Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
137/21.2T8VCT.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRESUNÇÃO
DECLARAÇÕES DE PARTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I O artº. 421º, nº. 1, do C.P.C., reporta-se ao aproveitamento do meio de prova produzido num processo (caso das declarações de parte, cuja reprodução tem de ser junta ao processo em que se quer invocar), o que não se verifica com a pretendida junção de um documento –sentença e acórdão que sobre o mesmo recaiu- em que foi valorado aquele meio de prova.
II Em sede de meios de prova sujeitos á livre apreciação do julgador essa junção mostra-se inútil porque aquela apreciação não o vincula.
III O facto de não ser admissível a prova do contrato de mútuo –válido- para o qual a lei exija documento autêntico ou particular que não existe, através de testemunhas, presunção judicial, ou declarações de parte, não impede que se prove por essas vias o acordo em si mesmo, sendo causa de pedir a produção das declarações não formalizada (rectius, a nulidade).
IV Situação diferente é verificar se as declarações de parte, meio de prova livre, em conjugação com os restantes meios de prova, sustentam o facto relativo ao empréstimo.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (seguindo de perto o elaborado na 1ª instância).

J. F. intentou contra M. C. e A. C., melhor identificados nos autos, a presente ação declarativa condenatória, com processo comum, peticionando, a final, que se declare nulo o contrato de mútuo referenciado na petição inicial e se condene ambos os Réus, solidariamente, a entregar ao Autor a quantia de € 5.063,31, acrescida de juros de mora à taxa de 4% a contar da citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que emprestou ao Réu A. C. a quantia de € 10.063,31, destinada ao pagamento de uma dívida que lhe estava a ser executada, tendo a Ré M. C. se assumido como fiadora e principal pagadora no cumprimento da obrigação de restituir aquele montante. O Réu A. C. obrigou-se a restituir o referido montante até ao final do mês de outubro de 2020. Em novembro de 2019, O Réu A. C. transferiu para a conta do Autor a quantia de € 5.000,00, estão, ainda, em dívida a quantia de € 5.063,31.
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Citados os Réus, contestaram, defendendo-se por impugnação.
Alegam, em síntese, que não solicitaram ao Autor o referido empréstimo.
Alegaram que a Ré M. C. entregou em dinheiro ao Réu A. C. € 10.000,00 para proceder ao pagamento da dívida exequenda, que este levou consigo para Braga para pagar à Agente de Execução. De caminho telefonou à sua mãe para lhe comunicar que iria fazer o pagamento à Agente de Execução em dinheiro. Nesse momento, o Autor encontrava-se junto à Ré e logo se voluntariou para fazer a transferência por considerar ser um absurdo efectuar o pagamento em dinheiro. Foi neste contexto que o Autor fez a transferência, tendo-lhe sido restituídos em dinheiro os € 10.000,00.
Mais, alegam que o dinheiro que a Ré M. C. entregou ao Réu A. C. era dinheiro acumulado ao longo da sua vida de trabalho, e já existente à data da celebração do casamento com o Autor.
A transferência de € 5.000,00 foi feita para a conta do então casal (Autor e Ré) para ressarcir a sua mãe, em parte, do dinheiro que esta lhe emprestou.
Mais, invocaram a excepção de erro na forma de processo alegando, em suma, que o crédito em causa a existir é um crédito de natureza comum, pertencente ao património do extinto casal que foi formado pelo Autor e Ré M. C.. Acontece que, a discussão em torno do modo como há-de ser liquidado o referido crédito entre os cônjuges deve ter lugar no momento da partilha, por via do processo de inventário e não do presente processo.
Face ás exceções arguidas, pediram a absolvição da instância.
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Notificado o Autor, respondeu, além do mais pugnando pela improcedência da excepção dilatória invocada.
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Dispensou-se a realização da audiência prévia. Fixou-se o valor da ação em € 5.063,31.
Foi proferido despacho saneador, que julgou a excepção invocada de erro na forma de processo improcedente. De seguida, dispensou-se a prolação do despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, designando-se, de imediato, audiência final.
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Realizada a audiência final foi proferida sentença que decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência declarou nulo, por vício de forma, o contrato de mútuo, em apreço nos autos, e condenou o Réu A. C. a pagar ao Autor a quantia de € 5.063,31, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, de 4% a contar da citação até efectivo e integral pagamento; absolveu do pedido a Ré M. C.. Mais atribuiu as custas ao Réu A. C..
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Inconformado, veio o R. A. C. apresentar recurso, apresentando alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que aqui se reproduzem)

“A. O ponto f) dos factos dados como provados não deveria ter sido dado como provado;
B. O Tribunal a quo considerou que as únicas testemunhas do autor, V. M. e V. R., não tiveram conhecimento presencial dos factos, acabando por desvalorizar os seus depoimentos;14
C. Quanto às declarações de parte do autor, considerou o Tribunal recorrido que, de facto, existe ainda antagonismo acerbo com a sua ex-mulher, mãe do ora recorrente, mas, mesmo assim, não deixou de considerá-las para efeito de sustentação da causa de pedir, o que não pode suceder, pois, D. Na realidade, as declarações de parte são um verdadeiro testemunho de parte, devendo ser-lhe aplicadas, analogicamente, as restrições que são processualmente impostas à prova testemunhal e à prova por presunção;
E. Por esse motivo, as declarações de parte do recorrido nem sequer podem ser consideradas para efeito de valoração do Tribunal, atento o disposto – aqui aplicável por analogia – nos artigos 393.º, n.º 1, 351.º e 364.º, n.º 1, todos do Código Civil,
F. pelo que violou o Tribunal recorrido tais preceitos de direito probatório substantivo, uma vez que não se poderia, in casu, provar-se a celebração de um mútuo nulo por vício de forma (atento o montante da quantia transferida – cf. artigo 1143.º do Código Civil), através de prova por presunção (não olvidemos que o Tribunal recorreu às máximas das regras da experiência comum para forcejar a sua convicção), ou mediante a prova por declarações de parte prestadas pelo recorrido;
G. Os documentos n.ºs 1 a 6 juntos à petição inicial foram desvalorizados/omitidos pelo Tribunal a quo na sua motivação, constituindo elementos e serem levados em apreço como sustentação de contra-indícios em relação aos indícios assacados a partir dos documentos valorados na decisão, para alicerçar o juízo inferencial da ocorrência do empréstimo alegadamente feito pelo autor recorrido, ao recorrente, sendo que os mesmos (entenda-se, docs. 1 a 6 juntos à contestação), impunham que não se tivesse dado como provado o ponto f) do elenco de factos provados na sentença, devendo o mesmo ser trasladado para o elenco de factos não provados;
H. Tais documentos são demonstrativos da capacidade financeira da ré M. C., para poder emprestar a quantia aludida no artigo 13.º, ao seu filho, ora recorrente, assim dando guarida à tese espelhada na contestação.
I. Para o recorrente era indiferente a conta de destino da transferência aludida no artigo 15.º da petição inicial. O autor encontrava-se casado com a ré. Daí resultar indiferente, para o recorrente, qual a conta para onde seria operada a transferência. Entre casados, presumiu o recorrente que, de mútuo acordo, marido e mulher fariam do dinheiro o que bem entendessem;
J. Os documentos juntos à contestação não são factos, mas meros meios de prova de factos alegados e controvertidos, não provando, por isso, que houve um qualquer acordo de pedido de empréstimo celebrado entre recorrido e recorrente;15
K. Do mesmo modo, os documentos juntos pelo recorrido posteriormente à contestação não provam que, a partir da sua conta bancária, tenha sido transferido dinheiro que faça parte do seu património próprio, que não comum dos cônjuges;
L. O facto de ter havido uma transferência destinada ao agente de execução de banda do recorrido, com uma subsequente devolução de metade do valor então inicialmente transferido, por parte do recorrente, são factos instrumentais que podem indiciar a existência de um empréstimo, mas dos mesmos não se extrai, com mediana segurança, que tal tenha ocorrido a solicitação expressa do recorrente, perante o autor;
M. Compulsada a causa de pedir balizada pela petição inicial, em lado nenhum afirma o autor ter emprestado dinheiros seus;
N. Quer pelos factos essenciais ou meramente instrumentais lavrados na petição que constituem a enformação da causa de pedir, inexiste qualquer referência a que a quantia transferida para a agente de execução proviesse do património próprio do autor;
O. Como corolário, é incorrecto afirmar-se que o recorrido seja credor da quantia reclamada no presente processo, sendo que a quantia aludida no artigo 13.º da petição inicial, tendo sido movimentada a partir da conta do autor, deverá ser considerada um crédito comum do casal,
P. pois, a transferência ocorreu numa altura em que o autor e a ré M. C. se encontravam casados, de sorte que o accionamento da presunção prevista no artigo 1725.º do Código Civil (normativo que assim foi violado pelo Tribunal a quo), ficciona, ope legis, a consideração desse montante como valor pertencente ao património comum dos ex-cônjuges ainda não dissolvido, uma vez que não foi ilidida tal presunção de comunhão, com a instrução e julgamento da causa,
Q. pelo que o recorrido, desacompanhado da ré no presente processo para exigir o pagamento dessa quantia, torna-se, pura e simplesmente, parte ilegítima nestes autos, sendo esta uma excepção dilatória que aqui se argúi - cfr. art.º 576º, n.º 1 e 2, 577º, al. e) e 578º todos do CPC - o que se requer que seja reconhecido e declarado para todos os efeitos legais.”
Pede por isso que o recurso obtenha provimento total, revogando-se a sentença recorrida, a qual deverá ser anulada, no mais se decidindo pela absolvição do recorrente.”
*
Foram apresentadas contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que aqui se reproduzem):

“• Primórdios:
I. Interpôs o aqui Apelante A. C., Recurso de Apelação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, alegando, em suma, que as declarações de parte do Autor não se afiguram credíveis, atendendo ao que veio a ser considerado no processo n.º 246/21.8T8VCT.G1, não podendo, inclusive, ser consideradas para efeitos probatórios, nos termos do disposto nos artigos 393.º n.º 1, 351.º e 364.º n.º 1 do Código Civil; no contexto da prova produzida, nenhuma vontade expressa ou indiciária da celebração de um mútuo resultou demonstrada, sendo que não deveria ter sido dado como provado o facto f) do elenco de factos provados na sentença; inexiste qualquer referência a que a quantia transferida para a agente de execução proviesse do património próprio do autor, pelo que deveria funcionar a presunção de bem comum dos cônjuges; o acervo patrimonial comum conjugal ainda não se encontra balizado, sendo que a quantia reclamada constitui um crédito comum do casal; verifica-se uma exceção dilatória de ilegitimidade ativa não arguida em sede de contestação, de conhecimento oficioso, devendo ocorrer a absolvição da instância.
II. Salvo devido respeito, que é muito, por douto e superior entendimento, não podemos concordar com o entendimento propalado pelo Recorrente, motivo pelo qual apresentamos as presentes contra-alegações/resposta ao recurso, estando certos de que Vossas Excelências, subsumindo a factualidade resultante dos autos ao disposto nas normas jurídicas aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de confirmar a decisão ínsita na sentença proferida pela Mma. Juiz a quo.
Perscrutemos,
Primus,
Da junção de documentos operada:
III. Requereu o Réu que fosse carreado aos autos o Acórdão proferido no processo que sob o n.º 246/21.8T8VCT.G1 correu os seus termos no douto Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos dos artigos 651.º, 425.º e 421.º do CPC.
IV. In casu, não se verifica qualquer valor extraprocessual das provas porquanto não pretendeu o Réu inculcar no processo qualquer prova, mas apenas colocar em causa a credibilidade das declarações do Autor, juntando, para o efeito, uma outra decisão onde o Apelante não era parte, e na qual a Juiz valorou as declarações de parte do Autor de uma forma distinta da Mma. Juiz a quo.
V. As considerações em torno da prova produzida, apreendida num outro processo, não se afiguram verdadeira prova, porquanto não têm em si mesmo qualquer valor probatório, apenas expressando a formação da convicção do julgador em determinado processo e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
VI. Outrossim, e atendendo ao princípio da imediação e da oralidade, não se afigura admissível ou de qualquer relevo probatório a junção de documentos operada, porquanto não se afigura verdadeiramente necessária em virtude do julgamento operado em Primeira Instância, nem se afigura verdadeiro meio de prova mas apenas um juízo de valor/consideração sobre prova produzida em processo diverso, pelo que, deverá ser judiciada inadmissível a junção de documentos operada.
Não obstante, e ainda que assim não se entenda,
Secundus,
Da admissibilidade das declarações de parte e sua valoração:
VII. Não assiste razão ao Apelante quando considera que as declarações de parte não poderão ser admissíveis devendo ser aplicadas, analogicamente, as restrições que são processualmente impostas à prova testemunhal e à prova por presunção pois que, de acordo com o entendimento preconizado pelo douto Tribunal da Relação de Guimarães no Acórdão de 20-02-2020, pela relatora Sandra Melo, “1-As restrições à prova por confissão ficta relativamente aos factos que só documentalmente podem ser provados, previstas nos artigos 364º do Código Civil e 568º, alínea d) do Código Civil, não se aplicam à prova de contratos nulos por falta de forma, porquanto nestes caso não se pretende demonstrar que ocorreu uma declaração negocial qua tale, não se pondo em causa a finalidade pretendida com tais limitações legais. 2- Com a proibição da valoração desse tipo de prova, bem como a prova testemunhal, para considerar a declaração negocial, quando por disposição da lei ou estipulação das partes, a mesma houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, pretende-se salvaguardar o valor que a lei e as partes pretenderam conferir aos documentos, não permitindo que estas, mediante o recurso a um meio de prova menos confiável, contornem tais exigências, o que não ocorre quando se pretende obter a declaração de nulidade de um contrato por inobservância da forma escrita.”.
VIII. Atendendo a que, in casu, a declaração de nulidade do contrato advém de inobservância de forma escrita, não pretendendo demonstrar que ocorreu uma declaração negocial qua tale, nem se pondo em causa a finalidade pretendida com tais limitações legais, a relevância e admissibilidade probatória das declarações de parte não poderá ser posta em causa.
E ainda que assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe,
IX. De acordo com a sapiência propalada pelo Tribunal da Relação do Porto de 25-02-2021, pela relatora Judite Pires, à qual aderimos na íntegra, “I- Se a análise das circunstâncias do caso concreto tornar verosímil a existência da convenção das partes, contrária ou adicional ao conteúdo de documento autêntico, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores, poderá ser admissível a prova testemunhal acerca desta; II- Em tal hipótese, o recurso às testemunhas já não apresenta os perigos a que os artigos 394.º e 395.º Código Civil visam obstar, porquanto o juízo do tribunal se apoiará, nestas circunstâncias, não apenas nos depoimentos testemunhais, mas também nas circunstâncias objectivas que tornem verosímil a convenção: estas circunstâncias servem de base inicial à formação da convicção do tribunal, e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado dessas circunstâncias. III- Assim, se o facto a provar já está tornado verosímil por um começo de prova escrito, a prova por testemunhas é de admitir.”.
X. Atendendo às circunstâncias do caso sub judice, mormente a que, resulta indiciado dos documentos carreados ao processo, nomeadamente dos documentos 1 a 4 da petição inicial e, bem assim, da própria posição dos Réus exarada em sede de contestação e na audiência de julgamento, que o empréstimo tenha ocorrido, a valoração das declarações de parte relevará apenas para esclarecimento dessas circunstâncias, uma vez que existe já um indício de prova escrito que torna verosímil a existência de um contrato de mútuo, ainda que nulo por falta de forma.
XI. Outrossim, não se verifica o perigo a que as disposições constantes dos artigos 394.º e 395.º do Código Civil pretendem obstar, pelo que deverão as declarações de parte ser atendidas para todos os efeitos jurídico-probatórios, nada havendo a assacar à decisão a quo.
Tertius,
Da matéria de facto impugnada e da ampliação do âmbito do recurso:
XII. Novamente, e no que à matéria de facto impugnada concerne, designadamente o facto f) dos factos provados, consideramos não assistir razão ao Apelante.
XIII. Existem meios de prova não concretamente alegados em sede de alegações de recurso e/ou não contemplados na decisão proferida que necessariamente farão cair a pretensão do Apelante, sendo que, caso Vossas Excelências entendam por necessário para o conhecimento dos mesmos a ampliação do âmbito do recurso, e por mera questão de cautela, desde já se requer tal ampliação, nos termos do artigo 636.º do CPC.
Outrossim,
XIV. A prova documental, bem como a posição adotada pelos ali Réus que reforçaram que a quantia foi transferida na sua totalidade pelo ali Autor para a conta bancária da Ex.ª Sr.ª Agente de Execução, indicada pelo Réu A. C., confirma parcialmente a tese aventada pelo Autor.
XV. De facto, o documento carreado com o Requerimento de 07-01-2022, com a ref.ª eletrónica citius 3428577, comprova que a conta de onde foi movimentado a débito o montante de € 10.063,31, é uma conta individual do Autor.
XVI. Da análise do documento aportado como Doc. 1 da petição inicial, resulta que o Réu A. C. enviou um e-mail ao aqui Apelado, por mote próprio, em 16 de Abril de 2019, na véspera da transferência da quantia de 10.063,31 € realizada pelo ali Autor para a Ex.ª Sr.ª Agente de Execução, a indicar o IBAN para o qual deveria ser realizada tal transferência.
XVII. Devidamente compulsados tais documentos, outra não poderá ser a conclusão senão a de que existem indícios da vontade do Réu em que o Autor procedesse à transferência da aludida quantia, consubstanciando um empréstimo.
XVIII. Devidamente compulsado o Doc. 4 da petição inicial, resulta, de igual forma, que o Réu tinha plena consciência da sua obrigação de restituição, tendo procedido ao pagamento de metade da quantia mutuada, para uma conta própria do Autor que não corresponde à conta própria a partir da qual foi inicialmente realizada a transferência dos 10.063,31 €.
XIX. Conjugando a prova documental produzida com as regras da experiência comum e os padrões de normalidade social, afigura-se notório que o Réu A. C. quis que lhe fosse emprestada tal quantia, não a tendo, no entanto, restituído na íntegra, não podendo colher a fábula de que procedeu ao pagamento de metade da quantia mutuada para uma conta que julgava ser da sua mãe, pois que a transferência foi realizada para uma conta distinta daquela a partir do qual o Autor realizou a transferência para a Ex.ª Sr.ª Agente de Execução, sendo ambas da titularidade única do Autor e aqui Apelado (vide documentos 1 a 4 da petição inicial e documento 1 carreado com o requerimento de 07-01-2022).
XX. Assim, dúvidas não quedam de que, com vista ao pagamento da dívida do Réu A. C., o Autor emprestou-lhe a quantia de € 10.063,61, quantia que lhe entregou, através de transferência bancária para a conta que o Réu A. C. lhe indicou (PT .................05).
XXI. Pelo que, bem andou a Mma. Juiz a quo na douta decisão proferida, inexistindo qualquer insuficiência probatória nesse sentido.
Ademais, e ainda que assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe,
XXII. Não obstante a Mma. Juiz a quo não ter contemplado o depoimento da testemunha V. R. e ter considerado que a mesma não presenciou o empréstimo nem qualquer outra situação que estivesse relacionado com ele (posição com a qual discordamos) certo é que, no seu depoimento, alegou a testemunha, com grau de credibilidade e precisão, ter visto, aquando da organização da documentação do Autor, uma mensagem da Ré M. C., remetida em Novembro de 2019 ao Autor, solicitando que informasse o IBAN para o qual o Réu A. C. deveria proceder ao pagamento de uma parte do valor, o que este logrou fazer, por intermédio da sua companheira, naquele mesmo dia (cfr. ata de audiência de discussão e julgamento de 10-01-2022, pelas 10h27, mormente o período compreendido entre 03:07 e 04:05).
XXIII. A existência da referida mensagem havia já sido alegada pelo Autor em sede de declarações de parte (cfr. ata de audiência de discussão e julgamento de 10-01-2022, com início pelas 09h58, mormente o período compreendido entre 04:47 e 07:01), o que viria a despoletar um requerimento na sequência das declarações, para junção da prova documental em sede de audiência relativamente a tal mensagem, cuja junção não foi deferida (cfr. ata de audiência de discussão e julgamento de 10-01-2022, entre as 10:09:07 e as 10:10:19).
XXIV. Pelo que, em todo o caso, e a considerar-se insuficiente a prova produzida para o ponto f) dos factos provados e para os indícios da vontade do Réu A. C. em obter o empréstimo, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, sempre se deverá ter em conta as declarações de parte do Autor corroboradas pelo depoimento da testemunha V. R., no que concerne ao pedido de IBAN para pagamento da quantia mutuada, o que indicia a existência do empréstimo ao Réu A. C..
Ainda,
XXV. Na posição exarada em sede de contestação, alegaram os Réus que “Posteriormente, e como expectável, o réu A. C. entregou o maço de notas de dez mil euros que levava consigo à sua mãe, e esta, por seu turno, entregou-o ao autor, o que sucedeu tudo ainda naquele dia de 16 de Abril de 2019.”, alegação que, em si mesma, a confissão expressa da existência de um empréstimo, com a inerente obrigação de restituição, nos termos do artigo 574.º n.º 2 do CPC.
XXVI. A tese aventada pelos Réus acabou por reforçar a verificação de um mútuo, com todos os seus elementos constitutivos: a existência de empréstimo de dinheiro ou outra coisa fungível por uma das partes, devendo a parte entregar outro tanto da mesma espécie, nos termos do artigo 1142.º do CC.
XXVII. Assim sendo, e tendo sido confessada a existência de um mútuo, sob os Réus impendia o ónus de provar que procederam à entrega da totalidade da quantia mutuada nos termos do artigo 342.º do Código Civil, o que não lograram fazer.
De facto,
XXVIII. Primou a defesa do aqui Apelante por alegações despiciendas, não carreando ao processo qualquer meio de prova que permitisse sustentar a sua versão, não podendo colher a sua pretensão.
No mais,
Quartus,
Do alegado crédito comum do casal e da exceção dilatória de ilegitimidade:
XXIX. Quer mediante alegação de tais factos em sede de resposta à contestação, quer mediante comprovação em sede de instrução da causa em audiência de discussão e julgamento, resultou evidenciado que o ali Autor e aqui Apelado recorreu a fundos próprios, -ora por se tratarem de fundos que já detinha à celebração do casamento, ora por se tratar de fundos adquiridos por virtude de direito próprio anterior ao matrimónio (artigo 1722.º n.º 1 a) e c) do CC)-, e à conta bancária da sua única titularidade e apenas por si aprovisionada, para realizar a transferência da quantia mutuada ao ali Réu e aqui Apelante A. C..
XXX. Dessarte, se apenas o Autor e aqui Apelado procedeu à transferência da quantia mutuada, e não olvidando que os próprios Réus alegaram que a Ré M. C. devolveu na íntegra tal quantia no próprio dia (e não apenas metade, o que seria expectável se o crédito fosse de ambos), carece de qualquer sustentação fáctica ou jurídica a alegação da verificação de um crédito comum do casal.
XXXI. Ademais, e no que à exceção dilatória de ilegitimidade concerne, a mesma deveria ter sido alegada em sede de contestação, conforme comanda o disposto nos artigos 573.º n.º 1 e n.º 2 do CPC.
XXXII. E ainda que assim não se entendesse, cumpre salientar que a legitimidade se afere, nos termos do disposto no artigo 30.º do CPC, de acordo com a relação jurídica controvertida pelo Autor.- veja-se, a este propósito, o entendimento preconizado pelo Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 04-10-2021 pela relatora Eugénia Cunha ”I- Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.”.
XXXIII. Em sede de petição inicial alegou o Autor que emprestou ao Réu A. C. a quantia de 10.063,31 €, a pedido do Réu A. C. e da Ré M. C., tendo esta última se constituído fiadora, pelo que, atendendo à relação material controvertida inexiste qualquer ilegitimidade processual ou exceção dilatória, carecendo de qualquer cabimento jurídico ou factual a alegação expendida pelo Apelante, devendo improceder in totum.
Alfim,
XXXIV. Atento o supra exposto, não merece qualquer censura a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, devendo ser confirmada, com as necessárias consequências legais, ou, caso assim não se entenda, devendo ser confirmada de acordo com os elementos probatórios supra referenciados e não devidamente contemplados.”
Pede o A. que se admita a resposta às alegações, com ampliação do âmbito do recurso caso necessário, o qual deve ser julgado procedente e mantida a decisão a quo, condenando o Apelante nos termos exarados em sede de petição inicial.
***
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:

-questão prévia: admissibilidade da junção de documentos;
-a factualidade mencionada em f) dos factos provados é suscetível de se fundar em prova por presunção e por declarações de parte;
-estes dois meios de prova sustentam o facto, ou pelo contrário deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto que consta da alínea f) dos factos provados em sentido inverso;
-sendo procedente a alteração, deve ser alterada a decisão, julgando antes totalmente improcedente a ação.

De frisar que a referência do recorrido ao artº. 636º do C.P.C. no sentido de requerer a ampliação do objeto do recurso (figura que respeitaria ao não acolhimento de fundamento alegado na ação que se pretendesse ver reapreciado, ou à impugnação de outra matéria de facto) afigura-se errada, uma vez que o que o recorrido pretende é que o tribunal de recurso atenda a toda a prova produzida e não apenas à mencionada nas alegações de recurso e na sentença, o que por oficiosidade se impõe.
*
III QUESTÃO PRÉVIA.

Da admissibilidade de junção de documento com as alegações de recurso.
Antecipando uma reclamação para a conferência da decisão do relator, tratamos da mesma em sede de acórdão por um princípio de economia processual.
Com as alegações de recurso, veio o recorrente juntar a sentença, o acórdão que sobre a mesma incidiu e a sua notificação ao mesmo, relativamente ao processo nº. 246/21.8T8VCT, sendo o acórdão posterior ao encerramento da audiência em 1ª instância, pretendendo com isso demonstrar a fragilidade das declarações de parte prestadas pelo A.. Este processo decorreu entre o A. e “M. C. Unipessoal, Lda.”.
A R. opôs-se á junção.
*
Diz o artº. 651º nº. 1 do C.P.C. que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.”
O artº. 425º do C.P.C., diz que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”, norma esta excecional, semelhante à prevista no nº. 3 do artº. 423º do C.P.C., no que se reporta à fase de junção de documentos em sede de aferição da prova em julgamento.

Assim sendo, a junção de documentos em sede de recurso, depende de alegação por parte do apresentante de uma de duas situações:

- a impossibilidade de apresentação deste documento em momento anterior ao recurso; a superveniência em causa, pode ser objetiva ou subjetiva: é objetiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjetiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento;
- o julgamento efetuado na primeira instância ter introduzido na ação um elemento adicional, não expectável, que tornou necessária esta junção; pressupõe esta situação a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum. Com efeito, como refere António Abrantes Geraldes, “podem (…) ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.” (…) “a jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, pags. 229 e 230 da 4ª edição)
Como referia Antunes Varela (RLJ, Ano 115º, pags. 95 e segs.), a propósito do regime anterior à Lei 41/2013 “A junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos da impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido em 1ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou da dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.”
Toda a prova deve ser produzida nos tempos processuais oportunos por força dos princípios da lealdade, igualdade, boa fé e cooperação processuais.
Deve ser afastada a perspetiva da necessidade revelada pelo julgamento, já que obviamente a ponderação do alcance probatório das declarações de parte não é qualquer elemento surpresa ou inesperado por esta sentença revelado. O que está em causa e decorre com clareza é a superveniência objetiva do trânsito da sentença e do teor do acórdão que sobre a mesma incidiu.
Dispõe o artº. 421º, nº. 1, do C.P.C. quanto ao valor extraprocessual das provas, e reporta-se apenas a algumas provas constituendas; depoimentos e declarações de parte, depoimentos testemunhais e perícias, conforme dizem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa (“O Código de Processo Civil Anotado”, Vol I, pags. 496 e 497, mais dizendo que “Em regra, os efeitos de tais meios de prova restringem-se ao processo em que foram produzidas, mas são extensivos a outros processos quando exista identidade da parte contra a qual é invocada a prova.”, por força do respeito pelo princípio do contraditório (cfr. artº. 415º do C.P.C.).
O aqui o R./recorrido A. C. não foi parte naquele outro processo, como não foi a 1ª R..
Mas o que valeria, se aquele óbice não se verificasse, de um processo para o outro, era o meio de prova, o seu conteúdo, no caso o teor das declarações prestadas -cuja reprodução teria de ser junta-, e não o modo como foi valorado -a que se reporta a prova documental pretendida juntar. Ou seja, uma coisa é querer aproveitar de um processo para o outro o teor das declarações prestadas, outra coisa é querer juntar uma prova documental que ilustra o modo como as declarações foram valoradas noutro processo, como sucede no caso em apreço.
De qualquer modo, tratando-se de meios de prova livre, o juiz de cada processo forma sobre a prova a sua convicção de modo autónomo e livre, não estando vinculado nessa apreciação pela posição doutro colega noutro processo.
Veja-se maior desenvolvimento desta matéria nas palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pag. 235 da 3ª edição, e o Ac. aí citado da Rel. do Porto de 9/10/2008 (relator Teles de Menezes, www.dgsi.pt).
Ora, não estando em causa a junção da reprodução das declarações de parte que foram produzidas naquela outra ação, pretendendo-se apenas reforçar a falta de credibilidade que ali foi dada às declarações de parte do A. e “importar” para este processo a falta de credibilidade das declarações prestadas aqui, sobre diversa matéria, e perante o R. A. C./recorrido que ali não foi parte, por ser algo inadmissível, não releva para os autos a junção das peças.
Assim, não se prescindindo de um juízo de pertinência e necessidade (cfr. artº. 411º do C.P.C.), face às citadas disposições legais, não se admite a junção dos documentos requerida pelo apelante e, dada a sua rejeição, consequentemente ordena-se o seu desentranhamento e devolução, após trânsito deste acórdão.
Em face do exposto, condena-se o apresentante/recorrente numa multa equivalente a 1 UCs –artºs. 443º, nº. 1, do C.P.C. e 27º, nº. 1, do Regulamento das Custas Processuais.
***
IV IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO/MÉRITO DO RECURSO.

Cumpre começar por analisar se os recorrentes cumpriram os requisitos de ordem formal que permitam a este Tribunal apreciar a impugnação que fazem da matéria de facto, nomeadamente se indicam os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especificam na motivação dos meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indicam na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressam na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156.

Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, 03/05/2016 e de 21/03/2019 (www.dgsi.pt), podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, excepto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme artº. 607º, nº. 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (artº. 640º, nº. 1, a), b) e c)). No segundo caso cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), nº. 2, do artº. 640º). Em ambos os casos a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (-já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A “nuance” entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar á parte contrária um efetivo exercício do contraditório para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado, e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não se imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Desde modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio informador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas pode abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto deve constar das conclusões (artºs. 635º, nº. 4, 640º, nº. 1, a), e 639º, nº. 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações) basta que contem do corpo das alegações.
Também os Acs. desta Relação de Guimarães de 28/06/2018 e de 26/04/2018 (www.dgsi.pt), analisaram de forma coincidente com a orientação do STJ esta matéria.

Apreciando.

O recorrente insurge-se relativamente à alínea f) dos factos provados. Indica por isso o que considera incorretamente provado (conforme sintetiza nas conclusões). E o que pretende é inverter o sentido da decisão, ou seja, que se considere não provado.
Alega, para fundamentar a sua pretensão, que o Tribunal não podia, como fez, alicerçar a prova do facto nas declarações de parte do A., por inadmissíveis face às regras vigentes em sede de direito probatório material. E alude ainda à prova documental, ora para funcionar como contraindício, ora para sedimentar a sua versão.
Cumpriu por isso todos os requisitos que se impunham do ponto de vista formal.
Cabe tecer aqui uma nota, embora não suscitada em sede de contra-alegações.
Podia colocar-se em dúvida no caso a observância do ónus previsto na alínea a), do nº. 2, do artº. 640º do C.P.C..
O recorrente limita-se a indicar o princípio e o termo das declarações de parte, destacando um trecho por referência à sua localização no ficheiro, não fazendo qualquer transcrição desse mesmo depoimento (“Ora, das declarações de parte prestadas pelo autor na audiência de julgamento (Depoimento registado em sistema "Habilus Media Studio" com início às 09:58:56 e termo às 10:19:54. – cf. faixa do CD n.º 20220110095855_1576697), o autor (cf. min. 02:19 até min. 04:20), temos que falou o mesmo de uma forma titubeante, genérica e muito vaga sobre o assunto, achando, “salvo erro”, terem ocorrido conversas entre si e os réus na cozinha da casa da ré M. C., conversas em que se veio a combinar efectuar-se uma transferência directamente para a agente de execução, e que o dinheiro lhe seria devolvido até Outubro desse ano.”).
A exigência legal em causa relativamente à impugnação da matéria de facto que implique a reapreciação de prova gravada, vista naquele prisma da razoabilidade e proporcionalidade, não impede no caso a reapreciação da matéria de facto, dando-se por satisfeita a impugnação fatual (-nem se justifica qualquer aperfeiçoamento). De facto, para além de se estar a “utilizar” as declarações de parte no todo “pela negativa” (não são o bastante para prova do facto) e não tanto baseado num determinado ponto, as mesmas foram prestadas por cerca de 10 minutos, o que, para além do cumprimento do dever de oficiosidade de proceder à reanálise de toda a prova, facilita a tarefa de identificação do sentido crítico apontado. Igualmente verifica-se que a parte contrária exerceu o contraditório.
A impugnação da decisão da matéria de facto com base na reapreciação da prova gravada é apenas uma das formas de impugnação dessa decisão, como decorre do disposto no nº. 1, do artº. 662º do C.P.C..
Verifica-se que também o recorrido ao referir-se à testemunha V. R. reporta-se ao início e termo do depoimento e destaca uma parte, sem localização e transcrição. Todavia tal também não releva já que este tribunal por dever de ofício, analisará toda a prova produzida.
Conforme Acs. do STJ de 11/10/2011 (relator Martins de Sousa, www.dgsi.pt) e de 4/7/2013 (relator Moreira Alves, www.dgsi.pt), e ainda de 1/7/2014 (relator Gabriel Catarino, www.dgsi.pt), a omissão da indicação detalhada ao minuto e ao segundo das passagens em que se estriba a impugnação não obstava ao conhecimento da impugnação da matéria de facto, bastando para tanto a indicação dos depoimentos em causa, bem como da identificação de quem os prestou, tanto mais que o tribunal ad quem, no exercício da sua tarefa de reapreciação da decisão da matéria de facto deve procurar formar a sua própria convicção, exercendo, para tanto, os poderes oficiosos que lhe são conferidos (cfr. o nº. 2, da alínea b) do artigo). A indicação com exatidão das passagens da gravação em que o recorrente funda o seu recurso não significa que apenas a indicação da hora, do minuto e do segundo em que ficou gravado o trecho do depoimento satisfaça aquele ónus legal. Se esta é a forma de indicação mais precisa das passagens, há que reconhecer que outras formas existem que permitem uma localização tão exata quanto aquela, nomeadamente, referindo, por exemplo, que o trecho em causa se localiza logo no início do depoimento de certa testemunha ou logo que lhe foi formulada certa pergunta. A concretização do ónus de indicação das passagens da gravação deve ser efetuada tendo em atenção a teleologia legal que lhe está subjacente e que é, segundo cremos, responsabilizar o recorrente pelas invocadas afirmações em que funda o seu recurso e permitir um eficaz contraditório, sujeitando-o, no limite, à disciplina legal da litigância de má-fé, assim se impedindo impugnações da decisão da matéria de facto sem um mínimo de concretização e de assento na prova pessoal produzida em audiência. Na vigência do atual Código de Processo Civil, a jurisprudência publicada do Supremo Tribunal de Justiça tem-se vindo a sedimentar no sentido de que a observância do ónus previsto na alínea a), do nº. 2, do artº. 640º do Código de Processo Civil tanto se compatibiliza com a indicação precisa do início e do termo das concretas passagens da gravação dos depoimentos como com a transcrição dos excertos dos aludidos depoimentos que suportam a pretensão de reapreciação da decisão da matéria de facto – cfr. os Acs. do STJ de 29/10/2015 e de 2/6/2016 (relator Lopes do Rego), de 23/5/2018 (relator Ribeiro Cardoso), de 21/3/2019 (relatora Rosa Tching), de 18/6/2019 (relator Manso Rainho), e de 3/10/2019 (relatora Rosa Tching), todos acessíveis em www.dgsi.pt –tudo conforme vem destacado no Ac. da Rel. do Porto de 20/9/2021 (relator Carlos Gil), também ali disponível e que voltaremos a mencionar.
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Assim, passamos a analisar a impugnação da matéria de facto feita pelo recorrente.
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Em causa está o seguinte facto: “f) Com vista ao pagamento da referida dívida, o Autor emprestou ao Réu A. C. a quantia de € 10.063,61, quantia que lhe entregou, através de transferência bancária para a conta que o Réu A. C. lhe indicou (PT .................05).”

Porque no caso isso é importante, reproduzimos aqui a motivação do tribunal recorrido:

“Na consideração da factualidade provada e não provada o tribunal estribou a sua convicção no conjunto da prova produzida, analisando criticamente a prova documental junta aos autos em conjugação com as declarações de parte do Autor, e com os depoimentos das testemunhas V. M. e V. R., tudo analisado à luz das regras da experiência comum e normalidade social.
O Autor corroborou a versão que havia apresentado na petição inicial, tendo reiterado que emprestou o montante do capital reclamado ao Réu A. C. e que este se obrigou a restituir tal valor até finais de Outubro de 2019. Mais, confirmou que em Novembro de 2019, o Réu A. C. restituiu-lhe € 5.000,00 e ainda que a Ré M. C. garantiu que pagava o valor em falta, caso o A. C. faltasse ao cumprimento da obrigação de pagar o remanescente.
De realçar que as testemunhas V. M. e V. R. não têm conhecimento presencial dos factos, pois não testemunharam o empréstimo, nem qualquer outra situação que estivesse relacionado com ele. O conhecimento que têm dos factos foi adquirido por forma indirecta, advindo de conversas com o Autor. No essencial, referiram que no início de 2020, após um conflito com o Réu A. C. e a M. C., o Autor terá desabafado com os depoentes, que tinha emprestado dinheiro ao A. C., estando magoado com a ingratidão e sentia-se injustiçado.
Apesar da prova testemunhal ser iníqua, por não terem presenciado o empréstimo, certo é que a prova documental confirma, parcialmente, a versão do Autor. É irrefutável, e os Réus não o negam, que a verba necessária para pagar a quantia exequenda que estava a ser reclamada ao Réu A. C. foi transferida da conta pessoal do Autor J. F.. O documento junto na audiência final, comprova que a conta de onde foi movimentado a débito o montante de € 1063,31 é uma conta individual do Autor.
A sua versão é ainda corroborada pelos documentos juntos com a petição inicial n.ºs 2 e 3, deles resultando que a ordem de transferência para a Agente de Execução foi dada no dia 16/04/2019 e executada no dia 17/04/2019.
Também é pacífico que, o Réu A. C., no dia -/11/2019 transferiu para a conta bancária do Autor a quantia de € 5.000,00, também conforme resulta do doc. nº 4 junto com a petição inicial.
De salientar, que é ilógico e irreal de acordo com as regras da experiência comum que o Réu fosse pagar tão avultada quantia em numerário, e depois tivesse procedido à sua restituição parcial para uma conta que sabia de antemão não pertencer à sua mãe e que pertencia exclusivamente ao Autor, nem sequer se tratando de uma conta titulada por ambos.
Aliás, diga-se que os Réus não apresentaram qualquer elemento de prova que sustente a sua versão dos factos.
Assim, apesar de não existir prova testemunhal directa que comprove a versão do Autor, as circunstâncias em que ocorreram os factos revelam que, efectivamente, o Autor emprestou a quantia reclamada ao Réu A. C., pois só assim se entende que este lhe tivesse restituído parte desse montante.
Todavia, entende-se que o Autor não logrou provar que a Ré M. C., assumiu pessoalmente o pagamento da dívida, pois como referido, tal factualidade apenas é sustentada pelo Autor, não havendo qualquer outra prova testemunhal ou documental que a corrobore.
Durante a prestação de declarações, foi patente a falta de serenidade do Autor, sendo evidente o conflito que persiste entre si e a Ré M. C. com quem foi casado e de quem se divorciou no final do ano de 2020, resultando, à saciedade, que existem muitas questões pendentes entre os dois para resolverem, de que a instauração desta acção e de outras que correm por este juízo são o reflexo claro, a evidenciar que o ambiente de retaliação está no seu apogeu, em consequência da ruptura da relação conjugal.
Não se pode desconsiderar que as declarações de parte são obtidas de quem tem interesse directo no objecto do processo, pelo que a sua análise e ponderação deve ser muito cautelosa, dentro da livre apreciação pelo tribunal. Não se olvida que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação (Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17.12.2014, Pinto dos Santos, de 23.3.2015, Eusébio Almeida, de 20.6.2016, Manuel Fernandes, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.10.2016, Ondina Alves e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6.10.2016, Tomé Ramião), não obstante, não deve ser desconsiderado à partida o seu valor probatório.
Certo é que, no caso concreto, os dados objectivos aportados para os autos, concretamente, a transferência a débito da quantia reclamada da conta pessoal do Autor, o destino que foi dado a tal montante, o qual resulta pacífico da versão das partes, e a restituição para a mesma conta pessoal do Autor de parte desse dinheiro, são condizentes e corroboram a tese de que se tratou de um empréstimo concedido ao Réu A. C. pelo Autor.
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Isto posto, em primeiro lugar cabe verificar se o tribunal se pode sustentar nas declarações de parte em conjugação com a prova documental e juízos de experiência comum para assentar em tal facto, e se puder, não obstante ter reconhecido o carácter pouco sereno do A. ao proferir as suas declarações, se as valorou bem em conjugação com a restante prova.
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E para o efeito temos de previamente aferir da figura jurídica em causa.
Face ao alegado na petição inicial, a causa de pedir da ação é o empréstimo de € 10.063,31 feito ao R. A. C., obrigando-se a R. M. C. como “fiadora” –artigos 7º a 11º da peça.
Em causa diz estar um contrato de mútuo, nulo por falta de observância da forma legal.
A sentença proferida, face aos factos que considerou provados, entendeu que efetivamente se está perante a celebração de um contrato de mútuo entre o A. e o R. A. C. conforme decorre da noção do artº. 1142º do C.C., “…e no que respeita à celebração do mesmo, e de harmonia com o preceituado no artº. 1143º do C.C., na redação introduzida pelo Decreto-Lei nº. 116/2008, de 04/07, vigente à data da celebração do contrato dos autos, se o valor mutuado for superior a € 2.5000, o contrato só é válido se for celebrado por escritura pública, e sendo superior a € 2.500,00 se for formalizado por documento assinado pelo mutuário. No caso sub judice o valor mutuado foi de € 10.063,31, sendo certo que é pacífico que o referido contrato foi celebrado sem observância da forma legalmente exigida, ou seja, em documento escrito assinado pelo devedor. Assim, as partes não observaram a forma legalmente prescrita, donde decorre a nulidade do contrato nos termos do disposto no art.º 1143º “ex vi” art. 220º, nulidade essa que é do conhecimento oficioso pelo tribunal (artigo 289º do CC).”
A questão que o recorrente levanta a este propósito prende-se com a aplicação do disposto nos artºs. 393º, nº. 1, 364º, nº. 1, e 351º, todos do C.C.. E faz aplicação do regime vigente em sede de prova testemunhal para as presunções judiciais e para as declarações de parte.
O artº. 607º, nº. 4, do C.P.C. indica que o juiz declare quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, e ainda que tome em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
As presunções judiciais, sendo um meio de prova válido (livre) dependem dos factos conhecidos que permitam tirar a ilação para o facto desconhecido – artº. 349º do C.C.. As presunções judiciais, simples ou de experiência, assentam no simples raciocínio de quem julga; inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana –Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, I vol., pag. 310.
As declarações de parte são um meio probatório introduzido no nosso ordenamento jurídico com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06. Visou-se responder a uma cada vez mais significativa corrente de opinião que se vinha densificando no sentido de considerar e valorizar o depoimento de parte, ainda que sem caráter confessório, e de livre apreciação pelo tribunal, desde que o mesmo viesse a revelar um efeito útil para a descoberta da verdade material, pois que em muitos casos pode ser difícil ou mesmo impossível demonstrar certos factos por via diversa da do próprio relato das partes e muitas das vezes as partes terão conhecimento privilegiado dos factos que alegam ou presenciaram (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Almedina, 3ª ed., pag. 307).
Dispõe quanto ao seu regime o artº. 466º, do C.P.C..
Voltaremos à análise no concreto.
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Retomando o contrato de mútuo, qualificação que se afigura correta face ao que foi considerado (mútuo é o contrato mediante o qual uma parte empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando esta obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade), a exigência de forma prende-se com as características de um contrato solene.
Tratando-se de uma formalidade exigida por lei resulta efetivamente do disposto no nº. 1 do artº. 364º do C.C. que “Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.”. Acrescenta o nº. 2 que o documento pode ser substituído por confissão expressa, se resultar claramente da lei que foi exigido apenas para prova da declaração. Deste número resulta que os documentos poderão constituir formalidades ad probationem, desde que resulte da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do acto.
No caso porém do contrato de mútuo real e oneroso a necessidade de redução das declarações em escritura pública ou documento particular autenticado torna este tipo de contrato um contrato solene, não podendo a prova ser efectuada senão por documento de valor idêntico, o que faz depender a validade do contrato de mútuo, a partir dos limites fixados na lei, de um requisito ad substantiam – cfr. artº 364º, ex vi do artº 219º, do C.C.; neste sentido, Ac. do STJ de 3/10/2013 (relator Gabriel Catarino, www.dgs.pt).
Conclui-se por isso que efetivamente não é admissível a prova do contrato de mútuo por testemunhas ou presunção judicial.
Quanto à hipótese da presunção, no caso sub judice o tribunal conjugou o sentido das declarações de parte com a prova documental e, com base em juízos de experiência comum, deu por adquirido/provado determinado facto. Aludindo embora aos juízos de experiência comum, não nos parece que o tribunal tenha recorrido a presunção judicial para afirmar a prova da alínea f). O tribunal entendeu que, da conjugação dos vários elementos de prova e em confronto com os factos de certo modo indiciários, analisados sob o prisma da normalidade, resulta a prova direta do facto essencial. O tribunal apenas afirmou que não há prova testemunhal direta.
Assim sendo, não há que analisar, como faz Luís Filipe Pires de Sousa (“Direito Probatório Material Comentado”, pags. 81 e 82, e “Prova por Presunção no Direito Civil”, pags. 171 e 172) a equiparação da prova por presunção à prova testemunhal no âmbito da aplicação do artº. 364º, nº. 1, do C.C. (cfr. artº. 351º).
Não é também admissível a prova do contrato de mútuo por declarações de parte; estas, fora o caso da confissão, mais não são do que um meio de prova acrescentado ao elenco dos previstos no Código de Processo Civil que, para este efeito, deverão ser enquadradas no mesmo regime.
Isso foi efetivamente já defendido no escrito abril de 2017 do Srº Juiz Desembargador Luís Filipe Pires de Sousa -“As declarações de parte. Uma síntese.”, disponível na internet (https://docplayer.com.br/52113320-As-declaracoes-de-parte-uma-sintese.html).
No Ac. da Rel. do Porto de 20/9/2021 (relator Carlos Gil, www.dgsi.pt) abordou-se essa temática numa outra situação que pode ser transferida para a presente, deste modo: “Antes de entrar na verificação da observância dos ónus que impendem sobre o impugnante da decisão da matéria de facto e, na hipótese afirmativa, na aferição crítica da prova produzida deve questionar-se se atenta alguma da matéria em causa é admissível a produção e subsequente valoração da prova pessoal produzida na audiência final e sem força probatória plena.
Na verdade, de acordo com o disposto no nº 1, do artigo 394º do Código Civil, “[é] inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas deles, quer sejam posteriores.”
Sublinhe-se que a proibição de prova por testemunhas de convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento com força probatória plena, que sejam contrárias ou adicionais ao conteúdo desse documento, pressupõe a validade das cláusulas em apreço[4].
As limitações probatórias à produção da prova testemunhal são extensivas à prova por presunções (artigo 351º do Código Civil) e, por identidade de razão, à prova por declarações de parte, sempre que sujeitas à livre apreciação do tribunal, ou seja, quando não tenham caráter confessório (artigo 466º, nº 3, do Código de Processo Civil) e ainda a prova por confissão quando seja livremente apreciada (vejam-se os artigos 358º, nºs 3 e 4 e 361º, ambos do Código Civil).”
*
Porém, o A. não funda a sua causa de pedir num contrato de mútuo válido, como vimos. O A. fundamenta o pedido precisamente no facto de não ter sido formalizado o acordo em escritura pública ou documento assinado pelo mutuário, o que por ausência de forma, leva à declaração de nulidade do contrato e consequentemente à obrigação do mutuário de restituir a quantia que lhe foi entregue a título de empréstimo por força do disposto no artº. 289º do C.C.. E foi esse o caminho percorrido pela 1ª instância.
Ora, a proibição de prova não se aplica ao caso precisamente porque não se está a pretender substituir a exigência do documento; está-se apenas a demonstrar ou a tentar provar precisamente que a(s) declaração foi emitida e não foi reduzida a escrito.
Conforme Ac. desta Relação de 20/2/2020 (relatora Sandra Melo, www.dgsi.pt), “Ao pretender-se provar a celebração de um contrato nulo por forma não se visa demonstrar que foi reproduzida a declaração de vontade de celebrar um negócio a que se atribui valor contratual. A parte não se propõe provar que ocorreu uma declaração de vontade juridicamente vinculativa do seu emitente, mas, antes pelo contrário, pretende demonstrar que esta vinculação não teve lugar, por falta de forma.
Por outro lado, a razão de ser desta proibição de prova reside no facto de haver que proteger a validade dos documentos escritos: seria perigoso admitir que um meio de prova tão frágil e inseguro como a testemunhal ou uma posterior declaração de uma parte pudesse contrariar a força que é legalmente dada a documento. A admissibilidade da prova testemunhal de acordos contra ou para além do conteúdo do documento, ou sem suporte documental quando este é legalmente exigido, abriria a porta para que qualquer contraente, recorrendo a um meio de prova mais frágil escapasse ao que se obrigara ou deveria obrigar por escrito válido, retirando dessa forma a eficácia aos documentos e à sua exigência.
Da mesma forma, com a proibição da valoração da prova testemunhal ou confissão (entre simuladores) para considerar a declaração negocial quando por disposição da lei ou estipulação das partes, a mesma houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, pretende-se salvaguardar o valor que a lei e as partes pretenderam conferir a tais documentos, não permitindo que as mesmas contornem tais exigências, mediante o recurso a um meio de prova menos confiável, superando todas as vantagens que se pretendem obter com a exigência de forma especial, que passam, também, pela ponderação que é inerente à exigência de maior solenidade na celebração do contrato. (4)
Assim, não se aplicam as restrições probatórias aplicáveis à prova das declarações negociais aos casos em que as afirmações proferidas pelas partes apenas valem como forma de apurar o que determinou uma transferência patrimonial e em que se pretende demonstrar que apesar de terem sido proferidos certos dizeres ou tomados certos comportamentos, estes não valem enquanto declarações de vontade juridicamente vinculantes, por vício de forma.
Não se pretende demonstrar que ocorreu uma declaração negocial qua tale, mas que foram proferidas declarações que não podem valer como tal. Estas restrições de prova não são, pois, extensíveis à demonstração da celebração de contratos nulos.
Neste sentido é reiterada a posição dos nossos tribunais, citando-se, a título de exemplo, o recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/11/2019 no processo 4013/15.0T8LRS.L1-7, que explica de forma acutilante “A questão que se coloca é, pois, como efetuar a prova de um contrato nulo” citando Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 3ª edição revista e atualizada, 1986, Volume II, pág. 683, em anotação ao artigo 1143º, “As razões justificativas do carácter formal do contrato - tiradas da extrema falibilidade da prova testemunhal - levariam, em último termo, a impedir a produção de testemunhas para prova da entrega de dinheiro e sua consequente restituição ao abrigo da nulidade do contrato. Não se trata, porém, duma consequência forçosa, necessária do regime estabelecido. Concebe-se perfeitamente que a lei considere bastante a sanção da nulidade do contrato (sem prejuízo da prova testemunhal da entrega da coisa mutuada), para garantir a observância da forma visada. Aos efeitos da nulidade do mútuo é aplicável o disposto no artigo 289.º, n. 1, e não a doutrina do enriquecimento sem causa (art. 474.º)”.”
Cita ainda no mesmo sentido o Ac. do STJ de 20/9/2007 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) e o desta Relação de 18/11/2010 (relator Manuel Bargado), ambos em www.dgsi.pt., tratando igualmente a questão o acórdão que acrescentamos da Rel. do Porto de 25/11/2013 (relator Oliveira Abreu). Neste último diz-se com clareza: “Está em causa uma formalidade substancial, porquanto sem ela o negócio não é válido, a sua falta é irremediável, não podendo ser substituída por qualquer outro meio de prova. Às formalidades desta natureza contrapõem-se as probatórias, que correspondem àquelas que são impostas apenas para prova do negócio. Sem elas o negócio não é nulo, mas a sua prova é mais difícil de obter, embora possa ser suprida por outros meios de prova.
Daqui decorre que no caso da formalidade substancial, o documento é exigido como requisito essencial do acto, ao passo que a formalidade probatória, destina-se a assegurar a prova do acto.
Como já adiantamos, são de ordem pública as exigências legais de forma e fundam-se em razões de publicidade, de ponderação e de prova. Os motivos justificativos do cariz formal do contrato de mútuo situam-se no afastamento da falibilidade da prova testemunhal, tanto mais relevante quanto maior for o valor pecuniário em jogo.
Esta proposição parece, à primeira vista, impedir a produção de prova testemunhal para comprovar a entrega do dinheiro ou a sua omissão, o que não é o caso.
Com efeito, exigindo a lei determinada forma escrita para a validade de uma declaração negocial, a mesma não pode ser substituída por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior – artº. 364º nº. 1 do Código Civil - donde se retira que a falta de escritura pública não pode ser suprida com o reconhecimento de um qualquer documento particular ou prova testemunhal, que de resto é inadmissível sempre que a declaração negocial esteja reduzida a escrito ou necessite de ser provada por escrito - artº. 393º 1 do Código Civil.
Todavia, temos por seguro que esta previsão legal só releva para obstar à validação do negócio, ou seja, para que se produzam os efeitos que são inerentes ao negócio validamente celebrado, não para impedir a prova de um negócio nulo ou inexistente, e, por essa via, alcançar os efeitos, não do negócio, mas da nulidade ou inexistência do mesmo.
Vale por dizer que pese embora concebamos a impossibilidade de substituição de uma escritura pública exigida por lei como requisito de forma de uma declaração negocial para que se façam valer os efeitos do negócio, como se fora válido, nada impede a utilização de documentos de menor força probatória e de prova testemunhal ou até o recurso a presunções judiciais para a demonstração de que o negócio objecto da outorgada escritura pública é nulo ou inexistente, e, por essa via, fazer operar os efeitos da respectiva nulidade ou inexistência.
A “ratio legis” do preceito, fundado essencialmente no receio de confiar à prova testemunhal a imposição a alguém de obrigações de valor muito elevado, poderia, efectivamente, levar a recusar a admissão da prova testemunhal para convencer o tribunal da entrega de quantias pecuniárias que deveria ser formalizada em documento, particular ou autêntico, sendo que a Doutrina e Jurisprudência, nunca descuraram os ditames da justiça, mesmo perante as mais fortes exigências de segurança do Direito, admitindo qualquer meio de prova para garantir a prova da obrigação.”
Por tudo o exposto, não se verifica violação das normas de direito probatório material em apreço.
*
Coisa diversa é saber se a prova assim produzida e valorada conduz ao resultado a que se chegou na sentença proferia, ou seja, se sustenta a alínea f) dos factos provados.
Nos termos do artº. 342º, nº. 1, do C.C. cabe ao A. a prova dos factos constitutivos do seu direito. Ao R. não compete demonstrar que esses factos não são verdadeiros, o que lhe competiria seria a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do A. (cfr. nº. 2).
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Vejamos antes de mais os princípios a que, na nossa perspetiva, deve obedecer a reapreciação a fazer em sede de recurso.
A propósito da reapreciação da matéria de facto, dispõe o artº. 662º, n.º 1, do C.P.C. que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do nº. 5 do artº. 607º do C.P.C.. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder a reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material. A propósito refere também Abrantes Geraldes na mesma obra, pag. 273, "(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E a pags. 274 (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Sintetizando a nossa posição, o Tribunal da Relação nesta sua função de reapreciação da decisão de facto não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (-erro de apreciação ou erro de julgamento).
Partindo do princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que no seu entender deviam ter feito o Tribunal “a quo” encetado caminho diverso no seu juízo probatório; contudo, o Tribunal “ad quem” não está limitado a essa indicação – que será seu ponto de partida e pode até ser o bastante- podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
O Ac. desta Relação de 29-10-2020 (www.dgsi.pt) sintetiza os princípios a ter em consideração na atuação do Tribunal de recurso, recorrendo à doutrina -Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396; Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2015, Almedina, pp. 462 a 469- e jurisprudência -Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.- desta forma:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes);
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância;
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de reapreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas;
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão;
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção -obtida com benefício da imediação e oralidade- apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Voltando ao artº. 607º, nº. 1, do C.P.C., este dispõe que, em princípio, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, com ressalva das situações em que a lei dispuser, diferentemente: quando não dispense a exigência de uma determinada formalidade especial, quando os factos só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
No nosso sistema processual, vigora o sistema da prova livre, ressalvadas as exceções previstas. Significa isto que o tribunal aprecia livremente os meios de prova e que o tribunal é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido. Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (ou seja, com maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão). Coisa diferente é a questão do standard ou padrão de prova, a qual já tem que ver com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus – no sentido de que a lei manda que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova (cfr. artºs. 346.º do C.C. e 516.º do C.P.C..
A propósito da livre apreciação da prova e formação da convicção, vários autores se têm pronunciado.
Manuel de Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, pag. 384) diz: “Segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”.
Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (“Manual de Processo Civil”, 2ª Edição, Revista e Atualizada, pags. 435 a 436) dizem: a prova “…não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”. E acrescentam (pag. 655) que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto; a livre apreciação da prova não se traduz nem se confunde com uma apreciação arbitrária da prova.
Diz-nos ainda Luís Filipe Pires de Sousa (“Prova testemunhal”, 2014, pag. 384) que “O standard de prova deve operar como uma pauta móvel que tem de ser permanentemente concretizada ao ser aplicada ao caso concreto. Cremos que no nosso ordenamento jurídico será, pois, de aplicar, o standard da probabilidade prevalecente…Assim, no vulgar caso de cobrança de um crédito decorrente de compra e venda, na ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação ou na ação em que se discuta o cumprimento de um contrato de empreitada operará o standard da probabilidade lógica prevalecente desde que seja ultrapassado o limite mínimo de probabilidade(> ou = 0,51)…”.
Assim, como já decidimos no processo nº. 2568/18.6T8VRL.G1 (ac. de 3/12/2020) e no processo nº. 967/19.5T8VRL.G1 (ac. de 8/10/2020) “O grau de probabilidade exigido para que se dê como verificada determinada realidade de facto é de elevada probabilidade.”
O que está em causa é uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
*
Nesse sentido, ouviu-se o A. em sede de declarações de parte, a prova testemunhal, e concatenou-se tudo com a prova documental existente no processo.
Ora, ao contrário da posição do Tribunal recorrido, entendemos que as dúvidas que ficam no espírito do julgador não podem ser ultrapassadas e não permitem dar como assente a factualidade controvertida e que é o cerne da questão.
De facto, em primeiro lugar as declarações de parte mais não são do que a reafirmação do alegado e do que é óbvio e que foi admitido pelos R.R., desde logo face á prova documental apresentada. Sabemos pela prova documental que houve movimentação de dinheiro, e os seus contornos. O que importava era contextualizar essa movimentação de modo a que se pudesse explicar porque é que surge o A. a emprestar dinheiro -€ 10.000,00- ao filho da 1ª R., sua mulher á data do suposto empréstimo. E isto não foi esclarecido. A este respeito o A. só mencionou os problemas do 2º R. e que reuniram para ver como se havia de fazer, tendo surgido a alusão do pagamento em numerário (apesar de, na sua versão, com dinheiro seu que levantaria para o efeito).
Resumidamente a versão da R. é: o A. foi quem fez a transferência para a solicitadora, o valor em causa foi-lhe logo entregue em numerário, vindo da R. M. C. que foi quem ajudou o R. A. C.; quando é feita a transferência dos € 5.000,00 para a conta do A. a convicção é que era para pagar aquele valor à R. M. C., muito embora através da conta do A. mas com quem a R. estava casada.
Repete-se que não são os R.R. que têm de convencer o Tribunal da sua versão, já que estes defenderam-se em primeira linha por impugnação.
Mostra-se para nós irrelevante demonstrar que a R. M. C. tinha meios de ajudar o filho, uma vez que o A., através da prova que apresentou e desde logo nas suas declarações de parte, não explicou porque é que teve de ser ele e não a R. M. C. a fazê-lo.
Por isso, mais do que “discutir” o valor probatório das declarações de parte, o que sucede é que estas não foram sequer esclarecedoras.

Sabemos que, conforme se refere-se no Ac. da Rel. de Lisboa de 26/4/2017 (relator Luís Filipe Pires de Sousa, www.dgsi.pt) a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que respeita à função e valoração das declarações de parte que se reconduzem a três teses essenciais:

a) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
b) tese do princípio de prova;
c) tese da autossuficiência das declarações de parte.

Para a primeira tese, que é defendida por Lebre de Freitas (in “A Ação Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 2013, p. 278) “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.” Ou seja, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa, supletiva e subsidiária, permitindo suprir falhas ao nível da produção da prova designadamente testemunhal, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.
Segundo a tese do princípio de prova as declarações de parte não são suficientes por si só para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
Finalmente, a tese da autossuficiência das declarações de parte considera que as mesmas podem permitir a prova de um facto de forma autónoma, ou seja, desacompanhadas de qualquer outro meio probatório.
No caso dos autos a factualidade controvertida é suscetível de obtenção de meios de prova que não se limitem às declarações de parte, tratando-se de um alegado acordo que, apesar de não documentado, poderia ser testemunhado por alguém, e tem algum apoio em sede de prova documental.
Relativamente a prova testemunhal, efetivamente não há prova direta, sendo de desvalorizar, a nosso ver, os depoimentos apresentados já que estes apenas tiveram conhecimento daquilo que lhes foi transmitido e apresentado pelo próprio A.; acresce que a referida conversa quanto às queixas de ingratidão do 2º R. para com o A., que este teve com as testemunhas, mostra-se algo forçada num contexto em que haveriam certamente questões mais importantes a perturbar o A..
Relativamente à prova documental ela não pode ser vista como um princípio de prova do alegado pelo A. e reforçada pelas suas declarações, na medida em que ela também “encaixa” na versão apresentada pelos R.R.: o A. fez a transferência, materializando a entrega do dinheiro/pagamento à solicitadora, mas não o fez a título de empréstimo; o depósito dos € 5.000,00 (feito numa altura de reconciliação do casal, e em que na versão do A. também teria havido uma devolução por parte da 1ª R. ao A. de € 300.000,00 que lhe teria retirado –o que só mostra as divergências entre o casal quanto a dinheiro) em conta do A. não significa necessariamente que se destinavam a devolver a quantia (parcialmente) ao A.; e se assim fosse, porquê metade? Ainda que se conceda credibilidade ao depoimento da testemunha V. R. no sentido de confirmar a versão do A. de que a R. M. C. lhe pediu o IBAN para dar ao A. C., isso não encerra a explicação do facto. Acresce que na versão apresentada pelo A. em sede de declarações o 2º R. terá dito que, quanto ao valor em falta, que o pagasse a 1ª R. ao A. uma vez que também tinha dado um carro ao outro filho; isto, a nosso ver, só adensa as dúvidas. Acresce ainda que quando o A. pede a devolução do valor aqui também peticionado já o divórcio estaria acertado.
Em suma, as relações entre A. e 1ª R. a nível pessoal e patrimonial envolvem outras situações para que se possa retirar, dos elementos que temos, a prova da versão relativa à existência do empréstimo feito pelo A. a favor do 2º R., filho da 1ª R., com obrigação deste devolver o valor em causa ao A.. As relações entre os três estão encadeadas, não podemos ver isoladamente a relação entre A. e 2º R.. O A. tinha que demonstrar que o valor que foi para pagar a dívida exequenda era para lhe ser devolvido na totalidade, para o que não chega o facto de ter saído da sua conta e ter entrado cerca de metade na sua conta, nos dois casos em momento de vida conjugal com a R..
Nada tendo sido esclarecida a situação, as declarações de parte não tiveram caráter complementar ou coadjuvador da restante prova em ordem a demonstrar a realidade em causa, tão pouco se destinaram a clarificar uma prova que fosse duvidosa dessa mesma realidade.
E assim sendo cremos que se verifica uma falta de sustentação da alínea f) dos factos provados no que concerne ao empréstimo, o que nos cabe verificar, e concluir antes pela sua inserção nos factos não provados, mantendo-se o que se mostra incontroverso e nem sequer foi aqui questionado - com vista ao pagamento da referida dívida, o Autor efetuou transferência bancária para a conta que o Réu A. C. lhe indicou (PT .................05) da quantia de € 10.063,61. Além disso, nomeadamente a concessão de um empréstimo, não foi matéria “confessada” pelos R.R. na sua contestação. Porquê ou a que título se verificaram os movimentos, é isso que fica não provado: a transferência mencionada em f) foi feita a título de empréstimo ao 2º R. A. C. –isto mesmo passa a constar da alínea a) dos factos não provados, seguindo-se a restante factualidade não provada.
*
A MATÉRIA DE FACTO A ELENCAR E A CONSIDERAR passa então a ser a seguinte:

a) O Autor e a Ré M. C. foram casados entre si, casamento que contraíram, no regime de comunhão de adquiridos, na Conservatória do Registo Civil de … no dia 05 de Janeiro de 2018 (cfr. assento de casamento junto aos autos).
b) O referido casamento foi dissolvido por divórcio por sentença proferida em 14/12/2020, transitada em julgado, no âmbito do processo que correu termos no Juízo de Família e Menores de Viana do Castelo (J2) sob o nº 2445/20.0 T8VCT.
c) A separação de facto do casal ocorreu no dia 16 de Maio de 2020.
d) No ano de 2019 corria seus termos uma execução para pagamento de quantia certa contra o Réu A. C., sendo que o valor da quantia exequenda, com encargos, era de € 10.063,31.
e) O Réu A. C. não tinha disponibilidade financeira para proceder ao pagamento daquele valor.
f) Com vista ao pagamento da referida dívida, o Autor efetuou transferência bancária para a conta que o Réu A. C. lhe indicou (PT .................05) da quantia de € 10.063,61
g) No dia 21 de Novembro de 2019, o Réu A. C. restituiu ao Autor a quantia de € 5.000,00, através de transferência bancária.

3.2. Factos não provados com relevância para a decisão da causa

a) A transferência mencionada em f) foi feita a título de empréstimo ao 2ºR. A. C..
b) A Ré M. C. obrigou-se perante o Autor a restituir o montante emprestado ao Réu A. C. caso este não pagasse tal quantia.
c) O Réu A. C. obrigou-se a restituir aquela importância ao Autor até ao final do mês de Outubro de 2020.
d) A Ré obrigou-se a restituir ao Autor tais quantias no prazo máximo de 90 dias.
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Da alteração da matéria de facto resulta que deixam de se verificar os elementos conducentes à integração da transferência do valor aqui parcialmente peticionado num empréstimo, ainda que o respetivo contrato de mútuo fosse inválido por falta de forma derivando a obrigação de restituição dos efeitos da nulidade tal como previsto no artº. 289º do C.C., acrescida de juros nos termos das disposições legais citadas na sentença recorrida.
Sendo ao A. que cabia a prova dos factos integradoras da sua causa de pedir, e resumindo-se esta ao aludido mútuo inválido, não pode subsistir a condenação do 2º R.. Não se apurou que a transferência do valor que o 2º R. devia em sede executiva, feita pelo A. para a solicitadora de execução, e, portanto, saldando a dívida que era do 2º R., fosse feita no intuito de se tratar de um empréstimo feito pelo A. ao 2º R. com a consequente obrigação do 2º R. lhe devolver igual valor.
Note-se que não importa ao caso a verificação hipotética de outra figura jurídica para a qual igualmente o A. não coligiu factos e não configurou como fonte da condenação pretendida (em concreto o artº. 595º do C.C.).
Por último, a aferição do que é ou deixa de ser património do casal, e se o A. já “recebeu” a parte que lhe compete, não é questão pertinente a dirimir nestes autos, mais uma vez porque não sabemos a que título foi entregue, nomeadamente no âmbito das relações do ex-casal. Muito menos qualquer exceção dilatória de ilegitimidade ativa, uma vez que o A. estriba a sua pretensão na celebração de um empréstimo por si, figurando a 1ª R. como devedora na sua versão dos factos. Estes eram apresentados como argumentos subsidiários do recurso.
Face ao exposto, e por virtude da alteração operada na matéria de facto resultado da procedência da impugnação apresentada, a apelação deve proceder.
*
As custas são a cargo da parte vencida, no caso o recorrido, de acordo com o critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo; entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for –artº. 527º, nºs. 1 e 2 do C.P.C..
***
V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação:
-em não admitir a junção dos documentos pelo apelante e, dada a sua rejeição, consequentemente ordena-se o seu desentranhamento e devolução, após trânsito deste acórdão, mais se condenando o apresentante/recorrente numa multa equivalente a 1 UCs –artºs. 443º, nº. 1, do C.P.C. e 27º, nº. 1, do Regulamento das Custas Processuais;
-em julgar o recurso do 2º R. procedente, e em consequência, conceder provimento à apelação, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o 2º R. do pedido.
Custas pelo A./recorrido (artº. 527º do C.P.C.).
*
Guimarães, 13 de julho de 2022.
*
Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)