Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1397/12.5TBBCL.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. O princípio da administração da justiça cível deve prevalecer sobre o segredo, quando não haja outra possibilidade de provar a matéria de facto em causa, ou seja muito oneroso ou de grande dificuldade e incerteza em angariar outros meios, para a parte que tenha o ónus de o fazer, tendo sempre presente o princípio da proporcionalidade.
2. A inoponibilidade do segredo bancário aplica-se a um número restrito de pessoas, isto é, que não estão sujeitas ao respectivo segredo, por força da lei, como seja “ representantes legais do cliente incapaz, os tutores e curadores, os representantes convencionais; os mandatários qualificados das sociedades comerciais e das pessoas colectivas em geral, incluindo os liquidatários; os administradores dos bens do falido; os co-titulares de contas, os cônjuges, sempre que lhes caiba a administração dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge”.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

M… a fls.79 e 80 reclamou da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal J… no inventário por dissolução, por divórcio, do casamento celebrado entre ambos, pedindo, a final, que fosse oficiado ao Banco… que viesse “.. aos presentes autos indicar as contas bancárias, respectivos saldos e movimentos, em nome de J…, desde Julho de 2007, designadamente as contas 000.05499458035 e 0000.50588652020 (que são comuns) ou outras porventura existentes”.
A fls. 98 o tribunal ordenou que fosse oficiado ao Banco… para informar nos termos requeridos.
A fls.108 o Banco… suscitou o sigilo bancário, ao abrigo do disposto no artigo 78 e 79 do diploma que regulamenta o Regime das Instituições de Crédito, não disponibilizando a informação requerida sem autorização do cabeça de casal.
A fls. 109 o tribunal ordenou a notificação do cabeça de casal para que prestasse a respectiva autorização.
A fls. 150 e 151 o cabeça de casal recusou-se a autorizar, invocando o disposto no artigo 1688 e 1789, ambos do C.Civil, que os movimentos a partir de Julho de 2007 não fazem parte da comunhão, porque posteriores à data da entrada da acção de divórcio que ocorreu em Julho de 2007.
A fls. 152 o tribunal, baseando-se na falta da indicação da data da entrada da acção de divórcio, que correu termos em França, considerou pertinente a informação bancária requerida e face à recusa em prestar a autorização e à escusa legítima da entidade bancária, suscitou a quebra do sigilo ao abrigo do disposto no artigo 519 n.º 4 do CPC.

Damos como assente a matéria fáctica relatada.

A questão suscitada é a da legitimidade da recusa de cooperação das entidades bancárias com o Tribunal, na descoberta da verdade material, assente no sigilo bancário.
Estamos perante uma situação que pode incidir sobre duas vertentes, uma, a da inoponibilidade do segredo bancário a certas pessoas, a outra sobre a necessidade da sua suspensão, por um acto da autoridade judicial competente, que terá de ponderar, dentro dos valores em conflito – o segredo bancário e o dever de cooperação na administração da justiça, tendo em conta a descoberta da verdade material, o interesse da contraparte, nunca esquecendo o princípio da proporcionalidade – no sentido de determinar qual deles é o preponderante, aquele que predomina sobre o outro.
Iremos analisar cada um dos pontos em questão, traçando os princípios gerais que os informam.

O segredo bancário assenta, essencialmente, nas relações contratuais existentes entre o banqueiro e o cliente, reforçadas pelo princípio da boa fé e da confiança. É do interesse de ambos que as relações se mantenham num círculo que não os ultrapasse. Estão em causa interesses de ordem privada (reserva da intimidade da vida privada do cliente) e institucional.
Porém, com o desenvolvimento das economias nacionais e com o intercâmbio e interdependência internacional, o que era uma questão meramente privada começou a revelar-se como questão de interesse público, o que impôs a necessidade de normativisar este relacionamento, através do sigilo profissional, definindo os beneficiários deste segredo e os seus destinatários, assim como as consequências do seu incumprimento, ao nível da responsabilidade civil, disciplinar e até penal.
O nosso país regulou, pela primeira vez, de forma cabal, e num único diploma, o segredo bancário, através do DL. 2/78 de 9 de Janeiro. Este diploma foi interpretado no sentido de que os valores neles tutelados (reserva da intimidade da vida privada dos clientes e confiança das instituições financeiras) prevaleciam sobre os da administração pública em geral, incluindo a fiscal e a da justiça, nas suas várias vertentes. Foi criado num ambiente social e político de grande perturbação na confiança das instituições financeiras, e teve por finalidade última recuperar essa confiança abalada, conseguindo convencer os agentes económicos a utilizarem as instituições financeiras, para nelas depositarem as suas poupanças e dinamizarem o mercado financeiro e, em geral, a economia.
Dentro deste clima, e nos termos em que foi redigido o diploma, o segredo bancário impôs-se e foi sufragado pela doutrina e jurisprudência dominantes, apesar de haver reacções ao nível da administração pública, mais concretamente a fiscal, que viu a sua actuação fiscalizadora muito limitada, o que originou que fossem prolatados dois pareceres pela Procuradoria Geral da República, com os números 204/78 de 30/11, 138/83 de 5/4, publicados, respectivamente, no BMJ 286/156 e 342/55. Estes defendiam o segredo bancário como princípio que se impunha a toda administração, incluindo a fiscal e a da justiça. Estava implantada a teoria do paralelismo, em que onde havia segredo não havia cooperação. E foi dentro desta interpretação, da defesa dos valores da privacidade dos clientes e da confiança das instituições financeiras que a jurisprudência dominante decidiu no sentido de que no conflito entre o segredo bancário e a cooperação com a justiça, na descoberta da verdade material, prevalecia aquele valor sobre este, porque não havia norma expressa que obrigasse a suspender a sua aplicação (Ac. STJ, 21/05/1980, BMJ. 297/207; Ac. STJ. 10/4/1980, BMJ. 296/190; Ac. STJ. 20/10/1988, BMJ. 380/492).

Esta situação bloqueou, em certos sectores, a actividade do Estado no combate à criminalidade organizada, à fraude fiscal, à corrupção, o que levou a que por pressões internacionais e internas, o legislador criasse alguns diplomas que excepcionavam o segredo bancário, como ao nível da instrução dos cheques sem provisão, consumo e tráfego de droga, branqueamento de capitais, criação da Alta Autoridade para a corrupção, entre outros.

Porém, só com a publicação do DL. 298/92 de 31/12, é que as excepções nele consignadas no artigo 79, e com as alterações ao nível do CPP. e CPC. é que foi possível equacionar o valor preponderante no caso concreto, tendo sempre presente o princípio da proporcionalidade, sendo possível suspender o segredo bancário.
Na verdade, no plano do Processo Penal, o artigo 135 sofreu uma alteração profunda através do DL. 317/95 de 28 de Novembro, no que respeita aos termos em que o segredo profissional pode ser suspenso. E temos a destacar o número 3, em que permite essa suspensão, defendendo a prevalência do valor preponderante ou dominante, no caso em apreço. O juiz terá de ponderar os valores em conflito e decidir-se por um em detrimento do outro.
E isto veio a acontecer no domínio do CPC., mais concretamente no artigo 519, que exprime e regula o dever de cooperação de todos os sujeitos, partes ou terceiros, que devem colaborar com a justiça, na descoberta da verdade material.
Com a nova redacção, mais concretamente com o aditamento do número 4, por força da revisão do respectivo diploma pelo DL. 329-A/95 e a Lei 28/96 de 2 de Agosto, que remete o assunto para a legislação do Processo Penal congénere, isto é, para o artigo 135 do CPP.
A partir destas alterações legislativas, a questão do segredo bancário, como um dos segredos profissionais, tem tido tratamento jurisprudencial e doutrinário quando em conflito com o da administração da justiça cível, ao nível da cooperação. E tem sido defendido, no plano do interesse preponderante, que este princípio deve prevalecer sobre o segredo, quando não haja outra possibilidade de provar a matéria de facto em causa, ou seja muito oneroso ou de grande dificuldade e incerteza em angariar outros meios, para a parte que tenha o ónus de o fazer. Deve ser analisado sempre à luz do princípio da proporcionalidade, no sentido de se saber se deve prevalecer ou não e, no caso afirmativo, nos limites mínimos, isto é, só deve ser suspenso o segredo no estritamente necessário para alcançar os objectivos impostos pelo dever de cooperação. É no âmbito desta interpretação que deve ajuizar-se da prevalência do dever de segredo ou o da cooperação, quando em conflito (Ac. STJ. 19/12/97, CJ. (STJ) 1997, Tomo III, pag. 170; Ac. Rla, 6/6/2002, CJ 2002, Tomo III, pag. 98).

Debrucemo-nos agora sobre a inoponibilidade do segredo bancário a certas pessoas que estejam dentro da “esfera da discrição”, isto é, que não estão sujeitas ao respectivo segredo, por força da lei. Estão nesta esfera os “ representantes legais do cliente incapaz, os tutores e curadores, os representantes convencionais; os mandatários qualificados das sociedades comerciais e das pessoas colectivas em geral, incluindo os liquidatários; os administradores dos bens do falido; os co-titulares de contas, os cônjuges, sempre que lhes caiba a administração dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge (Ac. STJ. 28/6/94, BMJ, 438/432).
Apesar de não termos a indicação concreta da entrada em juízo da acção de divórcio, como o refere a 1.ª instância, há no processo apenso (arrolamento) a indicação na sentença de divórcio a fls. 11, que M… requereu o divórcio contra seu marido a 12 de Julho de 2007. Esta data expressa numa decisão jurisdicional, que não foi posta em causa por nenhum dos interessados, e até está em consonância com as suas posições no presente processo, é de relevar, para efeitos de saber a partir de quando a sentença que dissolveu o casamento produz efeitos nas relações patrimoniais dos interessados, ao abrigo do disposto no artigo 1789 n.º 1 do C.Civil. Assim, temos como ponto assente que as relações patrimoniais deixaram de ser comuns a partir de 12 de Julho de 2007. Toda a actividade bancária do cabeça de casal, mesmo nas contas comuns, a partir desta data, terá de ser considerada da sua responsabilidade pessoal e não do ex-casal. Todas as contas abertas ou liquidadas até dia 12 de Julho de 2007, sejam comuns ou pessoais do cabeça de casal, fazem parte do património do casal, pelo que ambos os ex-cônjuges têm direito a conhecer, a serem informados dos seus movimento a crédito ou a débito, para poderem controlar a existência do património comum, uma vez que não estamos num regime de separação de bens, mas antes de comunhão de adquiridos, como resulta das declarações do cabeça de casal e da certidão de casamento junta a fls. 46, onde consta a menção de que celebraram o casamento sem convenção antenupcial.

Em face disto, a entidade bancária tem o dever de informar o tribunal de todas as contas bancárias existentes em nome dos ex-cônjuges ou em nome pessoal de cada um, respectivos movimentos e saldos existentes até 12 de Julho de 2007, porque essas contas envolvem património comum. E, como tal, não pode sequer invocar o segredo ou sigilo bancário, porque não está em causa um terceiro, mas um co-titular do crédito, por força do casamento e do regime de bens.

No que concerne às contas pessoais do cabeça de casal, constituídas posteriormente a 12 de Julho de 2007, só em casos excepcionais de sonegação ou desvios de dinheiro de contas anteriores para novas contas se poderia colocar a questão da suspensão do segredo para investigação, o que não será o caso, ou pelo menos nada foi alegado nesse sentido.

Quanto às contas comuns, mais concretamente as indicadas pela reclamante interessada, são só de relevar os movimentos até ao dia 12 de Julho de 2007, porque será nesse dia que se saberá qual o saldo existente e será esse que prevalecerá para efeitos de apuramento do património comum. Qualquer outro movimento posterior a débito só terá interesse para justificar pagamentos de dívidas comuns anteriores, o que não será o caso, porque nada foi alegado nesse sentido.

Assim a informação requerida não deverá ultrapassar a data de 12 de Julho de 2007, porque é esta que baliza o património comum do ex-casal, que está a ser apurado no processo de inventário. E quanto a esta, o Banco… terá de colaborar, prestando toda a informação requerida relativa às contas indicadas e a outras existentes, comuns ou pessoais do cabeça de casal, com movimentos até 12 Julho de 2007.

Concluindo: 1. O princípio da administração da justiça cível deve prevalecer sobre o segredo, quando não haja outra possibilidade de provar a matéria de facto em causa, ou seja muito oneroso ou de grande dificuldade e incerteza em angariar outros meios, para a parte que tenha o ónus de o fazer, tendo sempre presente o princípio da proporcionalidade.
2. A inoponibilidade do segredo bancário aplica-se a um número restrito de pessoas, isto é, que não estão sujeitas ao respectivo segredo, por força da lei, como seja “ representantes legais do cliente incapaz, os tutores e curadores, os representantes convencionais; os mandatários qualificados das sociedades comerciais e das pessoas colectivas em geral, incluindo os liquidatários; os administradores dos bens do falido; os co-titulares de contas, os cônjuges, sempre que lhes caiba a administração dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge”.

Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em decidir que não é oponível à reclamante o segredo bancário invocado pelo Banco…, que deve cumprir o que fora ordenado pelo tribunal de 1ª instância com o limite da data de 12 de Julho de 2007, para o que o tribunal deve oficiar neste sentido.
Custas na proporção de metade.
Guimarães, 30/01/2014
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
Eva Almeida