Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3778/14.0T8GMR-B.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ARRESTO
LEGITIMIDADE PASSIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Na acção de impugnação pauliana, a relação controvertida envolve três sujeitos – o credor prejudicado, o devedor alienante e o terceiro adquirente – sendo necessária a intervenção de todos, como salvaguarda do princípio do contraditório, pelo que há litisconsórcio passivo.
II – Quando o arresto visa acautelar efeitos da impugnação, designadamente a pauliana, a legitimidade passiva para o respectivo processo terá que coincidir com a legitimidade passiva para a acção de impugnação.
III – Sendo o arresto requerido quando ainda não tiver sido impugnada a aquisição, o requerente deve alegar os factos que tornem provável a procedência da acção.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
A.., Lda. instaurou o presente procedimento cautelar de arresto contra B…e a sua filha C… pedindo o arresto do prédio urbano, denominado “Assento do Casal de Castelães de …”, sito no lugar de Castelães, freguesia de Ponte, concelho de Guimarães, para garantia de um crédito seu sobre o requerido em montante superior a € 159.000,00, resultante do incumprimento de um contrato que celebrou com o requerido e a sociedade D… Unipessoal, Lda., de que aquele era sócio e gerente, o qual teve por objecto a recuperação e gestão desta sociedade, sendo que o requerido, em 25 de Outubro de 2013, doou à sua filha e ora requerida C…, por conta da respectiva quota disponível, dois prédios urbanos e o respectivo recheio e ainda o recheio de outro prédio urbano, agindo ambos com o propósito de impedir a satisfação do crédito da requerente, pelo que pretende vir a instaurar acção de impugnação paulina da referida doação, a que o presente arresto será apenso, e assim acautelar posteriores transmissões.
Foram inquiridas as testemunhas indicadas pela requerente e foi decretado o arresto do referido imóvel.
Inconformados com tal decisão vieram os requeridos recorrer da mesma, culminando as alegações por si apresentadas com as conclusões que a seguir se transcrevem:
No recurso da requerida
«1. Ao abrigo dos arts. 627º.º, 629.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, segunda parte e 644.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC), vem a presente apelação interposta da douta sentença proferida nos Autos supra à margem referenciados que julgou o procedimento cautelar procedente e decretou o arresto do prédio denominado «Assento do Casal de Castelães de …», sito no lugar de Castelães, freguesia de Ponte, Guimarães, descrito na CRP de Guimarães sob o nº …/20030813, freguesia de Ponte.
2. O presente procedimento cautelar foi intentado por apenso ao Processo n.º 405/12.4TCGMR, acção principal onde a requerente pretende ver reconhecido o seu crédito e peticiona a condenação solidária de B… e da sociedade “D…, Unipessoal, Limitada” no pagamento da quantia que liquida.
3. No procedimento cautelar de arresto, ao credor compete alegar e provar indiciariamente a existência do crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial, facto que apenas pode ser apurado no confronto com o património de ambos os devedores (por a dívida ser alegadamente solidária).
4. Assim, correndo termos acção principal onde se peticiona o reconhecimento de um crédito relativamente a dois devedores, não pode o credor intentar, por apenso, procedimento cautelar de arresto contra apenas um deles – art.º 33.º, nºs 1 e 2 do CPC.
5. A Requerente intentou o presente arresto apenas contra B…, pelo que se impõe a anulação da douta sentença, devendo ser proferido douto acórdão que absolva os Requeridos da instância, por preterição do litisconsórcio necessário.
6. Sem prescindir, a Requerente pretende o arresto de bens de terceiros relativamente à relação creditícia, nos termos do art.º 391.º, n.º 2 do CPC, in casu, de bens da esfera jurídica da Apelante, alegando que os Requeridos, B… e a sua filha C…, com vista a impedir a satisfação do crédito da Requerente, celebraram contrato de doação constante de fls. 11 a 14 dos Autos.
7. Nestes casos, não estando pendente acção pauliana, pelo menos no tocante ao bem objecto do acto impugnado exige-se a alegação e a prova indiciária (ónus a cargo do credor) do justo receio da prática pelo terceiro de actos, v.g., de alienação e/ou oneração.
8. Assim, relativamente à Apelante, não consta do requerimento inicial e nem da factualidade indiciariamente provada qualquer facto susceptível de integrar o requisito do "periculum in mora"; isto-é, o risco de a Apelante lograr dissipar os bens que lhe foram doados pelo seu pai (Requerido) e que a Apelada pretende vir mais tarde a executar no seu património.
9. Razão pela qual não se mostram preenchidos todos os requisitos do procedimento cautelar requerido contra bens na esfera patrimoniais de terceiro relativamente à relação creditícia, impondo-se a revogação da douta sentença apelada e a sua substituição por douto acórdão que julgue o arresto totalmente procedente, com as legais consequências.
10. Ainda sem prescindir, mostra-se apenas provado que o Requerido, na qualidade de sócio-gerente da firma "D… Unipessoal, Limitada", se encontrava obrigado “a manter-se como sócio-gerente da sociedade D…, Unipessoal, Lda., a não praticar qualquer acto de gestão nesta sociedade e a manter a procuração outorgada nessa data a favor de representante da Requerente (segunda outorgante), constante de fls. 89, ou de quem esta vier a designar para a presentar na execução do contrato”.
11. Ainda que se mostre indiciariamente provado que o Requerido não cumpriu aquelas suas obrigações, são se vislumbra da factualidade indiciariamente provada qual a consequência do incumprimento, pelo que não é possível, com base em qualquer instituto de Direito, considerar a Requerente credora de qualquer quantia.
12. Por outro lado, relativamente ao ponto 8, o Tribunal a quo não explica, na fundamentação de facto, porque razão dá como provado que o contrato de doação constante de fls. 11 a 14 dos Autos foi celebrado “com vista a impedir a satisfação do crédito da Requerente”.
13. Razão pela qual a douta sentença enferma da nulidade a que alude o art.º 615,º, n.º 1, alínea b), do CPC, que expressamente se argui;
14. Já quanto ao ponto 9 dos factos indiciariamente provados, o Tribunal a quo justifica que a testemunha João … “referiu que se constava que o Requerido se tinha «divorciado» da mulher para alienar os bens”.
15. Salvo o devido respeito, a referência ao que “se constava” não é suficiente para dar como indiciariamente provado o ponto 9, isto porque:
a. O Tribunal a quo não conhece e, por isso, ignora cm que termos o Requerido se separou de pessoas e bens (designadamente como foram os bens partilhados);
b. João … é pessoa com relações comerciais com a Requerente e quem esta sugeriu para ser o procurador da sociedade "D… Unipessoal, Limitada", portanto, fiel e da sua inteira confiança, não havendo justificação para conhecer a vida do Requerido;
c. A prova indiciária sobre a Inexistência de bens é facilmente obtida por documentos oficiais (das finanças c das conservatórias), que não constam dos Autos e facilmente poderiam ser obtidos pela Apelada e pelo Tribunal a quo; e
d. Não se demonstrou que a sociedade “D…, Unipessoal, Limitada” não tenha bens para garantir a totalidade da pretensa dívida, ou que o Requerido não tenha rendimentos suficientes para o efeito;
16, Razão pela qual o Tribunal julga indiciariamente provado o ponto 9 pura e simplesmente em função do que “se consta”, o que é, salvo o devido respeite, um clamoroso erro de julgamento;
17. Em consequência, o ponto 9 deve ser julgado não provado, o que expressamente se requer a V.ªs Ex.ªs, Venerandos Juízes Desembargadores,
18. Não se encontrando indiciariamente provado o crédito da Apelada sobre o Requerido e a existência do justo receio de perda da garantia patrimonial, impõe-se a revogação da douta sentença apelada, a qual deve ser substituída por douto acórdão que julgue o procedimento cautelar totalmente improcedente, com as legais consequências.
19. A decisão recorrida violou os arts. 33.º, n.ºs 1 e 2 e 391.º, n.º 2 do CPC e os arts. 610.º, 613.º e 616.° do Código Civil.»

No recurso do requerido
«1ª - O tribunal a quo decretou o arresto do prédio urbano, denominado «Assento do Casal de Castelães de …», ali melhor identificado.
2ª - Não foram invocados - nem provados - quaisquer factos que permitam inferir do justo receio de perda da garantia patrimonial em relação aos requeridos, mormente à requerida.
3ª - Não é imputado à requerida nenhum comportamento no sentido de que pretende onerar ou alienar os bens transmitidos e, consequentemente, a possibilidade de frustração da sua execução pela requerente.
4ª - Para que se prove o justo receio não basta a alegação de meras convicções, desconfianças ou suspeições de carácter subjectivo.
5ª - Não foram imputados aos requeridos, mormente à requerida, factos concretos e objectivos que permitam concluir pela intenção de dissipação do bem objecto do arresto.
6ª - O crédito alegado pela requerente resulta - sem prejuízo do que se aduziu em sede de oposição - de um contrato celebrado entre a requerente, o requerido e a sociedade D… Unipessoal, Lda. e que, eventualmente, dará origem a uma responsabilidade - que não se admite em concreto - solidaria entre requerido e a sociedade D…, Unipessoal, Lda..
7ª - Conforme resulta dos elementos de prova junta aos autos pela requerente - o contrato, a missiva de remetida a resolver o contrato, de 16 de Agosto e os respectivos registo e aviso de recepção - deveria ter sido dado por provado indiciariamente que:
7. A Requerente em 16 de Agosto de 2012 comunicou à sociedade D…, Unipessoal, Lda. a resolução do contrato referido em 1, solicitou-lhe o pagamento da quantia de € 161.604,44 e a restituição do equipamento referido em 6. (sublinhado nosso)
8ª - O alegado crédito da requerente - que não se admite - teria como garantia patrimonial, o património do requerido e da sociedade D…, Unipessoal, Lda., por força do regime da solidariedade em vigor entre as partes.
9ª - Nada se alega - e muito menos se provou - relativamente ao património da sociedade D…, Unipessoal, Lda..
10ª - Não se encontram verificados os requisitos essenciais para o decretamento do arresto.
11ª - A decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 391º do CPC.»

A requerente contra-alegou, batendo-se pela confirmação do julgado

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha(artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), consubstancia-se em saber:
- se houve preterição de litisconsórcio necessário:
- se é nula a decisão;
- se deve ser dada como não provada a matéria constante do ponto 9 do elenco dos factos provados;
- se deve ser revogada a decisão que decretou o arresto, por não se verificarem in casu os pressupostos daquele procedimento cautelar.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na decisão recorrida julgou-se indiciariamente provada a seguinte factualidade:
1. Em 30-05-2011, entre a Requerente, o Requerido B… e a sociedade D…, Unipessoal, Lda., esta representada por aquele B…, seu único sócio e gerente e com vista à recuperação e gestão desta sociedade, a qual não dispunha de liquidez e já com dívidas vencidas a fornecedores e à Segurança Social em montante superior a € 170.000,00, foi celebrado o acordo constante de fls. 35 a 40 dos autos, a que designaram «contrato», cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido, e onde consta, além do mais, que o Requerido B… (primeiro outorgante) se obrigava a manter-se como sócio-gerente da sociedade D…Unipessoal, Lda., a não praticar qualquer acto de gestão nesta sociedade e a manter a procuração outorgada nesse data a favor de representante da Requerente (segunda outorgante), constante de fls. 89, ou de quem esta vier a designar para a representar na execução do contrato.
2. Em 6-08-2012, na sequência da renúncia à procuração constante de fls. 89 por parte do respectivo procurador, a Requerente solicitou ao Requerido …, a subscrição de nova procuração a favor do seu representante, João …, nos termos do contrato referido em 1.
3. O Requerido não subscreveu a nova procuração e solicitou à Requerente, em 14-08-2012, a imediata entrega de todos os cheques em seu poder, proibindo-a de emitir qualquer cheque.
4. Nessa data de 14-08-2012, a Requerente tinha já efectuado transferências bancárias para reforço de caixa da sociedade D…, Unipessoal, Lda., pago a fornecedores dessa sociedade e à Segurança Social e suportado outros encargos da referida sociedade, no montante de € 110.586,83.
5. Entre 1-06-2011 a 14-08-2012, o valor recebido dos clientes foi de € 347.293,49, acrescido de IV A.
6. A Requerente colocou na Quinta de Castelães, no âmbito do contrato referido em 1, um plasma, uma máquina de café, várias toalhas e guardanapos, no valor de cerca de € 4.000,00, que o Requerido não restituiu.
7. A Requerente em 16 de Agosto de 2012 comunicou ao Requerido B… a resolução do contrato referido em 1., solicitou-lhe o pagamento da quantia de € 161.604,44 e a restituição do equipamento referido em 6.
8. No dia 25-10-2013, os Requeridos, B… e a sua filha C… com vista a impedir a satisfação do crédito da Requerente, celebraram contrato de doação constante de fls. 11 a 14 dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, e através do qual o Requerido, B…, doou à sua única filha, a Requerida C…, por conta da respectiva quota disponível, os imóveis aí identificados e o respectivo recheio.
9. Não são conhecidos outros bens ao Requerido B….
Mais se consignou inexistirem por provar outros factos alegados com relevância para a decisão.

O DIREITO
Da preterição de litisconsórcio necessário
Diz a recorrente na conclusão 2ª que a requerente/recorrida instaurou o presente procedimento cautelar de arresto contra si e contra B…, por apenso, e na pendência do processo n.º 405/12.4TCGMR (o qual corre termos pela Comarca de Braga, Instância Central de Guimarães, 2.ª Secção Cível, J1).
No entanto, como a recorrente não pode deixar de saber, aquele requerimento deu origem ao apenso A do referido processo, sendo certo que, nesse apenso, e com a referência 137212075, foi proferido o despacho cuja fotocópia se encontra a fls. 153 deste recurso, no qual se ponderou que «... a verdadeira conexão deste procedimento cautelar não é com o processo 405/12.4TCGMR, mas sim com acção (impugnação pauliana) ainda a propor, pelo que não se justifica a apensação destes autos àquele processo», e por isso se determinou, em consequência, a sua desapensação e remessa à distribuição.
Ora, na sequência daquela distribuição, foi atribuído a estes autos o nº 3778/14.0T8GMR, pelo que, como é evidente, os mesmos não correm por apenso ao processo n.º 405/12.4TCGMR, o que parece ter sido esquecido pela recorrente.
Defende esta também que no referido processo n.º 405/12.4TCGMR, a requerente alega um crédito sobre o aqui requerido, B…, e sobre a sociedade D…, Unipessoal, Lda., e como ali sustenta que as respectivas obrigações são solidárias, tinha a requerente a obrigação de ter instaurado este procedimento cautelar de arresto também contra a sociedade D…, Unipessoal, Limitada, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário.
Não tem, porém, razão a recorrente.
No requerimento inicial deduziu a requerente/recorrida os factos que tornam provável a procedência da acção de impugnação pauliana a instaurar.
Ora, nesta acção é necessária a presença, pelo lado activo, do credor prejudicado, porque o acto impugnado, embora não afectando os seus direitos atinge a sua consistência prática, a utilidade que deles deriva, o interesse que protegem[1].
Pelo lado passivo é indispensável a intervenção do alienante, que pode alegar factos que demonstrem que não agiu de má-fé e que conduzam à improcedência da acção e, consequentemente, da responsabilidade que lhe pode ser assacada. Não se pode proceder a julgamento de uma causa em que se imputa um facto a uma pessoa, sem que ela necessariamente seja chamada a defender-se.
É, também, necessária a presença do terceiro adquirente, que tem a coisa alienada na sua esfera patrimonial, e a quem é imputada má-fé ao outorgar no acto impugnado[2].
A intervenção dos três é necessária, como salvaguarda do princípio do contraditório, e para que a decisão possa definir com força de caso julgado a relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (art. 30º do CPC), pois, um e outros, têm interesse directo em demandar e interesse directo em contradizer, sendo a falta de qualquer deles motivo de ilegitimidade dos restantes (arts. 610º e 612º do CC). Se o alienante não intervier a decisão a proferir não tem força de caso julgado quanto a ele[3].
A procedência da acção de impugnação envolve, desde logo, em relação ao credor impugnante a ineficácia do acto impugnado e a possibilidade de execução do bem transmitido para o terceiro, in casu a requerida C… a quem o requerido (seu pai) fez a doação do imóvel arrestado.
Daí que o arresto tivesse de ser requerido contra ambos e não contra a sociedadeD…, Unipessoal, Lda., que não foi nem é proprietária do bem arrestado, o que, aliás, não foi sequer alegado pela recorrente.
Ademais, estando em causa uma obrigação solidária, sempre a requerente (credora) tem o direito de exigir de qualquer um dos devedores toda a prestação (art. 519º, nº 1, do CC).
Não houve, pois, preterição de litisconsórcio necessário, pelo que não há que absolver os requeridos da instância.
Improcedem, assim, as conclusões 2ª a 5ª.

Da nulidade da decisão
Segundo a recorrente, a decisão recorrida é nula em virtude do tribunal a quo não explicar, na fundamentação de facto, a razão por que considerou indiciariamente provado que o contrato de doação foi celebrado «com vista a impedir a satisfação do crédito da requerente» (cfr. ponto 8 do elenco dos factos provados).
O art. 615º, nº 1, al. b), do CPC prevê a nulidade da sentença que “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A nulidade prevista na citada al. b), tal como é pacificamente admitido, exige a ausência total de fundamentação de facto ou de direito e não se basta com uma fundamentação meramente incompleta ou deficiente[4].
Constitui também jurisprudência absolutamente dominante que a falta de motivação, a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC (anterior artigo 668º), é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão, e não a sua motivação deficiente, errada ou incompleta, sendo certo, outrossim, que uma fundamentação, apenas, incompleta ou insuficiente, não afecta o valor legal da sentença ou do acórdão[5].
No caso em apreço, não há a menor dúvida que a sentença especificou os fundamentos de facto em que assentou a sua decisão, analisando criticamente a prova, e indicou as normas jurídicas nas quais fez assentar a sua decisão.
Daqui se poder concluir, sem quaisquer outros considerandos, que a sentença não enferma do vício de falta de fundamentação que lhe aponta a recorrente.
Ademais, trata-se de questão juridicamente irrelevante, pois estando em causa um acto gratuito (a doação), ainda que o devedor e o terceiro tenham agido de boa fé a impugnação procede (art. 612º, nº 1, 2ª parte, do CC).
Improcedem deste modo as conclusões 12ª e 13ª.

Da impugnação da matéria de facto
Segundo a recorrente, ao dar como provado o ponto 9 do elenco dos factos provados, ou seja, que não são conhecidos outros bens ao requerido, cometeu o tribunal a quo “um clamoroso erro de julgamento”.
Embora não o diga expressamente, o que a recorrente pretende com tal alegação é, no fundo, impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Como resulta do art. 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – prova documental e depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo.
Porém, considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, verificamos que o recorrente não cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1, do CPC.
Desde logo, não indicou o recorrente os concretos meios probatórios, constantes do processo ou nele registados, que imponham decisão sobre o aludido ponto 9 diversa da recorrida [al. b) do nº 1].
E também não indicou a recorrente as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, considerando que o meio probatório invocado como fundamento do erro na apreciação das provas – o depoimento da testemunha João … – foi gravado [al. a) do nº 2].
Por outro lado, decorre também da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos ónus mencionados, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria[6].
O novo CPC veio, aliás, manter em termos praticamente idênticos todos os ónus anteriormente existentes, aditando ainda o de o recorrente dever especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, mantendo igualmente a cominação da imediata rejeição do recurso para o seu incumprimento.
Ora, esta posição recente do legislador «evidencia a desconformidade relativamente à lei, quer no seu elemento literal, quer no sistemático, quer no histórico-actualista, de interpretações complacentes e facilitistas, que por vezes se vêem, que degeneram em violação do princípio da igualdade das partes (ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva), do princípio do contraditório (por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor) e do princípio da colaboração com o tribunal (por razões análogas, mas reportadas ao julgador)»[7].
A inobservância, por parte do recorrente, do que lhe é imposto pelas alíneas a) e c) do n º 1 do art. 640º do CPC determina a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita na mesma.
Destarte, improcedem as conclusões 14ª, 15ª, 16ª e 17ª.

Da verificação dos requisitos para o decretamento do arresto
Esta questão é comum a ambos os recursos interpostos pela requerida e pelo requerido, pelo que terão um tratamento único.
Defendem os requeridos/recorrentes que a requerente/recorrida tinha de alegar e provar indiciariamente factos demonstrativos do periculum in mora e do justo receio da perda da garantia patrimonial, nomeadamente o risco da requerida poder dissipar os bens que lhe foram doados pelo seu pai (requerido).
No recurso por si interposto, diz ainda o requerido que nada se alegou e muito menos relativamente ao património da sociedade D…, Unipessoal, Lda., quando segundo a requerente o seu crédito teria como garantia patrimonial o crédito do requerido e da dita sociedade, por força do regime da solidariedade em vigor entre as partes.
Vejamos.
O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor (art. 391º do CPC e art. 619º, nº 1, do CC).
O que se compreende, na medida em que, em princípio, só tais bens garantem o cumprimento da obrigação (art. 601º deste último Código).
A lei, no entanto, concede ao credor o direito de requerer o arresto contra o adquirente dos bens do devedor (nº 2 do citado art. 619º).
Simplesmente, neste caso, o requerente do arresto, «se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduzirá ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação» (art. 392º, nº 2, do CPC).
Com efeito, mesmo que ainda não tenha sido judicialmente impugnada a aquisição, o arresto pode ser requerido contra o adquirente de bens do devedor desde que o requerente deduza «os factos que tornem provável a procedência da impugnação».
Quer dizer:
Para poder ser decretado o arresto de bens adquiridos por terceiro ao devedor, é indispensável que o requerente, ao instaurar o respectivo procedimento cautelar, demonstre já ter sido judicialmente impugnada essa aquisição, ou, se ainda não o tiver feito, que alegue e prove - os factos que tornem provável a procedência da impugnação pauliana.
E foi justamente isto que fez a requerente, como se vê dos artigos 57º a 66º do requerimento inicial.
Por força da regra geral segundo a qual cabe a quem invoca um direito alegar e provar os respectivos elementos constitutivos - art. 342º, nº 1 do CC -, recai sobre o requerente do arresto o ónus da demonstração da verificação destes requisitos.
Há, porém, razões para entender que nesta modalidade específica de providência a lei é menos exigente do que na generalidade dos restantes casos.
O nº 1 do art. 619º do CC condiciona o arresto comum à existência do justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito, o que faz recair sobre o credor o ónus de alegar e provar, com suficiente grau de probabilidade, que o crédito existe e que a sua efectivação prática, ou cobrança, corre risco se não for decretado o arresto. O art. 392º, nº 2 do CPC é espelho fiel deste encargo.
Mas o nº 2 daquele art. 619º estatui, de modo mais sumário, que o arresto pode ser requerido pelo credor contra o adquirente de bens do devedor, caso tenha sido judicialmente impugnada a transmissão.
Não se afirma aqui, designadamente, que esta segunda modalidade de arresto está condicionada à verificação da viabilidade da impugnação nem da necessidade da apreensão do bem transmitido para acautelamento da eficácia prática do direito de crédito invocado.
E o nº 2 do citado art. 392º confirma esta diferença, na medida em que, alargando a possibilidade de ser requerido o arresto aos casos em que ainda não tiver sido impugnada a aquisição - com o que excede aquela previsão do CC -, manda que nestes casos - e, naturalmente, só neles, ao contrário do que se passa na primeira hipótese visada - sejam deduzidos os factos que tornem provável a procedência da impugnação[8].
E, como já dissemos, foi isto que fez a requerente nos artigos 57º a 66º do requerimento inicial.
Tanto basta, pois, para que se mostrem preenchidos os requisitos necessários ao decretamento do arresto.
Ademais, resultou provado que no dia 25.10.2013, os requeridos, com vista a impedir a satisfação do crédito da requerente, celebraram contrato de doação constante de fls. 11 a 14 dos autos, através do qual o requerido doou à sua única filha, a requerida, por conta da respectiva quota disponível, os imóveis aí identificados e o respectivo recheio, e que não são conhecidos outros bens ao Requerido (cfr. pontos 8 e 9 do elenco dos factos provados).
Improcedem, assim, as demais conclusões do recurso da requerida e todas as conclusões do recurso interposto pelo requerido, com a consequente manutenção do decidido.

Sumário:
I – Na acção de impugnação pauliana, a relação controvertida envolve três sujeitos – o credor prejudicado, o devedor alienante e o terceiro adquirente – sendo necessária a intervenção de todos, como salvaguarda do princípio do contraditório, pelo que há litisconsórcio passivo.
II – Quando o arresto visa acautelar efeitos da impugnação, designadamente a pauliana, a legitimidade passiva para o respectivo processo terá que coincidir com a legitimidade passiva para a acção de impugnação.
III – Sendo o arresto requerido quando ainda não tiver sido impugnada a aquisição, o requerente deve alegar os factos que tornem provável a procedência da acção.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedentes as apelações, confirmando a decisão recorrida.
Custas das apelações a cargo de cada um dos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao requerido.
*
Guimarães, 28 de Maio de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
__________________________________
[1] Manuel de Andrade, A Legitimidade nas Acções Anulatórias, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, X, p. 612.
[2] Cfr.Ac. do STJ de 25.05.1999 (Aragão Seia), proc. 99A382, in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. neste sentido, Antunes Varela, RLJ, ano 126º, p. 370 e Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 137.
[4] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, em anotação ao citado art. 668º.
[5] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 04.05.2010 (Helder Roque), proc. 2990/06.0TBACB.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 09.02.2012 (Abrantes Geraldes), proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1.
[7] Ac. da RL de 12.02.2014 (Alda Martins), proc. 26/10.6TTBRR.L1-4, inwww.dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. do STJ de 08.02.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3812, in www.dgsi.pt.