Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2372/12.5TBVCT.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
EMISSÕES GASOSAS
EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – À emissão de maus cheiros e à produção de ruídos que afectem substancialmente o uso e fruição da casa de habitação, provindo de prédio vizinho, pode opor-se o proprietário do imóvel.
II – Tal ‘prejuízo substancial’ é apreciado objectivamente, atendendo-se à natureza e finalidade do prédio.
III – A defesa dos direitos de personalidade, como o direito à saúde, à integridade física, ao conforto, a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, prevalece, em caso de colisão, sobre a tutela do direito ao exercício de uma actividade laboral, de natureza agrícola.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


I – Relatório;

Apelantes: AA… (réus);
Apelados: BB… (autores);
*****
Pedido:
Os autores intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum ordinário, contra os réus, pedindo a condenação destes a removerem os animais existentes no local da exploração junto à residência dos autores, a desactivarem a fossa séptica onde são depositados os chorumes produzidos pelos animais, a retirarem as telhas de fibrocimento e a absterem-se da prática de actos tendentes à reactivação da exploração, bem como no pagamento da quantia de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais, mais juros, e de € 20,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento das medidas requeridas. Na pendência da acção ampliaram o pedido no sentido da condenação dos RR. a absterem-se da prática de actos tendentes à reactivação da exploração por si ou por interposta pessoa.

Causa de pedir:
Os autores alegaram ser proprietários de uma casa de habitação nas proximidades da qual os RR. têm uma exploração bovina. Os animais existentes nessa exploração produzem ruído e cheiro nauseabundo que impedem os AA. de descansar e de usufruir da sua casa e lhes provocam preocupação, ansiedade e nervosismo, sendo certo que o edifício onde está instalada a exploração contém telhas de fibrocimento prejudiciais à saúde.

Contestaram os RR. defendendo que a exploração bovina está licenciada e que é na mesma que exercem a sua actividade laboral, sendo que tal exploração é insusceptível de causar os prejuízos invocados pelos AA.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou os RR. a:
a) removerem os animais bovinos da exploração instalada no edifício (vacaria) identificado no ponto 10 dos Factos;
b) desactivarem a fossa séptica identificada no ponto 20 dos Factos onde são depositados os chorumes produzidos pelos animais bovinos existentes no edifício (vacaria);
c) absterem-se da prática de actos tendentes à reactivação da exploração instalada no edifício (vacaria) por si ou por interposta pessoa;
d) pagarem aos AA. a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde hoje até integral pagamento, à taxa de 4% (Portaria 291/03, de 8Abr).

Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os réus, em cujas alegações formula, em súmula, as seguintes conclusões:

1ª- Estando em causa a decisão sobre a matéria de facto, importa transcrever quais os concretos pontos da matéria de facto constante da decisão que os Recorrentes pretendem colocar em crise.
2ª- Pontos esses que aqui se reproduzem:
15.As águas brancas (provenientes da lavagem da instalação de ordenha e do tanque de refrigeração do leite) e as águas verdes (provenientes da lavagem das áreas de espera, do pavimento e das paredes da sala de ordenha) que possuem vestígios de leite e de soluções de limpeza, nomeadamente detergentes e desinfectantes e pequenas quantidades de dejectos, correm diariamente, após as lavagens, do edifício-vacaria para a via pública (7);
16. As águas sujas, que correm na via pública, junto ao muro da propriedade até ao ribeiro de água, exalam cheiro nauseabundo e atraem mosquitos e moscas (8,9, 26 e 27);
17. A exploração bovina produz efluentes, chorumes e outros gases, com um cheiro intenso e nauseabundo que diariamente se propaga pelo ar das redondezas, nomeadamente pela casa dos AA, situada em frente da vacaria a uma distância de aproximadamente 15-20 metros (11 a 13 e 24);
18. Com vista à utilização indicada em 8, os RR. procedem à remoção dos chorumes para uma cisterna móvel que depois os transporta até um terreno situado a sensivelmente 70 metros da exploração bovina, para aí despejá-los num depósito redondo, em chapa, construído pelos RR, sendo esta trasfega de chorumes efectuada através duma bomba e dum tubo de plástico que os despeja directamente para a abertura situada no cimo do depósito a céu aberto, ficando o ar completamente empestado dum cheiro fétido e nauseabundo (14, 15 e 22 a 25);
20. A fossa existente dentro da exploração bovina para armazenamento de efluentes pecuários situa-se a menos de 100 metros de captações de água (poços e furos) destinada ao uso das casas de habitação que rodeiam a exploração, nomeadamente a casa dos AA, razão pela qual a água proveniente dessas captações deixou de ser usada por estes, o que lhes causa desgosto (17 a 21);
21. Por causa dos factos descritos, os AA. deixaram de usufruir do jardim da sua casa, nomeadamente de aí almoçar ou jantar e de aí receber os amigos, ao contrário do que antes faziam. Além disso, têm uma preocupação permanente em recolher a roupa assim que está seca, para que não fique suja com os dejectos das moscas referidas em 16 (28 a 31);
22. Os animais que os RR. mantêm na exploração bovina mugem diariamente, produzindo ruído, o qual se acentua nos dias e noites em que as vacas estão para parir, impossibilitando ou dificultando o repouso e o descanso dos AA, bem como a capacidade de trabalho da A. nos moldes indicados em 9 (34 a 37);
3ª- No entendimento dos Recorrentes o Mmº Juíz “a quo” não teve em consideração o depoimento das testemunhas arroladas pelos Recorrentes, nomeadamente as testemunhas José …, Paulo …, Manuel … e Humberto …, depoimentos esses que, transcritos na parte expositiva das presentes alegações, aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
4ª- Essas testemunhas são residentes no local, convivem diariamente com a vacaria, têm um perfeito conhecimento da realidade e todas elas foram unânimes em afirmar que nunca se sentiram perturbados por ruídos produzidos pelos animais, moscas provenientes da vacaria, cheiros que resultem da actividade pecuária explorada pelos Recorrentes.
5ª- Mais, todos eles foram unânimes em afirmar que não deixaram de fazer a sua vida do dia a dia, organizar dias festivos, convidar amigos e conhecidos.
6ª- Mais, o Mmº Juiz “a quo” não valorou o depoimento da testemunha Sérgio …, também transcrito na parte expositiva e que aqui se dá por reproduzido, apresentada pelos próprios Recorridos, que foi peremptório em afirmar que a sua mãe, que residia a cerca de cinco a dez metros da vacaria, nunca se sentiu incomodada com o barulho produzido pelos animais. Como ele referiu, só o cheiro é que às vezes incomodava.
7ª- É um facto que as explorações pecuárias produzem cheiros mas, como é reconhecido pelas testemunhas dos Recorrentes e isso até é mais um factor para a sua credibilidade, esses cheiros não são nauseabundos, não empestam o ambiente nem têm carácter regular ou, como consta da sentença, diário.
8ª- São cheiros próprios de uma zona rural que, em alguns dias, atinge um pico maior por razões que, muitas vezes, são alheias à vontade dos Recorrentes.
9ª- Por outro lado, as testemunhas dos Recorridos, ao contrário das dos Recorrentes, são pessoas amigas, que vão de vez em quando à casa dos Recorridos, sendo que grande parte do seu depoimento resulta não daquilo que viram ou sentiram mas daquilo que os Recorridos lhes foram contando.
10ª- Os depoimentos prestados pelas testemunhas dos Recorrentes acima citadas e pela testemunha do Recorridos Sérgio …, teria forçosamente de levar o Tribunal a concluir pela não existência de ruídos produzidos pelos animais que, pela sua intensidade, fossem capazes de pôr em causa o descanso dos Recorridos.
11ª- Por outro lado, os mesmos depoimentos das testemunhas dos Recorrentes teriam de levar o Tribunal a conclusão diferente daquela que tirou no que diz respeito aos cheiros resultantes da actividade pecuária desenvolvida pelos Recorrentes.
12ª- Aliás, em relação à matéria constante dos pontos 15º, 16º e 18º da matéria de facto constante da sentença, não existe qualquer prova nos autos, documental ou testemunhal, que possa levar a concluir pela sua existência e pela resposta positiva aos vários quesitos que os integram.
13ª - Entendem os Recorrentes que a reapreciação da prova testemunhal levará este Tribunal de recurso a dar como não provadas as questões de facto constantes dos quesitos 7º, 8º, 9º, 12º, 13º, 14º, 15º - na parte em que se refere o cheiro fétido e nauseabundo -, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 34º, 35º, 36º e 37º da base instrutória.
14ª- E, consequentemente, alterar a decisão sobre a matéria de facto constante da douta sentença recorrida nos seguintes termos:
Eliminar os pontos 15º e 16º
17. A exploração bovina produz efluentes, chorumes e outros gases,
18. Com vista à utilização indicada em 8, os RR. procedem à remoção dos chorumes para uma cisterna móvel que depois os transporta até um terreno situado a sensivelmente 70 metros da exploração bovina, para aí despejá-los num depósito redondo, em chapa, construído pelos RR, sendo esta trasfega de chorumes efectuada através duma bomba e dum tubo de plástico que os despeja directamente para a abertura situada no cimo do depósito a céu aberto,
20. A fossa existente dentro da exploração bovina para armazenamento de efluentes pecuários situa-se a menos de 100 metros de captações de água (poços e furos) que rodeiam a exploração.
21. Os AA., não usufruem do jardim da sua casa, nomeadamente de aí almoçar ou jantar e de aí receber os amigos, ao contrário do que antes faziam. Além disso, têm uma preocupação permanente em recolher a roupa assim que está seca.
22. Os animais que os RR. mantêm na exploração bovina produzem ruído, que se acentua esporadicamente quando algum deles se encontra em trabalho de parto.
15ª - A decisão recorrida fez errada apreciação da prova documental e testemunhal constante dos autos e, por essa via, violou as disposições contidas nos artigos 352º, nº 2, e 1 346º, ambos do Código Civil.
Pede que se conceda provimento ao presente recurso,

Não houve contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

As questões a apreciar são as seguintes:

a) Erro na apreciação da prova;
b) Erro de direito: emissão de cheiros, produção de ruídos e outros factos semelhantes de prédio vizinho.

*****

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;

A. Factualidade considerada provada na decisão é a seguinte:
1. Os AA. são donos e legítimos possuidores duma casa de habitação, composta de rés-do-chão e logradouro, sita no Caminho da …, confrontar do norte e poente com Caminho Público, sul com Jorge Manuel Pereira de Passos e nascente com Manuel António de Matos, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Vila Franca e descrita na Conservatória do Registo Predial sob nº … (A);
2. Desde de Junho de 1997 que os AA. e duas filhas residem e têm a sua casa de família nessa habitação. É aí que habitualmente pernoitam, fazem as suas refeições, recebem o correio e seus amigos (B, C e 44);
3. Os RR. são proprietários e legítimos possuidores duma casa de habitação de dois pisos, com área coberta de 96,82 metros2 e logradouro de 192,18 metros2, sita no Caminho do …, confrontar do norte com Caminho Público, sul com Maria Alice Ferreira, nascente com Júlia Rodrigues de Matos e poente com Paulino Ferreira, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Vila Franca e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, e ainda duma leira de mato com pinheiros, sita no lugar de Romanos, a confrontar do norte com Caminho Público, sul com Caminho de Servidão, nascente com Júlia Rodrigues de Matos e poente com Herdeiros de Avelino Ribeiro, com área de 1546 metros2, inscrita na matriz predial rústica sob o artigo … da freguesia de Vila Franca e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº … (D e E);
4. Os dois prédios descritos em 3 foram objecto dum processo de loteamento com o nº …/80 na Câmara Municipal de Viana do Castelo, o qual obteve o alvará de loteamento nº 433, em Agosto de 1981, para a constituição de três lotes destinados a construção de moradias unifamiliares. Do processo de loteamento resulta que o lote nº 1 foi atribuído à casa de habitação já edificada e supra descrita, propriedade dos RR; o lote nº 3 foi atribuído a uma outra casa de habitação já edificada, que não é propriedade dos RR; e o lote nº 2 sem qualquer edificação, tendo sido objecto de licenciamento para uma moradia familiar através do processo de obras …/80, actualmente propriedade dos RR. (F a I);
5. Pese embora este processo de loteamento tivesse sido autorizado e legalizado, nunca foi objecto de participação na Repartição de Finanças de Viana do Castelo, nem de registo na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo. Daí que as descrições e inscrições constantes na Repartição de Finanças de Viana do Castelo são as anteriores ao processo de loteamento e os RR. continuem aí a ser titulares dum prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo … da freguesia de Vila Franca e dum prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … da freguesia de Vila Franca, o mesmo sucedendo na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo (J a L);
6. Em 24 de Setembro de 2008 a Câmara Municipal de Viana do Castelo, através dos seus fiscais, procedeu à fiscalização de construção realizada pelos RR, na sequência do que veio a mesma ser embargada. Nessa mesma data o R. Armindo Ferreira foi notificado do embargo, da proibição de continuar e concluir a construção, e para em 30 dias proceder à legalização das obras (M a N);
7. Os RR, mais concretamente a R. Maria Júlia Gomes, solicitou, em 12 de Dezembro de 2008, uma licença para exploração bovina do tipo A, com vista à exploração de 50 vacas de produção de leite e respectivo efectivo de substituição (vitelos), sem utilização de pastoreio, em regime intensivo e com utilização de chorumes (O);
8. Os RR. têm utilizado os chorumes provenientes da exploração como fertilizantes nos campos agrícolas (P e 10);
9. A A. é advogada de profissão, trabalhando habitualmente durante a noite em casa na preparação de processos que requerem toda a sua concentração intelectual e necessitando para isso de “paz e sossego” (Q);
10. No início de Setembro de 2008 os RR. iniciaram e procederam à construção dum edifício para exploração de gado bovino e anexos sobre o supra referido lote nº 2 (sem edificação) e sob parte do lote nº 1 (com casa de habitação) sem que as obras estivessem autorizadas e licenciadas pela Câmara Municipal de Viana do Castelo, tendo construído um pavilhão com telhado de duas vertentes, revestido a telha de fibrocimento de lusalite, com a área de 580 metros2 o edifício para exploração bovina, um edifício de 50 metros2 para zona de ordenha e um alpendre de 100 metros2 para arrumos de alfaias agrícolas (2 e 32);
11. Apesar da notificação indicada em 6 (embargo de obra), RR. não cumpriram com o mesmo e continuaram e concluíram a construção (3);
12. Os RR. não procederam à legalização dessa construção (4);
13. A exploração bovina e construção inserem-se numa zona “densamente” habitacional, rodeada de casas de habitação a uma distância inferior a 70 metros (5);
14. Os RR, desde finais de Setembro de 2008, têm permanentemente dentro do edifício-vacaria (coberto com um telhado de duas vertentes em telhas de fibrocimento) cerca de 45 animais bovinos, entre vacas leiteiras, novilhos e vitelas (6);
15. As águas brancas (provenientes da lavagem da instalação de ordenha e do tanque de refrigeração do leite) e as águas verdes (provenientes da lavagem das áreas de espera, do pavimento e das paredes da sala de ordenha) que possuem vestígios de leite e de soluções de limpeza, nomeadamente detergentes e desinfectantes e pequenas quantidades de dejectos, correm diariamente, após as lavagens, do edifício-vacaria para a via pública (7);
16. As águas sujas, que correm na via pública, junto ao muro da propriedade até ao ribeiro de água, exalam cheiro nauseabundo e atraem mosquitos e moscas (8, 9, 26 e 27);
17. A exploração bovina produz efluentes, chorumes e outros gases, com um cheiro intenso e nauseabundo que diariamente se propaga pelo ar das redondezas, nomeadamente pela casa dos AA, situada em frente da vacaria a uma distância de aproximadamente 15-20 metros (11 a 13 e 24);
18. Com vista à utilização indicada em 8, os RR. procedem à remoção dos chorumes para uma cisterna móvel que depois os transporta até um terreno situado a sensivelmente 70 metros da exploração bovina, para aí despejá-los num depósito redondo, em chapa, construído pelos RR, sendo esta trasfega de chorumes efectuada através duma bomba e dum tubo de plástico que os despeja directamente para a abertura situada no cimo do depósito a céu aberto, ficando o ar completamente empestado dum cheiro fétido e nauseabundo (14, 15 e 22 a 25);
19. Este depósito foi construído sem licença pelos RR. e edificado praticamente em cima duma linha de água e nas margens dum ribeiro (16);
20. A fossa existente dentro da exploração bovina para armazenamento de efluentes pecuários situa-se a menos de 100 metros de captações de água (poços e furos) destinada ao uso das casas de habitação que rodeiam a exploração, nomeadamente a casa dos AA, razão pela qual a água proveniente dessas captações deixou de ser usada por estes, o que lhes causa desgosto (17 a 21);
21. Por causa dos factos descritos, os AA. deixaram de usufruir do jardim da sua casa, nomeadamente de aí almoçar ou jantar e de aí receber os amigos, ao contrário do que antes faziam. Além disso, têm uma preocupação permanente em recolher a roupa assim que está seca, para que não fique suja com os dejectos das moscas referidas em 16 (28 a 31);
22. Os animais que os RR. mantêm na exploração bovina mugem diariamente, produzindo ruído, o qual se acentua nos dias e noites em que as vacas estão para parir, impossibilitando ou dificultando o repouso e o descanso dos AA, bem como a capacidade de trabalho da A. nos moldes indicados em 9 (34 a 37);
23. Os factos descritos em 22 provocam aos AA. ansiedade e nervosismo (38);
24. Os RR. dedicam-se à exploração bovina há sensivelmente 20 anos, fazendo-o, até 2008, no terreno adjacente à sua casa de habitação identificada em 3, onde tinham permanentemente entre cerca de 5 e cerca de 20 animais bovinos, e, após 2008 – mais concretamente após a data indicada em 14 –, no edifício aí identificado, onde passaram a ter permanentemente cerca de 45 animais bovinos (39, 40 e 44);
25. A exploração bovina dos RR. é a única fonte de subsistência do agregado familiar composto por eles e por uma filha (42 e 43).

III – Direito aplicável:

a) Erro na apreciação da prova:

Os recorrentes esgrimem que existe erro na decisão de facto, pretendendo a alteração dos pontos de factos nºs 15 a 22 da sentença.
Em matéria de valoração das provas, nomeadamente dos depoimentos e documentos juntos, o tribunal a quo aprecia-os livremente, por força do disposto no artº 607º, nº 5, do CPC, salvo o estatuído na parte final do mesmo preceito.
É certo que, no que respeita à questão da alteração da matéria de facto, face ao invocado erro na avaliação da prova testemunhal e documental, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artº 662º, do CPC, e, enquanto tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam Nesta concepção, a divergência quanto ao decidido pelo tribunal a quo na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório., mas, também, avaliar e valorar (de acordo com o aludido princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto A jurisprudência tem vindo a evoluir no sentido de se firmar um entendimento mais abrangente no que se refere aos poderes de alteração da matéria de facto pela Relação, considerando-os com a mesma amplitude que a dos tribunais de 1ª instância. Nessa medida, e no que se refere à questão da convicção, já não estará em causa cingir apenas a sua actividade de apreciação ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, mas antes formar a sua própria convicção nos elementos probatórios disponíveis nos autos (cfr., entre outros, o Acórdão do STJ de 16.12.2010, proc. 2401/06.1TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt)..
Mas é inelutável não olvidar que, mesmo havendo gravação sonora dos meios de prova produzidos oralmente, o Tribunal de recurso está cerceado de toda a panóplia de elementos probatórios ao dispor do Tribunal a quo que enriquecem a reconstituição dos factos, como seja, desde logo, a nível testemunhal, a espontaneidade do testemunho, a linguagem gestual, os silêncios ou hesitações, enfim, a percepção do imediatismo, credibilidade e isenção desse depoimento, bem como a constatação in loco que a inspecção ao local permite como no caso presente, em que está em causa inclusive a emissão de cheiros, a produção de ruídos e outros factos similares, no âmbito de relações de vizinhança.

Por outro lado, o pretenso ‘vício’ que os apelantes dizem inquinar a apreciação da prova pelo tribunal recorrido (a saber, o de conferir uma credibilidade maior à versão das testemunhas dos autores, em detrimento do relato das testemunhas arroladas pelos réus) não deixa de ser o mesmo fundamento, mas ao invés, que suporta o objecto do recurso. Ou seja, a credibilidade, a objectividade, a clareza e a razão de ciência estará do lado dos depoimentos das testemunhas dos réus, segundo estes.
Afigura-se-nos não lhes assistir razão.
Com efeito, aquilatando o conteúdo do depoimento das testemunhas dos autores, designadamente de Sandro …, Mário …, Joaquim …, Maria …, Sérgio …, Cândido … e Deolinda …, em confronto com o relato das testemunhas dos réus nomeadamente António …, José …, Paulo …, Manuel …, Humberto …, podemos concluir que a convicção formada pelo tribunal a quo, quanto à decisão de facto, além de não padecer de qualquer erro manifesto ou grosseiro, é consentânea, em termos de razoabilidade e adequação, com os elementos probatórios que resultam dos depoimentos gravados em audiência, com os documentos carreados para os autos, como as fotografias de fls. 26-46, 237 a 239, informações de fls. 159 e sgs, 170 e sgs e 268 e sgs e informações camarárias de fls. 213 e sgs., e com a inspecção ao local.
Não obstante os recorrentes pretenderem pôr em causa a fiabilidade da prova testemunhal produzida pelos autores com o argumento de que o conteúdo dos testemunhos prestados pelas pessoas por si arroladas é mais fidedigno por se tratar de vizinhos, residentes ou moradores junto à dita vacaria, certo é que o relato feito pelas testemunhas dos autores, como seja o da testemunha Sandro …, Mário …, Deolinda … ou Humberto … é objectivo, circunstanciado e credível, ao invés do das testemunhas José …, Paulo … e Manuel …, vizinhos, de cujo depoimento transparece falta de objectividade e isenção, tendo uma narrativa notoriamente comprometida, de favor e afrontando as mais elementares regras de experiência comum.
Na verdade, residindo estes “paredes meias” com a aludida vacaria – relativamente à qual o médico veterinário que ali dá assistência, testemunha Humberto …, não deixou de referir que se trata de cerca de 50 cabeças de gado bovino, entre adultos e crias, que estes fazem barulho, sobretudo quando vão ser alimentadas, estão com o ‘cio’ ou estão para parir, que produzem muitos excrementos, que o cheiro destes é intenso e incomodativo, além de emitirem gases (amoníaco e metano), mal se compreende que tais testemunhas indicadas pelos réus e ali vizinhos se limitem a afirmar que não existem cheiros, ruídos ou moscas – o que também é desmentido pelas testemunhas dos autores, na convivência e visitas que faziam à casa destes.
As fotografias de fls. 26 a 28, 31 a 36 não deixam de ser elucidativas das excrescências, utilização de chorumes e lavagens.
Além disso, no seu depoimento, a testemunha Sérgio … não deixou de salientar o barulho das vacas e o mau cheiro que se faz sentir na casa da mãe deste, que dista da vacaria 10 metros.
Do mesmo modo, também a testemunha José …, vizinho dos réus e distante da vacaria cerca de 10 metros, asseverou que as vacas fazem barulho, ainda que não ensurdecedor, que são feitas descargas dos excrementos da fossa, pelo menos duas vezes por semana, passando pela rua.

Em resumo, escrutinados os depoimentos e feito o seu cotejo com a versão dos autores e réus trazida à lide, reiteramos a conclusão extraída pelo tribunal recorrido de que o relato das testemunhas dos autores se evidenciou globalmente mais objectivo, elucidativo e verosímil, ao invés do relato das testemunhas indicadas pelos réus e seus vizinhos que, numa ânsia de negação de qualquer incómodo advindo de ruídos ou cheiros, depuseram de uma forma que não reflecte a realidade, para usar os dizeres da tribunal a quo, em sede de motivação da matéria de facto.

Pelas razões sobreditas, mantém-se a supra mencionada matéria de facto provada – artº 663º, nº6, do CPC.
b) Erro de direito: emissão de cheiros, produção de ruídos e outros factos semelhantes de prédio vizinho.

Sobre a questão de direito dir-se-á que não se verifica qualquer erro de julgamento, já que este dependeria da modificação da decisão de facto suscitada e não atendida.
Ainda assim, a subsunção jurídica dos factos revela-se correcta e conforme o prescrito nas citadas disposições legais insertas nos artºs 335º, nº2 (e não 352º, nº2 indicado no recurso) e 1.346º, ambos do Código Civil (CC), inexistindo violação de tais preceitos.

Aliás, neste âmbito, a defesa dos direitos de propriedade não se pode dissociar da problemática socio-ambiental e da perspectiva da tutela dos direitos de personalidade dos AA..
O artº 70º.nº 1, do CC, prescreve que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física ou moral.
Tem-se entendido – e hoje com maior acuidade - que esta previsão normativa de conteúdo genérico abarca a existência de um conjunto de direitos a salvaguardar e ínsitos à natureza humana. Ou seja, para além dos primordiais direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao bom nome, tutelam-se direitos afins ou difusos como o direito ao repouso, à intimidade, à tranquilidade, à saúde, ao bom ambiente, essenciais à existência física.
Por seu turno, o nº 2 de tal preceito prevê explicitamente a responsabilidade civil em sede de tutela geral da personalidade.
Não olvidando que a exploração de uma vacaria é uma daquelas actividades características do sector agrícola ( pecuário ) e do nosso meio rural. - atento o circunstancialismo concreto apurado, nomeadamente quanto à dimensão, lugar e modo como essa actividade é desenvolvida (prejudicando substancialmente o uso e fruição de habitação dos autores, sem descurar os seus direitos de personalidade, como o direito à saúde, à integridade física, ao conforto, a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado), tal exploração ultrapassa a ideia de tolerabilidade do risco inerente a essa actividade, por um lado, e não obstante as necessidades que o desenvolvimento daquela actividade permitem satisfazer aos réus, estas cedem perante tais direitos de personalidade, por outro – citado artº 335º, nº2, do CC.

Logo, não procede a apelação.

Sintetizando:
I – À emissão de maus cheiros e à produção de ruídos que afectem substancialmente o uso e fruição da casa de habitação, provindo de prédio vizinho, pode opor-se o proprietário do imóvel.
II – Tal ‘prejuízo substancial’ é apreciado objectivamente, atendendo-se à natureza e finalidade do prédio.
III – A defesa dos direitos de personalidade, como o direito à saúde, à integridade física, ao conforto, a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, prevalece, em caso de colisão, sobre a tutela do direito ao exercício de uma actividade laboral, de natureza agrícola.
*

IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juizes da 1ª Secção Cível deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.


Guimarães, 28.05.2015
António Sobrinho
Isabel Rocha
Jorge Teixeira