Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3731/21.8T8BRG.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL POR FACTOS ILÍCITOS
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
FATORES DE CONEXÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A competência internacional dos tribunais portugueses é aferida em função do objecto do processo tal como este é definido pelo autor e suscita-se quando apresenta, através de um elemento subjectivo ou objectivo, uma conexão com várias ordens jurídicas.
2 – A competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais que vinculem o Estado português; não sendo a situação regida por uma fonte normativa supranacional, é necessário que se verifique algum dos factores de conexão previstos nos artigos 62º e 63º do CPC ou que as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º do mesmo diploma.
3 – A aplicação do regime previsto no Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12.12.2012, depende de o requerido ter o seu domicílio num Estado-Membro da União Europeia ou que se verifique algum dos elementos de conexão especiais previstos na sua Secção 2 a 7.
4 – Invocando o autor, jogador profissional de futebol, a utilização pela ré, sociedade com sede nos EUA, a utilização abusiva do seu nome e imagem em jogos electrónicos, de vídeo e aplicativos, por esta produzidos e desenvolvidos naquele país, e cuja responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos EUA, Canadá e Japão é assumida por uma terceira empresa, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da prática em território português de algum dos factos que integram a causa de pedir de pedir complexa invocada, alicerçada na responsabilidade civil extracontratual.
5 – Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer de uma acção fundada em responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, designadamente em Portugal, se o autor tiver o seu centro de interesses pessoais e profissionais situado em território português, de forma predominante no período em que decorreram os danos alegados.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. R. S. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Electronic ..., com sede em … …, Califórnia …, Estados Unidos da América, pedindo que a Ré seja condenada «a pagar ao Autor, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal», bem como «montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal».
Alega, em síntese, que é jogador de futebol profissional, nascido no Brasil, de nacionalidade portuguesa e residente em Braga, e que a Ré utiliza indevidamente e sem a sua autorização a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais em diversos jogos, sua propriedade, denominados JOGO, JOGO Manager, JOGO Ultimate Team e JOGO Mobile.
Mais alega que, pelo mundo, a Ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a ..., com sede na Suíça, que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, que a Ré aufere elevados lucros em resultado dessa venda e que o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem do Autor.
Preconiza «a fixação do valor do dano, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, à ordem de € 12.000,00/ano por edição de jogo das plataformas JOGO SOCCER, JOGO MANAGER, FUT – JOGO Ultimate Team, e JOGO Mobile, ao considerar as aparições, pelo menos, em: 7 (sete) anos no JOGO (€84.000,00) 6 (seis) anos no FUT – JOGO Ultimate Team (€72.000,00) e 2 (dois) anos JOGO Mobile (€ 24.000,00)».
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Na contestação, a Ré invocou a incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do litígio, alegando não se verificar qualquer dos factores de conexão elencados no artigo 62º do Código de Processo Civil (CPC).
O Autor pronunciou-se pela improcedência da excepção de incompetência absoluta, alegando, em breve síntese, que «são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção», que «o próprio dano/facto danoso resultante dessa exploração indevida mostra-se, também, consumado em Portugal» e que «o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício».
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1.2. Foi proferida decisão que julgou o Tribunal incompetente internacionalmente para conhecer da acção e absolveu a Ré da instância.
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1.3. Inconformado com o decidido, o Autor interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
b) Entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
c) O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a sua incompetência internacional, já que não restam dúvidas da competência internacional do Tribunal a quo para o julgamento do presente litígio.
d) A ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de video contendo a imagem, nome e demais características pessoais do Autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.
e) Tal conduta constituiu uma apropriação da imagem do Autor, que tem um valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado.
f) O Autor – ao contrário do que a decisão recorrida refere - substanciou em factos a ocorrência de um dano, e os danos causados ao Autor (patrimoniais e não patrimoniais), por acção da ré, apenas a esta podem ser imputáveis, por ela a única autora do facto danoso (cfr. artigos 562.º, 563.º, 564, n.º 1, 565.º, 566.º n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código Civil e ainda artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
g) Ao contrário do que a decisão recorrida refere, esses danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais características do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal.
h) Isso mostra-se devidamente alegado nos artigos 15.º, 18.º, 102.º e 183.º, da petição inicial.
i) É, pois, absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção.
j) A obrigação de reparação, no caso concreto do Autor, resulta de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. (negrito e sublinhado nossos).
k) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. Tal como a decisão recorrida, salvo o devido respeito, ignora ostensivamente!
l) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto na alínea b) do artigo do artigo 62.º do Código de Processo Civil: ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).
m) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de exposição, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão do STJ de 25-10-2005.
n) Sendo que, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, tem aplicação o regime previsto no Regulamento (EU) n.º 1215/2012, por se verificarem os elementos de conexão especiais previstos nas suas Secções 2 a 7, designadamente, no artigo 7.º, n.º 2, uma vez que o dano sofrido pelo Autor é, pois, um dano inicial e não consecutivo: resulta diretamente do evento causal (a utilização da sua imagem pela Ré nos seus jogos).
o) Para além disso, o Autor tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal.
p) Sendo irrelevante o facto de a distribuição dos jogos ser feita na prática por uma subsidiária da ré, pois é esta a proprietária dos jogos e é só ela que aufere os avultados lucros resultantes da sua comercialização.
q) O que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente.
r) Pelo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
s) Tanto mais que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
t) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil, não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.
u) Tanto mais que, nos autos é arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
v) Ora, a necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
w) Ora, in casu, essa praticabilidade e exercício está irremediavelmente comprometida, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
x) O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.
y) Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
z) Ora, o Autor toda a sua vida organizada e estabilizada em Portugal, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com os Estados Unidos da América.
aa) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua distribuição mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.
bb) Sem necessidade de mais considerações, estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
cc) Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
dd) Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nas disposições firmadas no artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento 1215/2012, nos artigos 62.º, alíneas a), b) e c), 71.º, n.º 2 e 80.º n.º 3, todos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º e 72.º do Código Civil».
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A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. Questões a decidir
Nas conclusões do recurso, as quais, segundo os artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, delimitam o seu objecto, o Recorrente suscita as seguintes questões:
i) Competência internacional do Tribunal recorrido para conhecer e decidir da presente causa, envolvendo as subquestões da aplicabilidade dos regulamentos europeus e da verificação dos factores de conexão enunciados no artigo 62º do CPC;
ii) Violação do artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
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II – Fundamentação
2.1. Fundamentos de facto
Os factos a considerar são os descritos no relatório que antecede.
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2.2. Do objecto do recurso
O presente recurso versa sobre a competência internacional dos tribunais judiciais e, nesse âmbito, importa considerar, desde logo, que esta, tal como a competência interna (2), se fixa no momento em que a acção se propõe, nos termos do artigo 38º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto, designada como Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).
Em conformidade com o disposto no artigo 37º, nº 2, da LOSJ, que defere à lei de processo a fixação dos factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, o Código de Processo Civil estabelece no seu artigo 59º que: «Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º». No artigo 62º enunciam-se os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, considerando-se exclusiva destes a competência relativamente às matérias enunciadas no artigo 63º. Por conseguinte, as fontes da competência internacional dos tribunais portugueses podem ser convencionais, europeias, internacionais (“outros instrumentos internacionais”, para além dos regulamentos europeus) ou internas.
A competência internacional é a competência para os processos que, pela perspectiva do Estado do foro, apresentam, através de um elemento subjectivo ou objectivo, uma conexão com várias ordens jurídicas (3). Portanto, as normas relativas à competência internacional utilizam um elemento de conexão (como, p. ex., o lugar da situação do bem, o domicílio de uma das partes ou o lugar de cumprimento da obrigação) para atribuir competência aos tribunais ou a um tribunal de um Estado.
É uniforme o entendimento de que a competência do tribunal é aferida em função do objecto do processo tal como este é definido pelo autor, sendo irrelevantes circunstâncias que venham a ocorrer posteriormente.
Nesta conformidade, a competência internacional é aferida em razão dos termos em que o demandante configura a acção, a qual se define através do pedido, da causa de pedir e da natureza das partes. Para o efeito, é necessário considerar os elementos objectivos da demanda, ou seja, a natureza da providência solicitada, a natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, o facto ou acto donde resulta o invocado direito e os elementos subjectivos da acção.
Embora a qualificação jurídica possa ser relevante para a aferição da competência, o tribunal não se encontra vinculado à qualificação fornecida pelo autor (art. 5º, nº 3, do CPC), mas apenas pela delimitação que este faz do objecto do processo, o que constitui realidade distinta da aludida qualificação.

Atenta a delimitação do objecto do processo que o Autor realizou na petição inicial, na nossa qualificação, pretende efectivar a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. Reclama uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, decorrentes da utilização abusiva pela Ré do nome e da imagem do Autor em jogos electrónicos, de vídeo e aplicativos, designados genericamente por jogos “JOGO”, alegadamente desenvolvidos e postos em circulação por aquela.
O Tribunal recorrido entendeu que não se verificava qualquer dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62º do CPC, pelo que concluiu pela incompetência internacional dos tribunais portugueses.
O Recorrente discorda, porquanto entende que se verificam os referidos elementos de conexão e que «tem aplicação o regime previsto no Regulamento (EU) n.º 1215/2012, por se verificarem os elementos de conexão especiais previstos nas suas Secções 2 a 7, designadamente, no artigo 7.º, n.º 2». Considera ainda que se mostra violado o artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Verifica-se que têm sido instauradas por jogadores ou ex-jogadores de futebol profissional, contra a aqui Ré, múltiplas acções, com contornos fácticos muitos semelhantes aos do presente processo.
Porém, nesses processos a matéria da competência internacional não tem sido decidida uniformemente.
Por um lado, os Tribunais da Relação têm decidido no sentido da incompetência internacional dos tribunais portugueses, como se pode ver, por exemplo, nos seguintes acórdãos, todos eles documentados nos autos e acessíveis em www.dgsi.pt.:
i) Acórdão da Relação de Coimbra de 26.10.2021, proferido no processo 3239/20.9T8CBR-A.C1;
ii) Acórdão da Relação de Lisboa de 13.01.2022, processo 24974/19.9T8LSB.L1;
iii) Acórdão da Relação de Guimarães de 13.01.2022, processo 3853/20.2T8BRG.G1;
iv) Acórdão da Relação do Porto de 10.02.2022, processo 637/20.1T8PRT.P1;
v) Acórdão da Relação do Porto de 15.03.2022, processo 2160/20.5T8PNF.P1;
vi) Acórdão da Relação de Évora de 24.02.2022, processo 4157/20.8T8STB.E1;
vii) Acórdão da Relação de Coimbra de 08.03.2022, processo 4167/20.3T8LRA.C1;
viii) Acórdão da Relação de Évora de 12.05.2022, processo 4239/20.4T8STB.E1.
Já o Supremo Tribunal de Justiça, de forma uniforme, em todos os acórdãos publicados até agora (igualmente documentados nos autos e que podem ser consultados em www.dgsi.pt), tem decidido que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar esses litígios, a saber:
a) Acórdão do STJ de 24.05.2022 (João Cura Mariano), proferido no processo 3853/20.2T8BRG.G1.S1;
b) Acórdão do STJ de 07.06.2022 (Fernando Baptista de Oliveira), proferido no processo 24974/19.9T8LSB.L1.S1;
c) Acórdão do STJ de 07.06.2022 (Manuel José Aguiar Pereira), proferido no processo 4157/20.6T8STB.E1.S1;
d) Acórdão do STJ de 23.06.2022 (Maria da Graça Trigo), proferido no processo 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1.
Tal circunstância deve ser considerada neste recurso, pois o nº 3 do artigo 8º do Código Civil estabelece que, «nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito». Em face da natureza e função da sua intervenção, é preponderante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
Posto isto, importa apreciar a concreta argumentação constante das conclusões.
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2.2.1. Aplicabilidade dos regulamentos europeus
Como bem resulta da ressalva inicial do artigo 59º do CPC, a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais que vinculem o Estado português, os quais, no seu campo específico de aplicação, prevalecem sobre as normas processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do CPC (4). Se uma dessas fontes normativas supranacionais for aplicável ao caso e se, segundo ela, os tribunais portugueses não forem competentes, não é possível justificar a competência destes tribunais através de fontes internas (5), que não podem ser aplicadas.
De entre as fontes europeias emerge, no específico campo do objecto da presente acção, o Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que é a fonte normativa de direito europeu que o Recorrente entende ser aplicável ao caso dos autos, em concreto o seu artigo 7º, nº 2, que analisaremos infra.
O Regulamento (UE) nº 1215/2012 prevê no seu artigo 4º, como regra geral em matéria de competência: «1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro». No artigo 6º prevê-se: «1. Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro».
Por conseguinte, aquele Regulamento estabelece como princípio geral que a competência tem por base o domicílio do requerido: desde que este tenha o seu domicílio, à data da propositura da acção, dentro de um Estado-Membro, ainda que a nacionalidade seja extracomunitária, os tribunais do Estado-Membro onde se encontra domiciliado são competentes para conhecer do litígio.
Tal preceito é inaplicável ao caso vertente por a Ré não ter domicílio em qualquer Estado-Membro da União Europeia, mas sim nos Estados Unidos da América, em concreto no Estado da Califórnia. Em tal caso, rege a regra do artigo 6º, nº 1, que remete para a lei interna do Estado-Membro onde a questão é suscitada a atribuição da competência dos tribunais desse Estado-Membro.
Resta apreciar se é aplicável o critério especial previsto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento (UE) nº 1215/2012, onde se dispõe que «as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (…) 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».
O pressuposto essencial da aplicação do aludido critério especial continua a assentar em o requerido ter domicílio num Estado-Membro, apenas se permitindo que o requerente opte entre propor a acção no Estado-Membro em que o requerido tenha o seu domicílio (critério geral) ou no Estado-Membro do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (critério especial).
Portanto, é indispensável que o requerido tenha domicílio num Estado-Membro. Se o requerido não tiver domicílio em qualquer Estado-Membro, não é aplicável o Regulamento (UE) nº 1215/2012, mas sim a fonte normativa interna relativa à competência internacional.
Ora, no caso vertente, a Ré tem a sua sede fora da União Europeia, no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América, pelo que é inaplicável à situação a norma do artigo 7º, nº 2, do Regulamento (UE) nº 1215/2012, a qual afasta do seu âmbito de aplicação a demanda de pessoa domiciliada num Estado não integrante da União Europeia; consequentemente, nos termos do seu artigo 6º, nº 1, a competência é definida, não pelo direito da União Europeia, mas sim pela lei interna do Estado português, ou seja, in casu, o artigo 62º do CPC, uma vez que é manifesto não estarmos perante qualquer das situações previstas no artigo 63º, em que os tribunais portugueses são exclusivamente competentes.

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2.2.2. Aplicabilidade dos factores de conexão do art. 62º do CPC
Não sendo aplicável ao caso dos autos o Regulamento (UE) nº 1215/2012, a questão da competência internacional tem de ser analisada à luz das normas do nosso direito nacional, ou seja, o artigo 62º do CPC, na interpretação quase uniforme que lhe tem sido dada pelas doutrina e jurisprudência nacionais.

O Tribunal a quo, partindo da delimitação do objecto do processo realizada pelo Autor na petição inicial, em especial dos factos aí alegados, analisou cada um dos elementos de conexão previstos no artigo 62º do CPC e concluiu que os mesmos não se verificam.

O Recorrente, diversamente, considera que estão preenchidos, autonomamente, todos os três factores de conexão elencados no artigo 62º do CPC, onde se dispõe:
«Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real».
Esta norma estabelece os factores atributivos de competência internacional aos tribunais portugueses, enunciando três critérios: o citério da coincidência (alínea a)), o da causalidade (alínea b)) e o da necessidade (alínea c)).
Tais elementos de conexão operam autonomamente, funcionando cada um de forma independente relativamente aos outros, bastando que se verifique no caso concreto uma das situações previstas em qualquer uma das alíneas referidas para que se fixe a competência.
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2.2.2.1. No que respeita à alínea a) do artigo 62º, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (6) referem que «consagra, nos mesmos termos que no direito anterior, o critério da coincidência, pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a ação possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (arts. 70 e ss.). Atribui-se assim a este último conjunto de regras uma dupla funcionalidade. Exemplificando: se, numa ação de responsabilidade civil por facto ilícito, tanto o dano como o facto ilícito tiverem ocorrido no Porto, resulta da conjugação entre o art. 71-2 – que regula a competência em razão do território para ações dessa natureza, atribuindo essa competência ao tribunal do lugar da ocorrência do facto – e a alínea a) do preceito sob anotação que os tribunais portugueses têm competência internacional, não obstante o lesado residir no Canadá e o autor do facto ilícito em Marrocos».
Igualmente Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (7) salientam que «a competência internacional acompanha, desde logo, a competência interna de raiz territorial; se, de acordo com as regras da competência em razão do território, algum tribunal português for territorialmente competente, também lhe é atribuída a competência internacional por via do princípio da coincidência».
Em resumo, segundo o critério da coincidência, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar uma causa quando exista um tribunal português territorialmente competente para a apreciar nos termos do disposto nos artigos 70º e segs. do CPC.

No caso em apreciação, o Tribunal a quo concluiu pela não verificação do critério da coincidência por considerar que «tendo o facto ilícito imputado à ré ocorrido no estrangeiro – a produção de um videojogo com a imagem do autor, com fins (e resultados) lucrativos –, “segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa” os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a causa».
O Recorrente alega que é «absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção» (conclusão i), uma vez que está em causa «a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente» (conclusão q), «[p]elo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa» (conclusão r).

Como esta acção se destina a efectivar a responsabilidade civil por factos ilícitos, releva, para efeitos de aferir da aplicabilidade do critério da coincidência, a norma do artigo 71º, nº 2, do CPC, onde se dispõe que «o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu». Estabelece a competência do forum commissi delicti para as acções destinadas a fazer valer a responsabilidade extracontratual.
Portanto, de harmonia com aludida disposição, para as acções de responsabilidade baseada em facto ilícito ou no risco, é competente o tribunal do lugar onde ocorreu o facto gerador da responsabilidade.
A expressão “facto” tem um significado preciso, pois refere-se a um dos pressupostos da responsabilidade civil, que é o facto ilícito, enunciados no artigo 483º, nº 1, do Código Civil. Não visa indicar qualquer outro dos pressupostos da responsabilidade, como seja o dano.
Significa isto que o legislador elegeu, de entre os pressupostos da responsabilidade civil, o lugar onde ocorreu o facto ilícito como factor relevante para a determinação da competência territorial nas acções de responsabilidade civil extracontratual. Daí que não seja o lugar da produção do dano o factor relevante para a fixação da competência territorial, mas apenas o da ocorrência do facto ilícito.
Analisada a petição inicial, constata-se, por um lado, que a Ré tem a sua sede na Califórnia, Estados Unidos da América, e que nenhum acto é imputado pelo Autor à Ré como tendo sido praticado por esta em território português.
O facto ilícito que na petição inicial se imputa à Ré é a violação do direito de imagem do Autor, consubstanciada na produção, divulgação e exploração com fins lucrativos de jogos («jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, i.e. JOGO, JOGO MANAGER, JOGO ULTIMATE TEAM – FUT e JOGO MOBILE» - v. art. 11º da p.i.) por aquela, utilizando abusivamente (8) a imagem do Recorrente. Segundo resulta do alegado na petição inicial, tais jogos são produzidos e comercializados pela Ré nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, enquanto na Europa são vendidos pela ..., que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
Significa isto que o facto ilícito imputado à Ré, traduzido na utilização sem autorização da imagem do Autor, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais, ocorreu seguramente no estrangeiro com a produção dos jogos, sendo certo que em lado algum da petição inicial consta alegado que os jogos JOGO foram criados e produzidos em território nacional, mas apenas que são vendidos “em todo o mundo”, incluindo Portugal. Aliás, a própria comercialização dos jogos na Europa, incluindo Portugal, segundo o alegado na petição inicial não é efectuada pela Ré, mas sim por uma outra empresa que «assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão».

Por isso, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, os tribunais portugueses não são competentes para a causa, como bem concluiu o Tribunal recorrido.
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2.2.2.2. De harmonia com a alínea b) do artigo 62º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando o facto que constitui a causa de pedir ou um dos factos que a integra tiver sido praticado em território português.
A referência, constante desta alínea, a “alguns dos factos” visa abranger os casos de causa de pedir complexa, ou seja, a constituída por uma pluralidade de actos ou factos jurídicos, em que basta um deles ter sido praticado em território português para determinar a competência dos tribunais portugueses. Todavia, a causa de pedir deve ser entendida, para efeitos deste preceito, como não integrando os factos complementares, mas apenas os essenciais (art. 5º, nº 1, do CPC). Como bem salienta Miguel Teixeira de Sousa (9), «[a] competência internacional pressupõe uma conexão relevante com a ordem jurídica cujos tribunais são internacionalmente competentes, pois que, de outro modo, constrói-se uma competência exorbitante desses tribunais».
Exemplo paradigmático de causa de pedir complexa é o da acção de responsabilidade civil extracontratual. Os pressupostos, cumulativos, da obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos são o facto voluntário do agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No nosso entender, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a competência exorbitante constrói-se se considerarmos que qualquer aspecto parcelar do dano, de carácter remoto ou indirecto, desde que verificado no território português, é suficiente para determinar a competência dos tribunais portugueses. Sem prejuízo das situações de pluralidade de danos, o factor que deve relevar é o lugar da ocorrência do dano directo, ou seja, onde ocorreram os efeitos directos do facto que gerou a situação de responsabilidade.

O Tribunal recorrido deu como não verificado o aludido critério por considerar que «o local de venda dos produtos da ré (art. 62.º, al. b) do CPC) não é, em si mesmo, um elemento de conexão relevante, dado que não se trata de um facto essencial constitutivo da causa de pedir», e que «o autor não alega qualquer dano ocorrido em Portugal (art. 62.º, al. b) do CPC)».
O Recorrente insurge-se contra aquele entendimento, alegando que «é (…) absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção» (conclusão i). Por um lado, sustenta que os «danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais características do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal» (conclusão g); por outro, que «a obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem» (conclusões j) e k)).

Já nos pronunciamos em 2.2.2.1. sobre a circunstância de o facto ilícito que serve de causa de pedir nesta acção não ter sido praticado em território nacional, pelo que resta apenas apreciar se os danos, enquanto factos que integram a causa de pedir complexa desta acção, se verificam no território português.
Começando a nossa análise pelos danos não patrimoniais, verifica-se que o Autor alegou no artigo 177º da petição inicial que «sentiu-se, naturalmente, perturbado, desgostoso, triste e revoltado, ao ver a sua imagem e nome utilizados de forma abusiva e ilícita pela Ré».
Alegando o Autor que no período em que foram usados o seu nome e imagem (v. arts. 24º e 144º da p.i., em que reporta o início da utilização da imagem a 18.09.2014, data em que alega ter sido lançado o jogo “JOGO 2015”) residiu quase exclusivamente em Portugal (segundo se depreende do alegado no art. 8º (10) da p.i., durante todo o período de tempo objecto da acção, o Autor apenas durante a época desportiva 2015/2016 exerceu a sua profissão fora de Portugal, no clube de futebol “…”, situação que está devidamente delimitada na p.i.), terá de se considerar que tais danos se produziram predominante em território português, pois foi aqui que se sentiu perturbado, desgostoso, triste e revoltado com a actuação da Ré.
Se mais não houvesse, apenas esta circunstância já seria suficiente para determinar a competência internacional dos tribunais portugueses, pois uma parte relevante dos danos – os não patrimoniais – verificaram-se em território nacional.

Mais complexa é a apreciação quanto ao lugar onde se produziram os danos patrimoniais, na medida em que o Recorrente argumenta que «o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem» e na petição inicial limitou-se a invocar uma dimensão circunscrita de tais danos, traduzida no «valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado», sem alegar propriamente a produção de outras consequências patrimoniais na sua esfera jurídica, emergentes da alegada utilização abusiva por parte da Ré.
Segundo o alegado na petição inicial, a comercialização dos jogos, nos quais se utilizava e utiliza o nome e imagem do Autor, é feita a nível global, “por todo o mundo”, e também em Portugal, articulando-se múltiplos factos a esse respeito.
Portanto, de harmonia com o alegado pelo Autor, o impacto da ofensa ao direito de personalidade ao nome e imagem é produzido em diversos países, nomeadamente em Portugal, e prolonga-se no tempo, desde a produção e o lançamento de cada uma das edições dos jogos até à sua disponibilização ao público em geral, mantendo-se por tempo indeterminado. Significa isto que o dano, na dimensão invocada pelo Autor, se manifesta em diversos países, tendo conexão com vários ordenamentos.
Como a imagem de uma pessoa que tem o seu centro de vida pessoal e profissional em Portugal foi – e está a ser - utilizada a nível global, a demonstrar-se a utilização abusiva e a afectação da imagem nos termos alegados, a repercussão patrimonial é sofrida também em território nacional (v. o alegado, por exemplo, no art. 103º da p.i.). A não ser assim, cairíamos no absurdo de concluir que a utilização não autorizada da imagem de uma pessoa, no caso de ser feita por todo o mundo, não produzia dano em qualquer país, seja naquele onde tem centrada a sua vida ou num outro país terceiro, deixando sem protecção tal direito fundamental, como se fosse admissível considerar, em abstracto, que o objecto do direito que é utilizado por muitos e em variados lugares é insusceptível de lesar o respectivo titular. Aliás, não há qualquer fundamento para considerar que o dano invocado nos autos se produziu única e exclusivamente nos Estados Unidos da América, como parece defender a Recorrida; isso não corresponde ao quadro factual alegado e é por este que, prima facie, se afere a competência do tribunal para a causa.
Ora, nessas situações em que o impacto da violação dos direitos de personalidade decorre da utilização de meios de exposição globais e se produz em diversos ordenamentos jurídicos, sendo difícil de avaliar separadamente, país a país, os danos causados em cada um deles, é curial considerar que se verifica predominantemente no Estado onde o lesado tem o seu domicílio e a sede da sua vida pessoal e profissional organizada. Isto porque a imagem de um jogador profissional de futebol está intimamente ligada ao clube e país onde exerce essa profissão e, em consequência, reside. É seguramente nesse local que melhor podem ser apurados os efeitos da ofensa dos direitos de personalidade, o que constitui um factor relevante para a boa administração da justiça em qualquer ordenamento.
Porém, independentemente de tal consideração, de harmonia com o critério da coincidência consagrado na alínea b) do artigo 62º do CPC, que é a norma directamente aplicável, basta que parte dos danos se verifiquem em território português para que os nossos tribunais sejam internacionalmente competentes para conhecer da respectiva acção. Significa isto que, no caso dos autos, nem sequer carece de ser apurado onde predominantemente se verificam os danos, pois é inequívoco que alguns deles se verificam no lugar onde o Autor reside e se situa o seu centro de interesses, designadamente o exercício da sua profissão de futebolista, pois é a imagem dele enquanto desportista que se mostra utilizada nos jogos da Ré.
Em todo o caso, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que são internacionalmente competentes para conhecer do mérito de uma acção de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados pela ofensa.
Como se assinala no acórdão do STJ de 24.05.2022 – processo 3853/20.2T8BRG.G1.S1 (João Cura Mariano), proferido numa acção em tudo idêntica a esta, «revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça. (…)
Na presente ação, durante os anos em que o Autor situa a violação do direito ao seu nome e imagem (…), o seu centro de interesses localizava-se em Portugal, uma vez que foi aí que o Autor praticou, profissionalmente, a sua atividade desportiva.
Esta localização presumida dos danos pelos quais o Autor responsabiliza a Ré é confirmada pelo tipo de danos diretos, e não meramente reflexos, alegados na petição inicial. Foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que foi, predominantemente, nas competições desportivas portuguesas que o Autor interveio como jogador profissional; foi em Portugal que se poderá ter refletido a influência negativa provocada pela invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles videojogos, prejudicando a sua vida profissional e pessoal, uma vez que foi aí que o Autor, predominantemente, desenvolveu a sua atividade profissional e viveu; e foi em Portugal que o Autor poderá ter experienciado a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado, pois foi aí que o Autor (…) se encontrava.
Estando o centro de interesses do Autor predominantemente localizado em Portugal desde o momento em que este situa o início da violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem (…), tendo sido aí que terão ocorrido os danos invocados pelo Autor, não há razões para que, a coberto do critério da causalidade admitido pelo artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, não se considerem os tribunais portugueses competentes para julgar esta ação, uma vez que, estando nós, perante uma causa de pedir complexa, os danos alegados terão ocorrido predominantemente em Portugal, pelo que será no nosso país que se encontrará um significativo acervo das provas a produzir com vista à realização da justiça».
Pelo mesmo diapasão alinha o acórdão do STJ de 07.06.2022 – proc. 4157/20.6T8STB.E1.S1 (Manuel Aguiar Pereira), também proferido numa acção semelhante à destes autos, assim sumariado:
«1. São internacionalmente competentes para conhecer de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente da violação de direitos de personalidade através de difusão global e não autorizada do nome, imagem e características pessoais e profissionais do autor em videojogos e jogos para computador, os Tribunais do país onde teve lugar essa difusão e o lesado se encontrava domiciliado e/ou tinha o seu centro de interesses pessoais e profissionais, de forma predominante no período em que decorreram os danos alegados.
2. Os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º alínea b) do Código de Processo Civil, para o julgamento de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos alegando o autor que a violação do seu direito aconteceu em Portugal, por ali terem sido, como em todo o mundo, distribuídos e estarem disponíveis aos consumidores interessados os jogos produzidos pela ré em que era abusivamente utilizado o seu nome e imagem.
3. Nessas circunstâncias, apesar de parte dos factos ofensivos do alegado direito do autor terem sido praticados no estrangeiro, surpreende-se entre a causa baseada na acção violadora do direito alheio promovida pela ré e o Estado Português um elemento de conexão suficientemente forte e que permite que, no eventual confronto com outros ordenamentos jurídicos e jurisdições nacionais, sejam os Tribunais portugueses aqueles que se encontram em melhor posição para avaliar e decidir da gravidade e extensão da alegada violação do direito de personalidade dos autor».
Também nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2022 – proc. 24974/19.9T8LSB.L1.S1 (Fernando Baptista) e de 23.06.2022 – proc. 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1 (Maria da Graça Trigo) foi seguida a referida orientação.

Pelo exposto, concluímos que os tribunais portugueses são competentes para conhecerem da presente acção, nos termos do artigo 62º, alínea b), do CPC, ficando prejudicada a apreciação das demais questões.
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2.3. Sumário

1 – A competência internacional dos tribunais portugueses é aferida em função do objecto do processo tal como este é definido pelo autor e suscita-se quando apresenta, através de um elemento subjectivo ou objectivo, uma conexão com várias ordens jurídicas.
2 – A competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais que vinculem o Estado português; não sendo a situação regida por uma fonte normativa supranacional, é necessário que se verifique algum dos factores de conexão previstos nos artigos 62º e 63º do CPC ou que as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º do mesmo diploma.
3 – A aplicação do regime previsto no Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12.12.2012, depende de o requerido ter o seu domicílio num Estado-Membro da União Europeia ou que se verifique algum dos elementos de conexão especiais previstos na sua Secção 2 a 7.
4 – Invocando o autor, jogador profissional de futebol, a utilização pela ré, sociedade com sede nos EUA, a utilização abusiva do seu nome e imagem em jogos electrónicos, de vídeo e aplicativos, por esta produzidos e desenvolvidos naquele país, e cuja responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos EUA, Canadá e Japão é assumida por uma terceira empresa, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da prática em território português de algum dos factos que integram a causa de pedir de pedir complexa invocada, alicerçada na responsabilidade civil extracontratual.
5 – Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer de uma acção fundada em responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, designadamente em Portugal, se o autor tiver o seu centro de interesses pessoais e profissionais situado em território português, de forma predominante no período em que decorreram os danos alegados.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a excepção de incompetência internacional do Juízo Central Cível de Braga, e determina-se o prosseguimento do processo.
Custas pela Recorrida.
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Guimarães, 13.07.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos




1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. A competência interna é a respeitante à distribuição das causas pelos tribunais do Estado do foro.
3. Miguel Teixeira de Sousa, CPC Online, vol. 01 - arts. 1-129, versão de 06.2022, pág. 66.
4. Neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, Almedina, págs. 144 e 145.
5. Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 68.
6.Ob. cit., pág. 154.
7. Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 94.
8. Pretende-se significar sem autorização ou consentimento do Autor.
9. Ob. cit., pág. 71.
10. Que poderia ser mais explícito.