhado a obra, fiscalizando-a semanalmente (e até 2 vezes por semana); depoimento gravado sob o registo n.º 201220418103229 12323 64912; acta de 18-04-2012;
- os danos resultantes da má execução da obra de calcetamento nos Bombeiros eram mais do que evidentes, não foram impugnados pelo Autor e foram captados através de registos fotográficos juntos aos autos na 2ª sessão de julgamento realizada em 06/06/2012;
- as referidas fotografias evidenciam uma obra concluída (ou praticamente concluída) e manifestamente defeituosa;
- o Autor tentou – e conseguiu – perpassar a ideia de que, aquando da execução do calcetamento, tinha detectado problemas de infiltração de água que logo solucionou; como se de um problema menor se tivesse tratado, nunca tendo referido a necessidade de levantamento do trabalho executado e de o refazer;
- neste particular, para lá do depoimento sobredito, veja-se a testemunha do Autor FM; (depoimento gravado sob o registo n.º 20120418111021 1232364812 ; acta de 18-04-12);
- e também a testemunha do Autor R. C. (depoimento gravado sob o registo n.º 0201204181112122 12323 64812; acta de 18-04-2012). Se o Autor tivesse dado conta do problema de infiltração de água ou de humidade no decurso da execução da obra tal como alegou e viu provado, certamente não teria chegado a executar a obra que as fotografias ilustram (obra concluída ou praticamente concluída);
- no pretérito dia 12 de Junho de 2017, no âmbito de discussão e julgamento no processo n° 92/16.0T8MTR-B do Juízo de Competência Genérica de Montalegre, Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, acabou por se discutir, ainda que parcialmente, o objecto deste processo;
- quando as testemunhas J. V., F. M. e R. C. (as mesmas acima referidas) foram agora inquiridas (em 12 de Junho de 2017) revelaram contradições insanáveis e insustentáveis com o teor do aqui decidido;
- no depoimento da testemunha J. V., captado no sistema informático sob o registo 20170612152213 1308256_2871902, a mesma acaba agora por referir que apenas acompanhou a obra no seu início;
- por outro lado, no depoimento da testemunha F. M., captado no sistema informático sob o registo 20170612153619 13082562871902, o mesmo acaba por referir que não existiu qualquer problema ou defeito em obra que tivessem que corrigir;
- no mesmo sentido, foi agora o depoimento da testemunha R. C. captado no sistema informático sob o registo 20170612154257 1308256 2871902;
- ora, como se disse, os referidos registos fotográficos não foram impugnados e demonstram de forma cristalina uma obra concluída (ou praticamente concluída) o que é inconciliável com um acompanhamento inicial da obra relatado pela testemunha J. V., agravando ainda o facto de nenhuma das testemunhas ter aludido à existência de qualquer problema em obra e/ou à necessidade de refazer a obra para colmatar os defeitos notórios e evidentes que as fotografias atestam;
- no entanto, entendeu agora e em suma o tribunal a quo que as alegadas contradições/falsidades nos depoimentos ou não eram suficientes para que se julgasse procedente a revisão e se seguisse a tramitação legal subsequente de instrução e julgamento ou então que não se demonstrou em qual dos dois processos as testemunhas teriam faltado à verdade;
- salvo o devido respeito, não se pode acompanhar esta interpretação, pois as discrepâncias são inconciliáveis e a verdade material é agora inequívoca e evidente;
- outrossim, à luz desta interpretação (segundo a qual não é possível afiançar-se em qual dos processos teriam as testemunhas faltado à verdade) não havendo confissão no sentido da falsidade de depoimento, parece que qualquer revisão sustentada em contradições ou em falsidades de depoimentos ficará prejudicada e votada ao insucesso logo de início;
- há que sopesar toda a prova e descortinar qual dos sentidos se afigura mais ou menos verosímil até por cotejo com o ónus da prova e seus (óbvios) benefícios processuais. É uma questão de lógica e ponderação;
- foram violados os artigos 696º, b) e 701º, n.º 1 c) do Código de Processo Civil.
Termos em que deverá revogar-se a sentença ora em crise e julgar-se procedente por provado o presente recurso de revisão, determinando-se a baixa do processo para prosseguimento dos seus termos.
Não foram oferecidas contra alegações.
Cumpre-nos agora decidir.
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Delimitado como se encontra o objecto do recurso pelas conclusões da alegação – artigos 635º, n.º 4 e 640º do Código de Processo Civil – das apresentadas pela Apelante resulta que a questão de fundo que é colocada à nossa apreciação consiste em decidir se se encontra preenchidos os pressupostos de facto que determina a revisão da sentença proferida.
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São os seguintes os factos considerados provados:

1. no âmbito do processo n º 59280/09.8YIPRT, em que foi Autor E. G. e Ré “PC – Sociedade Unipessoal, Ldª”, foi proferida sentença, transitada em julgado que, nomeadamente, condenou a Ré a pagar determinada quantia ao Autor;
2. a testemunha J. V. prestou aí depoimento, no qual, em síntese e na sua essência, para o que aqui releva disse: ter fiscalizado parte da obra dos bombeiros, ao serviço da Câmara Municipal; ter feito essa fiscalização todas as semanas, uma ou duas vezes por semana, mas no mínimo uma vez por semana; ter aparecido uma nascente/água no pavimento, tendo sido preciso consolidar o assentamento do cubo, o que foi feito pelo Autor; as obras ficaram concluídas no verão; e desconhecia que tivessem andado lá outras empresas a trabalhar na realização da pavimentação realizada pelo autor;
3. ainda no âmbito desse mesmo processo, a testemunha M. O. prestou depoimento em que, em síntese, para o que aqui releva disse: ter aparecido um problema de humidade quando o Autor estava a executar a obra, mas que o mesmo foi logo resolvido pelo Autor;
4. também no âmbito desse mesmo processo, a testemunha F. M. prestou depoimento em que, em síntese, para o que aqui releva disse: não ter havido nenhum problema de humidade na obra;
5. posteriormente, no âmbito do processo n º 92/16.0T8MTR-B, J. V. prestou depoimento em que, em síntese e na sua essência, para o que aqui releva disse: ter fiscalizado o início da obra dos bombeiros e julgar que no fim já não teria estado ligado à obra; não ter havido nenhum problema extraordinário de que tivesse memória julgando, porém, que era um terreno com humidades, que até teria uma nascente de água e que o Autor teve que fazer um enroncamento; e que acompanhou essa parte da obra;
6. no âmbito do processo n º 92/16.0T8MTR-B, F. M. prestou também depoimento em que, em síntese e na sua essência para o que aqui releva disse: as obras no quartel dos bombeiros ficaram bem executas, bem concluídas; não se recordava que tivesse havido nenhum problema no decurso da obra.
7. ainda no âmbito do processo n º 92/16.0T8MTR-B, R. C. prestou também depoimento em que, em síntese e na sua essência para o que aqui releva disse: achar não ter havido nenhum problema no decurso da execução dos trabalhos no quartel;
8. a sociedade “PC, Sociedade Unipessoal, Ldª” foi declarada insolvente.

O recurso extraordinário de revisão é um meio processual que faculta a quem tenha ficado vencido num processo anteriormente terminado a sua reabertura, mediante a invocação de algum dos fundamentos taxativamente enunciados nas alíneas a) a g) do artigo 696º do Código de Processo Civil.

Neste processo, a Apelante fundamenta o seu recurso no disposto na alínea b) desse normativo – falsidade de depoimentos que possam ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida e apenas esse ainda que a Apelante se refira a fotografias juntas ao processo, o que não pode servir de fundamento de revisão uma vez que elas não podem deixar de ter sido analisadas no processo – ver artigo citado.

Para o recurso de revisão proceder com fundamento em falsidade dos depoimentos de testemunhas é necessário demonstrar a falsidade dos depoimentos dessas testemunhas e a existência de nexo de causalidade entre essa falsidade e a sentença a rever, ou seja, que a falsidade dos depoimentos dessas testemunhas tinha determinado a decisão que se pretende destruir – acórdão da Relação de Lisboa de 13/05/2009, disponível em www.dgsi.pt.

Mas, como se salienta na decisão recorrida, a demonstração da falsidade de depoimento não se basta com a mera comparação do depoimento de uma determinada testemunha prestado num processo com o que prestou noutro processo ou com os prestados com outras testemunhas, tornando-se ainda necessário que os elementos de prova, globalmente considerados, forneçam uma indicação clara de que o teor do primeiro depoimento é manifestamente contrário à verdade dos factos – acórdão da Relação do Porto de 30/01/2017, disponível em www.dgsi.pt.
E ainda, ainda que demonstrado posterior depoimento da mesma testemunha noutro processo, em sentido contrário ao seu depoimento, não constitui prova bastante da falsidade do depoimento prestado, sendo necessário demonstrar adicionalmente qual dos dois depoimentos não corresponde à verdade – acórdão do mesmo Tribunal de 10/09/2012, disponível no mesmo local.

Ora, analisados os depoimentos prestados pelas testemunhas em relação às quais se pretende enfermarem de falsidade, poder-se-á conceder que, quer entre uns e outros e num processo e noutro, eles não são absolutamente coincidentes, mas entendemos que nem se pode sequer afirmar que sejam contraditórios entre si, como melhor se descreve na sentença em recurso e muito menos consideramos que as discrepâncias que se verificam permitam formular a conclusão de que os prestados no processo cuja sentença se pretende rever sejam falsos, pelo que não poderá proceder a pretensão da Apelante.

Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.

Carvalho Guerra
Maria da Conceição Bucho
Maria Luísa Ramos