Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
190/13.2T8VNC.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: PER
SUSPENSÃO DAS ACÇÕES
ACÇÃO DECLARATIVA
ACÇÃO EXECUTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O objectivo do PER é “facultar ao devedor o espaço necessário para levar a cabo a recuperação, com a consequente proibição da prossecução de outras acções, até das próprias acções executivas, como forma de protecção do devedor que fica com a faculdade de tentar a recuperação da empresa, liberto de todas as tentativas de os credores se fazerem pagar e da pressão do mercado que os levou até aquela situação económica depauperada e de insolvibilidade”.

II - Na jurisprudência, é amplamente dominante o entendimento de que a expressão “acções para cobranças de dívidas” abrange qualquer acção judicial – declarativa ou executiva – destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito resultante da actividade económica do devedor e que, por isso, contenda com o seu património.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I- Relatório

Estalagem X Lda, com sede no Lugar …, Vila Nova de Cerveira, veio instaurar acção declarativa de condenação com processo ordinário contra H. – Construções, S.A., com sede na Travessa …, Amarante, pedindo que se declare resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes, por culpa exclusiva e imputável à Ré, e a consequente condenação desta a pagar-lhe a quantia de 3.922.185,00€, sendo 3.306.091,10€, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos e lucros cessantes decorrentes do incumprimento do referido contrato, 616.094,50€, a título de cláusula penal convencionada, e em quantia a liquidar, pelos prejuízos sofridos e lucros cessantes pelo encerramento do hotel, entre o mais, tudo acrescido de juros de mora, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Em sede de contestação, a Ré impugnou a factualidade alegada pela A., pugnando pela improcedência total da acção.

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Nos autos instaurados sob o n.º 248/13.8TBVNC, apensa àqueles autos, como apenso B, pela H. – Construções, S.A. contra Estalagem X Lda, foi formulado pedido de condenação dessa Ré a pagar-lhe a quantia de 1.795.239,39€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data de vencimento de cada uma das facturas

Em sede de contestação, a aí Ré pugnou pela improcedência da acção, deduzindo, para o caso de eventual procedência parcial ou total do pedido da A., pedido reconvencional em que pede se declare parcialmente compensado, na medida do necessário, o crédito que detém sobre a A./Reconvinda no valor de 456.710,27€, relativo a trabalhos a menos, nos termos a fixar no processo 190/13.2TBVNC.
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Após audiência prévia, em que foi admitida a reconvenção, fixado o objecto do litígio e os temas de prova, com instrução subsequente dos autos, dado conhecimento em sede de audiência de julgamento da aprovação do plano de revitalização em relação à Ré H. – Construções, S.A. no âmbito do processo 353/14.3TBAMT, foi proferida a seguinte decisão:
- “O Processo Especial de Revitalização (designado usualmente pelas suas iniciais, PER) traduz-se num instrumento processual, sobretudo de cariz negocial, criado e a desenvolver-se, num contexto económico difícil, passível de suportar a viabilização da empresa, assentando a estabelecida eficácia do acordo, para além da esfera dos que nele intervieram, na aprovação por uma maioria que seja apta a vincular a generalidade dos credores.
Extrai-se do art. 17º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) que esse tipo de processo se destina a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização. Revitalização que passa por uma efectiva negociação das dívidas com os credores de modo a que o devedor consiga recuperar da situação económica difícil em que se encontra. Entendendo-se como situação económica difícil a do devedor que enfrenta dificuldades sérias em cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito por parte das entidades bancárias e financeiras.
O objectivo do legislador, que presidiu à criação deste regime – do PER – foi o de institucionalizar um processo pré-insolvencial, cuja maior vantagem é a possibilidade de qualquer devedor singular, ou pessoa colectiva, poder obter um plano de recuperação sem ser declarado insolvente. Procurou-se, assim, através deste processo, conceder primazia à vontade dos intervenientes (devedor e credores), de modo a propiciar uma revitalização célere e eficaz dos devedores que se encontrem numa situação de “pré-insolvência”, pois só nestas condições existe justificação para se privilegiar o interesse público da manutenção do devedor na circulação e actividade comercial.
A criação de um novo processo – diferente do processo da insolvência – por ser mais expedito e de tramitação simplificada, foi norteada pelo desígnio vertido no seu próprio nome: a revitalização da empresa com dificuldades económico-financeiras, a obter através da negociação com os respectivos credores, tendente a alcançar um acordo que conduza à revitalização do devedor, se esta se mostrar viável e se for esse, igualmente, o interesse dos credores. Finalidade que encontra expressão nas normas que regulam este processo especial. Com efeito, decorre do art. 1.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (=CIRE), na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, que criou o Plano Especial de Revitalização (PER), que o processo de insolvência é um processo de execução universal “que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores”. Mas “estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, o devedor pode requerer ao Tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos arts. 17º-A a 17º-I,” do CIRE – cfr. n.º 2 do art. 1º.
Este procedimento, simplificado, surgiu porquanto o Estado Português, em forte constrangimento económico e financeiro, assumiu, por imposição do Memorando de Entendimento, celebrado com o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, no quadro do programa de auxílio financeiro ao nosso País, o compromisso Europeu de legislar no sentido de introduzir um regime legal de cooperação, flexibilização e reestruturação de créditos, seus e/ou de outros credores. Ou seja, o Estado Português aceitou adoptar, legislativamente, procedimentos flexíveis no ordenamento jurídico Português, no âmbito de créditos dessa natureza, como forma de salvaguarda das empresas, numa comunhão de esforços com os credores particulares, propondo-se alcançar, prima facie, a sua recuperação, que só pode ser obtida, no caso do processo especial em análise, pelo acordo de cada um dos credores do devedor e com todos aqueles que queiram participar. Criando, para tal, um procedimento de facilitação da aprovação de planos de recuperação do devedor.
O objectivo, como ressalta de toda a legislação, é contribuir com sucesso para a recuperação da empresa – se esta se mostrar viável – e visa, conforme se salientou supra, a revitalização dos devedores em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecendo, para o efeito, negociações com os respectivos credores de modo a concluir, com a intervenção destes, acordo conducente à revitalização do devedor, por meio da aprovação de um plano de recuperação.
Plano esse que só não deve merecer a homologação do Tribunal se houver fortes razões que obstem a tal. Mas que uma vez homologado, não pode deixar de produzir os respectivos efeitos.
- E quais são então os seus efeitos processuais?
Entre esses efeitos decorrentes da decisão proferida pelo Tribunal competente e cumpridas as demais formalidades que as normas conjugadas dos arts. 17º-A a 17º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) prevêem, estão os que constam expressamente do art. 17º-E, nº 1, que, por sua vez, estabelece que:
“A decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.
Ora, estes efeitos não se confinam ao processo especial de revitalização. Mas como o próprio normativo consagra, estendem-se “às acções em curso com idêntica finalidade” e a “quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor”.
Resulta, assim, da análise da norma em causa, que os efeitos dessa decisão podem conduzir a uma das seguintes situações:
1.º- Tanto “obstam à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor”;
2.º - Como “suspendem, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade”;
3.º - Ou “extinguem aquelas acções logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação”.
Exceptuando-se, apenas, nessa norma, as situações em que se preveja a sua continuação.
- A jurisprudência dominante adopta o entendimento de que a expressão “acções para cobranças de dívidas” abrange qualquer acção judicial – declarativa ou executiva – que tenha por finalidade obter a condenação do devedor numa prestação pecuniária (cfr. Acs. RL de 21/11/2012 (Proc. Nº 1290/13.4TBCLD.L1-2), de 21/11/2013 (Pº 1290/13.4 TBCLD.L1-2), Ac. RP de 18/12/2013 (Pº 407/12.0 TTBRG.P1 e Pº 7613/12.6 YYPRT.P1), Ac. RC, de 03/03/2015 (Pº 1075/13.8 TBVIS.C1), Ac. RE, de 22/10/2015 (Pº 37.332/13.0 YIPRT.E1) e Ac. RG, de 12711/2015 (Pº nº 146761/13.1 YIPRT-B.G1).
Nos presentes autos, aprovado o PER pelos credores que constituíram o quórum exigido e uma vez homologado, o prosseguimento da presente acção mostra-se incompatível com a natureza deste processo especial (independentemente, de a acção não ter sido suspensa, por apenas em sede de julgamento ter sido dada a conhecer a situação da Ré; acrescentando que a Ré deveria ter informado o Tribunal e a A. da pendência do processo especial de revitalização), que visa precisamente o saneamento financeiro da empresa, por forma a possibilitar a manutenção da actividade que constitui o seu objecto social.
Assim sendo, nos termos do disposto no art. 17º E nº 1 do CIRE, declara-se extinta a presente acção.
Custas em partes iguais (art. 536º nº 1 do CPC).
Registe e notifique.
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Cumpra agora tomar posição relativamente ao pedido reconvencional admitido e deduzido pela aqui A. a fls. 423 ss (do processo nº 248/13.8 TBVNC – em que é Ré).
Ora a Estalagem X invoca a fls. 422 a compensação dos créditos e lança mão do art. 266º nº 2 al. c) do CPC para apresentar o seu pedido reconvencional, ou seja, sustentando que o seu pedido emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção.
A reconvenção ficou condicionada à procedência parcial ou total do pedido principal. A final, a Estalagem requer que se declare parcialmente compensado e na medida do necessário o crédito que detém sobre a A. da acção nº 248/13.8 TBVNC, no valor de 456.710,27 € e ainda nos termos que vierem a ser fixados na presente acção – a 190/13.2 TBVNC.
O Tribunal entende que se aplica aqui o mesmo raciocínio invocado relativamente ao pedido deduzido na AO 190/13.2 TBVNC.
Assim sendo, nos termos do disposto no art. 17º E do CIRE, declara-se também extinto o pedido reconvencional.
Custas em partes iguais (art. 536º nº 1 do CPC).
Registe e notifique.”.
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II-Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida, veio a A./Reconvinte interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

1º - Por douta decisão proferida o tribunal a quo declarou extinta a presente acção declarativa e, ainda, declarou a extinção da reconvenção (pedido reconvencional) deduzida a fls. 423 e sgs (do processo apensado nº248/13.8TBVNC), com fundamento no disposto no art.º 17.º-E, nº1 do CIRE, parte final;
2º - Entende a Apelante que os presentes autos não são subsumíveis à previsão da norma do art.º 17º-E, nº1, do CIRE, porquanto dela não decorre que sejam abarcadas pelo regime da extinção da instância a presente acção declarativa e o pedido reconvencional do apensado;
3º - Constitui controvérsia recorrente na doutrina e na jurisprudência saber se a acção declarativa é susceptível, ou não, de integrar a previsão do art.º 17.º-E, nº1, do CIRE;
4º - “Na previsão da disposição legal do CIRE ora em apreço (artº 17-E, nº1) não cabem as acções declarativas, que o mesmo é dizer, as acções judiciais cujo desiderato essencial dirige-se para a declaração da solução concreta resultante da lei para a situação real exposta pelo requerente (acção que se limita a pronunciar o ius - jus dicere - correspondente à pretensão, ou seja, a declarar a vontade concreta da lei, que não a diligenciar pela execução dessa vontade)”;
5º - Ainda, e numa posição mais ampla, a noção de “acção para cobrança de dívida” vertida na norma legal não abrange todo o tipo de acções declarativas onde o devedor/revitalizado seja pecuniariamente demandado, sob pena de violação do espírito e letra da lei, bem como de criar resultados contrários aos desejados pelo legislador, potenciando o abuso de direito, fraudes e conluio entre os maiores ou mais fortes credores, o devedor e o administrador judicial provisório;
6º - Uma acção para cobrança de dívida não é sinónimo, nem equivale, a uma acção para cumprimento de obrigações pecuniárias;
7º - Numa acção declarativa (de condenação) o Autor é apenas detentor de uma expectativa, titular de um potencial crédito que se poderá ou não concretizar;
8º - O autor de uma acção declarativa que invoque a verificação de um crédito sobre outrem só poderá ser efectivamente declarado credor em caso de a mesma acção ser julgada provada e procedente, sendo necessária a apreciação judicial que visa apurar se o crédito peticionado pelo Autor – um crédito potencial – se trata de um crédito declarado;
9º - A definição da existência de um crédito e do seu real valor em sede declarativa não constitui per si nem permite uma agressão ao património do devedor/revitalizado;
10º - A acção declarativa destina-se, na realidade, a proporcionar ao autor um título executivo que depois possa executar em sede própria, ou seja numa acção executiva que constitui indubitavelmente uma acção para cobrança de dívida. Para o efeito é necessário que o autor veja reconhecido o seu crédito, assegurando a definição dos seus efectivos direitos, bem como o direito de acesso ao tribunal e tutela jurisdicional efectiva previsto no art.º 20º da CRP;
11º- No thema decidendum, deverá ser feita uma interpretação da norma que permita uma solução equilibrada e adequada à protecção de todos os intervenientes, promovendo uma relação de paridade e evitando sacrifícios perversos para o autor de uma acção declarativa a quem assiste o direito à pronúncia substantiva quanto às pretensões que visam ser reconhecidas em juízo;
12º- Só excepcionalmente, nas situações tipicamente enunciadas na lei, poderá o tribunal deixar de conhecer o mérito da causa, optando por uma solução cominatória ou estritamente formalista como foi, in casu, a extinção da instância da presente acção e do pedido reconvencional da apensada;
13º - No caso sub judicie, a admitir-se a aplicação daquele normativo legal (Art.º 17.º-E, nº1, do CIRE) e a douta decisão apelada, com declaração da extinção da presente acção e pedido reconvencional do processo apensado, constituirá clamorosa ofensa ao direito, pois não permite à Apelante o recurso ao tribunal a fim de ver reconhecido o direito que a devedora, requerente do PER, não relacionou nem reconheceu;
14º - O procedimento judicial do PER, cuja iniciativa pertence à devedora – aqui Apelada –, é regido por imperativos de transparência e de boa-fé, princípio que perpassa por todo o processo, com especial acuidade na parte relativa às relações com os seus credores, desde o seu início, impondo a comunicação obrigatória a todos os seus credores, na formulação de comunicação escrita, em correio registado, do início do processo e negociações – cfr. nº1 do art.º17-D do CIRE -;
15º - Na data do início do processo do PER a Ré não podia ignorar, até pelo expressivo valor, a presente acção judicial e a pretensão judicial formulada pela Autora, de sua credora, e o pedido reconvencional formulado, sendo certo que a lei impõe aquela comunicação a todos os seus credores, independentemente da natureza do seu crédito – reconhecido, condicional ou litigioso;
16º - Com a prolação da douta sentença homologatória do PER a devedora/Ré não pode beneficiar daqueles actos praticados, pois a sua actuação, em todo o processo PER e dos presentes autos, são violadores daqueles princípios imperativos de transparência e de boa-fé;
17º - A Ré/devedora não pode beneficiar nos presentes autos dos efeitos previstos nos art.ºs 17º-E e 17º-F, do CIRE, porquanto, a eventual extinção da acção e do pedido reconvencional do apenso pela extensão da decisão homologatória do PER constituirá uma clamorosa ofenda ao direito e à justiça, que os princípios gerais de direito não permitem, quer na vertente do “abuso do direito” - art.º 334º do Código Civil –, como na vertente da “colisão dos direitos” – art.º 335º do Código Civil -, e, ainda, na estrita observância do direito fundamental nas vestes do princípio constitucional consagrado do acesso ao direito e aos tribunais, previstos no nº1 do art.º 20º da CRP;
18º - Decorre da disposição judicial em mérito – artº17-E, nº1, do CIRE – que somente extinguir-se-ão as acções que foram anteriormente declaradas suspensas, pois são “aquelas“, as declaradas suspensas nos próprios autos, que vão ser objeto da declaração de extinção, uma vez que há prévio conhecimento da pendência do PER, bem como no procedimento judicial do PER há conhecimento daquela acção, o que permite a consagração da salvaguarda neste último processo da condição da sua continuação após a aprovação e homologação;
19º - Para que ocorra a declaração da extinção de uma acção em curso, ao abrigo do disposto no nº1 do art.º17º-E do CIRE, é necessário que aquela acção tenha sido previamente declarada suspensa após despacho de nomeação do administrador judicial provisório, o que in casu não ocorreu;
20º - Na pendência do procedimento judicial do PER não foi proferida declaração nos presentes autos daquela declaração da sua suspensão, nem tal será possível, uma vez que o PER se encontra findo, por sentença homologatória já transitada;
21º - Não se encontrando a presente acção suspensa não poderá ser aplicada a última parte do citado preceito legal, uma vez que a declaração da sua extinção só pode ser proferida naquele processo com prévia declaração da sua suspensão;
22º - Este entendimento está conforme a lei e está conforme o elemento lógico daquela disposição legal; a razão da suspensão daquele tipo de acções – cobrança de dívidas – visa tirar pressão ao devedor no decurso do processo de PER, salvaguardando-o, pela suspensão, e a sua ulterior extinção encontra respaldo na oportunidade da salvaguarda dos direitos que a decisão judicial homologatória contemplará em tutela jurisdicional;
23º - Já não colhe igual entendimento a declaração da sua extinção àquelas acções pré-instauradas, não declaradas suspensas, e que não visavam a agressão imediata do património do devedor, pois essas, a ocorrer esse efeito, seriam também suspensas a requerimento do devedor ou do administrador judicial provisório – neste sentido o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22-10-2015, proc.nº1983/14.9T8GMR.G1.-;
24º - A manter-se a douta decisão de extinção da acção e do pedido reconvencional do apenso a Autora/Apelante ficará arredada da tutela jurídica dos seus direitos e de os opor à pretensão da Ré;
25º - Apelante entende que os presentes autos não são subsumíveis à previsão da norma do Art.º 17º-E, nº1 do CIRE porquanto dela não decorre que sejam abarcadas pelo regime da extinção da instância a presente acção declarativa e o pedido reconvencional formulado no apenso;
26º - A prossecução da acção declarativa para tutela efectiva dos direitos por parte da Apelante não resulta prejuízo para a Ré/devedora na execução do plano de recuperação económica homologado ou confere qualquer privilégio a este credor;
27º - A protecção do devedor, após a homologação judicial do plano, não se alcança e não será feita pela extinção das acções para cobrança de dívidas - anteriormente suspensas ou as pendentes – que já existiam à data da prolação do despacho de nomeação do administrador judicial –, mas pela aplicação a todos os credores do comando do Art.º 17º-F, nº6, do CIRE;
28º - Deverá ser revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo por errada interpretação e aplicação do Art.º 17º-E, nº1, do CIRE;
NESTES TERMOS, deverá ser julgada a apelação, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos– acção principal e pedido reconvencional do apenso-, farão V. Exªs, Senhores DESEMBARGADORES, a habitual JUSTIÇA!

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A Ré/Reconvinda veio apresentar as suas contra alegações pedindo que o recurso apresentado seja declarado improcedente e em consequência, a decisão proferida pelo Tribunal da Primeira Instância confirmada com as demais consequências legais.

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O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

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Foram colhidos os vistos legais.


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III - Fundamentação de facto:

- os factos supra enunciados.
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IV- O Direito

Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2, 635º., nº. 4, 639º., n.os 1 a 3, 641º., nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.

Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre apreciar e decidir se a acção/reconvenção deve ser ou não declarada extinta, in totum, por inutilidade superveniente da lide, por força do disposto no art. 17º-E, nº 1, do CIRE.


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Vejamos.

O processo especial de revitalização é um processo com uma natureza híbrida, misto de negociação extrajudicial e aprovação judicialmente homologada. Destina-se a permitir ao devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas ainda susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização. É pois um processo negocial, tendente à obtenção de um acordo que conduza à revitalização do devedor que decorre, essencialmente, entre o devedor e os seus credores, com intervenção de um administrador judicial provisório nomeado pelo Tribunal.
Esse processo especial de revitalização inicia-se pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, através de declaração escrita, iniciarem negociações conducentes à sua revitalização por meio da aprovação de um plano de recuperação (artº 17º-C, nº 1).
Para esse efeito, deve o devedor comunicar, em tempo, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração inicial que iniciou as negociações para a sua revitalização, convidando-os a participar nelas (artº 17.º-D, nº 1).
De qualquer das formas, há que ter em conta que a decisão que o legislador exige do julgador é apenas aquela que permita saber se determinado plano está ou não aprovado e se determinado acordo deve ou não ser homologado.
Assim sendo, essa decisão não determina o valor dos créditos a pagar (isso é o plano ou acordo que têm que fazer) e não declara a existência/inexistência de qualquer crédito.
Com efeito, a lista de créditos no âmbito do PER tem como única e exclusiva finalidade permitir a identificação dos credores com direito de voto bem como o número de votos que a cada um corresponde em sede de votação do Plano de Recuperação, no que se consubstancia o seu objecto que se prende com a pretendida aprovação de Plano de Recuperação. Para além da dita funcionalidade, não cabe no objecto do PER a apreciação e composição definitiva do litígio que subsista relativamente a cada crédito (entre o titular que a ele se arroga e o devedor ou entre credores), contrariamente ao que sucede no âmbito do processo de insolvência, em que a lista de créditos provisória se converte em lista de créditos definitiva sem intermediação de qualquer acto/decisão judicial, pois que aquela lista não é objecto de uma qualquer sentença homologatória.
Por outro, o facto é que o art. 17º-F n.º 10 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estatui expressamente que a decisão do juiz (de homologação), vincula os credores, mesmo que não hajam participado das negociações, sem qualquer distinção de se não o fizeram porque não quiseram ou de se não o fizeram porque a tanto não foram chamados ou admitidos.
De qualquer das formas, como resulta do disposto no art. 17.º_D, n.º 2, do CIRE, qualquer credor, no prazo de 20 dias, contados da publicação no portal citius do despacho a que se alude na al. a), do n.º 3, do artigo anterior, pode reclamar créditos, tal como pode alegar nos autos o que tiver por conveniente quanto a determinadas circunstâncias susceptíveis de levar à não homologação desse plano (cfr. art. 17.º-F, n.ºs 2 e 3).
Contudo, sem prejuízo dessa actuação, sempre a empresa, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquela ser uma pessoa colectiva, serão solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorrecção das comunicações ou informações a estes prestadas, correndo autonomamente ao presente processo a acção intentada para apurar as aludidas responsabilidades (cfr. art. 17.º-D, n.º 11).

Assim, posto isto, importa, então, agora, atentar no que se dispõe no art. 17.º-E, n.º 1, do CIRE, por forma a apurar se o presente caso se enquadra, ou não, na sua previsão.
Ora, como aí se refere, quanto aos efeitos processuais da decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artº 17.º-C, esta “ obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.
Referente a esta questão objecto do presente recurso, a doutrina e a jurisprudência nacionais continuam divididas, defendendo, em síntese, uns que os efeitos enunciados no referido diploma não se aplicam às acções declarativas, enquanto outros entendem que igualmente abrangem tais acções.
Concretamente, na doutrina, Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis consideram que a “expressão acções para cobrança de dívidas a que se refere o artigo 17.º-E, n.º 1, abrange apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa (e as demais execuções sempre e quando se verifique a conversão das mesmas nos termos previstos no artigo 867.º ou 869.º do Código de Processo Civil) e os procedimentos cautelares antecipatórios das acções que deveriam ser suspensas ao abrigo do citado normativo legal. Encontram-se excluídas, pois, do âmbito de aplicação do nº 1 do artigo 17.º-E, as acções declarativas, as acções executivas para entrega de coisa certa, as acções executivas para prestação de facto e a generalidade dos procedimentos cautelares”. No entendimento destes autores, “a expressão utilizada – cobrança de dívidas – remete-nos imediatamente para uma acção destinada a obter o pagamento coercivo duma quantia pecuniária. Aliás, a expressão cobrança de dívidas é habitualmente utilizada ou encontra-se associada à realização coactiva de uma prestação em dinheiro”. E acrescentam que a diferente redacção utilizada nos artigos 17º-E e 88º do CIRE (mais restritiva no primeiro caso), leva a concluir que se pretendeu limitar a aplicação da norma aqui em apreço às acções executivas para cobrança de dívida, deixando de fora as acções declarativas, até porque “apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa podem ser consideradas como verdadeiras acções para cobrança de dívida para os efeitos do artº 17º-E, nº 1” (PER, o Processo Especial de Revitalização”, Coimbra Editora, 2014, pags 97 e sgs).
Em sentido diverso, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda entendem que “o despacho em questão obsta à instauração de quaisquer novas acções dirigidas à cobrança de dívidas pelas quais responde o devedor; além disso, importa a suspensão das que estiverem em curso com idêntica finalidade, incluindo os processos em que tenha já sido proferida sentença declaratória. Apesar das similitudes com as soluções do artigo 88.º, n.º 1, são manifestas, várias e significativas as diferenças, para que importa advertir”. E mais à frente: “... diferentemente do que ocorre em sede de processo de insolvência, a paralisação aqui determinada deve abranger todas as acções para cobrança de dívidas e não apenas as executivas, incluindo-se, assim, as acções declarativas condenatórias. Mas comunga com ele o facto de se abrangerem também acções com processo especial e procedimentos cautelares”(CIRE Anotado, 2ª edição, Lisboa, 2013, página 164).
A razão para tal extrai-se ainda da explanação de outros Autores, v.g. Madalena Perestrelo de Oliveira, in RDS, IV, 2012, 3, pg.718 e segs., ‘Processo Especial de Revitalização: O Novo CIRE’, quando nos alertam para o seguinte:
O objectivo deste processo é “facultar ao devedor o espaço necessário para levar a cabo a recuperação, com a consequente proibição da prossecução de outras acções, até das próprias acções executivas, como forma de protecção do devedor que fica com a faculdade de tentar a recuperação da empresa, liberto de todas as tentativas de os credores se fazerem pagar e da pressão do mercado que os levou até aquela situação económica depauperada e de insolvibilidade”.
Já na jurisprudência, é amplamente dominante o entendimento de que a expressão “acções para cobranças de dívidas” abrange qualquer acção judicial – declarativa ou executiva – destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito resultante da actividade económica do devedor e que, por isso, contenda com o seu património – cfr. neste sentido aponta-se o Ac. do STJ, publicado na dgsi, com o n.º 172724/12.6YIPRT.L.S1, entre muitos outros aí citados.
Aí se aponta, para se manter esse entendimento maioritário, o objectivo fundamental que subjaz ao PER, de possibilitar a recuperação económica do devedor cuja finalidade ficaria seriamente comprometida se qualquer credor pudesse continuar a exigir judicialmente os seus créditos, bem como o facto de não ser permitido ao intérprete distinguir onde o legislador não procedeu a qualquer distinção, contra as regras fundamentais da interpretação das leis contidas no artº 9º, nºs 1 a 3, do CC, sem um mínimo de ressonância na letra da lei.
Aliás, outro dos argumentos avançados prende-se com o facto do preceito mencionar, na segunda parte, em ‘acções com idêntica finalidade’ sem se referir à espécie de acção, mas à sua finalidade concreta, de ‘cobrança de dívidas’.
Sufragando este mesmo entendimento escreveu-se no Ac. do STJ, publicado também na dgsi, com o n.º 43/13.4TTPRT.P1.S1, de 17-11-2016, que os efeitos decretados não se confinam ao processo especial de revitalização, mas como o próprio normativo consagra, estendem-se “às acções em curso com idêntica finalidade” e a “quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor”.
Assim, acrescenta-se que, da análise da norma em causa, os efeitos dessa decisão podem conduzir a uma das seguintes situações:
1.º- Tanto “obstam à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor”;
2.º - Como “suspendem, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade”;
3.º - Ou “extinguem aquelas acções logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação”.
Exceptuando-se, apenas, nessa norma, as situações em que se preveja a sua continuação.
No sentido apontado, defende-se também no Ac. STJ, com o n.º 1839/15.8T8STR.E1.S1, de 27-4-2017, que ‘O PER é um processo de natureza eminentemente urgente, de prazos procedimentais curtos, durante os quais os credores concedem ao devedor um período global de «tréguas», o chamado «standstill», auto-impedindo-se de instaurarem e/ou fazerem prosseguir quaisquer acções, declarativas e/ou executivas, para cobrança de dividas contra aquele, em que o tempo para a sua finalização é categórico, o que deflui da tramitação restritiva a que alude o normativo inserto no artigo 17.º-D do C.I.R.E., maxime, os segmentos normativos constantes dos seus n.ºs 2 e 5.
Nestes termos e perante a jurisprudência maioritária que impera, cujos argumentos aqui se sufragam, por com eles concordarmos, sem que, como tal, se considere violados quaisquer dos princípios ou direitos que a recorrente entende, por via desse entendimento, serem postos em causa, tendo em conta os objectivos do PER, e respectivas faculdades e garantias dadas para o caso de serem violadas as mencionadas regras procedimentais, tem de improceder o recurso.

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V - DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão proferida.
Custas do recurso pela recorrente.
Notifique.
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TRG, 9.11.2017

(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)


Maria dos Anjos S. Melo Nogueira

Desembargador José Carlos Dias Cravo

Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida