Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2299/09.8TBBCL-M.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Sumário: 1. Embora se presuma iuris et de iure que as situações taxativamente previstas sob as alíneas a) a i) do nº 1 do art.º 121º do CIRE (causas de resolução incondicional de atos jurídicos em benefício da massa insolvente) são prejudiciais à massa, dispensando a lei também a má-fé, o fundamento de resolução considerado pelo Administrador da Insolvência tem que ser invocado e ficar razoavelmente identificado e explicitado na declaração resolutiva extrajudicial que tenha lugar, de modo a que o destinatário com legitimidade para a sua impugnação possa exercer cabalmente o seu direito ao contraditório e à sua defesa quando invoca a ilicitude e visa a ineficácia do ato resolutivo.
2. Além disso, havendo que alegar e provar na ação o requisito da má fé do transmissário do bem objeto da compra e venda, nos termos do art.º 124º do CIRE e do art.º 343º, nº 1, do Código Civil, o Administrador da Insolvência não pode deixar de referir suficientemente na carta resolutiva que envia ao comprador os factos concretos essenciais em que faz assentar a sua má fé.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
F.., LDA., pessoa coletiva nº .., com sede na.., Concelho de Braga, instaurou ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente contra MASSA INSOLVENTE DE.., representada pela Administradora da Insolvência Dr.ª Ana Maria de Oliveira Silva, com escritório na Rua do Campo Alegre, nº 672, 6º dt.º, Porto, alegando, essencialmente, que esta última parece pretender opor à A. a resolução de um contrato de compra e venda de um determinado prédio, celebrado entre o insolvente A.. e a sociedade I.., S.A., em junho de 2008.
A A. adquiriu o prédio no dia 9.6.2009, não ao insolvente, nem à I.., S.A., mas à sociedade D.., S.A., considerando na economia do contrato de compra e venda a existência de penhoras que recaem sobre o prédio, assim, o risco da eventual necessidade de pagamento de créditos, tendo, por isso, as partes fixado em € 475.000,00 o preço da respetiva compra e venda, que pagou.
Desconhece se assiste razão à Administradora da Insolvência ao pretender a resolução em benefício da massa insolvente da compra e venda do prédio em apreço celebrada entre o insolvente vendedor e a adquirente I.., SA. Desconhece também os contornos desse negócio e a Administradora da Insolvência nem sequer comunicou a má fé da A., que não existe.
Termina pedindo que seja julgada procedente a impugnação que deduz por via da ação, com declaração da inoponibilidade da resolução em benefício da massa em relação à própria impugnante F.., LDA.
A R. Massa Insolvente apresentou contestação pugnando pela improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido, mantendo-se o bem apreendido a favor da massa, com condenação da A. como litigante de má fé em indemnização de montante não inferior a € 5.000,00, e julgando-se procedente a reconvenção, declarando resolvidos os contratos de compra e venda, quer do bem imóvel quer dos bens móveis, ou, se assim não se entender, declarando-se as supra referidas vendas nulas por simuladas e, finalmente, em qualquer dos casos, ordenando-se a entrega imediata dos bens à massa insolvente e ainda o cancelamento do registo do imóvel realizado a favor da A. através da AP. 4060 de 9.6.2009.
A A. replicou opondo-se à reconvenção apresentada, defendendo a sua inadmissibilidade ou, não se decidindo assim, a respetiva improcedência.
Dado o despacho saneador, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida a sentença, fundamentada em matéria de facto e matéria de direito, que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
“Pelo exposto,
a) Julgo a acção improcedente por não provada.
b) Mantém-se a resolução em benefício da massa insolvente de A.. do imóvel referido em 1 e 2 dos factos provados.
c) Improcede o restante pedido reconvencional.
Custas por A e R na proporção do decaimento.”

Discordando da solução sentenciada, a A. F.., LDA dela apelou, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Pelo preço de € 475.000,00 (a que acresceram € 5.000,00 pela compra de mobiliário), a autora F.., em 09 de Junho de 2009, adquiriu à sociedade D.., SGPS o prédio misto descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº .. da freguesia de Palmeira, tendo, após tal aquisição, praticado todos os actos típicos de proprietário e possuidor.
2. Apesar de se ter demonstrado o que o imóvel transmitido possui um valor real de cerca de € 800.000,00, demonstrou-se também que a circunstância de sobre o mesmo impenderem três penhoras à data da respectiva venda foi considerada na economia do negócio, tendo contribuído para que as partes fixassem o preço de € 475.000,00.
3. Previamente à aquisição pela autora F.., em 13 de Janeiro de 1999 havia sido levada a registo a aquisição do imóvel em causa por A.., sendo que em 13 de Junho de 2008 foi convertido em definitivo o registo da transmissão do mesmo imóvel de A.. para I.., S.A., e em 12 de Dezembro de 2008 convertido em definitivo o registo da transmissão de I.. para D.. SGPS.
4. Em finais de Agosto de 2009 a autora F.. recebeu nas suas instalações a carta de fls 27 e seg., datada do dia 26 daquele mês e remetida pela Administradora de Insolvência Ana Maria de Oliveira Silva, pela qual esta vem informar que em 11 de Junho desse mesmo ano havia procedido à resolução incondicional em benefício da massa insolvente da transmissão do prédio operada entre o insolvente A.. e a sociedade I...
5. Na mesma comunicação a Srª Administradora de Insolvência refere ainda ter tomado conhecimento de que a F.. havia adquirido o imóvel em apreço à sociedade D.. SGPS, para, de seguida, invocar o disposto nos artºs 120º, 121º, 123º, 124º e 126º do CIRE para declarar uma vem mais a “resolução incondicional em benefício da massa insolvente”.
6. A actuação da Srª Administradora de Insolvência face à autora F.. é juridicamente subsumível ao normativo constante do nº 1 artº 124º do CIRE, que prevê a oponibilidade a transmissários posteriores de resolução em benefício da massa.
7. Em face da actuação da Srª Admnistradora de Insolvência veio a autora F.. impugnar esse acto de oponibilidade a transmissário posterior, pugnando, no seu petitório, pela declaração da inoponibilidade da resolução em benefício da massa em relação à impugnante.
8. Esta acção é de simples apreciação negativa, tendo por estrito objecto a análise do documento que visa impugnar, sendo que o conteúdo desse documento define os limites da relação material controvertida, não podendo ser chamada aos autos, para efeitos de justificação da resolução ou da oponibilidade da mesma a terceiro, outra factualidade que não a ali contida.
9. Nos termos do disposto no nº 1 do artº 124º do CIRE, “a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má-fé destes … (sublinhado nosso). Esta má-fé não é presumida e corresponderá ao conceito de má-fé utilizado para a impugnação pauliana, ou seja, a consciência do prejuízo causado ao credor.
10. Para que a resolução operada pela massa insolvente se torne oponível à autora F.. (posterior transmissário), da carta remetida pela Srª Administradora de Insolvência terá de constar a descrição dos factos concretizadores dessa má-fé.
11. Analisando o documento de fls 27 e seg. (carta remetida pela Srª Administradora de Insolvência à autora F..) verificamos que nenhuma imputação de má-fé é efectuada à autora F.. assim se podendo concluir que a interpelação em causa não é, de per si, susceptível de produzir o efeito jurídico pretendido (de oponibilidade de resolução anterior a transmissário posterior).
12. A sentença recorrida, que julgou a demanda da autora improcedente, não se pronunciou sobre a oponibilidade da resolução anterior (do negócio efectuado entre o insolvente A.. e a sociedade I..) ao posterior transmissário (a autora F..), tendo configurado a interpelação da massa insolvente à autora F.. como uma efectiva resolução incondicional ao abrigo do disposto na alínea h) do nº 1 do artº 121º do CIRE, por desconsideração da personalidade jurídica da sociedade comercial D..SGPS, como se o negócio celebrado entre a autora F.. e a sociedade D.. SGPS tivesse sido, na realidade, um negócio celebrado entre a autora F.. e o próprio insolvente A...
Da nulidade processual
13. Para desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade comercial D.. SGPS a sentença recorrida fundou-se no Facto Provado nº 34: “O insolvente é que geria de facto a D.. SGPS à data da venda”.
14. Este facto (i) não consta da interpelação objecto de impugnação, (ii) não foi alegado por qualquer das partes nas respectivas peças processuais, e (iii) não foi aproveitado por qualquer delas no decurso da audiência de julgamento.
15. Por referência ao disposto na alínea b) do nº 2 do artº 5º do actual CPC, que permite ao juiz da causa considerar factos que complementem ou concretizem outros que as partes tenham alegado, desde que confira às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem, temos que nem o facto que surge como provado sob o nº 34 constitui complemento ou concretização de qualquer outro alegado pelas partes, como, tendo a Juiz do julgamento dele pretendido aproveitar-se, não conferiu a qualquer das partes a possibilidade de sobre o mesmo se pronunciar.
16. A solução jurídica dada ao caso fundou-se num facto sobre o qual a autora F.. não teve oportunidade de se pronunciar, mormente para o contraditar com elementos probatórios que pudesse conduzir aos autos para o efeito, razão pela qual a consideração deste facto está ferida de nulidade processual, nos termos das disposições combinadas dos artºs 5º, nº 2, alínea b), 2ª parte e 195º, nº 1, do actual CPC, pelo que deverá este Facto Provado nº 34 ser desconsiderado e por isso removido da elencagem dos factos provados.
17. Para além disso, o facto em si mesmo não é facto algum, mas sim um conceito de direito (gerência de facto), inexistindo na demais elencagem dos factos provados qualquer factualidade que permita chegar à conclusão da “gerência de facto”, pelo que mesmo que se entenda que a inclusão do Facto Provado nº 34 não está ferida de nulidade processual, sempre se deverá dar o mesmo por não escrito, logo, de nenhum efeito.
Sem prescindir
Da irrelevância do Facto Provado nº 34 para a decisão da causa
18. Ainda que o Juiz não esteja limitado à configuração jurídica dada pelas partes à relação material controvertida, ele está, no caso dos autos, e por se tratar de uma acção de simples apreciação negativa, balizado pelo conhecimento dos factos constantes da interpelação objecto de impugnação, pois são esses – e apenas esses – os únicos a considerar para efeitos de se reconhecer – ou não – a produção de efeitos jurídicos à dita (interpelação).
19. Perscrutando o conteúdo do documento de fls 27 e seg. (interpelação dirigida pela Srª Administradora de Insolvência à autora F..) verificamos que nenhuma alusão é feita quanto à gestão de facto (ou de direito) da sociedade D.. SGPS, razão pela qual se torna absolutamente indiferente, para o destino da presente demanda, saber quem a geria, uma vez que tal não constituiu fundamento para a interpelação resolutiva ou de oponibilidade de resolução a transmissário posterior.
Sem prescindir
Da ilegalidade substantiva da solução jurídica adoptada
20. A decisão dos autos configurou a interpelação dirigida pela Srª Administradora de Insolvência à autora F.. como uma resolução incondicional em benefício da massa insolvente ao abrigo do disposto na alínea h), do nº 1, do artº 121º do CIRE, normativo este que preceitua serem resolúveis em benefício da massa os “actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência, e que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte”.
21. No caso dos autos o acto praticado não o foi pelo insolvente, mas sim por terceiro à insolvência (D.. SGPS).
22. E mesmo que se ficcione a desconsideração da personalidade jurídica da D.. SGPS, o negócio dos autos não poderá ser subsumível à previsão da alínea h) do nº 1 do artº 121º do CIRE, porquanto ele não ocorreu no ano anterior ao do início do processo de insolvência, mas sim cerca de dois meses após a declaração de insolvência de A.., logo em data em que o mesmo havia perdido a capacidade da realização de negócios jurídicos para a respectiva administradora de insolvência, o que, quando muito, levaria a uma situação de ineficácia em relação à massa.
23. Porquanto a diferença entre o valor real apurado para o imóvel e o preço pago pelo mesmo vem explicada pela circunstância de à data do negócio penderem três penhoras sobre aquele, também não resulta demonstrado ter a obrigação assumida por uma parte tenha excedido manifestamente a da contraparte.
Mas há mais…
24. De acordo com a cronologia dos factos, A.. vendeu o imóvel em discussão à sociedade I.., que por sua vez o revendeu à sociedade D.. SGPS, a qual, por seu turno, o transmitiu à autora F... Assim, se a sentença do autos considera que a D.. SGPS é, na realidade, o próprio A.., e que, por isso, a transmissão que conta para efeitos resolutivos é a última delas (a da D.. para a autora F..), então a mesma sentença terá forçosamente que considerar que o imóvel em questão nunca saiu da esfera de disponibilidade daquele A.., tendo-se mantido sob a sua égide (de facto) até à sua transmissão para a autora F...
25. Sucede que nada consta dos autos relativamente à gerência de facto ou de direito da sociedade I.., e respectiva desconsideração da sua personalidade jurídica.
26. Mesmo que se considere que a D.. é, na realidade, A.., sempre a transmissão para a autora F.. é uma terceira transmissão, distinta daquela que anteriormente havia sido resolvida pela massa (a transmissão do A.. para a I..).
27. E como a massa insolvente não pode resolver por duas vezes a transmissão do mesmo imóvel, a segunda das resoluções não poderá nunca ser considerada como uma verdadeira resolução, mas apenas como a invocação da oponibilidade de resolução anterior a transmissário posterior (artº 124º do CIRE).
28. A sentença recorrida violou, entre outros, as disposições constantes dos artºs 5º, nº 2, alínea b), segunda parte e 10º, nº 3, alínea a) do CPC e os artºs 121º e 124º do CIRE.» (sic)
Terminou defendendo a eliminação da matéria de facto dada como provada sob o item 34 da sentença e a revogação desta decisão final, a substituir por outra que julgue a ação procedente, declarando a inoponibilidade face à autora F.. da resolução em benefício da massa do negócio celebrado entre o insolvente A.. e a sociedade I.., S.A.

A R. Massa Insolvente contra-alegou defendendo a confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As questões a decidir respeitam apenas a matéria de Direito, constituem o objeto do recurso e estão delimitadas pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º, do Código de Processo Civil).
Com efeito, importa apreciar e decidir:
a). O conteúdo da comunicação da resolução do contrato em benefício da massa insolvente como definição dos limites da relação material controvertida;
b). A oponibilidade da resolução do negócio anterior ao posterior transmissário e a desconsideração da personalidade jurídica da vendedora;
c). Nulidade processual, por consideração de um facto não alegado como provado, sem que se concedesse às partes a possibilidade de sobre ele se pronunciarem;
d). De novo, o conteúdo da interpelação efetuada pela Sr.ª Administradora da Insolvência e o objeto do processo, por não constar da carta de resolução a gestão de facto (ou de direito) da sociedade D.., SA;
e). A verificação do fundamento de resolução previsto sob a al. h) do nº 1 do art.º 121º do CIRE;
f). A não desconsideração da personalidade jurídica da sociedade I.. e a solução sentenciada.
III.
Na 1ª instância foram fixados os seguintes factos [1]:
1- No final de Agosto de 2009 a A recebeu nas suas instalações a carta de fls 27 que aqui se dá por reproduzida, remetida pela senhora administradora de insolvência Ana Maria de Oliveira Silva.
2- A F.. adquiriu o prédio em apreço no dia 9-6-2009 a D.., SGPS, SA, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial do Dr Rodrigo Rocha Peixoto.
3- Sobre o prédio impendiam três penhoras para garantia de créditos sobre A...
4- Duas dessas penhoras encontravam-se registadas como provisórias por natureza atenta a divergência entre o executado e o titular inscrito.
5- Uma terceira havia sido lavrada como provisória por natureza, mas posteriormente convertida, sendo que a sociedade D.., SGPS impugnou o acto de conversão do senhor Conservador.
6- A penhora convertida tem por sujeito activo a C.. para garantia de um crédito de cerca de € 200.000,00.
7- Com a carta referida em 1 a administradora de insolvência declarou expressamente resolver a venda por carta registada com aviso de recepção datada de 26-8-2009.
8- B.. é sócio e gerente da A.
9- A F.. tomou conhecimento do facto referido em 3 aquando das negociações tendentes à concretização do negócio.
10- O risco da eventual necessidade de pagamento do crédito descrito em 6 foi considerado na economia do negócio em causa.
11- Tendo contribuído para que as partes fixassem em € 475.000,00 o preço da respectiva compra e venda.
12- Com a celebração da escritura referida a A pagou à D.. SGPS a quantia de € 475.000,00 por via da entrega de cheque bancário sacado sobre o B.. no montante de € 450.000,00 e cheque sacado sobre o mesmo banco no montante remanescente de € 25.000,00.
13- Na sequência de financiamento a curto prazo obtido para o efeito através do desconto de livrança.
14- O cheque bancário foi debitado na conta da A a 8-6-2009, data da respectiva emissão.
15- O cheque do valor remanescente foi entregue à data da escritura.
16- Mas continha lapso de escrita e foi devolvido.
17- Tendo sido substituído por outro que foi debitado na conta da A a 16-6.
18- Conjuntamente com o imóvel em questão a A adquiriu também à D.. SGPS o respectivo recheio mobiliário.
19- Pelo preço de € 5.000,00.
20- Pago por cheque debitado na conta a 18-6.
21- Com a celebração da escritura de compra e venda a A despendeu € 291,81.
22- Tendo antecipadamente liquidado a quantia de € 3.600,00 a título de imposto de selo.
23- Encontrando-se isenta de pagamento de IMT nas aquisições para revenda, tal constando do seu objecto social.
24- Imediatamente após a escritura pública de compra e venda a A tomou posse do prédio substituindo as respectivas fechaduras, trocando lâmpadas, acessórios de jardim e gás, no que despendeu € 221,45.
25- Por pretender revender o imóvel a A contratou com um arquitecto a realização de levantamento topográfico e de áreas do interior e exterior da casa.
26- No que despendeu € 1.000, 00.
27- O acesso ao imóvel é exclusivo da A e das famílias dos seus sócios.
28- O imóvel encontra-se encerrado.
29- A A paga o imposto municipal relativo ao imóvel.
30- Bem como o consumo de luz.
31- Há mais de 10 anos que o insolvente se relaciona com B...
32- O imóvel tem o valor real de cerca de €800.000,00.
33- A.. foi declarado insolvente por sentença proferida a 29-4-2009, que não foi objecto de recurso.
34- O insolvente é que geria de facto a D.. SGPS à data da venda.
35- O imóvel havia sido vendido à D.. SGPS pela sociedade I.., SA.
*
a). O conteúdo da comunicação da resolução do contrato em benefício da massa insolvente como definição dos limites da relação material controvertida
Defende a recorrente que a oponibilidade a si, enquanto posterior transmissário, da resolução operada pela Massa Insolvente, pressupunha que da carta de resolução a ela enviada pela Administradora da Insolvência constassem descritos os factos concretizadores da má fé. Argumenta que, por estar em causa uma ação de simples apreciação negativa, o conhecimento do tribunal está balizado pelo conhecimento dos factos constantes da interpelação objeto de impugnação, os únicos a considerar para efeitos de se reconhecer ou não a produção de efeitos jurídicos à resolução do negócio.
Vejamos.
Percursor do que no anterior regime falimentar (Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência) era designado nos respetivos art.ºs 156º a 160º por resolução em benefício da massa (art.º 156º) e impugnação pauliana, comumente designada por impugnação pauliana coletiva (art.º 157º), o regime agora aplicável, previsto nos art.ºs 120º e seg.s do CIRE[2] é apenas apresentado sob a forma de resolução em benefício da massa insolvente, com significativa divergência em relação àquele e chamando a ele pontos que naquele regime eram apresentados como fundamento de impugnação.
Enquanto o art.º 120º prevê, sob a epígrafe, pouco apropriada, de “princípios gerais”, o que a doutrina vem apelidando de fundamentos de resolução condicional, o subsequente art.º 121º, no seu nº 1, estabelece, taxativamente, fundamentos de resolução que a própria lei chama de incondicional, no sentido de que a resolução negocial em benefício da massa não depende de quaisquer requisitos que não estejam ali previstos, de modo alternativo, em cada uma das suas alíneas, dispensando, assim, no essencial, o requisito da má-fé de terceiro exigido nos casos de resolução condicional (cf. nº 4 do art.º 120º). Qualquer ato que não esteja previsto na enumeração do art.º 121º, nº 1, só poderá ser resolvido em benefício da massa insolvente se se verificarem os pressupostos do art.º 120º.
Por ter abolido a distinção entre resolução e impugnação pauliana, passando aquela a pressupor o requisito da má-fé, o legislador do CIRE sentiu necessidade de criar uma “resolução incondicionada”, dispensando esse requisito (ou outro), nos casos em que a resolução no CPEREF o dispensava ou em que a má-fé se presumia. [3]
Com uma e outra das referidas modalidades de resolução previstas no CIRE, o legislador permite ao Administrador da Insolvência que, através daquele instituto, extinga atos que, por terem sido realizados em determinadas circunstâncias ou condições, afetam de modo relevante os fins do processo de insolvência, como seja, principalmente, a satisfação igualitária dos direitos dos credores, assim eliminando vantagens que o devedor tenha concedido a algum credor, recuperando a massa as correspondentes atribuições patrimoniais.
É assim que o art.º 120º, nº 1 [4], estabelece a regra geral de que “podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência”.
O nº 2 do art.º 120º define a prejudicialidade dos atos em relação à massa insolvente como aqueles que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.
O nº 3 do mesmo preceito legal estabelece uma presunção iuris et de iure (assim, sem admissão de prova do contrário) de prejudicialidade relativamente à massa de atos determinados, precisamente os que estão tipificados nas al.s a) a i) do nº 1 do art.º 121º, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.
A resolução condicional pressupõe ainda a má-fé do terceiro, cuja existência se presume (presunção iuris tantum - art.º 350º, nº 2, do Código Civil) “quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data” (art.º 120º, nº 4), sendo cumulativos estes dois requisitos de tempo e relacionamento especial. Tem vindo a entender-se que as situações que relevam no âmbito da referida relação especial são as que constam do art.º 49º, incluindo as que já não existiam à data do ato ou que apenas existiram depois da sua prática. [5]
Não sendo caso de presumir a má-fé, esta ocorre nas situações previstas no nº 5 do art.º 120º, ou seja, quando, à data do ato, o terceiro conheça, em alternativa, as seguintes circunstâncias:
a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
b) Do carácter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;
c) Do início do processo de insolvência.
Esta norma refere-se à insolvência de facto e atual.
Em resumo, são requisitos gerais de resolução:
- Realização pelo devedor de determinado ato;
- Prejudicialidade do ato em relação à massa insolvente;
- Verificação desse ato nos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência; e
- Existência de má-fé do terceiro.
Deve ter-se em consideração que, quando a lei se refere a anterioridade ao “início do processo de insolvência” consideram-se também ali incluídos os atos praticados entre esse momento e momento posterior da prolação da sentença declaratória de insolvência, sob pena de lavrarmos num absurdo jurídico. Seria ilógico que fosse resolúvel um ato prejudicial praticado pelo devedor antes do início do processo e não o fosse outro da mesma categoria, e igualmente prejudicial, mas praticado entre o momento do início do processo e o da declaração de insolvência. [6] Tem aqui aplicação o disposto no art.º 4º, nº 2, segundo o qual “todos os prazos que neste Código têm como termo final o início do processo de insolvência abrangem igualmente o período compreendido entre esta data e a da declaração de insolvência”.
A resolução pode ser efetuada (pelo administrador da insolvência) por meio de carta registada com aviso de receção (art.º 123º, nº 1) [7], sendo este o meio mais prático e até mais consentâneo com a celeridade que a lei impõe ao processo de insolvência.
Por ser aquela forma menos solene, não fica dispensada a obediência a regras de transparência, contraditório e defesa de terceiros intervenientes no ato. Por maioria de razão se impõem aquelas garantias, como é próprio de um processo justo e equitativo.
Se o Administrador da Insolvência resolve o contrato por carta registada com aviso de receção (resolução extrajudicial) e se aquele com legitimidade para impugnar a resolução é que tem que recorrer a Juízo para impugnar aquele ato, então sempre terá que conhecer com um mínimo de indispensável rigor os fundamentos do mesmo ato do administrador, não podendo ser surpreendido depois da impugnação, por fundamento legal de resolução novo, que não tenha expressão relevante na carta registada, sob pena de violação do princípio do contraditório e da proibição da indefesa.
Com se extrai do acórdão da Relação do Porto de 24.11.2011 [8], deve entender-se que é a massa que tem o ónus de fazer prova da existência dos pressupostos da resolução que declarou unilateralmente à autora. Limitando-se o A. a impugnar a declaração de resolução do contrato, previamente efetuada pelo Administrador da Insolvência, pretendendo que fique sem efeito tal declaração, há de ser a massa insolvente a alegar e provar os factos em que fundamentou essa declaração, os pressupostos do direito à resolução, tal como ocorre nas ações de simples apreciação negativa, de estrutura semelhante (art.ºs 342º, nº 1 e 343º, nº 1, do Código Civil).
Proximamente, F. Gravato Morais [9] refere que, em virtude desta resolução carecer de específica motivação, é essencial que sejam invocados os fundamentos que a originam, os quais têm um conteúdo bem diverso da típica resolução extrajudicial. E, dando exemplo da prestação de fiança, no caso de resolução incondicional (art.º 121º, nº 1, al. d)), refere que “mostra-se necessário que se declare qual o acto em causa, o prazo em que foi outorgado, a data de início do processo de insolvência e a circunstância de não respeitar a uma operação com real interesse para o insolvente”. Nos casos de resolução condicional, para além da invocação do ato em concreto, há ainda que enunciar, quando não funcionar a presunção inilidível do art.º 120°, n° 3, a causa que leva a considerar aquele ato como prejudicial, assim como o circunstancialismo que envolve a má fé, quando não funcione a presunção juris tantum do art.º 120°, n° 4.
Esta posição é secundada no acórdão desta Relação de Guimarães de 26.3.2009 [10], onde se refere: “… a menos que a resolução assente numa das situações previstas no art.º 121° do CIRE, nos demais casos cumpre ao Administrador alegar os factos que traduzem a prejudicialidade dos actos por ele visados e bem assim os que caracterizam a má fé do adquirente, pois só assim ele pode vir a juízo deduzir impugnação de modo relevante”.
É lapidar o acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 17.9.2009[11] : “ (…) a acção de impugnação é pela sua natureza uma acção de contra-ataque e, por isso, tem o impugnante de conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são desferidos; só assim está ele em condições de poder demonstrar a insubsistência do acto resolutivo; o impugnante não vai atacar factos ou fundamentos que não lhe foram revelados na carta de resolução: não pode ser surpreendido, por outro lado, com novos factos ou novas razões quando a acção de impugnação se encontra já em andamento”.
Temos assim que, para funcionar a al. h) do nº 1 do art.º 121º do CIRE, aqui em causa, enquanto fundamento de resolução incondicional que é, sob presunção iure et de iure, bastará, em princípio, que o Administrador da Insolvência identifique o ato jurídico objeto de resolução, invoque e prove a natureza (a sua onerosidade), o tempo (sendo de um ano o período de suspeição, a contar, regressivamente, da data do início do processo de insolvência) e tempestividade desse ato, e ainda que as obrigações assumidas excedam manifestamente as da contraparte. Sendo este último o pressuposto decisivo para efeito da resolubilidade do ato, ele ocorre quando existe uma manifesta excessividade de falta de equivalência ou evidente desproporção entre as prestações das partes no momento da prática do ato, sendo a parte mais onerada o devedor insolvente. Esta avaliação deve ser feita caso a caso, em função do específico bem alienado.
Não é indispensável que o Administrador da Insolvência cite corretamente a disposição legal relativa ao fundamento de facto invocado. Todavia, quando é feita a citação legal, esta funciona como critério de explicitação dos fundamentos fáticos da resolução, as características e as circunstâncias do ato negocial em que o Administrador da Insolvência se baseou para resolver o negócio, de modo a poder exercer adequadamente a sua defesa, designadamente o contraditório.
Analisemos então, mais concretamente, a carta registada com A/R enviada pelo Administrador da Insolvência à A. em ordem a apurar se cumpre os requisitos acima enunciados.
O Administrador da Insolvência refere-se expressamente à “resolução incondicional em benefício da massa” do contrato de compra e venda do prédio misto que identifica regularmente, celebrado no dia 9.6.2009. E que, alega, foi assim adquirido pela A. à sociedade D.., SA, esta representada por P.., genro do devedor insolvente. Cita de modo global os “artigos 120°, 121°, 123°, 124° e 126° do CIRE”, sem que, no entanto, enquadre a situação em qualquer das alíneas do citado art.º 121º, relativo à invocada resolução incondicional, o que, desde logo, dificulta a impugnação da resolução por parte da A.
Mas, admitindo que a impugnante há de considerar que está em causa a al. h) do nº 1 do art.º 121º, conterá a carta do Administrador da Insolvência os fundamentos fáticos essenciais da resolução?
Estamos em crer que não.
São conhecidas duas posições sobre a matéria, citadas no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2014 [12], segundo o qual:
«Uma, mais rigorosa, na esteira do entendimento firmado no Acórdão do STJ de 17.09.2009 [13], no sentido de que o administrador tem de indicar os concretos factos fundamento da resolução; só dessa forma está o impugnante em condições de impugnar a resolução, não podendo a deficiência de fundamentação do acto ser suprida em sede de contestação à acção de impugnação, com indicação de novo quadro factual ou outros vícios. "A impugnação visará a negação dos factos invocados pelo administrador para fundamentar a resolução que extrajudicialmente declarou"
Outra posição, mais moderada, reconhecendo que o terceiro tem o direito de impugnar o acto de resolução, afirma que ele deve conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele foram invocados. Todavia, a declaração de resolução apenas carece da indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução, da qual se depreenda o porquê da decisão tomada[14] ». E. citando-se ali também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.2014[15] , refere-se que “a resolução do contrato pelo Administrador da Insolvência, "embora não exija para a sua plena eficácia uma justificação completa que esgote todos os fundamentos, deverá contudo, conter os elementos fácticos suficientes que permitam ao destinatário saber o porquê da resolução, e essa suficiência deverá ser objecto de análise casuística".
Segundo o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2014, a declaração de resolução há de “integrar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação. Só nesta medida, conhecedor desses factos e razões, este terceiro fica em condições de os poder impugnar, como a lei lho permite”. E exemplifica-se ali: “Dizer que uma compra e venda é um acto prejudicial à massa insolvente, sendo óbvio que tal acto, inevitavelmente, diminui a satisfação dos credores constitui uma afirmação genérica e vaga que nada esclarece sobre esse invocado prejuízo”.
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.3.2014 [16] se refere que “a declaração de resolução, efectuada pelo Administrador da Insolvência, deve indicar os concretos fundamentos invocados para legitimar o exercício desse direito potestativo, não podendo a deficiência de fundamentação da declaração de resolução ser suprida na contestação da respectiva acção de impugnação”. Na sua configuração geral, a ação de impugnação tem em vista a negação dos factos invocados pelo Administrador da Insolvência para fundamentar a resolução que declarou extrajudicialmente.
Embora se refira a “compras e vendas, sucessivas… como diminuíram a satisfação dos credores do insolvente A..”, a carta não as identifica, nem os compradores e vendedores, não as situa no tempo, assim como não revela os respetivos preços de compra, designadamente da primeira transmissão do bem. Apenas se considera ali que o imóvel transacionado tem o valor de € 800.000,00 e, conclusivamente, que as vendas são nulas, por simulação. Da carta também não resulta a data do início do processo de insolvência, não permitindo, assim, verificar se o facto jurídico a resolver foi praticado dentro do ano anterior à data do início daquele processo.
Sobretudo, o Administrador da Insolvência nada disse quanto à má fé da impugnante (ou de qualquer transmissário anterior), olvidando que, se tal requisito não tem que existir relativamente àquele que adquire do insolvente, o mesmo já é indispensável relativamente a todos os transmissários posteriores. É o próprio art.º 124º, nº 1 que refere que a “oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má fé destes,…”[17] . Transmissários posteriores, no quadro daquele normativo, são sempre os transmissários sucessivos por referência àquele que contratou com o insolvente.
Como escreve F. Gravato Morais[18] , basta que um dos transmissários esteja de boa fé para que não se verifique um dos requisitos da disposição e, portanto, que o ato praticado seja inteiramente eficaz em relação este, competindo ao Administrador da Insolvência provar a má fé dos terceiros transmissários. Trata-se de terceiros que não contrataram com o (agora) devedor insolvente, podendo --- o que será provável --- este até nem o conhecer. Donde há que fazer algumas adaptações quanto ao conceito de má fé previsto no nº 5 do art.º 120º, relativamente ao terceiro adquirente. Se este transmissário “tinha (ou devia ter) conhecimento, aquando da realização do negócio, de que o seu contraente directo tinha adquirido de uma pessoa em situação de insolvência, ou ainda tinha (ou devia ter) conhecimento do carácter prejudicial do acto e de que aquele sujeito se encontrava numa situação de insolvência iminente, ou eventualmente do início do processo de insolvência, parece-nos estar verificada, em qualquer das hipóteses equacionadas, a situação de má fé do terceiro adquirente”.
A carta refere que na venda que a D.., SA efetuou do imóvel à A. (facto que, aliás, não pode deixar de ser do conhecimento desta, enquanto adquirente) foi representada pelo genro do insolvente A... Mas ainda que se admita que a vendedora D.., SA, pelo seu representante, conhecia ou tivesse obrigação de conhecer a situação de insolvência de A.., a iminência da sua insolvência, ou ainda que tivesse conhecimento do início do processo de insolvência, em razão dos laços de parentesco que os une, a verdade é que da carta não resultam quaisquer factos que indiciam e permitam construir um juízo de má fé no quadro deste conceito jurídico relativamente à A. compradora. [19] Nada se refere ali no sentido de que a A. tivesse ou devesse ter conhecimento de qualquer situação relacionada com o insolvente, tão-pouco que a sua pessoa fosse conhecida por qualquer seu representante de facto ou de direito. Não consta tão-pouco da carta qualquer facto que possa ser considerado como percursor ou indicativo dos factos suscetíveis de preencher o requisito da má fé da A. e que foram depois alegados na contestação. Má fé que --- ao contrário do que se afirma na sentença recorrida --- não pode presumir-se, atenta a expressão usada no nº 1 do art.º 124º. E, como argumenta F. Gravato de Morais [20], “entendemos que cabe àquele que pretende prevalecer-se da oponibilidade fazer essa demonstração. Desta sorte, é o administrador da insolvência que tem o ónus de provar a má fé do(s) terceiro(s) transmissário(s)”. Indício forte da má fé poderá ser uma especial relação de proximidade existente entre o terceiro transmissário e o que contratou com o devedor insolvente (ou até com o próprio insolvente), mas nem isto foi alegado na carta envia pelo Administrador da Insolvência à A.[21]
Como referimos já, o Administrador da Insolvência não faz também qualquer referência ao preço praticado no primeiro contrato de compra e venda, em que foi parte o insolvente, não concretizando, assim, qualquer discrepância relevante entre o valor ali praticado e o valor real do bem que diz ser de € 800.000,00, sendo que a al. h) do nº 1 do art.º 121º tem como pressuposto essencial da resolução incondicional que as obrigações assumidas pelo insolvente excedam manifestamente as da contraparte. E se o posterior transmissário não tem que conhecer esta discrepância, ela tem sempre que existir.
Com a receção da carta, nada pôde a A. ponderar também nesta matéria essencial.
Estamos, assim, perante omissões de factos e referências conclusivas na declaração de resolução, estas por si insuficientes ou mesmo irrelevantes e que, nessa medida, a impugnante não teria sequer necessidade de contrariar especificadamente por contraprova relativamente a factos constitutivos do direito de resolução que a Administrador da Insolvência exerceu e à qual compete o ónus de alegação e prova nos termos do art.º 343º, nº 1, do Código Civil [22], por se tratar de uma ação de simples apreciação negativa, competindo apenas ao impugnante a negação dos factos invocados para fundamentar a resolução operada pelo Administrador da Insolvência, não podendo ser surpreendido com factos essenciais ou fundamentos novos, como é o caso dos que constam dos artigos 25º e seg.s da contestação, com que se pretende suprir as deficiências da declaração de resolução, designadamente em matéria de má fé.
Por isso se tem entendido também que a alegação pelo impugnante da inexistência de prejudicialidade do ato ou de má fé não constituem factos extintivos do direito de resolução, sendo antes a negação dos factos necessários ao nascimento do direito de resolução que, por via extrajudicial, foi exercido pelo Administrador da Insolvência.
Não impondo a lei exaustividade quanto às exigências substanciais da carta resolutiva, tem, no entanto, de entender-se que tal carta carece de conter factualidade suficiente para fazer nascer o direito de resolução, pois a deficiência de fundamentação da declaração de resolução não pode ser suprida na contestação da ação de impugnação daquela resolução. Só dessa forma o autor fica em condições de poder impugnar a resolução, através da ação prevista no art.º 125º.
Esta também não é uma questão nova no recurso. A A. Logo na petição inicial, deu conta do seu inconformismo relativamente à insuficiência da declaração resolutiva, nos seguintes artigos:
“5. A F.. desconhece quer a pessoa do insolvente, quer a sociedade a quem este terá transmitido o prédio em questão, quer, sequer - até à data - a existência do presente processo de insolvência.
6. A F.. negociou exclusivamente com os representantes legais da D.., SGPS, mais propriamente com o seu Administrador P.. e, fundamentalmente e com o ROC A.., residente na cidade do Porto,

36. Desconhece a F.. se assiste razão à Srª Administradora de Insolvência no que concerne à eventual resolução em benefício da massa insolvente da compra e venda do prédio em apreço celebrada entre o insolvente A.. e o adquirente I..
37. Tal, porém, não é nem nunca poderá ser oponível à F.., que adquiriu de quem não é insolvente, pagou o respectivo preço, tomou posse da coisa, desconhecendo – sem qualquer obrigação de conhecer – eventuais vicissitudes a montante da sua aquisição.
38. Aliás, para que a resolução em benefício da massa seja oponível à F.. (posterior transmissário) necessário se torna demonstrar que esta se encontrava de má fé (vide artº 124º, nº 1 do CIRE), circunstância que nem tampouco é alegada pela Srª Administradora de Insolvência na carta que envia, …”.
Decorre de tudo quanto ficou exposto que, por falta de requisitos essenciais da carta resolutiva que a Administradora da Insolvência enviou à A., o recurso merece proceder, com a consequente revogação da sentença recorrida, declarando-se a inoponibilidade da resolução do contrato em relação à impugnante F.., LDA., ficando prejudicado, por desnecessidade, o conhecimento das restantes questões da apelação.
Na ação de impugnação, não é admissível pedido reconvencional, para declarar a eficácia do negócio resolvido ou a sua simulação [23].
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Embora se presuma iuris et de iure que as situações taxativamente previstas sob as alíneas a) a i) do nº 1 do art.º 121º do CIRE (causas de resolução incondicional de atos jurídicos em benefício da massa insolvente) são prejudiciais à massa, dispensando a lei também a má-fé, o fundamento de resolução considerado pelo Administrador da Insolvência tem que ser invocado e ficar razoavelmente identificado e explicitado na declaração resolutiva extrajudicial que tenha lugar, de modo a que o destinatário com legitimidade para a sua impugnação possa exercer cabalmente o seu direito ao contraditório e à sua defesa quando invoca a ilicitude e visa a ineficácia do ato resolutivo.
2. Além disso, havendo que alegar e provar na ação o requisito da má fé do transmissário do bem objeto da compra e venda, nos termos do art.º 124º do CIRE e do art.º 343º, nº 1, do Código Civil, o Administrador da Insolvência não pode deixar de referir suficientemente na carta resolutiva que envia ao comprador os factos concretos essenciais em que faz assentar a sua má fé.
IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando-se a decisão recorrida, declara-se a procedência da ação, com a inoponibilidade do ato resolutivo da R. relativamente à A. impugnante F... LDA.
Custas da apelação pela massa insolvente (art.º 527º do Código de Processo Civil e art.º 304º do CIRE).
Guimarães, 22 de janeiro de 2015
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] Por transcrição.
[2] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anotado, Almedina 13ª Edição, 2013, pág. 152.
[4] Na redação que precedeu a que foi introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20 de abril, atenta a data da resolução do contrato.
[5] L. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, Quid Juris, 2009, pág. 429.
[6] Neste sentido L. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 430.
[7] Entendemos que não estão excluídas outas formas possíveis de resolução, designadamente a ação ou mesmo a via de exceção.
[8] In www.dgsi.pt.
[9] Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, 2008, pág. 164.
[10] Colectânea de Jurisprudência, T. II, pág. 311.
[11] Proc. n.º 307/09.1YFLSB, in www.dgsi.pt.
[12] Proc. 251/09.2TYVNG-R.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[13] Acessível in www.dgsi.pt.
[14] Entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 29.09.2009, de 24.11.2011, de 05.12.2013 e de 18.12.2013, in www.dgsi.pt, ali também citados.
[15] In www.dgsi.pt.
[16] Proc. 251/09.2TYVNG-I.P, in www.dgsi.pt.
[17] Sublinhado nosso.
[18] Ob. cit., pág.s 177 e 178.
[19] Tal como nada refere nesta matéria relativamente a transmissários anteriores do bem, excluindo o que adquiriu diretamente do devedor insolvente, que o Administrador da Insolvência não identifica por referência concretizada a cada contrato, não resultando sequer da carta, com o mínimo de rigor, quantos contratos de compra e venda e adquirentes houve do bem imóvel até ser adquirido pela A.
[20] Ob. cit., pág.s 177 e 178.
[21] Foi alegada apenas na contestação e não logrou adesão de prova.
[22] Cf. citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.3.2014.
[23] Cf. citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.3.2014.