Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3144/13.5TBGMR-A.G1
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE PRESCRITO
RELAÇÃO SUBJACENTE
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I-O cheque dado à execução, ao qual a lei atribui força executiva, por ser um título cambiário, não pode valer como tal na hipótese de se encontrar prescrito mas é enquadrável, como mero quirógrafo do crédito, nos documentos que importem o reconhecimento da obrigação (cfr. art. 46.º, n.º 1, al. c) e actualmente o art.703.º, n.º 1, al. c) do CPCivil).

II-O cheque, prescrito, por conter o reconhecimento de uma dívida que se traduz numa ordem de pagamento, dispensa o credor de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário (cfr. art. 458.º, n.º 1 do CC) mas deve cumprir o ónus de alegação dos respectivos factos.

III-Cumpre, por seu turno, ao declarante, neste caso ao embargante, alegar e provar que a relação fundamental, fonte do negócio, não existe, é anulável ou nula, ou se extinguiu, apesar do reconhecimento da dívida (cfr. art. 344.º, n.º 1 do CC).

IV-Tendo o embargante negado os factos invocados pela exequente no requerimento executivo, não reconhecendo ter assumido o pagamento dos materiais que foram adquiridos pelo cliente daquela, apesar da existência do cheque, cuja entrega à exequente justificou no seu articulado, o processo não podia ter sido decidido no despacho saneador uma vez que os autos ainda não permitiam, por falta da instrução que se impõe sobre os factos controvertidos, uma decisão conscienciosa e segura, considerando as diferentes perspectivas jurídicas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

Por apenso à acção executiva instaurada por “JR & Filhos, Lda”, fundada em cheque, veio o executado, A. A., deduzir embargos de executado, alegando, em síntese, que o cheque dado à execução encontra-se prescrito, além de que anuiu em passar esse cheque dado à execução para servir de caução ao fornecimento dos materiais ao Sr. JF, o qual se havia comprometido a substituir esse cheque por um seu, o que mereceu acordo da exequente.Sucede que o mesmo não substituiu o cheque e o exequente apresentou o seu cheque a pagamento, o que não viria a ser pago.
Pede, por isso, a procedência da oposição e a consequente extinção da execução.
A exequente contestou, pugnando pelo prosseguimento da execução.
Alega, em síntese, que o cheque foi entregue para pagamento dos fornecimentos ao Sr. JF, tendo, aliás, sido emitidos os respectivos recibos de quitação.
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Proferiu-se despacho saneador, que decidiu julgar totalmente improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento da execução.
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Inconformado com a decisão, o embargante/executado interpôs recurso terminando com as seguintes

Conclusões

A. Como se escreve no Ac. da Relação de Coimbra de 2-07-2013 publicado em www.dgsi.pt "... o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausiveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possiveis do objecto da acção. Maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final".
B. No caso concreto, não obstante a factualidade alegada pelo executado, se apresentar, no essencial controvertida, o MmO juiz da primeira instância decidiu do mérito da acção. Tal decisão de mérito na fase da sanação do processo, foi justificada pela insuficiência dos factos que constituem a causa de pedir, ou seja, mesmo que se provassem tais factos, nunca poderia proceder os embargos de executado.
C. Em face do exposto e tendo em conta que os factos que constituem a causa de pedir são controvertidos, afigura-se que o estado dos autos não permite desde já a prolação de decisão do mérito da causa. O conhecimento do mérito da causa total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo vista apenas a partilhada pelo juiz da causa, ou a qualificação de direito dada aos factos pelas partes.
D. A exequente apresentou o requerimento executivo na acção de execução como título executivo um cheque com data aposta de 15/09/2012, com o montante aposto de € 1 0.904,97 (dez mil novecentos e quatro euros e noventa e sete cêntimos), assinado pelo executado, à ordem de JR & Filhos, Lda.
F. O executado veio deduzir oposição à execução, mediante de embargos de executado alegando a prescrição do cheque como título de crédito e exequibilidade do cheque como documento quirógrafo.
G. À exequente compete juntar um título que, face à lei, seja exequível, sob pena de a execução não poder prosseguir ou ser declarada extinta (cfr. art. 45° do C.P.Civil). Ora, na situação dos autos, verifica-se que o cheque dado à execução, datado de 15/09/2012, foi apresentado a pagamento fora do mencionado prazo bem como a data da sua validade que era até 2012/05/03,daí advindo a impossibilidade de o mesmo constituir título executivo ao abrigo da LU sobre cheques.
H. Pois tendo este título de crédito sido apresentado a pagamento fora do prazo legal, cabia à exequente invocar, no requerimento executivo, a relação jurídica subjacente à respectiva emissão, o que a mesma não fez limitando­-se a alegar que o cheque "se destinava ao pagamento de materiais constantes das facturas, que se protestam juntar ... ". Ora, não obstante reconhecer-se que a boa prática processual impunha que a exequente concretizasse as alegadas facturas, discriminando os respectivos montantes e indicando as datas em que foram efectuadas, a verdade é que não o fez.
I. É que, neste caso, estamos perante a utilização do título como mero quirógrafo da relação causal subjacente à respectiva emissão ou documento particular, destituído das características que são próprias dos títulos de crédito, designadamente do príncipio da abstracção, segundo o qual, tais títulos valem por si só, independentemente da causa subjacente à sua emissão.
E, por outro lado, a menção da obrigação subjacente que o cheque visava satisfazer, isto é a razão da ordem de pagamento constitui a verdadeira causa de pedir da acção executiva, havendo, por isso, que propiciar ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório. Mas sendo assim, como é de facto, bem se compreende que seja de exigir ao exequente, que queira fazer-se prevalecer do direito indicado naquele título, a alegação da relação jurídica subjacente à respectiva subscrição, ou seja, do facto de que emerge o crédito exibido no mesmo título, sob pena de inexistência de causa de pedir.
J. Um cheque apresentado a pagamento fora do prazo, pode continuar a valer como título executivo, desde que os factos constitutivos da obrigação subjacente à respectiva emissão resulte do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo. Ora, no caso em apreço, verifica-se que a exequente instaurou a presente execução contra o executado com base num cheque válido até 03/05/2012 por este emitido a seu favor, não obstante ter perdido o direito de acção contra este, por falta de apresentação a pagamento no prazo legal, nos termos dos artigos 29°,30° e 40° da LU sobre os cheques.
K. O exequente em articulado de discussão de facto e de direito sublinha o facto de o executado ter reconhecido a existência da obrigação pecuniária, ainda que sem especificar os concretos factos que consubstanciam essa alegada obrigação.
L. Mesmo que se entenda que os cheques prescritos são considerados títulos executivos, in casu, tal nunca sucederia na situação dos autos, pois, a alegada obrigação do pagamento da quantia constante do cheque emerge de um negócio jurídico formal, não podendo o cheque constituir título executivo, porque a causa do negócio é elemento essencial dele - garantia/caução - e não consta do título.
M. Conforme decisão recente do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-­2007, proc. n° 07B36l6, disponível em www.dgsi.pt, 1. Prescrito o direito de crédito que consubstanciavam, não podem os cheques valer como títulos executivos cambiários. 2. Os cheques mencionados sob 1 que se limitem inserir uma ordem de pagamento dirigida a uma instituição de crédito são insusceptíveis de significar a declaração de constituição ou de reconhecimento de obrigações pecuniárias a que se reporta a alinea c) doc.l do art. 460 do Código de Processo Civil. 3. Os cheques mencionados sob 2 não podem ser considerados títulos executivos e, consequentemente, não podem servir de fundamento à instauração da acção executiva para pagamento de quantia certa.
N. O tribunal reconhece a falta de comprovação da relação subjacente à entrega do cheque à exequente e a emissão do cheque prescrito por parte do executado, condição sine qua non para que possam beneficiar de força executiva.
O. A seguir-se a teoria defendida pela Sentença recorrida pouca ou nenhuma diferença existiria entre executar um cheque prescrito, como mero quirógrafo ou um cheque num âmbito de uma relação cambiária, pois, o primeiro beneficiaria da presunção legal contida no art. 4580 do Cód. Civil e, sendo assim, beneficiavam ambos da literalidade e abstracção do cheque como título cambiário, apesar de não o ser, o que é contraditório nos seus próprios termos.
P. o cheque é por definição uma ordem de pagamento à vista expedida contra um Banco sobre fundos depositados na conta do emitente para o pagamento do beneficiário do cheque, não poderá ser considerado um reconhecimento de dívida sem indicação da respectiva causa, para efeitos de funcionamento da presunção estabelecida no art. 4580 do Cód. Civil. Inexiste nos autos qualquer documento emitido e assinado pelo executado a reconhecer a dívida ao exequente, não podendo o cheque documentado nos autos suprir a falta desse documento e aproveitar os efeitos da presunção legal estabelecida no art. 4580 do Cód. Civil.
Q. No domínio da acção axecutiva em que impera a certeza, a liquidez e a exigibilidade da obrigação e o título executivo define o âmbito da execução, é inconcebível e contrário à lei que se possa fazer prosseguir uma execução com base na presunção da existência de relações negociais, como defende a douta sentença.
R. A falta de alegação e prova da relação subjacente ao cheque prescrito documentado nos autos e que incumbe inequivocamente à exequente, de acordo com a repartição do ónus de prova, não poderá ser suprida ou substituída por uma qualquer presunção da existência de relações negociais, como defende a douta sentença.
S. A lei impõe ao portador do cheque que pretende executar um cheque prescrito que explique nos autos o negócio que está por detrás da entrega desse cheque e, dessa forma, porque não o apresentou a pagamento no prazo legal que dispunha. A Exequente ao não ter explicado e provado nos autos a relação subjacente à emissão do cheque, é-lhe concedido, sem qualquer razão de ser, e ao abrigo de uma presunção legal que não tem qualquer aplicação ao caso concreto, uma espécie de ''via verde" da acção executiva, que lhe permite executar cheque prescrito, sem alegar e provar a relação subjacente, o que é contrário à lei.
T. Não tem qualquer fundamento a posição defendida na Douta sentença segundo a qual a exequente está dispensada de provar a existência da relação fundamental, impendendo sobre o executado o ónus de provar a inexistência dessa relação fundamental, uma vez que de acordo com as regras de repartição do ónus é á exequente que cabe alegar e provar a relação subjacente ao cheque prescrito.
U. O nosso sistema jurídico-processual reparte o ónus da prova entre autor e réu pelo modo como este princípio geral está consignado no art. 3420 do Código Civil: - a quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos, positivos ou negativos, constitutivos do direito alegado ("actore non probante réus absolvitur"); à parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito ("réus excipiendo fit actor"). A importância de se saber quem tem o ónus de provar determinada circunstância fáctica que surja no contexto da demanda constitui elemento de primordial importância no desfecho do êxito da acção, ou seja, a chave da resolução do litígio - num sistema processual inteiramente baseado no princípio dispositivo, em que o tribunal tenha que julgar secundum allegata et probata patium, o ónus da prova de um facto consiste em ter a parte que alegar e provar o facto que lhe aproveita, sob pena de o juiz ter de considera­-lo como não existente e como líquido o facto contrário (Antunes Varela; Manual de Processo Civil, pág. 448), ou seja, dito de outro modo, este ónus traduz-se "para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto" - Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, pág.184.
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A Embargada contra-alegou nos seguintes termos :

A)-A decisão proferida em 1.ª instância, não merece qualquer reparo, devendo a sentença ser mantida na íntegra.
B)-Os factos vertidos nos pontos 1 a 3 dos factos provados, foram correctamente julgados.
C)-No que toca às disposições relativas ao título executivo, temos de atender às regras contidas no anterior código de processo Civil.
D)-E, à data da entrada da presente execução, dispunha a al. c) do art. 46° do CPC, que são títulos executivos, os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.
E-Por seu turno, a alínea d) expressamente refere que são títulos executivos os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva - situação do cheque, que nos termos da LUC é título executivo, mesmo que se encontrasse prescrito.
F)-Bastando para isso que no título ou na execução constasse a relação causal ou o negócio jurídico subjacente.
G-A relação causal foi alegada pelo recorrido no requerimento executivo; compreendida e confessada pelo recorrente, que nomeadamente identificou e confirmou a assunção da responsabilidade pelo pagamento da dívida que o Sr. JF tinha para com aquela.
H-A petição executiva permitiu ao Recorrente reconhecer a relação causal ou fundamental da emissão do próprio cheque como documento, permitindo-lhe conhecer a causa em ordem a uma conveniente defesa.
I-Ao identificar a relação causal, possibilitou, em termos proporcionais ao recorrente o cumprimento do ónus probatório, uma vez que o credor ficou dispensado de prova.
J-Dispõe o art. 458°, n.º 1 do CC, que a declaração unilateral de reconhecimento de dívida, confere ao credor a dispensa de prova da relação fundamental, por aplicação do instituto da presunção até prova em contrário, pelo que, o ónus da prova recaia sobre o recorrente.
L-O recorrente alegou a entrega do cheque à recorrida relacionada com os fornecimentos de materiais a JF, o incumprimento por parte deste e o consequente accionamento do cheque por parte da recorrida.
M-O Recorrente, além de não ilidir a relação causal trazida pela recorrida, confessa a existência da assunção de responsabilidade (relação subjacente), ao alegar a entrega do cheque ao recorrido.
N-Por esta razão, a, aliás, douta Sentença não violou qualquer disposição legal.
O-Ao decidir como decidiu, o MO. Juiz "a quo" fez uma correcta interpretação dos factos alegados pelas partes, nomeadamente a confissão do Recorrente e a mais adequada interpretação e aplicação do direito, pelo que tal Sentença não merece qualquer censura.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II- Delimitação do Objecto do Recurso

As questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se o processo permitia conhecer, no despacho saneador, do mérito da causa e se, o cheque, prescrito, contém uma declaração de dívida, reconhecida pelo executado.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS

Por documento e confissão resultaram provados os seguintes factos com interesse para a presente decisão:

1.A exequente é portadora e deu à execução o documento de fls. 19 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido e onde constam, além do mais, as seguintes inscrições:«Banco X; A. A.; (…); pague por este cheque, Euros 10.904,97; (..) data de emissão: 2012-09-15; Assinatura: (ilegível); à ordem de: JR & Filhos, Lda; a quantia de: (…) número de cheque …» e constando ainda do seu verso: «Devolvido em Lisboa, em 18 SET 2012, por motivo de extravio».
2. A exequente instaurou a execução, em 31-08-2013, com fundamento no cheque referido em 1, indicando no requerimento executivo o seguinte:

«Factos

A exequente é portadora de um cheque (Doc. 1) no valor de 10.904,97€ (Dez Mil novecentos e quatro Euros e noventa e sete centimos), devidamente preenchido pelo Executado para pagamento, emitido em 15-09-2012.
O cheque dos autos foi apresentado a pagamento em 18-09-2012, tendo sido o mesmo, devolvido com a indicação de extravio.
No entanto, tal não corresponde à verdade, pois o cheque foi entregue pelo Executado à Exequente nas instalações comerciais desta.
O cheque dos autos foi entregue pelo executado à exequente para pagamento de materiais constantes das facturas, que se protestam juntar, cujo pagamento, o Executado pessoal e livremente assumiu.
Até à presente data o Executado não pagou à Exequente, o montante constante no referido cheque, pelo que o mesmo encontra-se por pagar»
3. O cheque referido em 1. não foi pago e foi entregue ao exequente pelo executado para caucionar os fornecimentos de materiais a JF, o qual não pagou esses fornecimentos.
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IV- DIREITO

A questão principal consiste em saber se o Embargante reconheceu a relação negocial cuja declaração de dívida o cheque, prescrito, demonstra, para, depois, se poder concluir se o processo podia ter sido decidido, de mérito, no despacho saneador.
É aplicável, ao caso dos autos, a versão do C.P.Civil anterior (Dec.-Lei n.º 329-A/95 de 12.12) ao NCPC (Novo Código de Processo Civil) aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-6, que entrou em vigor em 01/09/2013, uma vez que a execução foi instaurada em 31 de Agosto de 2013 (cfr. art. 6.º da Lei n.º 41/2013).
Segundo o artigo 46.º, n.º 1, al.c) do C.P.Civil, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 226/2008, de 20-11, à execução apenas podem servir de base: os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto (al.c)) e os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva (al.d)).
O cheque dado à execução, ao qual a lei atribui força executiva, por ser um título cambiário, já não pode valer como tal por se encontrar prescrito mas é enquadrável, como mero quirógrafo do crédito na referida alínea c) do n.º 1 do art. 46.º do CP.Civil, desde que, segundo uma corrente jurisprudencial mais significativa acompanhando a generalidade da doutrina(1), constasse do seu teor a relação subjacente ou a mesma fosse alegada no requerimento executivo. (2)
Com a alteração introduzida no artigo 810.º, n.º 3, al. b) pelo Dec.-Lei n.º 38/2003 de 08.03, a lei determinou a exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, no requerimento executivo, quando não constem do título executivo.
Actualmente, e seguindo essa linha orientadora, a redacção do artigo 703.º, n.º 1, al. c) do NC.P.Civil confirmou esse entendimento jurisprudencial, consagrando uma norma nesse sentido, razão pela qual se considera ser uma lei interpretativa nos termos do art. 13.º, n.º 1 do C.Civil, aplicável retroactivamente.
Em suma, como se reconheceu no Acórdão desta Relação de 27/10/2016 (3) “mesmo enquanto simples quirógrafos, os cheques contêm (continuam a conter) em si o reconhecimento unilateral de uma dívida porque se mantém a ordem de pagamento.”
A Exequente, no requerimento executivo, alegou que o cheque dos autos foi apresentado a pagamento em 18-09-2012, tendo sido o mesmo, devolvido com a indicação de extravio, mas que tal não corresponde à verdade, pois o cheque foi entregue pelo Executado à Exequente nas instalações comerciais desta.
Acrescentou que o cheque dos autos foi entregue pelo Executado à Exequente para pagamento de materiais constantes das facturas, que se protestam juntar, cujo pagamento, o Executado pessoal e livremente assumiu.
Nos embargos, o Executado refutou estes factos declarando que nunca adquiriu nenhum material à Exequente, pelo que nenhuma responsabilidade tinha para com esta que determinasse que o cheque dado à execução fosse para pagamento dos materiais constantes das facturas, que a Exequente protestou juntar.
Acrescentou ser falso ter assumido, pessoal e livremente, a responsabilidade pelo pagamento do valor constante das referidas facturas.
Explicou que os materiais em causa foram ou terão sido fornecidos ao Sr. JF, que tinha em aberto uma conta corrente de fornecimento de materiais junto da Exequente. E que após ter sido exigido pela Exequente ao tal Sr. JF que os fornecimentos fossem titulados por cheque, e não dispondo de cheques, o Embargante, a pedido daquele, anuiu passar um cheque da sua conta pessoal, na condição garantida por todos os intervenientes, Exequente incluída, de que o mesmo seria substituído por um cheque da conta daquele Sr. JF, e que apenas serviria de caução para o fornecimento dos materiais, não devendo ser apresentado a pagamento, o que não foi cumprido pelo Exequente e pelo Sr. JF.
Na contestação, a Embargada reiterou que o Embargante assumiu, juntamente com o referido JF, o pagamento dos materiais que aquele havia adquirido, negando que tivesse sido entregue como garantia do fornecimento de materiais.
Esta alegação, aduzida pelo Embargante, é totalmente oposta ao reconhecimento da obrigação causal invocada pela Exequente, no requerimento executivo, consistente na compra e venda de materiais a um cliente, JF, e a assunção de pagamento do respectivo preço pelo Executado.
Nos termos do artigo 458º, nº1, do Código Civil, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
A este respeito, cumpre salientar, na esteira do entendimento de José Lebre de Freitas (4) que o credor está dispensado de provar a relação causal, por força da inversão do onus probandi, consagrado no referido normativo, mas deve cumprir o seu ónus de alegação dos factos pertinentes que consubstanciam essa causa da obrigação.
Sobre esta norma legal, referem P. de Lima e A. Varela (5) que não se consagra o princípio do negócio abstracto, característico dos títulos de crédito, estabelecendo-se apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
E é justamente neste sentido, acrescentam, que se deve entender o disposto na alínea c) do artigo 46.º do Código de Proceso Civil, ao admitir como título exequível o escrito particular, assinado pelo devedor, do qual conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou de entrega de coisa fungível.
Cumpre, assim, ao declarante, neste caso ao Embargante, alegar e provar que a relação fundamental, fonte do negócio, não existe, é anulável ou nula, ou se extinguiu, apesar do reconhecimento da dívida (cfr. art. 344.º, n.º 1 do CC).
Com efeito, a prova do contrário não equivale à contraprova uma vez que esta actividade probatória pretende tão só criar a dúvida ou incerteza acerca da verdade dos factos. (6)
Diversamente, na prova do contrário “é essencial convencer o juiz da existência do facto oposto, tornar (psicologicamente) certo o facto contrário (art. 347.º do Cód. Civil).” (7)
Tendo o Embargante negado frontalmente os factos invocados pela Exequente no requerimento executivo, não reconhecendo ter assumido o pagamento dos materiais que foram adquiridos pelo cliente daquela, apesar da existência do cheque, dado à execução, cuja entrega à Exequente justificou no seu articulado, afigura-se-nos que o processo não podia ter sido decidido no despacho saneador.
É que o despacho saneador destina-se nomeadamente a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (cfr. art. 595.º, n.º 1, al. b) do CPCivil).
Tal como se sublinha no Ac. da Relação de Coimbra de 2-07-2013 publicado em www.dgsi.pt, citado pelo Recorrente "... o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausiveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possiveis do objecto da acção. Maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final".
Neste sentido, pronunciou-se Abrantes Geraldes (8) ao afirmar que o saneador só deverá ter o valor de sentença quando nomeadamente toda a matéria de facto se encontrar provada, por confissão ou documento ou quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permaneçam controvertidos.
E acrescenta, com pertinência, que apesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas, carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos, puderem ser legitimamente defendidas.
É justamente este caso: o julgador considerou que o Executado assumiu a responsabilidade pelo pagamento do dito cheque por ter afirmado que o entregou ao exequente para caucionar os fornecimentos de materiais a JF, mas que haveria um acordo para que o cheque não fosse apresentado a pagamento, pois seria substituído por um outro cheque do JF.
E ainda que provasse esta versão, não ilidia a causa da obrigação.
Ora, a causa alegada pelo Exequente, e negada pelo Executado (não assumiu qualquer pagamento da quantia em dívida) não pode ser, salvo o devido respeito, considerada reconhecida, em princípio, apenas pelo facto de invocar a entrega do título como mera garantia dos fornecimentos de materiais a terceiro.
Assim, afigura-se-nos que os autos ainda não permitiam, por falta da instrução que se impõe sobre os factos controvertidos, uma decisão conscienciosa e segura, no despacho saneador, considerando as diferentes perspectivas jurídicas.
Nesta conformidade, deverá a acção prosseguir os seus termos normais.
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V- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a decisão e determinam que o processo prossiga os seus termos.
Custas pela Apelada.
Notifique e registe.
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Guimarães, 23 de Novembro de 2017

(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)
(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)


1. Como referem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, Almedina, 2015, pág. 143.
2. Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 04/05/2017 in www.dgsi.pt.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. Cfr. A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª dição, Coimbra Editora, pág. 73, nota 48-B.
5. Cfr. Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, pág. 439, nota 1.
6. v. P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 310.
7. v. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 472/473.
8. Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 126/127.