Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
397/06.9TBAVV-F.G1
Relator: AMÍLCAR ANDRADE
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Legislação Nacional: ARTIGOS 102º E 119º DO CIRE; ARTIGOS 410º,Nº1, 442º E 755º, Nº1 F), DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I - O artº 102º do CIRE regula os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios jurídicos de que o insolvente seja parte e que se encontrem nesse momento em curso: o seu cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.
II - Ao tempo da declaração de insolvência estando em curso um contrato-promessa de compra e venda (art. 410º, nº1, do Código Civil) tendo por objecto uma fracção autónoma de um imóvel, com traditio antes da celebração do contrato prometido, a que o Sr Administrador da Insolvência recusou o cumprimento, não é de aplicar o regime do incumprimento do Código Civil, mormente, do art. 442º do Código Civil, nem tão-pouco o direito de retenção sobre a massa insolvente nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil, porque o regime consignado nos nºs 1 e 2 do artº 119º do CIRE, exclui a aplicação dos citados normativos do Código Civil.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


Por sentença transitada em julgado, foi declarada a insolvência de A… – Empreendimentos Imobiliários, Lda., nos autos de insolvência a que os presentes correm por apenso.
Os ora requerentes vieram intentar a presente acção de verificação ulterior de créditos, nos termos do disposto no artigo 146º do C.I.R.E., contra a insolvente, a massa insolvente e os demais credores, alegando serem possuidores de um crédito no valor global de € 60.000,00 sobre a insolvente, garantido por direito de retenção.
A Massa Insolvente apresentou contestação, tendo pugnado pela improcedência do incidente.
Realizada o julgamento, veio a ser proferida decisão que decidiu nestes termos:
“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condeno os Réus a reconhecerem a existência de um crédito dos Autores António …. e Maria …, no valor de € 29.927,87 (vinte e nove mil novecentos e vinte e sete euros e oitenta e sete cêntimos), a fim de ser graduado, como crédito comum, no lugar que lhe competir e, consequentemente, julgo reconhecido tal crédito”.
Inconformados, vieram os Autores apelar da sentença, tendo extraído das alegações que apresentaram as seguintes conclusões:
1. O Mmo Juiz do Tribunal " a quo" deu como provada a posse dos recorrentes sobre o imóvel em questão nestes autos. Transcreve-se aqui as respostas aos quesitos 7,8,9,10,11,12,13,14,15,16 e 17da Base Instrutória, por uma questão de economia e espaço. Os recorrentes provaram que a então empresa A… Empreendimentos Imobiliários Lda entregou-lhes a chaves da fração em finais de 2000. A partir de princípios de 2001, ininterruptamente; isto até à presente data, passaram a ter no imóvel objeto desta ação, a sua organização familiar: habitando-o, fazendo obras, entre outros atos constantes das respostas aos aludidos quesitos, provando desta forma os requisitos da posse e um dos pressupostos do direito de retenção: uma traditio.
2. No entendimento dominante, na doutrina e na jurisprudência, os pressupostos do direito de retenção são: a existência de um nexo causal entre o crédito e a coisa, no caso resultante de uma reação legar ou contratual; a traditio exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento1 de um direito de crédito, que os recorrentes provaram.
3. O Mmo Juiz "a quo" deu como provado os quesitos quarto e sexto da Base Instrutória. Segundo o prof. Dr. António Geraldes, a recusa peremptória em cumprir ou o comportamento convincente, com o significado de recusa equivalem ao incumprimento definitivo, dado a inutilidade de qualquer interpelação adicional e que " não devem exigir os tribunais interpelações a quem não pretende ser Interpelado” “ … não se mostra necessário intimar alguém a cumprir dentro de um certo prazo se o seu comportamento revela, com segurança, que não faz tenções de comparecer no cartório notarial". Desde 2003 até 2006 ( já que em 2006 deu entrada o processo de insolvência) é de concluir que o comportamento da então empresa A… Lda, foi de não cumprir o contrato promessa, que não pretendia cumprir e desistiu de o cumprir " deixou de ter dinheiro para concluir as obras, obter as respectivas licenças e pagar a hipoteca à Caixa Geral de Depósitos que constituiu sobre o prédio urbano sito no lote 22,º verificando-se o pressuposto do incumprimento definitivo.
4. O Mmo Juiz " a quo" deu como provado os quesitos 1, 2, 3, 4, 5 e 6 da Base Instrutória, verificando-se o outro pressuposto do direito de retenção: da titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito, como se disse, que os recorrentes provaram,
5. O processo de insolvência é uma execução coletiva ou universal. Os recorrentes intentaram um processo de verificação, para que lhes fosse reconhecido o seu crédito e o direito de retenção sobre o imóvel em questão. A matéria de facto constante do quesito quarto da Base Instrutória, não foi impugnado por quaisquer dos Réus, nem pela Massa Insolvente, que foi a única entidade que contestou a presente ação.
6. Os recorrentes entendem que estão verificados todos os pressupostos do direito de retenção, que o Tribunal " a quo" deveria ter reconhecido, conforme foi peticionado na ação. E que, o direito de retenção dispõe de sequela, prevalece sobre o direito de crédito garantido por hipoteca, ainda que anteriormente constituída. Os recorrentes para além de terem entregue à empresa A… Lda., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 6.000.000$00, têm feito despesas com obras no imóvel, procedendo à sua conservação e manutenção. A não considerar-se o direito de retenção, os recorrentes serão os maiores prejudicados, permitindo que outros credores se locupletem à sua custa.
7. Foram violados os artigos 442 nºs 1 e 2 e 755 nº 1, 759 nº 2 do CC. Os artigos 866, 814 e 815 do CPC. Os artigos nºs 1, 46 nº 1, 47 nº 4 a), 128 nºs 1 e 3 e 129 n° 1, 149 e 150 do CIRE.
Nestes termos, com o douto suprimento, os recorrentes pedem a V, Exas. que concedam provimento ao recurso revoguem a douta Sentença apenas na parte em que não lhes reconheceu o direito de retenção e a restituição do sinal em dobro.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados:
1. Por escrito datado do dia 18 de Outubro de 1999 denominado Contrato de Promessa de Compra e Venda (constante de fls. 06 e 07 e que aqui se dá por integralmente reproduzido) a ré “A…,, Empreendimentos Imobiliários, Lda.”, representada pelo seu sócio-gerente …, enquanto primeira outorgante declarou que: “Compromete-se a vender aos segundos outorgantes a fracção composta pelo apartamento do 1º andar, do lado direito, com os respectivos lugares de garagem, e com a correspondente fracção de terraço, a que corresponde a letra C da escritura de constituição de propriedade horizontal, do prédio (sito no lote 22 da Urbanização do Alto …) pelo preço total de 13.500.000$00 (treze milhões e quinhentos mil escudos); 2) A título de sinal e princípio de pagamento, recebeu nesta data 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), de que dá a correspondente quitação, obrigando-se a restituir em dobro tal quantia, caso falte ao cumprimento de qualquer das cláusulas do presente contrato; 3) O restante preço, isto é, o montante de 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos) será pago pelos promitentes-compradores no acto da assinatura da escritura definitiva de compra e venda, desde que a primeira avise os segundos outorgantes com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias;”.
2. Por seu turno, por António … e Maria …, enquanto segundos outorgantes, foi dito “que aceitam a prometida venda nos termos exarados”.
3. Deste documento consta que no dia 18 de Outubro de 1999 a assinatura do sócio gerente da ré “A…, Empreendimentos Imobiliários, Lda.”, …., foi reconhecida presencialmente no Cartório Notarial de Arcos de Valdevez.
4. A partir do ano de 2003, a ré “A…, Empreendimentos Imobiliários, Lda.” deixou de ter dinheiro para concluir as obras, obter as respectivas licenças e pagar a hipoteca à Caixa Geral de Depósitos que constituiu sobre o prédio urbano sito no lote 22.
5. Os autores entregaram à ré a quantia de 6.000.000$00 (seis milhões escudos) a título de sinal e princípio de pagamento da quantia a que se alude em 1.
6. O A. chegou a pedir, de forma verbal, à A…, Lda., que efectuasse a escritura pública de compra e venda da aludida fracção.
7. No final do ano de 2000, o sócio gerente da ré …. entregou ao autor marido a chave desta fracção.
8. Desde o início do ano de 2001, ininterruptamente, que os autores utilizam esta fracção, designadamente habitando-a
9. E compraram mobília de sala de jantar, de estar e de quarto, electrodomésticos e utensílios de cozinha e casa de banho.
10. E pagam as despesas de água, gás e energia eléctrica.
11. Os autores fizeram obras no interior da fracção, designadamente, pintaram-na.
12. E eliminaram a humidade.
13. O que fizeram à vista e com o conhecimento de toda a gente.
14. Sem oposição de quem quer que seja.
15. Na convicção de que a escritura pública de compra e venda desta fracção se iria efectuar.
16. E de que não lesam o direito de outrem.
17. E de que exercem um direito próprio.

O Direito
A principal questão que vem colocada no presente recurso cinge-se em saber se os recorrentes têm direito à restituição do sinal em dobro e direito de retenção sobre a massa insolvente sobre esse seu crédito.
Vejamos.
O artº 102º do CIRE regula os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios jurídicos de que o insolvente seja parte e que se encontrem nesse momento em curso, ao dispor que «em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento».
No caso, estamos perante um contrato-promessa de compra e venda (art. 410º, nº1, do Código Civil) tendo por objecto uma fracção autónoma de um imóvel constituído em propriedade horizontal, tendo havido traditio antes da celebração do contrato prometido.
Ao contrato não foi atribuída eficácia real, sendo, portanto, um contrato de eficácia meramente obrigacional.
Ao tempo da declaração de insolvência era um negócio em curso, porque ainda não estava cumprido, nem definitivamente incumprido.
O Sr. Administrador da Insolvência veio declarar recusar o cumprimento do contrato em questão.
Importa, saber se, ao caso, será de aplicar o regime do incumprimento do Código Civil, mormente, do art. 442º do Código Civil.
No regime do Código Civil, o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda e a sanção do mecanismo do sinal está ligada ao incumprimento ou do promitente-comprador – caso em que deve restituir o sinal em dobro – ou ao promitente -comprador, caso em que, sendo-lhe imputável o incumprimento perde a favor do promitente vendedor o sinal passado. Todavia, o regime consignado nos nºs 1 e 2 do artº 119º do CIRE, exclui a aplicação do citado normativo do Código Civil.
Neste particular, acompanhamos a decisão do Ac. STJ de 14/Jun/2011, proferida no processo 6132/08.OTABRG-J.G1.S1 (in dgsi.pt), que transcrevemos:
«Por outro lado, no sentido que a lei insolvencial não quis adoptar como lei especial o regime da lei geral que é o Código Civil, está o art. 119º, nº2, que estabelece a nulidade das convenções que excluam ou limitem a aplicação das normas contidas naqueles preceitos (refere-se aos arts. 102º a 118º).
Não se tratando de incumprimento do contrato a recusa do administrador em o executar, mas, como se disse em consonância com a tese de Oliveira Ascensão, de “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo insolvencial, não sendo aplicável o conceito civilista de “incumprimento imputável a uma das partes” – o que pressupõe um juízo de censura em que se traduz o conceito de culpa – (neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador da insolvência na veste de promitente-vendedor ou em representação dele), não se aplica o regime do art. 442º, nº2, do Código Civil e, como tal, não tem a recorrente direito ao dobro do sinal, em face da opção tomada pelo administrador da insolvência.
Ademais, por força do regime imperativo do art. 119º do CIRE, excluída está, também, a aplicação do citado normativo do Código Civil.
A indemnização não é assim a da restituição do sinal em dobro, mas como afirma “Menezes Leitão”, in “Direito da Insolvência” – Janeiro 2009 – pág. 173 – “uma indemnização fortemente restringida”.
“ A recusa de cumprimento por parte do administrador da insolvência não prejudica o direito à indemnização pelos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento, ainda que esta indemnização seja fortemente restringida (art. 102°, n°3, d)).
Assim, para além de esta indemnização ter a natureza de crédito sobre a insolvência (art.102°, n°3, d) (iii)), o seu montante é limitado ao valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido realizada pela outra parte (art. 102º, nº3, (i) e n° 3 b)), sendo ainda abatida do quantitativo a que a outra parte tenha direito (art. 102°, n°3 d) (ii)), ou seja o valor da prestação) do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação de que a outra parte ficou exonerada (art. 102°, n° 3 c)).”
Assim, concluímos que os recorrentes não têm direito à restituição do sinal em dobro, por ser inaplicável o art. 442º, nº2, do Código Civil.».
Mas terão direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil?
Sobre este ponto, pondera-se, ainda, no citado Acórdão do STJ:.
“O direito retenção é um direito de garantia que “consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele” – “Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, pág.722.
Como antes dissemos, o promitente-comprador de coisa imóvel que obteve a traditio, não goza, no direito insolvencial, dos mesmos direitos reconhecidos pelo Código Civil em caso de ser imputável ao promitente-vendedor o incumprimento definitivo do contrato-promessa.
Assim, não sendo aplicável na insolvência o art. 442º, nº2, do Código Civil, desde logo não dispõe o promitente-comprador do direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil”.
Sendo esta também a posição que perfilhamos, não poderão os Recorrentes gozar do direito de retenção sobre o imóvel em questão, nem haverá lugar à restituição do sinal em dobro, apenas tendo direito a ver reconhecida a existência de um crédito a seu favor, no valor do sinal prestado.
Improcedem, assim, as conclusões do recurso.

Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 21.11.2013
Relator: Amílcar Andrade
Adjuntos: Manso Rainho
Carlos Guerra