Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
258/12.2PCBRG.G1
Relator: ANA TEIXEIRA E SILVA
Descritores: LOCAL DA PRATICA DO CRIME
ELEMENTO NÃO ESSENCIAL DA ACUSAÇÃO
INEXISTÊNCIA DE NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) A falta de indicação do lugar da prática do crime não pode determinar a rejeição da acusação até porque a omissão desse elemento, não equivale a uma acusação que «não contém a narração dos factos».
II) Por isso, impõe-se a revogação da decisão recorrida que julgou nula e rejeitou por manifestamente infundada a acusação deduzida contra o arguido, por não fazer referência ao lugar da prática do ilícito.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
O Assistente FRANCISCO L. veio interpor recurso do despacho da Mmª Juiz do 1º Juízo Criminal de Braga, na parte em que, ao abrigo do disposto nos artºs 285º, nº3, 283º, nº3, al. b), 311º, nºs 1, 2, al. a), e 3, al. b), do CPP, julgou nula e rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação por si deduzida contra Bernardino O..
O Ministério Público respondeu no sentido da manutenção do despacho recorrido.
Nesta instância, o Sr. Procurador-Geral Adjunto não aderiu à posição do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, emitindo parecer no sentido da falta de fundamento legal do despacho judicial que não recebeu a acusação.
II - FUNDAMENTOS
1. O OBJECTO DO RECURSO.
A questão suscitada: a falta de indicação do lugar da prática do crime não pode determinar a rejeição da acusação.
2. O DESPACHO RECORRIDO.
Apresenta o seguinte conteúdo (na parte que releva):
Nos termos do artº 311º, nº 2 al. a) do Código de Processo Penal, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada – salientando-se que a acusação particular deduzida a fls 250 e sgs, conforme aliás consignado a fls 297, não foi objecto de instrução.
Dispõe o nº 3 al. b) da referida norma que a acusação se considera manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos.
Nos termos dos artºs 285º, nº 3 e 283º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Compulsado o teor da acusação particular deduzida a fls 250 e sgs dos autos, verifica-se ocorrer a nulidade acima aludida porquanto que a acusação não contém qualquer descrição factual que permita aferir da localização espacial dos factos que vêm imputados ao arguido, mormente o local onde alegadamente o assistente recebeu as referenciadas mensagens, facto este necessariamente do seu conhecimento pessoal, sendo, por outro lado, facto por demais relevante para aferir da designadamente da competência territorial do Tribunal.
Com efeito, constata-se que à data da denúncia o assistente tinha residência em …, Guimarães; e por outro lado, o arguido tinha residência em …, Guimarães, exercendo este alegadamente funções profissionais em …, desconhecendo-se pois, dada a referida omissão, imputável ao assistente, em que medida a comarca de Braga poderá ter conexão com os factos descritos na acusação.
(…)
Pelo exposto:
- (…);
- Julgo, no mais, a acusação particular nula, por falta de descrição factual dos factos, pelo que a rejeito por manifestamente infundada, ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 285º, nº 3, 283º, nº 3, al. b) e 311º, nº 1, nº 2, al. a) e 3 al. b), todos do Código de Processo Penal.

3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO.
O cerne da factualidade narrada na acusação particular (“acompanhada” pelo Ministério Público), integradora do ilícito de injúria p. e p. pelo artº 181º, nº1, do CP, pode resumir-se da seguinte forma: entre os dias 7 de Dezembro de 2010 e 5 de Setembro de 2011, o Arguido enviou ao Assistente “inúmeras mensagens SMS Cujos conteúdos foram integralmente reproduzidos, após a menção dos respectivos dia e hora. ofensivas da sua honra e dignidade Fls. 250-257, 266-267..
Lida a referida peça, constata-se que não é indicado o lugar de recebimento das mensagens (o que o Recorrente não contesta).
De harmonia com o disposto no artº 283º, nº3, do CPP (aplicável por força do artº 285º, nº3, do CPP), a acusação particular contém, “sob pena de nulidade” (no que ora releva):
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
O artº 311º do CPP versa sobre o “saneamento do processo” nos seguintes termos Nas partes expressamente convocadas no despacho recorrido.:
2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
b) Quando não contenha a narração dos factos.”
A interpretação que a Mmª Juiz a quo faz das ditas normas, concluindo pela sua aplicação ao caso em apreço, é inadmissível.
Em primeiro lugar, porque mesmo que tivesse ocorrido a dita “nulidade da acusação” (nos termos do artº 283º, nº3, do CPP), não seria “insanável” e por isso, não poderia ser oficiosamente declarada (artºs 119º e 120º, nº1, do CPP).
Em segundo lugar, porque o “lugar” da prática do crime não configura “elemento essencial” do tipo criminal imputado Neste sentido, v. os acs. da RC de 07/07/2010 e 13/19/2010, citados no Parecer do Digno PGA, a fls. 332., nem é susceptível de prejudicar o direito de defesa do Arguido.
Em terceiro lugar, porque a falta de indicação desse “lugar” não equivale a uma acusação que “não contém a narração dos factos”.
E em quarto lugar, porque o desconhecimento (imputável, ou não, ao Assistente) da localização do crime, ainda que pudesse “perturbar” a definição do tribunal territorialmente competente A única “preocupação” manifestada pela Mmª Juiz. , não consubstancia causa de “nulidade” ou de “rejeição” da acusação.
Como bem se refere no ac. da RE de 10/10/2006, relatado pelo Desemb. João Gomes de Sousa No proc. 996/06-1, www.dgsi.pt, citado pelo Recorrente na sua Motivação, a fls. 313.
:
É esse o papel da al. a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. Evitar a todo o custo que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório. (…)
Aliás, é interessante verificar que as várias alíneas daquele nº 3 vêm a consagrar uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício.
As nulidades da acusação estão previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Como se sabe e em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, estão construídas como nulidades sanáveis – cfr. artigos 118º a 120º do Código de Processo Penal.
Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita - nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º.
Daí que exista uma íntima conexão entre o nº 3 do artigo 283º e os números 2 e 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver acto imprestável, mas passível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar.
Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.
Naturalmente que essa tendencial taxatividade só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador, mas de igual ou mais grave violação da constituição processual penal. Veja-se o exemplo citado por Simas Santos, Leal Henriques, Borges de Pinho, de acusação do lesado em vez do arguido ou de familiar deste em vez do arguido.
Num caso de contornos factuais semelhantes, decidiu a RC com argumentação plenamente aplicável ao destes autos, salientando-se os excertos seguintes Ac. de 13/10/2010, relatado pelo Desemb. Vieira Marinho no proc. 135/08.1GASEI.C1, www.dgsi.pt.:
(…) como refere Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, 17ª Ed., pág. 728: “Acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade. Os casos em que, para efeitos do n.º 2, a acusação se considera manifestamente infundada estão agora enumerados no n.º 3.”
(…) estando em causa apenas a omissão na acusação da referência ao lugar da prática dos factos narrados na mesma, tratando-se, assim, de uma circunstância meramente acidental e não de um elemento essencial à constituição do tipo de ilícito penal imputado ao arguido.
Mas também não pode dizer-se que se verifique, no caso, a situação prevista na al. b), do n.º 3, do mesmo normativo, porquanto se constata que a referida acusação contém a narração dos factos, tendo sido omitida apenas a citada referência ao lugar da prática dos factos, tratando-se, porém, de uma circunstância a incluir apenas se possível, nos referidos termos legais.
E, como já se decidiu no acórdão de 30.05.2007, deste Tribunal da Relação, proferido no recurso n.º 9563/2006-3 (in www.dgsi.pt): “Não deverá ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo MP contra a arguida … ainda que contendo uma enunciação fáctica deficiente, se aquela comporta factos bastantes minimamente susceptíveis de justificarem a aplicação de uma pena.”
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª Ed., UCE, pág. 790: “O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.”
E, a propósito da articulação do n.º 3, do art.º 311º com a nulidade prevista no n.º 3, do art.º 283º, escreve Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2000, págs. 207 e 208, no que se refere à al. b), deste último normativo: “Se não há factos objecto da acusação, não pode haver processo, a relação é inexistente, não pode manter-se o processo e, por isso, o juiz não deve receber a acusação. A narração defeituosa, mas suprível, constitui nulidade sanável e, por isso, não é também causa de rejeição da acusação, se não for arguida.”
Finalmente, uma última nota para referir apenas que a questão da “competência territorial” que o Exm.º Juiz “a quo” suscita, na decisão recorrida, tem que ser resolvida no quadro normativo estabelecido nos art.ºs 19º a 23º (Secção II, do Capítulo II, do Título I, do Livro I) e 32º e 33º (Capítulo III, do Título I, do Livro I), do Código de Processo Penal e não, como o fez, por via da rejeição da acusação, sendo certo que, se assim fosse, o caso acabaria por não ser julgado, quer por tribunal competente, quer por tribunal incompetente.”
Face ao exposto e aproveitando as palavras do Desemb. João Gomes de Sousa In ac cit. de 10/10/2006., também o caso sub judicio está longe de configurar a hipótese da alínea b) do nº 3 do artº 311º do CPP, a qual “deverá ser interpretada, de forma extrema, como de ausência total ou parcial mas grave, “manifesta”, de factos” (o que aqui não ocorre).

Em conclusão: impõe-se a revogação da decisão sub judice, na parte que culminou em Julgo, no mais, a acusação particular nula, por falta de descrição factual dos factos, pelo que a rejeito por manifestamente infundada, ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 285º, nº 3, 283º, nº 3, al. b) e 311º, nº 1, nº 2, al. a) e 3 al. b), todos do Código de Processo Penal.

III - DECISÃO
1. Concede-se provimento ao recurso interposto pelo Assistente FRANCISCO L. e em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a sua substituição por despacho que designe data para a audiência de julgamento.
2. Sem custas.

23 de Março de 2015