Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7097/12.9TBBRG-A.G1
Relator: PAULO DUARTE BARRETO
Descritores: LETRAS DE CÂMBIO
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Sendo nulos, por falta de observância da forma legal, os mútuos titulados em letras de câmbio prescritas – por isso já não falamos de letras, mas de documentos particulares -, ainda assim valem como título executivos, ao abrigo da al. c), do n.º 1, do art.º 46.º, do anterior CPC, por deles resultarem, por força do art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil, a restituição do que foi prestado.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2.ª) do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
O executado/oponente A… deduziu oposição à execução que lhe moveu o exequente An… para dele haver a quantia de € 29.300,00 (vinte e nove mil e trezentos euros).
Invocou, em síntese:
. a prescrição da obrigação cambiária, ao abrigo do art. 70º Da LULL;
. o pagamento das quantias inscritas nas letras dadas à execução.
. a nulidade dos mútuos titulados por essas letras, por falta de forma.
Concluiu, deste modo, pela procedência da oposição à execução e consequente extinção da instância executiva.
O exequente contestou, invocando que, ainda que se verifique a prescrição da obrigação cambiária, as letras poderão valer como meros documentos particulares, assinados pelo devedor para execução da relação subjacente que invocou naquele requerimento. Mais alegou que tratando-se de mútuos inferiores a 20 000,00 os mesmos não tinham que ser objeto de escrituras públicas, sendo bastante as referidas letras assinadas pelo executado. Não se entendendo desta forma, sempre a nulidade dos mútuos por falta de forma obrigaria, nos termos do art. 289º, do Código Civil, à entrega das quantias mutuadas. Por último, o exequente impugnou o pagamento das quantias inscritas nas letras.
Concluiu pela improcedência da oposição e pelo prosseguimento da execução.
Foi proferida sentença a julgar a oposição à execução parcialmente procedente e, consequentemente, a determinar o prosseguimento da execução comum que corre termos no 2º juízo cível do Tribunal Judicial de Braga sob o nº 7097/12.9TBBRG, apenas para pagamento das quantias inscritas nas letras dadas à execução, acrescidas dos juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data de citação do executado naquela e até integral pagamento.
Não se conformando com tal decisão, dela recorreu o oponente, com as seguintes conclusões:
“ A - Como primeiro argumento, argumenta-se que andou mal a douta sentença recorrida, dado que havia já decorrido o prazo de 3 anos previsto no artigo 70º da LULL, para que o aceitante (ora recorrente) pudesse ser accionado em sede executiva, razão pela qual as Letras em apreço também não poderiam constituir títulos executivos, exorbitando da previsão do artigo 46º, alínea c) do Código de Processo Civil.
B - Como segundo argumento, que é nuclear neste recurso, dir-se-á que tendo as Letras dadas à execução por relação jurídica subjacente a existência de empréstimos do exequente ao executado, e sendo pacífico (também na douta sentença recorrida) que por inobservância da forma legal exigida (art. 1143º Código Civil, associado aos arts. 220º e 294º) tais negócios vêm a ser nulos na medida em que careciam de ser formalizados através da celebração de escritura pública, então as Letras que terão corporizado esses empréstimos também não poderiam ter valor como títulos executivos para efeitos do referido artigo 46º, alínea c) do Código de Processo Civil.
Ou seja e dito de outra forma,
C - As letras de câmbio dadas à execução, ao não poderem valer como títulos de crédito, por se mostrar prescrita a obrigação cambiária, também não poderiam ter constituído títulos executivos nos termos do artigo 46º, al. c) do CPC (na redacção do D.L. nº 190/85 de 24 de Junho) dado que titulavam mútuos de montante superior a 200.000$00, e, como tal, nulos por falta de forma, pelo que o douto aresto recorreu violou o disposto naquela alínea c) do nº 1, do artigo 46º, do (antigo) CPC, tudo por referência à versão então em vigor do artigo 1143º do Código Civil (ex vi arts 220º, 286º, 289º e 294º do mesmo Código).
D - Em causa esteve, assim, a falta de um pressuposto extrínseco das ditas Letras, circunstância que ao não ter sido tida em conta pelo Meritíssimo Juiz a quo, determinou que aquele artigo 46º do CPC não tenha sido, como devia, devidamente aplicado e interpretado, o que, a ter sucedido, imporia que as Letras juntas aos autos não constituíssem títulos executivos.
E - A cobrar razão este entendimento, que parece ser unânime a nível dos tribunais superiores portugueses, deveria a Oposição do ora Recorrente ter sido julgada totalmente provada e procedente e, em consequência, ter sido determinada a extinção da execução”.
Não houve contra alegações.
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II – Fundamentação
A) Fundamentação de Facto
Ficou assente que:
1. O exequente é portador de uma letra de câmbio com a data de vencimento inscrita de “93.04.28”, com o local e data de emissão inscritos “Braga” e “93.02.28” e como valor de “1.400.000$00”, constando no local destinado ao sacado a identificação do executado.
2. O exequente é portador de uma letra de câmbio com a data de vencimento inscrita de “95.01.21”, com o local e data de emissão inscritos “Braga” e “94.10.21” e como valor de “1.200.000$00”, constando no local destinado ao sacado a identificação do executado.
3. O exequente é portador de uma letra de câmbio com a data de vencimento inscrita de “95.12.24”, com o local e data de emissão inscritos “Braga” e “95.09.24” e como valor de “1.000.000$00”, constando no local destinado ao sacado a identificação do executado.
4. As letras referidas em 1, 2 e 3 foram aceites pelo executado.
5. E titulam quantias entregues pelo exequente ao executado a título de empréstimos.
6. O empréstimo a que se reporta a letra identificada em 3 concretizou-se em data anterior a setembro de 1995.
7. Apresentadas a pagamento, as letras não foram pagas.
8. No dia 16 de outubro de 2012, o exequente interpôs execução comum para pagamento de quantia certa, contra o executado, apresentando como títulos executivos as letras indicadas em 1, 2 e 3, peticionando o pagamento das quantias nelas inscritas, acrescidas de juros.
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B) Fundamentação de direito
O objecto do recurso afere-se do conteúdo das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente.
Isso significa que a sua apreciação deve centrar-se nas questões de direito nele sintetizadas e que, in casu, são duas: (i) andou mal a douta sentença recorrida, dado que havia já decorrido o prazo de 3 anos previsto no artigo 70º da LULL, para que o aceitante (ora recorrente) pudesse ser accionado em sede executiva, razão pela qual as Letras em apreço também não poderiam constituir títulos executivos, exorbitando da previsão do artigo 46º, alínea c) do Código de Processo Civil; (ii) tendo as Letras dadas à execução por relação jurídica subjacente a existência de empréstimos do exequente ao executado, e sendo pacífico (também na douta sentença recorrida) que por inobservância da forma legal exigida (art. 1143º Código Civil, associado aos arts. 220º e 294º) tais negócios vêm a ser nulos na medida em que careciam de ser formalizados através da celebração de escritura pública, então as Letras que terão corporizado esses empréstimos também não poderiam ter valor como títulos executivos para efeitos do referido artigo 46º, alínea c) do Código de Processo Civil.
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Apreciando, comecemos por dizer que, decidindo o tribunal a quo que as obrigações cambiárias encontram-se prescritas, não há que apreciar o primeiro item da apelação. O juiz a quo e o apelante estão de acordo: as letras, como obrigação cambiária, não constituem título executivo, por que estão prescritas.
A questão central, como bem refere o recorrente, não é, contudo, essa. Mas sim a de saber se, sendo nulos, por falta de observância da forma legal, os mútuos titulados nos documentos – já não falamos de letras, mas de documentos particulares -, ainda assim valem como título executivos, ao abrigo da al. c), do n.º 1, do art.º 46.º, do velho CPC, por deles resultarem, por força do art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil, a restituição do que foi prestado.
Não se desconhece a querela jurisprudencial e doutrinária sobre a matéria, profusamente enunciada no acórdão da Relação do Porto, de 22.04.2013, processo n.º 733/12.9TBPFR.P1, relator Desembargador Carlos Gil.
Decidindo, vejamos, em primeiro, a letra da lei: À execução podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto – art.º 46.º, n.º 1, al. c), do velho CPC.
Por não constituir o objecto da apelação, não vamos discutir a nulidade dos mútuos. Foi decidido e as partes aceitaram, pelo que a nossa apreciação tem como assumida a nulidade dos contratos de mútuo titulados pelas letras cambiárias, agora, para o que nos interessa, meros documentos particulares.
A declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado – art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil.
Vejamos então se o recorrido dispõe de títulos executivos:
- as letras prescritas são documentos particulares assinados pelo devedor;
- dos quais resulta a constituição de obrigações pecuniárias, traduzida na restituição de tudo o que foi prestado, ao abrigo do art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil; ou seja, dos documentos resulta a obrigação de pagar as quantias neles inscritas, já não pelos regimes cambiários ou do contrato de mútuo, mas por força do regime da nulidade do negócio jurídico; e
- cujo montante é determinado.
Acresce outro fundamento de natureza, dir-se-á, sistémica. Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, que procedeu à anterior reforma processual civil, que é geralmente reconhecida a imperiosa necessidade de proceder a uma reformulação substancial do processo executivo que nos rege, com vista a conferir-lhe a eficácia que a realização prática dos direitos já reconhecidos exige, sendo efectivamente numerosos os escolhos que obstam ou dificultam seriamente a que o titular de um direito, mesmo que judicialmente reconhecido, consiga, com brevidade e eficácia, realizá-lo coercivamente. Por conseguinte, face a este pensar do legislador e tendo o exequente documentos assinados pelo devedor que atestam obrigações pecuniárias determinadas, não se vê como negar-lhe o direito de seguir, desde logo, a via executiva em detrimento de o compelir ao calvário de uma acção declarativa.
A resposta é, concordantemente com o tribunal a quo, afirmativa: o recorrido tem títulos executivos.
No mesmo sentido, leia-se a seguinte passagem do citado acórdão da Relação do Porto: “ Entende-se ser mais consentâneo com a evolução legislativa invocada no sentido de alargar o campo dos títulos executivos extrajudiciais que o exequente não tenha de recorrer previamente ao processo declarativo num caso em que a obrigação em causa está já determinada e reconhecida, nos seus pressupostos fácticos com os requisitos previstos na apontada al. c) do art. 46º, e obrigação essa que com aqueles pressupostos resulta directamente da lei; no caso do contrato de mútuo nulo consta claramente determinado, tudo o que é abrangido pela consequência legal da nulidade prevista no nº 1 do art. 289º do Cód. Civil, ou seja, a devolução do capital”.
Também o acórdão da Relação do Porto, de 17.05.2011, processo n.º 249/10.8TBPVZ-A.P1: “ No caso do contrato de mútuo nulo onde consta claramente determinado tudo o que é abrangido pela consequência legal da nulidade prevista no n° 1 do art. 289° do Cód. Civil, ou seja, a devolução do capital, apresentado como título executivo, só pode servir como título com vista à restituição do que foi prestado, como consequência legal da nulidade do contrato”.
Ainda o acórdão do STJ de 19-02-2009, no processo 07B4427: “o título executivo é o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou direito que está dentro desse invólucro, revestindo a declaração de dívida – que no caso se refere a um contrato de mútuo igualmente nulo por vício de forma – o formato do invólucro e o contrato nulo constitui o conteúdo de que resulta nos termos do art. 289º, nº 1 do Cód. Civil, a obrigação de restituir tudo o que tiver sido prestado, podendo este direito à restituição ser exigido em acção executiva com a declaração de dívida como título executivo”.
E, finalmente, o Prof. Anselmo de Castro, in “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, págs. 41 e 42 da 3ª ed.: “não há coincidência entre a força probatória legal e força executiva ou exequibilidade; a lei concede força executiva a títulos que não possuem força probatória legal; mesmo quando representativas de mútuo, formalmente nulo, será o título de considerar-se sempre exequível para a restituição da respectiva importância, só o não sendo para o cumprimento específico do contrato (v.g. para exigir os juros )”.
Tudo visto, improcede a apelação.
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III – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas da apelação pelos recorrentes.
Guimarães, 13 de Março de 2014
Paulo Barreto
Filipe Caroço
António Santos