Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
588/13.6JABRG-A.G1
Relator: TERESA BALTAZAR
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – Após as alterações da Lei 48/2007 de 29-08 ficou claro que na ponderação do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, enquanto requisito geral da aplicação de medida de coação, não se atende apenas à natureza e às circunstâncias do crime e à personalidade do arguido. É necessário que o arguido em concreto crie o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
II – Exige-se agora igualmente que tal perigo seja grave.
III – A medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, é desproporcionadamente gravosa para um arguido com 67 anos, sem antecedentes criminais e bem inserido socialmente, indiciado por ter perpetrado um homicídio tentado com arma de fogo, em “clima de exaltação”, imediatamente após ter sido agredido corporalmente na sua residência pelo ofendido, que lhe partiu os óculos, por causa de questões relacionadas com negócios existentes entre os dois.
Decisão Texto Integral: No processo n.º 588/13.6JA BRG - em fase de inquérito - procedeu-se no 1º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial de Guimarães ao interrogatório de arguido detido (art. 144.º do C. P. Penal), após o que foi aplicada ao arguido Joaquim L... medida de coacção; ali, no essencial, se tendo decidido o seguinte (transcrição):

“(…) entendemos adequado, proporcional e não excessivo, aplicar ao arguido Joaquim L..., para além do TIR já prestado,


- Medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, e
- Proibição de detenção, manuseamento, aquisição e uso de armas de fogo e outras, devendo entregar no prazo máximo de 10 dias todas as outras armas e munições para além das apreendidas que tenha em sua posse, nos termos do disposto nos artigos 200.°, n.o 1, al. d) e e) do CPP.
O que se determina, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 191.°, 193.°, 200.°, n.º 1, al. e), 201,°, n.º 1, 204.°, alínea c) e 194.°, n.º 2, todos do C.P.P. (…)”.

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Inconformado com a supra referida decisão o Ministério Público, dela interpôs recurso (cfr. fls. 48 a 61), terminando a sua motivação com as conclusões constantes de fls. 58 a 61, seguintes:
1. “A medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com pulseira eletrónica violou os princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade, plasmados nos artigos 27.° e 28.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 191°, n.º 1 e 193° do CPP.
2. O arguido atuou num determinado contexto, após ter sido surpreendido na sua residência pelo ofendido e, segundo a versão do arguido por ora não contrariado por qualquer elemento de prova, depois do ofendido lhe desferir vários socos e pancadas com uma vassoura na sua mulher, pessoa idosa e doente.
3. Imbuído por um sentimento de humilhação e de impotência que segundo cremos que o arguido terá sentido, num ato de revolta, claramente excessivo, desproporcional e cuja gravidade não se ignora, porquanto atentou contra o valor fundamental da vida humana, o arguido atuou da forma como se descreveu.
4. Caso único, insólito, irrepetível, um ato tresloucado e insano perpetrado num determinado contexto que não pode ser no entanto descurado.
5. O arguido, tem 67 anos de idade, casado, quatro filhos, sem antecedentes criminais, sem inquéritos pendentes, não existindo evidências de ser usualmente pessoa violenta ou conflituosa, encontrando-se socialmente inserido, perpetrando os atos em causa isoladamente, num elevado estado de exaltação.
6. Durante longos anos com licença de uso e porte de arma para caçar não há notícia de qualquer episódio ou incidente perpetrado pelo arguido.
7. Após vários anos já sem ser caçador mas possuidor da autorização de detenção da arma na sua residência, não há qualquer incidente a relatar.
8. O arguido trabalha há 37 anos, neste momento, apesar de reformado, continua a laborar numa empresa em nome do seu filho.
9. O arguido encontra-se social, familiar e profissionalmente inserido.
10. O n.º 1 do artigo 193° do Código Penal, sob a epígrafe" Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade", consagra que "As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas."
11. Desde logo, na nossa perspetiva, a medida de coação aplicada viola o princípio da proporcionalidade o qual tem que ser pensado não só em função da gravidade do crime mas também das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
12. Salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que 110 caso em apreço, previsivelmente não será de aplicar ao arguido pena de prisão efetiva.
13. Porém, ainda que assim se não entenda, e mesmo considerando como previsível a aplicação de pena de prisão efetiva ao arguido, impõe-se ponderar sobre a adequação e necessidade da medida de coação aplicada às exigências cautelares sentidas pelo caso em apreço.
14. Cumpre salientar que à luz do nosso ordenamento jurídico­-constitucional, é insustentável decretar medida de coação privativa da liberdade como mera consequência da condenação em pena de prisão.
15. Num quadro de normalidade, não sendo abordado pelo ofendido o arguido não perpetrará qualquer facto.
16. Deste modo, verificando-se perigo de continuação da atividade criminosa caso o ofendido volte a interpelar o arguido, este, não estando munido por qualquer arma de fogo não oferece qualquer perigo, sendo que deve acrescer a proibição de contactar o ofendido, evitando-se assim qualquer atuação do arguido nesse sentido.
17. E quanto ao alarme social causado pela atuação do arguido o mesmo é passível de ser acautelado face à obrigação de apresentação diária no Posto da GNR pelo arguido, que serve, do mesmo modo, para que interiorize a gravidade da conduta por si cometida.
18.A obrigação de permanência na habitação aplicada ao arguido Joaquim é desprovida de qualquer utilidade nem cumpre qualquer necessidade cautelar sentida no caso em apreço é perfeitamente desnecessária, inútil e, consequentemente, desproporcional e desnecessária.
19. Os perigos sentidos no caso em apreço e apontados pelo Mm JIC podem ser perfeitamente acautelados com as medidas propostas em sede de promoção do Ministério Público; apresentações periódicas diárias, proibição de deter e obrigação de entregar todas as armas e munições que possua e proibição de contactar o ofendido.
20.As medidas de coação propostas pelo Ministério Público, no caso em apreço, têm exatamente a mesma eficácia que a medida de coação aplicada pelo Mm JIC.
21.E, sendo assim, a medida privativa da liberdade, sendo subsidiária, não pode ser aplicada, porquanto outras medidas de coação menos gravosas mostram-se suficientes e cumprem as necessidades cautelares sentidas no caso em apreço.
Nesta conformidade, entendemos, salvo melhor e superior opinião, que deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogado o despacho do Mm Juiz e substituído por um outro que aplique ao arguido Joaquim L... as medidas de coação de a apresentações periódicas diárias, medida esta que deverá ser cumulável com a medida de coação de proibição de contactar, por qualquer meio, o ofendido e, proibição de não adquirir e usar e bem assim obrigação de entregar todas as armas e munições que possua - artigos 193°, 194°, 198° 200°, alínea d) e e), 204°, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
Vossas Excelências, contudo, decidindo, farão certamente JUSTIÇA.”.
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O arguido Joaquim L... apresentou resposta, cfr. fls. 103 a 115, na qual entende que o recurso do M. P. deve ser julgado procedente.
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O recurso veio a ser admitido por despacho de fls. 62.
Vindo a ser proferido despacho de sustentação a fls. 116 e 117, dos presentes autos.
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A Digna PGA nesta Relação no seu parecer (constante de fls. 122 e 123) conclui, também, pela procedência do recurso.

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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, não veio a ser apresentada qualquer resposta.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.

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- Cumpre apreciar e decidir:
- A - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do C. P. Penal.
- B - No essencial, o Ministério Público no seu recurso suscita a questão seguinte:
- De saber se deve ser substituída a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica que foi aplicada ao arguido Joaquim L..., por uma medida não privativa da liberdade – “(…) apresentações periódicas diárias, medida esta que deverá ser cumulável com a medida de coação de proibição de contactar, por qualquer meio, o ofendido e, proibição de não adquirir e usar e bem assim obrigação de entregar todas as armas e munições que possua - artigos 193°, 194°, 198° 200°, alínea d) e e), 204°, alínea c), todos do Código de Processo Penal.” (fls. 61).
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- C - Aqui se dá como integralmente reproduzido o teor do despacho recorrido, constante de fls. 38 a 44 dos presentes autos.
Constando de fls. 41 a 44 o seguinte (transcrição parcial):
(…) Qualificação jurídica dos factos imputados:
Ponderando a factualidade indiciariamente apurada, afigura-se-nos que o arguido Joaquim de Lima se encontra fortemente indiciado pela prática, na forma consumada, de um crime homicídio agravado, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 131.°, 22.°, n.º 1, e n.º 2 al. b), 23,°, n.º 1 e n.º 2, todos do Código Penal e art.º 86,°, n.ºs 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Suas Munições, em concurso real, com um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.o 2.º, n.º 1, al. ar), 3.°, n.º 2, al. o) e p), 18.°, n.º 3 e 86.°, n.º 1, al. c) e d), do mesmo diploma legal.


IV.
Factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida de coacção (incluindo os previstos nos artigos 193.° e 204°, do Código de Processo Penal):
Como é sabido as medidas de coacção regem-se pelos princípios da necessidade, legalidade e proporcionalidade.
Os fins cautelares são os previstos no art. 204.0 do CPP.
Descendo ao caso em concreto, entendemos que o facto do arguido, como declarou, estar integrado familiarmente, profissionalmente, e residir há vários anos na mesma habitação, aliado a que se apresentou em tribunal voluntariamente, demonstra não existirem indícios fortes de fuga.
Contudo, consideramos que os perigos relacionados com o alarme e tranquilidade social, bem como perigo de repetição de actos semelhantes, aliado à gravidade dos actos em causa apenas permitem apontar, neste momento processual, para uma medida de coacção privativa da liberdade.
Na verdade, os factos indiciam um disparo com arma de fogo num clima de exaltação, cujo conflito tem origem em questões relacionadas com o negócio que o arguido tem com o ofendido.
Ora, a tentativa de homicídio de que o arguido está fortemente indiciado aponta para uma moldura abstracta que pode atingir os 16 anos de prisão.
Se é verdade, que o arguido tem levado uma vida conforme ao Direito, este acto isolado revelou uma personalidade desvaliosa em termos jurídico penais, que poderia ter culminado com a morte de uma pessoa humana.
Tal não é despiciendo, e o uso de arma de fogo, com disparos para a via pública, são actos que abalam a tranquilidade social.
Ademais, o litígio relativo ao negócio ainda não foi resolvido. Ou seja, o móbil que teve na origem de tudo não está ultrapassado, sendo que atenta a actuação do arguido, não é seguro afirmar que não existe qualquer perigo de voltar a cometer o mesmo acto, desta feita com consequências mais nefastas.

Por último, não podemos escamotear que a imagem global transmitida, é bastante grave, neste momento de avaliação, em termos de censura penal e de alarme social.
E por isso entendemos adequado, proporcional e não excessivo, aplicar ao arguido Joaquim L..., para além do TIR já prestado,


- Medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, e
- Proibição de detenção, manuseamento, aquisição e uso de armas de fogo e outras, devendo entregar no prazo máximo de 10 dias todas as outras armas e munições para além das apreendidas que tenha em sua posse, nos termos do disposto nos artigos 200.°, n.o 1, al. d) e e) do CPP.
O que se determina, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 191.°, 193.°, 200.°, n.º 1, al. e), 201,°, n.º 1, 204.°, alínea c) e 194.°, n.º 2, todos do C.P.P. (…)”.

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No essencial, invoca o recorrente, nos termos supra referidos, que não foram tidos em conta, na opção pela aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, os critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação.
Vejamos.
Constitui o direito à liberdade um direito fundamental e tem assento constitucional, art. 27º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
A lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos - art. 18º n.º 2 da CRP.
Consagrou o legislador do mesmo modo o princípio da presunção de inocência do arguido, art. 32º n.º 2 da CRP, com uma multiplicidade de conteúdos. Uma das excepções a este princípio, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, foi estabelecida pela Constituição no art. art. 27º, n.º 3, al. b).
Esta restrição tem por fim acautelar o normal desenvolvimento do procedimento penal e uma boa administração da justiça, interesse potencialmente conflituante com o direito à liberdade.
Por sua vez o procedimento penal visa, nesta perspectiva, a satisfação e/ou reposição de uma multiplicidade de interesses encabeçados pelo direito à segurança. É a conhecida dialéctica liberdade, segurança.
Neste contexto pode afirmar-se que as medidas coactivas previstas no C. P. Penal que implicam privação da liberdade estão sob o fogo cruzado de dois deveres estaduais antagónicos: o dever de perseguir eficazmente o autor de um delito e o dever de assegurar o direito à liberdade.
A privação da liberdade tem assim natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei (art. 28º n.º 2 da CRP). Esta excepcionalidade significa que no nosso ordenamento durante a pendência do processo penal a regra é sempre a liberdade e a excepção a privação da liberdade.
Explicitando o princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coacção diz o art. 191º n.º 1 do Código Processo Penal, que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
As medidas de coacção estão ainda subordinadas aos princípios da necessidade, adequação e da proporcionalidade, art. 193º n.º 1, do CPP, não devendo ser aplicada qualquer medida de coacção quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, art. 192º, n.º 2, do CPP.
A obrigação de permanência na habitação tem natureza residual só podendo ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção, art. 193º n.º 2 do Código Processo Penal.
Acresce que para aplicação desta medida é ainda necessário haver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, art. 201º n.º 1, do Código Processo Penal.
Finalmente esta medida de coacção, não pode ser aplicada se em concreto se não verificar pelo menos uma das circunstâncias seguintes (art. 204º do Código Processo Penal):
- Fuga ou perigo de fuga;
- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou


- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
O perigo de continuação da actividade criminosa a que alude a alínea c) do artigo 204º, relevante para o caso vertente, não se confunde, necessariamente, com a consumação de novos actos criminosos. Deve antes ser aferido em função de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido a efectuar a partir dos factos indiciados (a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta) e personalidade do arguido neles revelados. (cfr., neste sentido Acórdãos da Relação de Coimbra, de 11-03-2009, proc. n° 16/08.GBA VR e da Relação do Porto, de 25/03/2010, in www.dgsi.pt)
E como observa o Acórdão da mesma Relação de Coimbra, de 02-06-99, disponível em htt://www.trc.pt. - doc. 244/2 - "terá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstracta ou genérica) (…) o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efectivo) de continuação da actividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coacção, maxime a prisão preventiva".
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Ora, após o interrogatório judicial do arguido, afigura-se-nos estar indiciada a factualidade constante de fls. 51/ 52 da motivação do recorrente.
Ou seja e em suma, indicia-se que o arguido foi abordado na sua residência pelo ofendido, que o agrediu a soco, partindo-lhe os óculos, o que levou o primeiro a refugiar-se na cozinha de sua casa, onde estava a sua esposa; a qual, por seu turno procurou defender o marido e para tanto munida de uma vassoura, desferiu com esta uma pancada no ofendido; este, por sua vez, retirou-lhe a vassoura e com a mesma atingiu-a com pancadas.
Depois e como bem se refere a fls. 52 da motivação do recorrente, “O ofendido tem compleição física e vitalidade superiores á do arguido e sua mulher.
O ofendido não terá levado consigo as malhas para reaver o dinheiro que entregou ao arguido pela sua aquisição.
(…)
O arguido tem 67 anos de idade, é casado, tem quatro filhos, nunca praticou qualquer facto qualificado como crime, não teve qualquer contacto com o sistema judicial penal, não apresenta qualquer antecedente criminal, nem sequer inquéritos pendentes.
Durante longos anos com licença de uso e porte de arma para caçar não há notícia de qualquer episódio ou incidente perpetrado pelo arguido.
Após vários anos já sem ser caçador mas possuidor da autorização de detenção da arma na sua residência, não há qualquer incidente a relatar (…) trabalha á 37 anos, neste momento, apesar de reformado continua a laborar numa empresa em nome do seu filho (…) encontra-se social, familiar e profissionalmente inserido”.
Se bem interpretamos a douta decisão recorrida, nela entendeu-se que a prisão domiciliária se justificava por haver o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de que este continuasse a actividade criminosa ou provocasse alarme social – art. 204.º, al. c) do C. P . Penal.
Na sua primitiva redacção (DL n.º 78/87, de 17/02, na versão original) tal preceito estipulava que:
“Nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
(…)
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.”.

Na actual redacção, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, vigente desde 15-09-2007, estipula-se o seguinte:
“Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
(…)
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”. (o sublinhado é nosso).

Do cotejo entre as duas redacções detectamos uma alteração de regime no que tange ao requisito relativo ao alarme social.
Assim, na primitiva redacção, a permanência do arguido em liberdade provisória, podia provocar perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas por causa da natureza e das circunstâncias do crime que lhe era indiciado ou por causa da personalidade do arguido.
Na actual redacção é-se mais exigente.
A manutenção do arguido em liberdade provisória poderá provocar perigo, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas por causa da natureza e das circunstâncias do crime que lhe é indiciado ou por causa da personalidade do arguido, se aquele perigo for provocado pela permanência em liberdade de tal arguido, em concreto.
Não se atende apenas à natureza e às circunstâncias do crime ou à personalidade do arguido.
É necessário que a permanência em liberdade daquele arguido em concreto crie o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade publicas.
Mas mais.
Exige-se agora que tal perigo seja grave.
Pressuposto que inexistia na anterior redacção.
« In casu » há, pois, que analisar a gravidade e consequências do ilícito indiciado, contexto em que o mesmo ocorreu e sua motivação e prognosticar se a permanência em liberdade deste agente em concreto, com toda a informação que dele se conhece, criará o perigo de o mesmo voltar a delinquir, ou o perigo de a ordem e tranquilidade públicas serem gravemente perturbadas.
E assim sucedendo, se tal perigo só ficará acautelado com a aplicação de uma medida de coacção detentiva.
Sendo certo, que relativamente ao requisito da continuação da actividade criminosa, a aplicação de uma medida de coacção privativa de liberdade “(…) não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão – só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado” (Prof. Germano Marques da Silva, citado por Dr.s Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, I Vol, 2004, pág. 1005); ou seja, este requisito “(…) deve ser visto apenas em função do crime que está em causa” (mesmos autores in ob. cit. Pág. 1005).
No caso sub judice o crime foi cometido com uma arma de fogo e dos autos parece resultar que o arguido já não dispõe de tal tipo de armas, tendo-se na decisão recorrida determinado, e bem, que o mesmo ficou proibido de deter, manusear, adquirir e usar armas de fogo e outras, devendo proceder então á entrega no prazo máximo de 10 dias de todas as outras armas e munições, para além das apreendidas, que tenha em sua posse (fls. 43).
Por outro lado, e em alternativa à medida de coacção aplicada, o Recorrente sugere que (também) seja imposta ao arguido a medida de proibição de contactar por qualquer meio o ofendido.
É certo que como se refere na decisão recorrida o litígio entre o arguido e o ofendido ainda não foi solucionado.
Não se nos afigura, porém, que o perigo do arguido voltar a delinquir pela forma indiciada só possa ser evitado por uma medida de coacção privativa da liberdade, maximé pela obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica.
E neste ponto temos de entrar na parte respeitante à natureza e circunstâncias do crime.
A natureza do ilícito indiciado, na sua fria objectividade – um homicídio tentado perpetrado com arma de fogo – é, objectivamente grave.
Mas as circunstâncias em que o mesmo terá sido praticado têm, quanto a nós, valor atenuativo.
É que por haver um desentendimento entre o arguido e o ofendido relacionado com o negócio de malhas entre ambos, o segundo foi agredido, na sua casa, pelo primeiro (partindo-lhe os óculos) e o qual também ali agrediu a esposa do arguido.
Este quadro criou um “clima de exaltação” (como aliás, bem refere a decisão recorrida, a fls. 42) e motivou uma deplorável reacção do arguido: esperar, durante pelo menos cinco minutos que após sair de sua casa, o ofendido estivesse em condição de ser alvejado, para então sobre ele disparar, com uma caçadeira e da varanda do 1º andar da sua casa, com o intuito de o atingir mortalmente.
Admite-se, contudo, que este seu acto reactivo não podendo a todas as luzes configurar uma situação de legítima defesa, parece ser uma consequência de tudo o que imediatamente antes ocorrera e que criara no arguido um estado de elevada exaltação.
A qual, também se admite, não terá terminado logo que o ofendido abandonou a casa do arguido mas antes se prolongou durante mais algum tempo, em particular ao longo dos pelo menos cinco minutos em que o arguido aguardou por uma oportunidade para alvejar o ofendido, logo que este saiu de sua casa.
Por outro lado e olhando agora para a personalidade do arguido retratada nos autos, ela permite suspeitar que o ilícito cometido poderá ter tido foros de ocasionalidade.
Com efeito, o arguido apresentou-se voluntariamente em tribunal e, como já supra se aludiu “O ofendido tem compleição física e vitalidade superiores á do arguido e sua mulher.
O ofendido não terá levado consigo as malhas para reaver o dinheiro que entregou ao arguido pela sua aquisição.
(…)
O arguido tem 67 anos de idade, é casado, tem quatro filhos, nunca praticou qualquer facto qualificado como crime, não teve qualquer contacto com o sistema judicial penal, não apresenta qualquer antecedente criminal, nem sequer inquéritos pendentes.
Durante longos anos com licença de uso e porte de arma para caçar não há notícia de qualquer episódio ou incidente perpetrado pelo arguido.
Após vários anos já sem ser caçador mas possuidor da autorização de detenção da arma na sua residência, não há qualquer incidente a relatar (…) trabalha á 37 anos, neste momento, apesar de reformado continua a laborar numa empresa em nome do seu filho (…) encontra-se social, familiar e profissionalmente inserido”.
Pelo exposto, ainda que a não resolução do litígio entre o ofendido e o arguido e a intensidade do dolo por este revelada, crie o receio de continuação da actividade criminosa, o impedimento desta não justifica a aplicação de uma medida de coacção detentiva.
Analisemos agora a possibilidade de, uma vez em liberdade, haver o perigo de o arguido perturbar gravemente a ordem e tranquilidade públicas, isto é, de causar grave alarme social.
Há que perspectivar, desde logo, este arguido em concreto e o que acerca dele está indiciado; no contexto em que os factos ocorreram e a personalidade que dele é conhecida.
Do nosso ponto de vista, o sobredito perigo existe e justifica que ao arguido seja aplicada uma medida cautelar … visível.
Isto é, face à gravidade do ilícito indiciado e à intensidade do dolo (directo) revelada, importa que a comunidade tome consciência que a ordem jurídica reagiu negativamente contra o arguido, impondo-lhe medidas de coacção.
Mas face a tudo o que se deixou exposto, não vemos, todavia e para tanto, necessidade de tais medidas terem uma natureza detentiva.
Afigurando-se-nos, outrossim, que o assinalado perigo ficará acautelado com a aplicação de medidas não privativas da liberdade.
Nesta conformidade, entendemos que a medida de apresentação diária pelo arguido no posto da G.N.R. local, medida que devendo ser diariamente cumprida tem repercussão social positiva e acautela os perigos contemplados na al. c) do art. 204º, do C. P. Penal.
E que deverá ser cumulada com a medida de coacção de proibição de o arguido contactar, por qualquer meio, o ofendido.
No demais se mantendo o que foi decido no despacho recorrido que não contrarie o agora determinado.
Tais medidas são, quanto a nós, proporcionais á gravidade do ilícito indiciado (e nas circunstâncias em que este o está) acautelando por forma necessária e adequada as indispensáveis exigências cautelares (art. 193.º, n.º 1 do C. P. Penal) e prevenindo assim os perigos de continuação da actividade criminosa e de ocorrência de grave intranquilidade social.
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Termos em que deverá o recurso ser julgado procedente e em consequência revogar-se nesta parte o despacho recorrido, determinando-se a imediata restituição do arguido à liberdade, aplicando-se-lhe a medida de coacção de apresentação periódica diária no posto policial da área da sua residência, bem como a medida de coacção de proibição do arguido contactar, por qualquer meio, o ofendido (art.º 193.º, n.º 1, 198.º, n.ºs 1 e 2, 200, n.º 1, al. d) e 204.º al. c), todos do C. P. Penal).
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- DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e em consequência revogar-se nesta parte o despacho recorrido, determinando-se a imediata restituição do arguido à liberdade, aplicando-se-lhe a medida de coacção de apresentação periódica diária no posto policial da área da sua residência, bem como a medida de coacção de proibição do arguido contactar, por qualquer meio, o ofendido (art.º 193.º, n.º 1, 198.º, n.ºs 1 e 2, 200, n.º 1, al. d) e 204.º al. c), todos do C. P. Penal), devendo oportunamente proceder-se ás necessárias comunicações e diligências.
Comunique desde já e de imediato à DGRS via FAX.
Dando também de imediato pela mesma via conhecimento desta decisão ao tribunal de 1ª instância.
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Sem custas.
Notifique.
D. N.
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Guimarães, 18 de Novembro de 2013