Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2810/10.1TBGMR-F.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A não apresentação atempada à insolvência torna evidente o prejuízo para os credores, pelo avolumar de seus créditos face ao vencimento de juros e pelo consequente avolumar do passivo global do insolvente (o que dificulta o pagamento dos créditos).
II – Exigindo-se do insolvente um comportamento pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, não preenche tais requisitos o que a ela não se apresentou atempadamente, dessa forma violando o estatuído nos artºs 18º e 238º do CIRE.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO.
1. Na sequência de pedido do recorrente [J], de exoneração do passivo restante, formulado ao abrigo do artº 235º do CIRE, foi proferido despacho indeferindo liminarmente o mesmo, com o fundamento de se verificarem os pressupostos vertidos no artº 238º, nº1, d), do referido diploma.

2. Inconformados, apelaram aqueles, rematando as alegações com as seguintes conclusões:
.
- O indeferimento do pedido de exoneração do passivo com base na alínea e) do n°1 do artigo 238° do CIRE implica a existência no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probalidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos tennos do artigo 186°;
2° - No caso vertente existem elementos em sentido oposto, isto é, elementos objectivos que evidenciam a inexistência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nomeadamente:
a) - nenhum credor alegou o que quer que seja para efeito da qualificação da insolvência como culposa (cfr. artigo 188°, 1 do CIRE);
b) - o Sr. Administrador de Insolvência pronunciou-se no relatório de apreciação de insolvência no sentido de ser aprovada a exoneração do passivo restante, concluindo que o insolvente “se encontra de boa-fé, não sendo do seu conhecimento que tenha dissipado ou ocultado património e a isa conduta tenha voluntariamente contribuído para a criação ou agravamento do estado de insolvência” (cfr. fis. 119);
e) - o Sr. Administrador de Insolvência juntou ainda o parecer a que alude o artigo 188°, n°2 do CIRE, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita (cfr. fis. 2 do apenso D);
d) - aberta vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 188°, n°3 do CIRE, foi exarado parecer concluindo o Digno Magistrado do MP que “dos autos inexistem, em nosso entender, elementos donde se possa subsumir que a insolvência de José Miguel Leão Ferreira se tenha ficado a dever a factos criminalmente puníveis”;
e) - da certidão do registo criminal do insolvente lê-se que “nada consta acerca da pessoa acima identificada” (insolvente) – cf. certidão junta aos autos em 12/10/2010;
f) - ainda mais relevante é o facto do próprio tribunal a quo, por sentença já transitada em julgado, preferida em 12/01/2011, no apenso D, ter qualificado a insolvência do aqui apelante como fortuita;
3° - É certo que o n° 4 do citado artigo 188° do CIRE contempla a hipótese, aqui verificada, de que em caso de serem coincidentes as posições assumidas pelo administrador e pelo Ministério Público, o juiz profere de imediato decisão nesse sentido, a qual é insusceptível de recurso. No entanto, não se trata de uma decisão cega, pois se o juiz verificar que existem no processo elementos suficientes para ter como verificados os factos alegados para qualificar a insolvência como culposa, o juiz deve, como garante da legalidade, declarar a ilegalidade dos pareceres, desconsiderando o administrador e do Ministério Público, mandando seguir os demais termos dos números 5 e seguintes do artigo 188° do CIRE.
- Ora, nada disso se passou no presente caso, tendo a Mmª Juíza a quo proferido sentença a qualificar a insolvência do aqui apelante como fortuita.
- Não se trata no presente caso de apreciar a existência ou não do preenchimento dos pressupostos consignados no artigo 238°, n° 1 alinea d) do CIRE (em relação aos quais o apelante teria muito que dizer por entender que os mesmos também não se verificam no presente caso), uma vez que o despacho recorrido do tribunal a quo é claro ao indeferir o pedido de exoneração do passivo restante com base na alínea e) de tal normativo, concluindo, nomeadamente, que a norma do artigo 238°, nº 1, e) do CIRE basta-se com a sua existência e que “Nestes termos, nos termos do artigo 238°, n°1, alínea e) do CIRE indefiro líminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente”.
- Resulta assim que ao negar a exoneração do passivo restante o despacho recorrido violou, por erro de interpretação, o artigo 238°, n.°l, e) do CIRE.
Termina pela procedência do recurso e pela revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue favoravelmente a pretensão.

3. Não foram oferecidas contra-alegações.

4. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO.

Relativamente à factualidade, foi considerado provado o seguinte:

1.- O requerente apresentou-se à insolvência por petição apresentada a 21/07/2010;
2.- Por sentença proferida em 02/08/2010, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência do requerente;
3.- Por decisão proferida em 10/01/2011, já transitada em julgado, a insolvência foi qualificada como fortuita;
4.- Para a insolvência, foi apreendido 50% do prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º 466, avaliado em em € 77.500,00;
5.- O insolvente é devedor à Fazenda Nacional da quantia total de € 675,63, a título de IMI e juros de mora, cuja data de vencimento teve lugar em 30/09/2009 e 30/04/2010;
6.- O insolvente é devedor à Fazenda Nacional da quantia total de € 14.944,16, a título de IVA, IMI, coimas e juros de mora, relativas ao período compreendido entre 15/05/2003 e 24/08/2009;
7.- O insolvente era devedor à [C], da quantia de € 231.735,53, à data da declaração de insolvência;
8.- O início do incumprimento do insolvente perante a [C], data de 08/07/2004, no que se reporta ao crédito hipotecário, e 30/12/2003, no que respeita à falta de pagamento duma letra no montante de € 2.500,00;
9.- O insolvente era devedor ao [B] quantia de € 35.126,30, à data da declaração de insolvência, a título de capital;
10.- As dívidas ao [B]venceram-se em 31/10/2004, no que toca à quantia de € 29.500,00; em 09/05/2004, no que se refere à quantia de € 1.348,78; 22/09/2004, no que respeita à quantia de € 4.277,52.
11.- O teor das petições de reclamação de créditos apresentadas no respectivo apenso.

*
O direito:
Comecemos por realçar que, não sendo a questão nova, a jurisprudência não se tem mostrado consensual, disso sendo exemplo os vários arestos que foram aludidos no processo, entre os quais se encontra um em que interveio como relatora a dos presentes autos.
Porque ainda não nos convencemos de que a posição adoptada não é a adequada à letra e espírito da lei, somos a reproduzir o que até então se escreveu.
Assim, o artº 235º do CIRE permite que, sendo o devedor uma pessoa singular, possa ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Tal procedimento traduz uma ideia de “fresh start” em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua actividade económica (neste sentido, cf. Catarina Serra, O Novo Regime Jurídico da Insolvência, Almedina, pag.67)

A questão a apreciar redunda na aplicação do estatuído no artº 238º, nº1, d), do CIRE, segundo o qual deve ser indeferido liminarmente o pedido de exoneração se “O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação da insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Para o recorrente, não se mostram verificados os requisitos cumulativos aí exigidos, pelo que se impunha decisão diversa, no sentido pugnado na apelação.

É, portanto, isso que importa averiguar.
Comecemos por fazer nosso o entendimento vertido no Acórdão desta Relação de 04.10.2007 (ITIJ), segundo o qual «em caso de dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos do direito (nº3 do artº 342º do CC), regra que no plano processual é complementada com o princípio vertido no artigo 516ºdo CPC ao dispor que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita. Por outro lado, a audição dos credores e do administrador da insolvência a que alude o nº 2 do artigo 238º não faz nascer qualquer relação contenciosa que os invista na posição de partes e os onere com a demonstração dos factos que invoquem em oposição ao pedido, sem embargo naturalmente da indagação que o juiz repute pertinente realizar».

Aqui chegados, relembre-se que o primeiro dos requisitos enunciados na al.d) do preceito em análise, é, desde logo, o de o devedor ter incumprido o dever de apresentação à falência ou, não estando obrigado a apresentar-se, ter-se abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.
A apresentação à insolvência ocorreu em 21.07.2010.
Porém, não é essa a data relevante. Na verdade, como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 09.01.2006 (ITIJ), “a lei não fala em apresentação à insolvência, pedido de insolvência ou declaração de insolvência, mas antes em verificação da situação de insolvência, como se referindo ao momento em que tal percepção e conhecimento é do próprio insolvente.
É este o sentido atribuído também ao art. 18º - dever de apresentação à insolvência – referindo-se dentro dos 60 dias seguintes à data em que teve, ou devesse ter, conhecimento da situação de insolvência, estabelecendo-se mesmo uma presunção de culpa grave dos administradores, de direito ou de facto, responsáveis pelo incumprimento daquele dever, para efeitos de qualificação desta como culposa.
Ora, só seguindo aquela orientação se dá total cumprimento ao espírito e fins prosseguidos pela normas que criaram a figura da exoneração do passivo restante e especialmente do artº 238º”.
Como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Assim mesmo, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.” - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, vol. I, pag.70/71.
Da factualidade apurada, colhe-se que, o recorrente é devedor à Fazenda Nacional da quantia total de €14.944,16, a título de IVA, IMI, coimas e juros de mora, relativas ao período compreendido entre 15/05/2003 e 24/08/2009 (nº6);
Também era devedor à [C], pela quantia de €231.735,53, à data da declaração de insolvência e que o início do seu incumprimento data de 08/07/2004, no que se reporta ao crédito hipotecário e 30/12/2003, no que respeita à falta de pagamento duma letra no montante de €2.500,00.
Acresce, ainda, que era ele devedor ao [B], da quantia de €35.126,30, à data da declaração de insolvência, a título de capital e que as dívidas se venceram em 2004.
Como se fez constar da decisão em crise, o próprio apelante reconhece que «as empresas de que era sócio viam-se a braços com dificuldades financeiras (artºs 2º a 11º e 17º da petição inicial), (…) donde se retira a inexistência de qualquer perspectiva de melhoria da situação económica que travasse a situação fáctica de insolvência em que se encontrava».
Decorre dos autos esse quadro de insusceptibilidade de satisfazer obrigações e evidencia-se a impotência do requerente de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos, tanto assim que as dívidas se encontravam vencidas e em situação de incumprimento há anos.
Ora, apesar desta mais que notória incapacidade de solver, desde há anos, dívidas vencidas, absteve-se da apresentação nos seis meses seguintes, vindo apenas a fazê-lo em 21 de Julho de 2010.
E quanto ao prejuízo daí decorrente, exigido no artº 238º de que temos vindo a tratar?
Na senda de larga corrente jurisprudencial, já anteriormente escrevemos (veja-se, por todos, o Procº2598/08.6TBGMR-G.G1) e assim continuamos a entender que a não apresentação atempada à insolvência torna evidente o prejuízo para os credores, pelo avolumar de seus créditos face ao vencimento de juros e pelo consequente avolumar do passivo global do insolvente (o que dificulta o pagamento dos créditos) havendo até quem considere que deva mesmo presumir-se o prejuízo dos credores do facto de os requerentes da exoneração não se terem apresentado à insolvência, quando era manifesto que eles não conseguiam satisfazer os créditos dos seus credores (No mesmo sentido, cf. acórdão da R.L. de 26/10/06, na CJ, 2006, tomo IV, pag. 97).
Recorde-se que está provado que «Para a insolvência, foi apreendido 50% do prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº 466, avaliado em em €77.500,00» - julga-se que se requererá dizer metade do direito que inicide sobre aquele prédio – e que, dividido o respectivo valor pelos seus credores desde a ocorrência da respectiva incapacidade de solvência, permitiria a estes rentabilizar desde então o respectivo capital, sendo certo que não o conseguirão agora na mesma extensão, dada a clara insuficiência de património.
O prejuízo dos credores decorrente da falta de apresentação atempada evidencia-se, sendo totalmente irrelevante para o legislador que a insolvência tenha tido carácter fortuito.
Portanto, em conclusão, apesar deste quadro de incapacidade e apesar do seu conhecimento muito directo das obrigações em causa, não se apresentou atempadamente à insolvência.
Como considera Maria de Assunção Oliveira Cristas (Novo Direito da Insolvência, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Ed. Especial, pág. 170), para ser proferido despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que “tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência”, aferindo-se da sua boa conduta (sublinhado nosso).
Prossegue ela dizendo que “É neste momento inicial de obtenção do despacho inicial de acolhimento do pedido de exoneração que há porventura os requisitos mais apertados a preencher e a provar. A conduta do devedor é devidamente analisada através da ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta”.
Indubitavelmente que o apelante violou os apontados deveres legais.

Concluindo, tudo nos conduz ao preenchimento dos pressupostos consignados no artº 238º, nº1, d), do CIRE e, consequentemente, ao acerto do despacho em crise.
***

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Guimarães, 13 de Outubro de 2011

Raquel Rego
António Sobrinho
Isabel Rocha

+

Sumário (da responsabilidade da relatora):
I - A não apresentação atempada à insolvência torna evidente o prejuízo para os credores, pelo avolumar de seus créditos face ao vencimento de juros e pelo consequente avolumar do passivo global do insolvente (o que dificulta o pagamento dos créditos).
II – Exigindo-se do insolvente um comportamento pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, não preenche tais requisitos o que a ela não se apresentou atempadamente, dessa forma violando o estatuído nos artºs 18º e 238º do CIRE.