Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
638/03
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: RESPONSABILIDADE
FUNÇÃO JURISDICIONAL
JUIZ
ESTADO
DOLO
ERRO
GESTÃO PÚBLICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - No artº 22º da CRP têm-se em vista todas as funções do Estado e, portanto, também a jurisdicional.
II - É de entender que o direito indemnizatório por actos jurisdicionais só existe quando o acto jurisdicional seja doloso ou provenha de negligência grosseira.
III - Quando se fala de erro grosseiro para efeitos de responsabilização por actos jurisdicionais dos juízes tem-se em vista o desempenho judicial em desconformidade gritante com o mundo dos factos ou com o mundo do direito.
IV - Nos demais casos têm os destinatários que se conformar com a ideia de que o erro judicial, seja de facto, seja de direito, tem que ser tolerado em atenção à circunstância da actividade jurisdicional dos juízes se confrontar com particulares exigências e dificuldades.
V - Estando-se perante uma situação em que o juiz age, ademais no âmbito de um processo de natureza urgente, apenas por lapso ou de forma desatenta, inepta ou ineficiente, não se constitui qualquer direito indemnizatório contra o Estado e a favor da parte prejudicada.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na secção cível da Relação de Guimarães:

V, Lda intentou, pelo tribunal da comarca de Guimarães, acção declarativa de condenação com processo na forma ordinária, contra o Estado Português, peticionando a condenação deste a indemnizá-la por todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência directa e necessária da errada decisão judicial que a declarou no estado de falência, indemnização a liquidar em execução de sentença.
Para o efeito alegou, em síntese, que por decisão proferida pelo tribunal da comarca de Guimarães, em 7 de Novembro de 1990, foi a Autora declarada em estado de falência. Acontece que tal só foi possível em virtude dessa decisão enfermar de vários erros grosseiros, quais sejam: a citação foi ordenada não obstante a requerente da falência não ter alegado quaisquer factos subsumíveis ao n° 1 do art. 1174° do Cód. Proc. Civil, sendo pois manifestamente evidente a falta de causa de pedir; não foi efectuada a notificação da requerida para a audiência de julgamento, não tendo o tribunal, face à ausência da requerida naquela audiência, verificado se a mesma havia ou não sido notificada para o efeito; os quesitos foram elaborados de forma obscura e contraditória e mesmo assim todos foram considerados provados; a matéria de facto provada ficou a sofrer dos mesmos defeitos dos quesitos formulados e, apesar de obscura e contraditória, bem como insuficiente para fundamentar a declaração de falência, o juiz deu procedência à acção e declarou a falência, em violação pois do disposto no art. 1174° do Cód. Proc. Civil. Acontece que esta decisão veio a ser anulada em via de recurso, mas a verdade é que por causa da falência decretada a Autora ficou impossibilidade de retomar a sua actividade, mantendo-se, mercê de diversas acções e recursos movidos, nomeadamente pelo administrador judicial, as respectivas instalações fechadas, pelo que é de prever a total deterioração das máquinas existentes no seu interior. Acresce que ficou impossibilitada de cumprir com os seus fornecedores. Tudo isto é fonte de prejuízos, que não se podem ainda quantificar, e cujo quantum reparatório deverá ser objecto de apuramento em liquidação de sentença.

O réu contestou, concluindo, no que agora ainda interessa, pela improcedência da acção.

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido.

Inconformada com o assim decidido interpôs a A. a presente apelação.


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Da respectiva alegação extrai as seguintes conclusões:

1ª. À Autora assiste o direito de exigir do Estado Português o pagamento de uma indemnização para a compensar dos prejuízos que sofreu em virtude dos erros grosseiros que estiveram na base da decisão judicial que determinou a sua falência.

2ª. Tal direito tem o seu fundamento no disposto no artigo 22° da Constituição da República Portuguesa, o qual constitui, em primeiro lugar, um principio geral em matéria de direitos fundamentais, de natureza análogo à dos direitos, liberdades e garantias.

3ª. O direito de indemnização tem o seu conteúdo essencialmente determinado ao nível das opções constitucionais, não dependendo da lei ordinária para se tornar liquido e certo, sendo certo que a responsabilidade civil cobre todas as funções do Estado.

4ª. Os particulares lesados nos seus direitos, designadamente nos seus direitos, liberdades e garantias, por acções ou omissões de titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, podem demandar o Estado - « responsabilidade do Estado » -, exigindo uma reparação dos danos emergentes desses actos (CRP, artigos 22°, 27°; ETAF, artigo 51°, nº 1 h)).

5ª. Quanto ao Decreto-lei n.° 48.051, de 21/11/67, citado na decisão recorrida, o mesmo abrange apenas a responsabilidade da administração, com exclusão dos actos da função jurisdicional.

6ª. O Decreto-lei n.° 48.051 de 21/11/67 não abrange a função jurisdicional, já que esta não integra a chamada administração, e os actos jurisdicionais no âmbito daquela função jurisdicional não suportam a qualificação de actos de gestão pública - Acórdão de 9/10/90 do STA, in RLJ, n.° 3804, pág. 77.

7ª. Pelo exposto, não é de aplicar ao caso dos autos o estatuído no mencionado Decreto-Lei nº 48.051.

8ª Da matéria de facto dada como provada é manifesto concluir que na audiência de julgamento onde foi decretada a falência da Autora, os quesitos sugeridos, a sua resposta, os meios de prova considerados relevantes, as conclusões que a matéria de facto provada permitiu tirar e, principalmente, a decisão proferida, constituíram manifesto erro.

9ª. Aliás, o próprio Estado na contestação apresentada no âmbito da presente acção reconheceu ter havido um lapso - lapso significa falta, erro, engano, por distracção, descuido ou esquecimento - apelidando a sentença recorrida de em mero lapso de escrita.

10ª. Não é nenhum lapso de escrita, tanto mais que se assim fosse o princípio geral que se contém no artigo 249° do Código Civil permitiria a sua rectificação.


11ª. Aliás, o próprio Tribunal da Relação do Porto ao decidir o recurso intentado pela então falida, analisou tal questão e não concluiu pela existência de um simples lapso de escrita: Mesmo que fosse lapso do Exmo Juiz na formulação do quesito 2°, haveria necessidade de, nos termos do n. ° 2, do artigo 712° do Código de Processo Civil, formular quesitos que abrangesse toda a matéria alegada com interesse para a decisão da causa. Sendo assim, face às contradições e obscuridades referidas há que anular o julgamento.

12ª. Sublinhe-se que não se está perante um mero lapso de escrita, pois está em causa apurar-se concretamente a situação da então Ré, pois para a procedência da pretendida da falência desta era necessário a verificação de um dos factos-índíces previstos no artigo 1147° do Código de Processo Civil.

13ª. É que para que a falência fosse declarada era necessário ficar demonstrada a verificação de um dos factos-índices previsto no n.° 1 do artigo 1174° do Código de Processo Civil, na redacção prevista no Decreto-lei 177/86, de 2 de Julho, e que expressamente referia que a cessação de pagamentos só seria causa de declaração de falência se insuficientemente significativa da incapacidade financeira do devedor.

14ª. Perante tal dispositivo legal, é inequívoco o descuido e a desatenção com que foram formulados os quesitos, resultante, além do mais, da forma obscura e contraditória com que foram formulados.

15ª. Não obstante, foram todos aqueles quesitos considerados provados, de onde resultou que a matéria de facto provada sofresse dos mesmos defeitos dos quesitos formulados, ou seja, a obscuridade, a contradição e a sua insuficiência para fundamentar a declaração de falência.

16ª. Aliás, segundo o Código de Processo Civil, a falência é um instituto cujas normas de regulamentação são processuais e, portanto, de interesse e ordem públicos, estando em jogo, para além dos interesses das partes (devedoras e credoras), que visam obter a liquidação de um património em beneficio dos credores, o interesse público da ordem e paz social decorrente do eventual encerramento de uma empresa, com particular incidência sobre a classe trabalhadora e a economia regional. - in Assento 9/94 do STJ.

17ª. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o princípio da confiança garante inequivocamente um mínimo de certeza e segurança das pessoas quanto aos direitos e expectativas legitimamente criadas no desenvolvimento das relações jurídico-privadas, podendo afirmar-se que, com base em tal principio, não é consentida uma normação tal que afecte de forma inadmissível, intolerável, arbitraria ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito tem de respeitar.

18ª. A decisão proferida que declarou a Autora no estado de falida constitui, pois, manifesto lapso ou erro, resultante da descuidada análise dos pressupostos de que dependia a sua verificação, constatável na forma como foi organizada e respondida a matéria de facto. Por tudo isto decidiu o Venerando Tribunal da Relação do Porto anular a decisão e ordenar a repetição do julgamento.

19ª. Para além do que se acabou de expor, outros lapsos precederam a referida sentença, tal como se constata, aliás, da matéria de facto dada como provada no âmbito dos presentes autos, nomeadamente a não notificação da Requerida para a audiência de julgamento, o que constitui, aliás, grave violação dos princípios da igualdade processual das partes e do direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrados nos artigos 13° e 20° da Constituição da República. Portuguesa e nos artigos 1175° e 228° e seguintes do Código de Processo Civil.

20ª. Os Tribunais não estão apenas ao serviço da defesa dos direitos fundamentais; eles próprios como órgãos do poder público, devem considerar-se vinculados pelos direitos fundamentais.

21ª. Pelo exposto, é manifesto estarem verificados os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar a Autora por parte do Estado, tanto mais que esta sofreu prejuízo em consequência directa e necessária da decisão que a declarou no estado de falida.

22ª. Podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juizes e outros magistrados quando, segundo Gomes Canotilho: (1) houver grave violação da lei resultante de «negligência grosseira»; (2) afirmação de factos cuja inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos cuja inexistência resulta indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei; (5) denegação da justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres funcionais.

23ª. No caso dos autos está assente que a decisão que declarou a falência da Autora assentou em factos contraditórios e obscuros, razão pela qual foi anulada a sentença e ordenada a repetição do julgamento.

24ª. E o vício de que enfermou a referida sentença parece, salvo o devido respeito, ter sido proveniente de uma análise menos cuidada quer da matéria de facto em análise, quer da legislação então em vigor.

25ª. A decisão proferida violou, pois, o disposto no artigo 22° da Constituição da Republica Portuguesa.



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O Estado contra alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir hic et nunc.


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São os seguintes os factos que a sentença recorrida elenca como provados:


a) A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedicava, com carácter habitual e fim lucrativo, ao fabrico e comércio de artigos de malha, no estabelecimento industrial que, para o efeito, possuía, sito no local da sua sede (A) dos Factos Assentes);

b) No dia 20 de Setembro de 1990, a sociedade comercial por quotas denominada N, da. requereu a declaração de falência da Autora, à qual correspondeu o processo n° 147/90, que correu termos pela 1ª Secção do 3° Juízo, posteriormente do 1° Juízo Cível deste Tribunal (B) dos Factos Assentes);

c) A referida sociedade fundamentou o seu pedido alegando, para o efeito, o seguinte:
- A Requerente é credora da quantia de Esc. 8.081.140$00 relativa a diversos fornecimentos de fio para a indústria têxtil efectuados por aquela a esta (art. 4°);
- A Requerida em 09.02.90, 06.03.90 e 30.03.90, através dos seus gerentes, aceitou, para liquidação da importância de Esc. 6.725.100$00, dez letras de câmbio, nos valores de Esc. 200.400$00, Esc. 424.700$00, Esc. 480.000$00, Esc. 487.000$00, Esc. 234.000$00, Esc. 408.000$00, Esc. 1.146.000$00, Esc. 1.477.000$00, Esc. 391.000$00 e Esc. 1.477.000$00 (art. 5°);
- Estas letras não foram pagas, mesmo depois dos seus vencimentos, apesar de todas as tentativas nesse sentido efectuadas pela Requerente, pelo que esta instaurou, nessa mesma comarca, em 11.07.90, a competente acção executiva para cobrança das mesmas (art. 6°);
- Entretanto, as letras supra referidas haviam sido por diversas vezes reformadas por outras que, de igual modo, não foram pagas pela Requerida, quer nas datas dos respectivos vencimentos, quer posteriormente (art. 7°);
- Bem como a requerida nunca entregou à Requerente as amortizações correspondentes a tais reformas (art. 8°);
- Para liquidação da restante quantia em débito, ou seja, Esc. 1.346.040$00, a Requerente emitiu em 09.05.90 o saque n° 9.517 (art. 9°);
- Tal saque não foi pago, nem na data do vencimento, nem posteriormente, apesar de ter sido apresentado a protesto (art. 10°);
- Deste modo, a Requerente é credora da Requerida da referida importância de Esc. 8.081.140$00, acrescida dos respectivos juros moratórios à taxa anual de 15%, desde a data dos vencimentos das letras e do saque até efectivo e integral pagamento (art. 11°);
- Tais juros ascendem, neste momento, a Esc. 364.572$00 (art. 12°);
- O crédito da requerente sobre a requerida atinge, até à data, o montante global de Esc. 8.445.712$00 (art. 13 °);
- Teve, entretanto, a requerente conhecimento de que outras letras aceites para pagamento a outro fornecedores não estão, igualmente, a ser pagas na data dos seus vencimentos (art. 14°);
- Assim, a Requerida cessou pagamentos, o que ocorreu nos dias 30.04.90, 31.05.90 e 08.06.90, ou seja, há mais de 30 dias e a menos de 3 anos (art. 15°) (C) dos Factos Assentes);

d) Com a petição inicial foram anexados pela N, Lda. certidão de matrícula emitida pela Conservatória do Registo Comercial, fotocópia da escritura de constituição da sociedade da Requerida e fotocópias de dez letras de câmbio e um saque D) dos Factos Assentes);

e) Não obstante a dita N, Lda. ter alegado opor-se à prévia audição dos representantes legais da Requerida, por recear o extravio do restante património, o Senhor Juiz ordenou a citação (E) dos Factos Assentes);

f) Apesar de citada, a aqui autora não contestou a acção (F) dos Factos Assentes);

g) A autora não foi notificada do despacho que designou o dia 6 de Novembro de 1990 pelas 9,30 horas para realização da audiência de julgamento (G) dos Factos Assentes);

h) A audiência de julgamento foi realizada na data designada sem que a Requerida estivesse presente ou representada (H) dos Factos Assentes);

i) No decurso da audiência o senhor Juiz formulou os seguintes quesitos:
1° - A Requerente forneceu à Requerida, por diversas vezes, fio para a indústria pela importância de Esc. 8.081.140$00?
2° - A Requerida em 09.02.90, 06.03.90 e 30.03.90, através dos seus gerentes, aceitou, para liquidação da importância de Esc. 6.725.100$00, dez letras de câmbio, nos valores de Esc. 200.400$00, Esc. 424.700$00, Esc. 480.000$00, Esc. 487.000$00, Esc. 234.000$00, Esc. 408.000$00 e Esc. 1.477.000$00?
3° - Estas letras não foram pagas nos seus vencimentos em 30.04.90 e 31.05.90?
4° - Para liquidação da restante quantia em débito, ou seja, Esc. 1.356.000$00, a Requerente emitiu em 09.05.90 o saque n° 9.517 que não foi pago na data do vencimento, em 08.06.90?
5° - Outras letras, aceites para pagamento a outros fornecedores, não estão igualmente a ser pagas nas datas dos seus vencimentos? (I) dos Factos Assentes);

j) Os quesitos em causa foram todos dados como provados (J) dos Factos Assentes);

l) Por Acórdão de 7 de Novembro de 1990 a Requerida foi declarada falida com os seguintes "Fundamentos":
"Ficou provado o seguinte:
- A Requerente forneceu à Requerida, por diversas vezes, fio para a indústria pela importância de Esc. 8.081.140$00.
- A Requerida em 09.02.90, 06.03.90 e 30.03.90, através dos seus gerentes, aceitou, para liquidação da importância de Esc. 6.725.100$00, dez letras de câmbio, nos valores de Esc. 200.400$00, Esc. 424.700$00, Esc. 480.000$00, Esc. 487.000$00, Esc. 234.000$00, Esc. 408.000$00 e Esc. 1.477.000$00.
- Estas letras não foram pagas nos seus vencimentos em 30.04.90 e 31.05.90.
- Para liquidação da restante quantia em débito, ou seja, Esc. 1.356.000$00, a Requerente emitiu em 09.05.90 o saque n° 9.517 que não foi pago na data do vencimento, em 08.06.90. - Outras letras, aceites para pagamento a outros fornecedores, não estão igualmente a ser pagas nas datas dos seus vencimentos.
Qualificação jurídica dos factos:
Diz o art. 1135° que o comerciante impossibilitado de cumprir as suas obrigações considera-se em estado de falência.
São comerciantes as sociedades comerciais, assim se considerando as que se constituem de harmonia com as normas contidas no art. 18° do Cód. Comercial e 1° do Cód. das Sociedades Comerciais, ou seja, as que tenham por objecto um ou mais actos de comércio.
Deste modo e face ao que consta do teor do documento juntos aos autos (fis. 5 a 21) e ao alegado sob os artigos 1 a 3 da petição, há que se considerar a requerida como comerciante e, por isso, sujeita ao instituto de falência.
A declaração de estado de falência, quando não resulte de apresentação voluntária do comerciante antes de cessar efectivamente os pagamentos, pode ser requerida por qualquer credor- art. 1140° e 1176°, n° 1, alínea a), do Cód. Proc. Civil.
A requerente demonstrou ser credora da requerida por lhe ter feito vários fornecimentos de materiais do seu comércio e cujo débito ficou titulado por letras de câmbio que a requerida não pagou nos respectivos vencimentos.
E os vencimentos de tais letras ocorreram em datas que se situam em período anterior a 30 dias antes da propositura da acção.
Tal facto significa que a requerida cessou os seus pagamentos sem que tenha vindo apresentar-se ao Tribunal para a declaração de falência como lhe impunha a norma contida no art. 1140° do Cód. Proc. Civil.
Daí a legitimidade da requerente para a presente acção, nos termos do apontado art. I 176° do mesmo Cód. Proc. Civil e com o fundamento a que alude o art. 1174°, n° 1, alínea a), deste diploma.
Os factos apontados mostram, pois, que a requerida se encontra em situação de não poder cumprir as suas obrigações, satisfazendo os créditos dos seus fornecedores, o que justifica a declaração do seu estado de falência." (L) dos Factos Assentes);

m) No dia 8 de Novembro de 1990, pelas 11 horas, o Administrador nomeado procedeu à apreensão dos livros de Balança, Razão, Diário e Diário-Razão-Balancete e encerrou as instalações da autora (M) dos Factos Assentes);

n) Em 12 de Novembro de 1990 foi feito o arrolamento de todos os bens pertencentes à autora (N) dos Factos Assentes);

o) Em 13 de Novembro de 1990 a autora interpôs recurso da sentença que decretou a falência (O) dos Factos Assentes);

p) Por Acórdão de 7 de Março de 1994 o Tribunal da Relação do Porto anulou o julgamento do tribunal colectivo ficando também anulada a sentença recorrida e ordenou a repetição daquele nos termos da parte final do n° 2 do art. 712° do Cód. Proc. Civil, considerando a existência de obscuridade e contradição entre os quesitos e do mesmo vício nas respectivas respostas (P) dos Factos Assentes);

q) Na audiência de julgamento de 26 de Setembro de 1994 apenas compareceram o Mandatário da Autora e uma testemunha da Requerente, tendo faltado o representante legal desta, bem como as restantes testemunhas por ela arroladas (Q) dos Factos Assentes);

r) Por Acórdão de 26 de Setembro de 1994, transitado em julgado, foi julgada a acção improcedente e absolvida a Requerida do pedido de declaração de falência contra ela deduzido com os fundamentos constantes de fis. 184 a 186 (R) dos Factos Assentes);

s) A autora exerceu a actividade referida em a), ininterruptamente, desde a data da sua constituição, em 15 de Dezembro de 1965, até ao dia 8 de Novembro de 1990 (resposta ao facto n° 1 da base instrutória);

t) Em 8 de Novembro de 1990 a autora encontrava-se a laborar com um número não concretamente apurado de trabalhadores mas não inferior a um total de 77 (incluindo 9 estagiários e 1 aprendiz) (resposta ao facto n° 2 da base instrutória);

u) Os seus produtos destinavam-se ao mercado externo, designadamente Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos e ao mercado nacional (resposta ao facto n° 3 da base instrutória);

v) No momento facturava cerca de Esc. 400.000.000$00, em média, por ano (resposta ao facto n° 4 da base instrutória);

x) Com a declaração de falência, o encerramento das instalações, o arrolamento de todos os seus bens e o despedimento dos seus trabalhadores a imagem da autora perante os seus clientes e fornecedores é ainda a de falida (resposta ao facto n° 6 da base instrutória);

z) Contra a autora, foram instauradas diversas acções e movidos recursos, nomeadamente pelo Administrador Judicial, e as instalações da autora mantêm-se encerradas e todas as máquinas e demais utensílios no seu interior (resposta ao facto n° 7 da base instrutória);

aa) Com o decurso do tempo as máquinas e demais bens que ali permanecem deterioram-se (resposta ao facto n° 8 da base instrutória);

bb) Após a declaração de falência sucederam-se as acções de cobrança intentadas pelos fornecedores da autora (resposta ao facto n° 9 da base instrutória);

cc) Na Reclamação de créditos 147-A/90 foram reclamados créditos no montante global 197.075.302$00 (teor da certidão de fis. 40 e 41);

dd) A autora dispunha de máquinas e móveis a que o louvado atribuiu o valor de Esc. 5.976.711$00 (resposta ao facto n° 14 da base instrutória).


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Conforme decorre claro das conclusões supra extractadas, a decisão sentencial recorrida vem impugnada apenas na vertente de direito.
Como assim, e porque também não vemos que haja fundamento para modificar a matéria de facto elencada na sentença, considera-se a mesma fixada.


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A nosso ver o presente recurso não merece procedência.
Justificando:
A pretensão da Autora, ora apelante, conforme deduzida na sua p.i., foi estruturada à base da suposta prática de erros grosseiros do juiz que teve intervenção decisória no processo onde foi declarada a falência da apelante (de notar, todavia, que os actos em causa foram praticados por um tribunal colectivo). A Autora sustentou, em consequência, que se tratou de intervenção descuidada, desatenta, desleixada, logo, funcionalmente ilícita. E objectivou essa intervenção descuidada em quatro factos: a atendibilidade de uma pretensão inepta por ausência de causa de pedir, a realização da audiência de julgamento sem a prévia convocação da Autora para a mesma, a formulação de quesitos e a prolacção de respostas irregulares e o decretamento da falência em desacordo com os pressupostos legais. O suporte jurídico para essa pretensão foi a Autora busca-lo ao artº 22º da CRP.
No artº 22º da CRP consagra-se o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas por acções ou omissões praticadas pelos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrém. Tem-se aqui em vista todas as funções do Estado (lato sensu) e, desde logo, a jurisdicional (pese embora já se tenha sustentado que a função jurisdicional não é objecto do citado normativo – caso do Ac do STA de 9.10.90, RLJ ano 124, pág 77 -, há hoje uma comunis opinio em sentido contrário, sendo certamente ocioso estar aqui a enumerar toda uma série de autores e de decisões jurisprudenciais concordantes com esta asserção.
Por função jurisdicional entende-se em primeira linha a actividade judicante que é cometida aos juizes, mas nessa função cabe também, para além da actividade referente a àquilo a que se tem chamado “operadores judiciários”, a actividade infra-estrutural dos funcionários de justiça (v. João Aveiro Pereira, A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, pág 33 a 35). Este direito à reparação é um direito que deve ser tido por fundamental, análogo aos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos (v. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, pág 83; Gomes Canotilho, RLJ ano 123, pág 86; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, pág 151 e 289) e por isso directamente aplicável (v. artºs 17 e 18 da CRP). Esta aplicabilidade directa significa que o direito à reparação existe independentemente da intervenção legislativa infra constitucional (v. Vieira de Andrade, ob. cit., pág 191), da mesma forma que se trata de direito exequível por si mesmo (v. Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade Civil do Estado pela Administração da Justiça – O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, pág 175), o que não significa que não haja conveniência na existência de uma lei concretizadora da forma de actuação do direito, designadamente quanto ao critério da culpa relevante para o efeito.
Abrange-se no artº 22º da CRP a responsabilidade por factos ilícitos, mas também, ao que parece, a decorrente de factos lícitos e a objectiva (v. Jorge Miranda, ob. cit., pág 290; Gomes Canotilho, RLJ ano 124, pág 84).
Essa responsabilidade não dispensa todavia a análise dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado (v. Gomes Canotilho, RLJ 123, 306) e, nesta medida, sendo a actividade judicante uma manifestação de gestão pública (v. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, anotação ao artº 501º; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág 572), podemos bem recorrer, por analogia, às normas do DL nº 48.051 (que rege directamente apenas para os actos de gestão pública da actividade administrativa) que sejam constitucionalmente compatíveis (v. Gomes Canotilho, RLJ 124, 86).
Pese embora o direito à reparação conferido, entende-se normalmente que esse direito só existe quando o acto jurisdicional do juiz, causador de prejuízos, seja doloso ou provenha de negligência grosseira (v. Ac do STJ de 8.7.97, Col Jur – Ac do STJ, 1997, 2º, pág 153; Luís Guilherme Catarino, ob. cit., pág 291). De fora do âmbito responsabilizante deve ficar a actividade do juiz que se refira à interpretação de normas jurídicas e à valoração de factos e da prova. (v. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, pág 504; Luís Guilherme Catarino, ob. cit., pág 290 e 291). Particularmente sugestivo desta ideia é o entendimento de Gomes Canotilho (idem, pág 504), que concentra a responsabilidade civil do Estado por actos jurisdicionais do juiz apenas em casos sem dúvida extremos, como sejam a violação grave da lei por negligência grosseira, a afirmação de factos cuja inexistência seja manifesta no processo, a negação de factos cuja existência seja uma realidade indesmentível no processo, a imposição de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei, e a denegação de justiça.
Diverso do chamado erro judiciário (error in judicando), é o erro material, próprio da circunstância dos juizes serem homens, criaturas finitas e falíveis, e não deuses. Este erro apenas dá direito à correspectiva rectificação, não tem relevância para efeitos indemnizatórios (v. João Aveiro Pereira, ob. cit., pág 203).

Neste recurso a apelante – restringindo de certa forma o âmbito de ineficiências apontadas na sua PI, na medida em que deixou de aludir também a uma pretensa ineficiência decorrente da não rejeição de petição inepta por ausência de causa de pedir - reporta-se a três factos ocorridos no processo onde foi declarada a falência, a seu ver geradores dos prejuízos que quer ver reparados. Factos esses que são a irregularidade dos quesitos, das respectivas respostas e do uso dos factos correspectivos na decisão sentencial, a ilegalidade da decisão que declarou a falência e a ausência de notificação da aí requerida (ora apelante) para a audiência de julgamento.
No que tange à forma como os quesitos se mostram formulados na acta (fls 116 destes autos), à forma como foram respondidos e à forma como os factos correspectivos foram atendidos na decisão sentencial, resulta para nós claro que se regista um misto de lapso de escrita e de error in judicando. Lapso de escrita quanto ao texto do quesito 2º, pois que é manifesto que nele se pretendeu exarar a matéria de facto alegada no artº 5º da PI, mas acontece que apenas se exarou (quiçá por desatenção do funcionário que redigiu a acta) parte dessa matéria (das dez letras aceites anunciadas no artº 5º só foi quesitada a existência de sete). Error in judicando no que toca às divergências de valores: o valor global indicado no quesito 1º não corresponde à soma dos valores parcelares indicados nos demais quesitos; o somatório dos valores das dez letras a que (rectificado o lapso) se reporta o quesito 2º não totaliza o valor global indicado nesse quesito. Aqui temos que ser objectivos e claros: o tribunal não cuidou de se certificar da integral justeza da sua decisão acerca da matéria de facto, pois que se o tivesse feito teria constatado que os valores do débito imputado à Vimatex, Lda nunca poderiam ser exactamente aqueles que as respostas aos quesitos anunciam. Como assim, temos de concluir que o tribunal mostrou ligeireza na forma como encarou os factos, agindo pois de forma pouco diligente, desatenta, e por isso errou no modo como respondeu aos quesitos.
Na parte em que esta actividade jurisdicional incorreu em lapso material de escrita nenhumas consequências haveria a retirar, senão a eliminar o lapso e repor como facto assente a realidade que se pretendeu quesitar e a que se pretendeu responder e a que se pretendeu atender na decisão sentencial. Concluímos aqui que o que o tribunal pretendeu dar como provado na resposta ao quesito 2º foi exactamente aquilo que foi alegado no artº 5º da PI. Se devia ou não devia ter dado como provada essa realidade isso já é outra coisa.
Na parte em que há error in judicando cabe certamente concluir que ocorrem as apontadas ineficiências. E por isso, por via de recurso, foram as respostas dadas aos quesitos anuladas, tendo sido imposta a repetição do julgamento.
Mas o que temos como certo é que a desatenção e falta de diligência reveladas pelo tribunal, não constituem qualquer erro grosseiro, qualquer negligência grosseira.
Acontece que, como se referenciou supra, é de entender que só o erro grosseiro, só a negligência grosseira, releva para o efeito de obrigar à indemnização por efeito de actos jurisdicionais dos juizes.
Quando se fala de erro grosseiro para efeitos de responsabilização por actos jurisdicionais dos juizes tem-se em vista o desempenho judicial de desconformidade gritante com o mundo dos factos ou com o mundo do direito. Nestes casos, por ser inequívoca a ilicitude do acto, não se justifica a salvaguarda do jus dicere. Nos demais casos temos que nos conformar com a ideia de que o erro judicial, seja de facto, seja de direito, tem que ser tolerado em atenção à circunstância da actividade jurisdicional dos juizes se confrontar com particulares exigências e dificuldades. È o que está emanente na feliz síntese de Luís Guilherme Catarino (ob. cit., pág 289): “As dificuldades inerentes à actividade de decidir levam a que os ordenamentos objectivizem os casos de erro, como o faz a nossa jurisprudência, e, quando possibilitam sindicar subjectivamente uma conduta decisória, ainda aí impõem restrições – vedando que a actividade de interpretação seja sindicada, ou exigindo uma negligência grosseira. Esta última é uma solução tradicional nos casos em que se aceita a responsabilidade por erro, e corresponde à solução adoptada para determinados serviços públicos que se confrontam com particulares exigências e dificuldades”.
No caso vertente sempre há, ademais, que chamar a atenção para dois factos que reforçam a ideia da necessidade da tolerância que tem que se dar: a decisão sobre a matéria de facto foi tomada num processo com natureza urgente, sendo, por imposição legal, os quesitos redigidos e respondidos na própria audiência (v. artºs 1179º e 1180º do CPC); o erro do tribunal incidiu sobre números e valores. Qualquer uma destas circunstâncias de facto potencia necessariamente o cometimento de erros de apreciação e julgamento.
Nesta base, consideramos que o erro que se surpreende nas respostas aos quesitos está longe de poder ser qualificado de grosseiro. Donde, a circunstância da factualidade emergente das respostas ter sido atendida como boa na decisão sentencial nenhuma relevância tem para os fins em causa.
Por outro lado, importa não hipervalorizar o facto das respostas aos quesitos terem sido anuladas em recurso interposto para o tribunal da Relação do Porto. Uma coisa é a ineficiência técnico-decisória do tribunal de que se recorre, outra coisa é essa ineficiência decorrer de negligência grosseira. A ineficiência técnico-decisória permite ao tribunal de recurso a reparação do que está mal, mas isto não significa só por si que o juiz do tribunal recorrido actuou de forma grosseiramente negligente. Podemos assim dizer que a decisão de recurso que foi tomada no processo onde a falência da ora apelante foi declarada permitiu debelar o erro em que incorreu o tribunal recorrido, mas nada adianta só por si quanto à questão do falado erro grosseiro. Como ainda salienta Luís Guilherme Catarino (ob. cit., pág 290) afasta-se a possibilidade de indemnização decorrente de mera revogação ou anulação por via de recurso não destinado à declaração do erro, pois que a actividade de julgar, por natureza propensa ao erro, retira qualquer sentido a que a alteração de decisões em sede de recurso possibilite a reclamação de indemnização.

Numa segunda vertente, a apelante sustenta que a decisão que a declarou em estado de falência violou a lei, na medida em que a factualidade pressuposta na decisão sentencial não permitia legalmente o decretamento da falência.
Mas também aqui não se regista qualquer erro grosseiro do tribunal.
O tribunal entendeu, dentro da liberdade que a lei lhe reconhece de interpretação e valoração das normas jurídicas, que os factos apurados mostravam que a V, Lda estava em estado de falência, pois que tinha várias dívidas, vencidas anteriormente aos 30 dias que antecederam a propositura da acção, cessara os pagamentos aos credores e não se encontrava em situação de poder cumprir.
Independentemente de aceitarmos ou deixarmos de aceitar como boa a conclusão decisória a que chegou o tribunal, o que é certo é que a decisão não revela qualquer desrazoabilidade gritante, qualquer desconhecimento da lei aplicável ao caso ou notória e inelutável má aplicação do direito. Pelo contrário, segundo um dos possíveis entendimentos existentes à data da sentença, o pronunciamento sentencial em causa era perfeitamente sustentável. O Assento nº 9/94 do STJ, que viu a luz do dia vários anos depois de proferida a sentença em questão, em nada interfere com a situação.
Portanto, não se pode falar aqui de qualquer ilicitude que obrigue a reparar danos decorrentes da execução da decisão. O que há é precisamente um acto lícito do juiz, pois que este, no âmbito da salvaguarda do jus dicere, é tendencialmente livre na interpretação e aplicação do direito.

Numa última vertente, reporta-se a apelante ao facto de não haver sido notificada para comparecer na audiência.
Certamente que, apesar de não ter contestado, devia ter sido notificada para o efeito, atento o disposto no nº 3 do artº 1178º do CPC.
Não o tendo sido, cometeu-se, por omissão, uma irregularidade processual. Mas convém ter presente que essa omissão não se pode ter como imputável aos juizes, pois que se trata da omissão de um acto da competência da secretaria (v. artº 229º, nº 2 do CPC). Ao juiz não compete funcionalmente certificar-se da feitura das notificações, sem prejuízo de, constatando a omissão ou irregularidade delas, mandar providenciar pela respectiva reparação (isto resulta claro, a nosso ver, da regra ínsita no nº 2 do artº 205º do CPC).
Seja como for, nem por isso os actos e omissões dos funcionários de justiça obviam à obrigação de indemnizar do Estado na conformidade do artº 22º da CRP, na medida em que são actos de funcionários/agentes do Estado e, como acima se salientou, a respectiva actividade não deixa de se identificar ainda com a função jurisdicional.
No tocante aos actos e omissões dos funcionários de justiça não há que fazer pressupor a responsabilidade do Estado da existência de negligência grosseira. As razões que justificam a aplicação deste pressuposto aos juizes não se estendem naturalmente aos funcionários de secretaria.
Mas o que é certo é que para que a obrigação de indemnizar surja é necessário que se verifiquem certos pressupostos E como diz João Aveiro Pereira (ob. cit., pág 117), os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos de gestão pública são essencialmente os mesmos que se encontram previstos na lei civil (ainda que com algumas flutuações em matéria de culpa, pois que se tende a identificar o bonus pater familias a que se reportam os artºs 4º, nº 1 do DL nº 48.051 e 487º do CC, com o funcionário ou agente típico respeitador da lei e das legis artis). Um destes pressupostos é o nexo de causalidade entre o facto e o dano. À luz da doutrina da causalidade adequada – que é a normalmente adoptada e que, em todo o caso, é a que está subjacente à nossa lei civil -, para que haja obrigação de reparar um dano, impõe-se não só que, em concreto, o facto tenha sido condição sine qua non do dano, mas também que, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, este facto seja uma causa adequada do dano. Isto segundo um juízo de prognose posterior, ponderando as circunstâncias cognoscíveis, à data do facto, por uma pessoa normal, e as realmente conhecidas pelo lesante (v. João Aveiro Pereira, ob. cit., pág 138; Almeida e Costa, ob. cit., pág 555 e 707 e sgts). O nexo de causalidade resolve-se essencialmente numa questão de facto e é àquele que invoca o direito à indemnização que compete prová-lo (v. nº 1 do artº 342º do CC).
Pergunta-se então: a omissão da notificação foi, em concreto, a condição sine qua non do dano que a apelante invoca?
Por outras palavras, se a notificação tem sido feita, a decisão dos juizes teria sido necessaria e concretamente outra e o acordão proferido nunca teria sido no sentido da declaração da falência?
A resposta só pode ser uma: não sabemos. A matéria de facto provada nada nos indica sobre isto e a verdade é que teria a ora apelante que mostrar, pela positiva, a essencialidade da notificação omitida para a produção do dano.
É que não sabemos sequer se a Vimatex Lda teria comparecido na audiência (se nos fosse admitido conjecturar, teríamos de dizer que a circunstância de não ter respondido ao pedido de falência sugere de certa forma desinteresse na comparência). Mais: como argutamente se diz na sentença recorrida, não se compreende muito bem como, depois de defender a ineptidão da petição apresentada pela Autora do processo de falência, pode argumentar a ora apelante que a sua presença na audiência poderia ter influenciado o desfecho da causa.
Ainda aqui, convém distinguir entre a ilegalidade processual da omissão da notificação e o carácter causal dessa omissão para a produção dos danos: a omissão justificaria a reparação da falta, mas por si só não representa ser o facto adequadamente gerador da decisão tomada quanto à falência e, como assim, dos danos.

Trás a apelante à colação neste recurso a questão do princípio da confiança, assegurado pela CRP, e que entende ter sido violado.
É certo que no princípio do Estado de direito democrático (artº 2º da CRP) está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, que implica um mínimo de certeza e de segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas. Como se diz no Ac do TC de 21.11.90, (DR, I, de 26.12.90), qualquer norma jurídica que obviar por forma intolerável, arbitrária e demasiado opressiva aos mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá que ser entendida como não consentida pela CRP. Não é assim de ter como intolerável ou inadmissível um qualquer efeito legal que segundo o senso comum e a destinação normal da vida em sociedade jurídico-política se há-de ter como verosímil ou possível e com o qual, de uma forma razoável e avisada se poderia ou deveria contar.
Simplesmente, e com o devido respeito, não conseguimos enxergar o que é que este princípio tem a ver com o caso vertente. Na verdade, salvo erro ou omissão nossa, o princípio vale essencialmente para os fenómenos da “normação”, isto é, para a edição e interpretação das leis de forma discordante com um status quo razoavelmente assegurado pelo Estado. Ora, o tribunal que declarou a ora apelante em estado de falência não interpretou ou aplicou qualquer norma legal ofensiva da confiança que à base dela ou de outra se criou na comunidade. Mas a levar o princípio também para a vertente daquilo que se pode esperar da actuação decisória judicial, só podemos dizer que o tribunal que declarou a falência em nada se desviou anormalmente do que em abstracto sempre se pode expectar da função jurisdicional. Obviamente que na interpretação das leis e na aplicação do direito pelos tribunais há sempre uma certa álea e, nesta medida, a ninguém é lícito investir na confiança de que o caso vai ser decidido em certo e unívoco sentido. Quem o fizer, sibi imputat.

Entendemos, deste modo, que não pode proceder a pretensão indemnizatória da ora apelante.
Nada temos, pois, a censurar ao decidido no tribunal a quo.
Improcedem, na medida em que sejam contrárias ao que fica dito, as conclusões do recurso.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juizes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


Regime de Custas:

A apelante é condenada nas custas do recurso.

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Guimarães, 7 de Maio de 2003

José Rainho
Rosa Tching
Joaquim Baltar