Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
226/13.7TBFAF.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: PARTILHA DA HERANÇA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
EMENDA DA PARTILHA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Se a partilha tiver recaído sobre bem não pertencente à herança ela é nula quanto a essa parte, sendo-lhe aplicável o que se dispõe sobre a venda de bens alheios, ficando aquele a quem tiver sido atribuído o bem com direito a ser indemnizado pelos co-herdeiros na proporção dos respectivos quinhões hereditários, nos termos do disposto nos n.os 1 e 2 do art.º 2123.º, do C.C., que se aplica mesmo numa situação em que o bem pertença a um co-herdeiro.
II – A reclamação à relação de bens ao abrigo do disposto nos art.os 1348.º e 1349.º do C.P.C.V. para ser tempestiva terá de ser apresentada antes da partilha.
III – Depois da partilha e da sentença que a homologou a única via para se obter a emenda da partilha é a da sua impugnação, conjuntamente com a impugnação da sentença, pelo recurso.
IV – Sem embargo, mesmo depois de transitada em julgado a sentença, pode ainda a partilha ser corrigida no mesmo inventário por acordo unânime dos interessados (art.º 1386.º do C.P.C.V.); em acção a intentar no prazo de um ano a contar do conhecimento do erro desde que este conhecimento seja posterior à sentença (art.º 1387.º do C.P.C.V.); se se configurar alguma das situações que admitam o recurso de revisão, enumeradas no art.º 696.º do C.P.C.N. (art.º 1388.º do C.P.C.V.).
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES –

A) RELATÓRIO
I.- Nestes autos de Inventário requeridos por M… para partilha da herança deixada por seu pai J…, nos quais foi cabeça-de-casal o cônjuge sobrevivo J…, foi relacionado e descrito sob a verba n.º 2 um “Prédio Urbano em regime de propriedade horizontal, referente a uma loja de comércio, … Fracção autónoma designada por BI, inscrito na matriz urbana sob o artigo …, com a área de 35,2 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Fafe sob o nº…, com o valor patrimonial de € 27.410,75”.
A referida Requerente reclamou da relação de bens invocando: erro de descrição da verba n.º 1; desconhecer o prédio relacionado sob a verba n.º 5; não aceitar o passivo nem as benfeitorias relacionadas.
Respondeu a Cabeça-de-Casal e na data para que foi designada a produção de prova para decisão daquela reclamação, os herdeiros (aquela Requerente, a Cabeça-de-Casal e uma filha desta e do de cujus) celebraram a transacção que ficou a constar de fls. 208, pela qual acordaram fosse adjudicada a estas duas últimas (além de outras) a verba “n.º 2 (fracção autónoma designada pelas letras BI)”.
A transacção foi de imediato homologada por sentença ditada para a acta e notificada aos três Interessados na partilha, todos eles acompanhados de Mandatário Judicial.
Decorridos cinco dias a supra mencionada Requerente M…, invocando o disposto nos art.os 1348.º, n.º 6 e 1349.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, requereu a “rectificação à partilha e à relação de bens” alegando que “o imóvel relacionado sob a verba nº 2 não reflecte a situação jurídica demonstrada pela certidão do registo predial junta aos autos” já que foi comprado em compropriedade por si e pelo Inventariado, seu pai, e, assim, aquela verba teria de ser descrita como “metade do dito imóvel”. Juntou cópia da escritura pública de aquisição do imóvel.
Cumprido o contraditório, a Cabeça-de-Casal opôs-se à pretensão daquela Interessada alegando que na base do acordo de partilha “teve relevância fundamental a verba nº 2 ser adjudicada única e exclusivamente à cabeça de casal e à interessada A……”, acrescentando que só aceitou o acordo no pressuposto desta adjudicação.
Respondeu a Interessada/reclamante após o que foi proferida douta decisão nos seguintes termos:
“As interessadas não estão de acordo quanto à existência de um mero erro na descrição da verba n.º 2, denotando ambas o conhecimento prévio à partilha de que tal verba não pertencia, por inteiro, à herança: a requerente da retificação, porquanto se arroga comproprietária da dita verba, juntando o título aquisitivo que pessoalmente outorgou; e a outrora cabeça de casal porque alega conhecer a celebração de contrato de arrendamento outorgado pela requerente, tendo por objeto a dita verba.
Não pode pois concluir-se, no contexto das declarações formuladas, que a descrição da verba n.º 2 nos termos em que foi efetuada ocorreu por mero erro ou lapso de escrita.
Assim sendo, tal desconformidade não é passível de retificação por mero despacho.
Ora, o artigo 1386.º do Código de Processo Civil prevê, para a hipótese de erro de facto ou de qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes, a possibilidade de emendar a partilha.
Tal emenda porém, exige o consenso dos interessados, consenso esse que não se mostra reunido.
Pelo exposto:
- Indefere-se a retificação da descrição da verba n.º 2, sustentada na ocorrência de erro evidente;
- Indefere-se a realização de “nova partilha por apenso”, por desprovida de fundamento legal”.
Inconformada, traz a Interessada/reclamante o presente recurso visando a revogação daquela decisão e a descrição da verba n.º 2 pela metade.
Contra-alegou a Cabeça-de-Casal propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito meramente devolutivo.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Apelante funda o seu recurso nas seguintes conclusões:
I- Dos autos constam os documentos que definem a situação jurídica do prédio relacionado sob a verba 2;
II- Designadamente, a caderneta predial, o título de registo, e a escritura de compra do prédio (fracção) em compropriedade pelo inventariado e pela interessada recorrente;
III- Sendo esta, enquanto proprietária da metade da fracção descrita, terceira para a herança e para a vocação sucessória dos interessados em partilha.
IV- A reclamação da recorrente, quer na qualidade de interessada, quer na qualidade de terceira, foi feita em tempo, nos termos dos artigos 1348 nº 6 e 1349 nº 6 do C.P.C..
V- Pois a sentença homologatória ainda não tinha transitado em julgado,
VI- Os restantes interessados, e cabeça de casal confessaram a referida compropriedade e de que a verba só pertence à herança em metade.
VII- O tribunal devia ter ordenado a rectificação nos termos dos nºs 2 e 3 do artigo 1349 do C.P.C..
VIII- Além disso, mesmo se a sentença homologatória da partilha tivesse transitado em julgado, deveria proceder-se a rectificação da verba;
IX- Porque tal erro é evidente, é material e de qualificação jurídica, nos termos dos artigos 613 nº 2 e 616 nº 2 do C.P.C.;
X- Porque constam do processo documentos que fazem prova plena, não impugnados, que implicam que se descreva a referida verba nº 2 pela metade.
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III.- Por sua vez a Cabeça-de-Casal concluiu assim:
a) A Cabeça de casal não aceita a mera retificação da partilha, pelo que a verba nº 2 deverá ser adjudicada nos termos do acordo da partilha.
b) Assim, deverá manter-se o douto despacho recorrido, considerando que a homologação da partilha transitou em julgado, e que não existe mero erro ou lapso de escrita, indeferindo a retificação da recorrente.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões acima transcritas a única questão a reapreciar é a da admissibilidade da correcção da descrição da verba n.º 2, em oposição aos Interessados aos quais essa verba foi adjudicada.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
V.- Os contornos da situação sub judicio foram já descritos em I, nada mais se oferecendo acrescentar com interesse para a apreciação do recurso.
O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária quando duas ou mais pessoas sejam chamadas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que pertenciam a esta – cfr. art.os 2024.º do Código Civil (C.C.) e 1326.º, n.º 1 do C.P.C. (aplicável a estes autos atenta a data em que foi requerido o Inventário (05/02/2013) e o disposto nos art.os 7.º e 8.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que, tendo entrado em vigor no dia 2 de Setembro, não tem aplicação aos processos pendentes).
Tendo como fim essencial a distribuição fiel e equitativa, de acordo com os parâmetros legalmente estabelecidos, do património de uma herança, não devem ser levados à partilha bens que a não integrem.
Se a partilha tiver recaído sobre bens não pertencentes à herança ela é nula quanto a essa parte, sendo-lhe aplicável o que se dispõe sobre a venda de bens alheios, ficando aquele a quem tiverem sido atribuídos os bens com direito a ser indemnizado pelos co-herdeiros na proporção dos respectivos quinhões hereditários, de acordo com o disposto nos n.os 1 e 2 do art.º 2123.º, do C.C.
E, como decidiu o S.T.J. no Ac. de 30/09/2003, a disposição legal acima referida aplica-se mesmo ao caso em que o bem alheio pertença a algum ou alguns herdeiros (in C. J., Acs. do S.T.J., ano XI, Tomo III/2003, págs. 69-71).
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, aplicando-se a favor do co-herdeiro ao qual foram adjudicados os bens de terceiro no preenchimento da sua quota, o regime da nulidade da venda de bens alheios, a satisfação dos seus interesses, se tiver agido de boa fé, poderá passar pelo direito a uma indemnização pelos danos que sofreu, perante aquele que procedeu com dolo, nos termos do disposto no art.º 898.º do C.C. (in “Código Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1998, Vol. VI, pág. 201).
Por outro lado, da aplicação do disposto no art.º 895.º do mesmo Cód. resulta ficar aberta a possibilidade da convalidação do contrato, o mesmo é dizer, poderão os bens em causa passar para a titularidade do herdeiro ao qual foram adjudicados.
Na situação sub judicio pretende a Apelante que se corrija o que classifica de erro material e de qualificação jurídica, visto a sua aquisição (de metade da verba n.º 2) estar documentalmente comprovada nos autos e “os restantes interessados e cabeça de casal” o “confessaram”.
Como se nos afigura claro, porém, estamos perante uma inclusão indevida na herança de um bem (fracção) que pertence a terceiro, rectius a uma co-herdeira, e que foi levado à partilha. Não configura, pois, um simples erro de escrita ou de cálculo ou uma inexactidão material devida a omissão ou lapso manifesto, e assim a situação não cabe na previsibilidade do n.º 2 do art.º 613.º e 614.º do C.P.C. (nem o invocado n.º 2 do art.º 616.º, (conclusão IX) simplesmente porque se não verifica o pressuposto ali exigido da inadmissibilidade da impugnação da sentença pela via do recurso).
A Apelante interveio desde o início no processo. Reclamou da relação de bens, donde, pelas regras da experiência comum, se pode extrair que a examinou pormenorizadamente, não se vislumbrando os motivos por que só depois de proferida a sentença homologatória da partilha vem invocar um “lapso” na verba n.º 2 (que acordou fosse adjudicada aos outros dois interessados) juntando um documento que, pelas datas nele apostas, já tinha consigo quando requereu o inventário.
Ao invés do que a Apelante defende, a reclamação à relação de bens ao abrigo do disposto nos art.os 1348.º e 1349.º do C.P.C. só seria tempestiva se tivesse sido apresentada antes da partilha.
Apresentada depois dela e da sentença que a homologou, a única via seria a do recurso, impugnando esta sentença e a partilha.
Com efeito, como decidiu o S.T.J. no Ac. de 11/01/2001, “proferida sentença homologatória da partilha não é admissível a alegação de que determinados bens partilhados não pertenciam, afinal, à herança” e prossegue, “o interessado pode, neste caso, requerer a emenda da partilha, desde que obtido o acordo de todos os demais – art.º 1386.º, n.º 1, do CPC – ou, não obtido esse acordo, propor acção comum dentro de um ano, nos termos do art.º 1387.º do mesmo código” (in “Sumários”, n.º 47, ac. proferido no Proc.º 3155/00, 7ª Sec.).
Mantém-se actual a explicitação do Prof. Alberto dos Reis, referida e aplaudida pelo Prof. Rabindranath Capelo de Sousa que, a propósito, escreveu: “Se o conhecimento do erro é anterior à data do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha mas posterior à data em que foi proferida tal sentença … tal erro devia ser invocado no processo do recurso da mesma sentença” (in “Lições de Direito das Sucessões”, Coimbra Editora, 1980, vol. II pág. 373, segundo parágrafo da nota-de-rodapé 1199).
A sentença de homologação da partilha, proferida nestes autos, não foi impugnada e, por isso, já transitou em julgado, pelo que a emenda da partilha só poderá ter lugar nos termos e casos previstos nos art.os: 1386.º, ou seja, por acordo de todos os interessados; 1387.º, em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença. Mas se for anterior, como escreveu Lopes Cardoso, já não poderá a acção ser intentada pois “para que o erro possa ser invocado, é necessário que ele não seja imputável a qualquer dos interessados, que estes não tenham possibilidade de conhecer o erro antes da sentença” (in “Partilhas Judiciais” Almedina, 1980, vol. II, pág. 538, nota-de-rodapé n.º 2795); ou, finalmente, 1388.º, pela interposição de recurso de revisão, com o fundamento previsto na alínea d) do art.º 696.º este do C.P.C. vigente, se a transacção, pela qual foi feita a partilha, estiver inquinada de algum dos vícios do negócio jurídico que determine a sua nulidade ou anulabilidade.
Do exposto resulta a improcedência da pretensão que a Apelante formula por já não poder ser utilizado o instrumento processual de que se socorreu para obter a exclusão da partilha da sua meação na verba descrita sob o n.º 2, devendo, por isso, confirmar-se integralmente o despacho impugnado.
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C) DECISÃO
Considerando quanto acima fica exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo, consequentemente, a decisão impugnada.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 04/06/2015
Fernando Fernandes Freitas
Maria Purificação Carvalho
Espinheira Baltar