Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3474/06.2TBBCL.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A extinção duma servidão por desnecessidade, pressupõe que existam alterações supervenientes no prédio dominante que eliminem as utilidades inerentes à servidão.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

F… e esposa J… demandaram D… e esposa M… pedindo a extinção, por desnecessidade, duma servidão pedonal constituída por usucapião sobre o seu prédio a favor do prédio dos réus, porque, com os melhoramentos que fizeram no acesso ao seu prédio, a respectiva servidão perdeu a sua utilidade.
Os réus defenderam-se, alegando que a servidão em causa se constituiu por contrato entre os antepossuidores dos réus e os proprietários dos prédios e com a finalidade de encurtar distância entre a sua casa, a igreja e o cemitério.

Foi proferido despacho saneador, organizada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Realizada a audiência de discussão e julgamento o tribunal respondeu à matéria de facto, não havendo reclamações.
Foi proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando extinta a servidão por desnecessidade.

Inconformados com o decidido, os réus interpuserem recurso de apelação, formulando conclusões.
Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido.
Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:
1. Impugnação na vertente do facto
1.1Alteração da resposta à quesito 7.º no sentido de ser ampliada como o seguinte: “ com esclarecimento de que utilizam o carreiro para se deslocarem da sua casa à igreja e ao cemitério, encurtando distância”.
2. Impugnação na vertente do direito
2.1 Se a servidão constituída mantém as utilidades necessárias que justifiquem a sua manutenção.

Vamos conhecer das questões enunciadas.
1.1Os réus pretendem a alteração da resposta ao quesito 7.º de molde a nela ficar contida a utilização do carreiro para deslocação à igreja e ao cemitério, encurtando distância, baseando-se na reapreciação dos depoimentos das testemunhas J…, A…, J… e F…, que declararam ter visto os réus a deslocarem-se, pelo carreiro, à igreja e ao cemitério.
O tribunal dá uma resposta restritiva ao quesito 7.º bastando-se apenas com o que consta das alíneas L e M da matéria de facto assente, por entender que não é crível que os réus usem aquele carreiro para se deslocarem à igreja e ao cemitério, quando hoje têm melhores condições para se circularem pela via pública, tendo investido nessa ligação, podendo utilizar meios transportes mais cómodos e rápidos, apontando que a prova testemunhal foi contraditória sobre este ponto.
Focando-nos nos depoimentos das testemunhas indicadas pelos réus, constatamos que exageraram, com excepção da testemunha F…, quanto ao uso do carreiro para deslocação à igreja e ao cemitério. Do seu depoimento depreende-se que o uso é exclusivo para esses fins, o que não é crível que fosse esse o motivo que levou à constituição da servidão. O facto da casa dos antepassados dos réus e hoje destes ficar distante do centro da freguesia, moveu-os a utilizarem atalhos, que acabaram, por tolerância dos proprietários dos prédios, por criar o carreiro e ao longo dos anos, a tolerância passou a direito, como consta dos autos. Isto era comum na vida comunitária agrícola, em que os terrenos eram aproveitados intensivamente para a agricultura, ficando o mínimo para as comunicações entre eles e as casas dos agricultores.
Daí que, ainda hoje, mesmo depois das obras realizadas na comunicação do prédio urbano dos réus com a via pública, continuem a usar o carreiro para se deslocarem ao centro da freguesia onde se encontram as instituições mais relevantes. Não significa que seja de uso exclusivo, frequente, mas a sua existência está patente no trilho que levou a Junta de Freguesia de Carvalhal, através do seu presidente, a testemunha F…, a classificá-lo, colocando uma indicação “ Carreiro das Longras”, há já alguns anos. E é normal que assim seja, porque nem sempre se usa o veículo automóvel para pequenas viagens. E nos meios rurais é comum andar a pé, em pequenas viagens, utilizando atalhos e carreiros. E como este existe, há muitos anos, é normal que os réus façam uso dele quando precisam de ir ao centro da freguesia. Não significa que seja sempre, mas como está criado, o seu uso pode ser esporádico ou mais frequente, conforme as solicitações. E isso está patente nos depoimentos das testemunhas J…, A… e J…. Daí que se imponha uma alteração na resposta, que abarque o encurtamento de distância, uma vez que circular a pé pela outra alternativa representa mais do dobro do percurso.

Assim a resposta ao quesito 7.º passa a ser a seguinte: “ Para além do que consta das alíneas L) e M) dos factos assentes, os réus utilizam o carreiro para encurtar distância na ida ao centro da freguesia”.

Vamos dar como assente a matéria de facto consignada na decisão recorrida, com a alteração ao quesito 7.º da base instrutória, que passamos a transcrever:
A - Encontra-se registado a favor do A., através da inscrição G-2, o prédio rústico, denominado Campo de lavradio, sito no Lugar de Marmota, da freguesia de Carvalhal, desta comarca, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. … e inscrito na matriz rústica sob o artº…..
B - Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 100337 do Livro B, fls. 91, o prédio que se compõe de casa de dois pavimentos, cobertos, coberto de eira e eirado de lavradio e ao sul terreno de mato, sendo ainda formado por eido, leira de longras, campos de longras, bouça de baixo, bouça da cachada, situado no Lugar de Longras da freguesia de Carvalhal, nesta comarca, a confrontar do norte com ribeiro, do sul com H… e M… e A…, nascente com L…, ribeiro e caminho público e do poente com A… e F….
C - O prédio aludido em A) é atravessado, ao longo da respectiva estrema nascente, por uma faixa de terreno (carreiro) com cerca de 50 cm de largura.
D - Esta faixa de terreno inicia-se a norte, junto à estrada camarária que, por esse lado, margina o dito prédio dos AA.
E - Após o que se desenvolve em linha recta, no sentido norte – sul, ao longo do prédio dos AA. numa extensão de cerca de 130 metros.
F - Sensivelmente a meio da estrema nascente do prédio dos AA. o referido carreiro inflecte para nascente, entrando num prédio rústico constituído por um campo de lavradio pertencente a M….
G - Logo que entra no prédio desta vizinha, o carreiro inflecte novamente para sul, após percorrer este prédio, ao longo da respectiva estrema poente, entra num outro prédio rústico de lavradio pertencente a J…, através do qual se desenvolve, sempre no mesmo sentido, ao longo também da respectiva estrema poente.
H - Após o que o referido carreiro entra noutro prédio de lavradio, pertencente a M…, mantendo o indicado sentido.
I - Logo que o carreiro em alusão sai do prédio deste último, entra no referido prédio dos RR identificado em B), na respectiva estrema norte, sobrevoando o ribeiro que por este lado o margina através de uma pontelha em pedra.
J - Tudo sempre mantendo a mencionada largura de cerca de 50 cm.
L - Há mais de 20, 30 e 40 anos que os RR passam a pé pelo citado carreiro com direcção ao prédio mencionado em B), e deste para a estrada que margina pelo norte o dito prédio dos AA.
M - Fazem-no de forma contínua, ininterrupta e reiterada, por si e antepossuidores, com ciência e paciência gerais, na convicção de exercerem um direito de servidão de passagem a onerar o dito prédio dos AA em favor de parte do mencionado prédio deles, RR.
N - Esta parte era constituída essencialmente pela casa de habitação.
O - Após os RR. e antepossuidores terem procedido conforme descrito em C) a N), pelo menos, durante mais de 20 anos, os RR. adquiriram um outro prédio rústico a terceiros, que confronta pelo nascente com a estrada pública, pelo poente com o referido ribeiro, pelo sul com caminho de servidão e pelo norte com H….
P - Os RR. uniram este prédio materialmente à referida casa e eirado de lavradio, não havendo desde então qualquer separação material entre este terreno e a casa dos RR., a não ser a que é feita pelo ribeiro.
Q - Entretanto, a referida estrada pública que confronta com o dito prédio dos RR., já integrado pelo terreno referido nas imediatamente antecedentes alíneas, foi pavimentado e alargado à cerca de 10 anos.
R - Tendo logo de seguida os RR. aberto uma outra faixa de terreno com cerca de 4,5 metros de largura a partir dessa entrada até à sua referida casa, que os RR. pavimentaram em paralelo de granito, e que atravessa o já referido terreno.
S - A estrada pública referida é a mesma que margina pelo norte o dito prédio dos AA, ou pelo menos é a sua continuação.
T - Tendo os RR. começado a aceder a pé, com animais ou veículos, à sua referida casa e aos seus restantes prédios através da aludida faixa de terreno que abriram e pavimentaram.
U - Mantendo-se actualmente a mesma distância entre a casa dos RR. e a igreja e cemitério paroquiais.
V - Para além do que consta das alíneas L) e M) dos factos assentes, os réus utilizam o carreiro para encurtar distância na ida ao centro da freguesia”.

2.1 A questão suscitada tem a ver com o sentido normativo da desnecessidade das servidões constituídas por usucapião. Quando é que se tornam desnecessárias para o prédio dominante, que justifique que o titular do prédio serviente requeira a sua extinção.

É o que resulta da análise do artigo 1569 n.º 2 do C.Civil que reza o seguinte “ As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.

Este normativo teve como fonte o artigo 2279 do Código Civil de 1867, com a redacção introduzida pela reforma ocorrida em Dezembro de 1930. E, nos trabalhos preparatórios, o Prof. Pires de Lima referiu que foi eliminado o § único do referido normativo para que o julgador pudesse analisar cada caso, ponderando os factos e decidisse pela desnecessidade ou não da servidão constituída, possibilitando, assim, a criatividade do julgador, segundo o seu prudente arbítrio.
Este normativo enquadra-se no princípio da libertação do direito de propriedade de servidões ou encargos inúteis, impraticáveis, contrárias ao fim da sua constituição. Pretende-se eliminar as servidões que deixaram de produzir as utilidades aos prédios dominantes. E isto, porque as servidões têm como finalidade criar utilidades, proveitos a estes prédios (artigo 1544 do C.Civil). Enquanto isto acontecer, as servidões constituídas mantêm o seu fundamento, a razão da sua permanência ou existência. Apenas se coloca o problema da sua extinção quando desvalorizam os prédios servientes sem que valorizem os prédios dominantes, isto é, sem que sejam fonte de utilidade ou proveito para estes.
No domínio do artigo 2279 do Código Civil de 1867, Oliveira Ascensão, num estudo intitulado “ Desnecessidade e Extinção dos Direitos Reais” e publicado na Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, em 1964, referiu que “ a desnecessidade tem que ser objectiva, típica e exclusiva da servidão, não se confundindo com a desnecessidade subjectiva, que assentaria na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito. A servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta, graças a uma utilização “ latu sensu” do prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante, surge-nos a figura da desnecessidade”; “ A desnecessidade, que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança de situação não do prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante”.
A jurisprudência dominante nos Tribunais da Relação, assentou neste estudo, realçando alguns pontos, para fundamentar as suas decisões quanto ao conceito de desnecessidade – a desnecessidade para efeitos do artigo 1569 n.º 2 do C.Civil tem de ser objectiva, típica, efectiva e actual, verificada num momento posterior ao da constituição da servidão e resultar de uma alteração objectiva verificada no prédio dominante (conferir – Ac. Rc. 25/10/83, CJ. 1983, Tomo IV, pag. 62; Ac. RP. 2/12/86, CJ. 1986, Tomo V, pag. 229; Ac. RP. 7/3/89, CJ. 1989, Tomo II, pag. 189; Ac. Rc. 20/9/94, BMJ. 439/666; Ac. Rc. 13/6/95, CJ. 1995, Tomo III, pag. 41; Ac. Rc. 16/4/2002, CJ. 2002, Tomo II, pag. 23).
Por sua vez, a jurisprudência maioritária do STJ. vai neste sentido, com destaque para os acórdãos de 1.03.2007 e 16.11.2011 in www.dgsi.pt com excepção do Ac. de 27/5/99, publicado no BMJ. 487/313, que contrapõe uma interpretação do preceito – artigo 1569 n.º 2 e 3 do C.Civil – consubstanciada no seguinte: “ ... a ponderação actualizada da desnecessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente arbítrio do julgador avaliar se no momento considerado (o da propositura da acção) e segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo, haverá ou não outra alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente. O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente.

O certo é que a extinção da servidão só se deve concretizar quando o prédio dominante consiga, por certas circunstâncias, um acesso com comodidade e regularidade idênticas, melhores ou muito próximas das que tinha com a servidão a extinguir-se. Só assim é que se compreende que o prédio dominante deixou de ter necessidade da servidão para realizar os fins a que se destinou a sua constituição.
Os autores advogam que com a aquisição de um terreno que os réus juntaram ao prédio dominante e as obras que realizaram melhoram de tal forma o acesso deste à via pública, que não se justifica a manutenção da servidão constituída. E neste sentido vai a decisão recorrida que defende que a servidão, em si, se tornou inútil face às alterações ocorridas no prédio dominante.
O importante, neste caso, é ponderar os fundamentos da constituição da servidão, verificar se ainda se mantêm e se as alterações ocorridas no prédio dominante eliminaram ou, de alguma forma, neutralizaram as utilidades criadas pela sua constituição, de molde a não se justificar a manutenção do encargo sobre o prédio serviente em benefício do prédio dominante.
Estamos perante obras de melhoramento nos acessos do prédio dominante à via pública, mas que não encurtaram a distância entre este prédio e o centro da freguesia onde se encontram as instituições fundamentais da freguesia como a igreja, cemitério etc.). A distância mantém-se. Apenas criou condições para um acesso através de veículos automóveis, desconhecendo-se se é um elemento novo, ou se já existia e agora ficou mais facilitado. O certo é que não está em causa o acesso por veículos automóveis, mas antes a pé. É evidente que o veículo automóvel é mais rápido e mais cómodo, em determinadas circunstâncias, mas não substitui o acesso pedonal. E este é que esteve na origem da constituição da servidão, com vista ao encurtamento de distâncias relativamente ao centro da freguesia. Mantendo-se as distâncias existentes à data da constituição da servidão, verifica-se que a servidão continua a ser útil para o prédio dominante, na medida em que a pé se encurta a distância, pelo menos em metade, como resulta dos fundamentos das respostas aos quesitos da base instrutória, relativamente à distância a percorrer, pela via pública.

Assim podemos concluir que se mantêm os fundamentos da constituição da servidão, pelo que não há razões para a sua extinção, na medida em que ainda se mantém com as mesmas utilidades que estiveram na origem da sua constituição. O prédio dominante continua com um acesso alternativo mais rápido o que o valoriza, não sendo despeciendo nem desproporcionado ao sacrifício suportado pelo prédio serviente, uma vez que se traduz no mesmo aquando a sua constituição.

Concluindo: 1. A extinção duma servidão por desnecessidade, pressupõe que existam alterações supervenientes no prédio dominante que eliminem as utilidades inerentes à servidão.

Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam parcialmente a decisão recorrida na parte que julgou extinta a servidão de passagem pedonal por desnecessidade. No resto mantêm a decisão recorrida.
Custas a cargo dos autores.
Guimarães, 30/01/2014
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
Eva Almeida