Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
786/21.9T8BCL.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ABANDONO DE TRABALHO
SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Não se verificam os requisitos do abandono do trabalho se o trabalhador havia comunicado ao empregador a suspensão do contrato de trabalho, nos termos dos arts. 294.º, n.º 3 e 325.º, n.º 1 do Código do Trabalho, e ainda não ocorrera qualquer uma das causas de cessação da mesma previstas no art. 327.º do mesmo Código.

Alda Martins
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

R. A. intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra V. M. UNIPESSOAL, LDA., pedindo que seja declarada a ilicitude do despedimento do autor e a ré condenada a pagar-lhe:

- € 8.193,51 de indemnização de antiguidade, sem prejuízo do montante que resultar à data do trânsito em julgado da sentença;
- € 1.390,34 a título de remunerações intercalares vencidas desde o dia seguinte ao despedimento até à data da propositura da ação, sem prejuízo dos montantes que se vencerem até à data do trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida;
- € 1.500,00 a título de retribuição devida pelo trabalho prestado em França no período compreendido entre o mês de Julho e o mês de Outubro de 2019;
- € 200,00 a título de remanescente da retribuição devida pelo trabalho prestado no mês de Dezembro de 2019;
- € 401,08 a título de remanescente da retribuição de férias do ano de 2017;
- € 974,05 a título de retribuição de férias do ano de 2018;
- € 116,08 a título de remanescente da retribuição de férias do ano de 2019;
- € 821,28 a título de remanescente da retribuição e subsídio de férias do ano de 2020;
- € 799,70 a título de compensação por formação profissional não recebida;
- juros de mora vencidos e vincendos, até integral pagamento.

Para tanto, alega que foi admitido ao serviço da ré, em 01/12/2016, para desempenhar funções de electricista; que esteve de baixa médica no período compreendido entre 31/08/2020 e 23/09/2020; que no dia 11/09/2020 o autor comunicou à ré a suspensão do contrato de trabalho, por falta de pagamento de retribuições, de que a ré veio a pagar apenas parte; que, no dia 19/10/2020, a ré comunicou por carta ao autor a denúncia do contrato com efeitos desde o dia 02/10/2020, por abandono do trabalho desde essa data; que tal equivale a despedimento ilícito, pois a suspensão do contrato de trabalho ainda não havia cessado, conferindo ao autor o direito às quantias peticionadas.
A ré contestou, alegando que pagou em 30/09/2020 as retribuições de Julho e Agosto de 2020, não tendo sido pedidos juros de mora; que o autor é que não pretendeu manter o contrato de trabalho e não regressou ao trabalho, apesar de para tanto notificado pela ré, no dia 30/09/2020, quer por carta, quer por telefone, conforme indicação da ACT; que o autor não compareceu ao trabalho durante mais de 10 dias consecutivos, levando à convicção da ré de que não pretendia retomá-lo. Em reconvenção, pede a condenação do autor a pagar-lhe a quantia de € 2.521,08, correspondente à indemnização prevista no art. 403.º, n.º 5 do Código do Trabalho.
O autor respondeu à reconvenção, impugnando o abandono do trabalho, invocado pela ré, mantendo a posição assumida na petição inicial.
Foi proferido despacho saneador em que se admitiu a reconvenção e se dispensou a enunciação do objecto do litígio e dos temas de prova.

Realizada a audiência de julgamento, proferiu-se sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a ação provada e procedente e, consequentemente:
a) Declaro ilícito o despedimento do autor promovido pela ré, em 02/10/2020, condenando-a a pagar ao autor, a título da respetiva indemnização de antiguidade, a quantia de €7.563,24 (sete mil quinhentos e sessenta e três euros e vinte e quatro cêntimos);
b) condeno a ré a pagar ao autor as retribuições que este deixou de auferir, desde os 30 dias anteriores à propositura da ação, até à data do trânsito em julgado desta sentença, no valor, unitário, de €1.390,34 (mil trezentos e noventa euros e trinta e quatro cêntimos) - com exceção dos subsídios de férias e de natal, que deverão ser contabilizados a €1.260,54, sem prejuízo das deduções previstas no artigo 390.º, n.º 2 do Cód. Trabalho, a liquidar oportunamente;
c) mais condeno a ré a pagar ao autor:
- €900,00 (novecentos euros) a título retribuição devida pelo trabalho prestado em França entre o mês de julho e o mês de outubro de 2019;
- €401,08 (quatrocentos e um euros e oito cêntimos) a título de remanescente de retribuição de férias vencidas em 01/01/2017;
- €974,05 (novecentos e setenta e quatro euros e cinco cêntimos) a título de remanescente de retribuição de férias vencidas em 01/01/2018;
- €1,49 (um euro e quarenta e nove cêntimos) a título de remanescente de retribuição de férias vencidas em 01/01/2019;
- €401,08 (quatrocentos e um euros e oito cêntimos) a título de remanescente de retribuição de férias vencidas em 01/01/2020;
- €420,20 (quatrocentos e vinte euros e vinte cêntimos) a título de proporcionais do subsídio de férias do ano de 2020;
- €799,70 (setecentos e noventa e nove euros e setenta cêntimos) a título de formação profissional até à data do despedimento.
d) Condeno a ré a pagar juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, a contar da data do respetivo vencimento das prestações referidas até efetivo e integral pagamento (artigo 559.º, 804.º, 805.º e 806.º do Código Civil).
e) No mais, absolvo a ré do pedido.
f) Julgo improcedente a reconvenção deduzida pela ré, absolvendo o autor do pedido.
Custas da ação na proporção do decaimento, sendo as custas da reconvenção integralmente a cargo da ré.»

A ré interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1º O tribunal a quo declarou ilícito o despedimento efetuado pela Ré mediante carta enviada ao Autor no dia 19 de outubro de 2020 e com efeitos do dia 02 de outubro.
2º Considerou o tribunal a quo que o contrato de trabalho do Autor estava suspenso aquando da denuncia efetuada.
3º Ora, aquando da denuncia do contrato de trablho efetuado pela Ré, já a suspensão do contrato havia cessado, porquanto, esta tinha procedido ao pagamento dos salários referentes aos meses de julho e agosto de 2020.
4º Após o pagamento a Ré solicitou ao Autor que se apresentasse ao trabalho, o que este não fez.
5º O Autor já tinha manifestado o propósito em não regressar ao serviço, ao solicitar à Ré a declaração da situação de desemprego, ao alegar que tinha problemas de saúde e que não conseguia trabalhar – apesar de a baixa médica não ter sido renovada.
6º Resultou do seu depoimento que, apesar do pagamento dos dois salários, não se sentia moralmente capaz de regressar ao trabalho – registo 01:00 a 1:48; 05:16 a 05:20; 02:02 a 02:40; 03:04 a 03:28; 03:46 a 05:16; 05:37 a 06:43; 07:44 a 08:46.
7º O não pagamento dos valores em divida pela Ré em setembro de 2020 – cerca de 300,00€ - não obstaram à cessação de suspensão do contrato de trabalho.
8º Resultou do depoimento do Autor que, no seu entender, continua sem condições – de saúde – para trabalhar, apesar de a baixa médica não lhe ter sido renovada em setembro de 2020 – registo 21:23 a 23:08;
9º Ora, como se disse, o Autor já não tencionava retomar o seu posto de trabalho – o Autor não quer trabalhar – como resulta do seu depoimento, refere que desde Outubro de 2020 não tem condições para trabalhar – registo 21:23 a 23:08; 19:22 a 19:46.
11º Foi, como resulta ainda do seu depoimento, instado pelo ACT para retomar o seu posto de trabalho em outubro de 2020, resultando evidente para esta entidade que o trabalhador não queria trabalhar.
12º Do seu depoimento resulta ainda que, decorridos doze meses, continua como desempregado e a auferir a título de subsídio de desemprego a quantia mensal de 907,00€, apesar da grande falta de mão de obra existente no mercado da construção civil por todos conhecida – registo 25:50 a 26:40;
13º Como resulta do depoimento da testemunha J. C., o Autor transmitiu-lhe que pretendia a declaração da situação de desemprego – registo 11:56 a 12:39;
14º Bem como resulta do depoimento da testemunha C. da insistência por parte da Ré para que o Autor retomasse o seu posto de trabalho – como resulta das dificuldades com as quais as empresa de confrontava naquele momento, tendo os demais trabalhadores, também eles, salários em atraso e que foram regularizados, tendo sido o Autor o único trabalhador a suspender o contrato de trabalho – registo 06:06 a 07:31; 10:10 a 11:10; 16.17 a 18:00; 20:22 a 22:10.
15º De resto, resulta também das declarações do Autor que a empresa o contactou após a comunicação da suspensão do contrato, para celebrar acordo, ao que este não se mostrou disponível - informando, como o próprio referiu, que tinha de ser tudo por carta, por escrito, as comunicações.
16º Em face do propósito/intenção manifestado pelo Autor em não retomar o seu posto de trabalho, a Ré, denunciou o contrato por abandono.
17º Ora, mediante toda a prova produzida em julgamento, deveria o tribunal a quo ter dado como provado que o Autor solicitou à Ré a declaração da situação de desemprego em data anterior à denuncia efetuada.
18º Deveria ainda ter dado como provado que a suspensão do contrato cessou com o pagamento dos dois salários em atraso, e que nesta data já era intenção do Autor não retomar o seu posto de trabalho, não pelos valores em falta, mas porque já não queria, como não quer, trabalhar.
19º Bem como, deveria o tribunal a quo ter dado como provado, mediante a prova produzida, que o Autor manifestou o propósito em não regressar ao trabalho.
20º Nessa medida, o despedimento efetuado pela Ré mediante denuncia do contrato e nos termos do disposto no artigo 403º nº 1 e 2 do Código de Trabalho é válido.
21º Pelo que deveria o tribunal a quo ter julgado procedente a reconvenção deduzida no que reporta à licitude do despedimento efetuado pela Ré em 19 de outubro de 2020.
Termos em que, revogando a decisão recorrida na parte em que julga procedente a ilicitude do despedimento, V. Exas. farão a habitual JUSTIÇA.»
O autor apresentou resposta ao recurso da ré, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, e vistos os mesmos, cumpre decidir em conferência.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:
- modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
- despedimento ilícito do autor pela ré ou abandono do trabalho pelo autor e consequente indemnização à ré.

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os seguintes:

A) O autor foi admitido ao serviço da ré no dia 1 de Dezembro de 2016, através de contrato de trabalho oral, por tempo indeterminado, para, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, desempenhar as funções da categoria profissional de electricista, com a retribuição base mensal de € 1.260,54, no ano de 2020, correspondente à retribuição horária de € 7,27, recebendo o montante de € 5.90 a título de subsídio de refeição por cada dia útil de trabalho;
B) O autor e a ré acordaram no pagamento do subsídio de férias e do subsídio de Natal em duodécimos.
C) O autor esteve em situação de baixa médica no período compreendido entre os dias 31 de Agosto e 23 de Setembro de 2020.
D) No dia 11 de Setembro de 2020, o autor comunicou à ré a suspensão do contrato de trabalho, por falta de pagamento pontual da retribuição dos meses de Julho e Agosto de 2020, de uma parte da retribuição do mês de Dezembro de 2019, bem como de dois dias de férias vencidos no ano de 2019, no montante aproximado de € 2.716,00, ao abrigo do disposto no art. 325.º do Código do Trabalho, mediante carta enviada à ré com o seguinte teor:
“[…] Barcelos, 02/09/2020
Assunto: Notificação de Suspensão do Contrato de Trabalho.
Dado que, na qualidade de trabalhador dessa firma, me é devida as retribuições que passo a discriminar: vencimento de julho e agosto, parte do salário de dezembro de 2019 e dois dias de férias do ano anterior, no montante aproximado de €2.716,00, as quais já deveriam ter sido pagas, o que coloca a V/. Firma em manifesta situação de falta de pagamento pontual da retribuição, prevista no artigo 325.º do referido Código do Trabalho, aprovado pela Lei n. 7/2009, de 12 de fevereiro. Venho, nos termos do disposto no artigo supra mencionado, comunicar a V.Exa. que, decorridos que sejam 8 (oito) dias da data do envio desta comunicação, suspenderei o contrato de trabalho, se até então não forem pagos os salários em dívida.
Aproveito para esclarecer ainda que nesta mesma data foi enviada notificação de igual teor para a Autoridade para as Condições do Trabalho.
Com os melhores cumprimentos. […]” – documento de fls. 19 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
E) No dia 30/09/2020, a ré enviou ao autor a seguinte comunicação escrita: “A empresa V. M. Unipessoal, Lda informa através da presente missiva registada com A/R, que foi efectuada a liquidação da totalidade da retribuição do mês de Julho e Agosto do presente ano, através de transferência bancária para o seguinte IBAN […] no dia 30-09-2020. Encontrando-se desta forma as retribuições em mora regularizadas, deverá comparecer de imediato nas instalações da empresa para regressar ao seu posto de trabalho.[…]”
F) No dia 19 de Outubro de 2020, a ré comunicou ao autor a denúncia do contrato de trabalho, a produzir efeitos desde o dia 2 de Outubro de 2020, por carta com o seguinte teor:
“[…] Barcelos 19 outubro de 2020
Assunto: Denúncia Contrato de Trabalho por Abandono do Trabalho
Ex.Sr., Vimos por este meio, na qualidade de entidade empregadora, informar V. Exa da cessação do contrato de trabalho celebrado em 06 de Dezembro de 2016, porquanto, desde o dia 02 de Outubro de 2020 que não comparece no seu local de trabalho, ou seja, há mais de 10 dias uteis seguidos, sem que n/ tenha apresentado qualquer justificação.
Assim, dando cumprimento ao artigo 403º do Código do Trabalho, vimos comunicar a presunção do seu abandono do trabalho, o qual vale como denúncia do contrato de trabalho.
A cessação do contrato de trabalho produz todos os efeitos legais desde a data em que teve início a ausência ao serviço, ou seja no dia 02 de Outubro de 2020. […]” – documento de fls. 26 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
G) O autor exerceu as suas funções até 02 de Outubro de 2020.
H) O autor nunca beneficiou de formação profissional.
I) Por carta datada de 15/09/2020, o autor solicitou à ré a entrega da declaração de salários em mora, Modelo GD 18/2010 – DGSS, conforme documento de fls. 21 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
J) A ré acordou com os trabalhadores uma remuneração adicional pelo trabalho prestado em França, no montante de € 150,00 por semana.
K) No dia 30 de Setembro de 2020, a ré procedeu, mediante transferência bancária, ao pagamento ao autor da retribuição dos meses de Julho e Agosto de 2020, no valor de € 2.278,00.
L) Em 12/07/2021, a ré pagou ao autor, por transferência bancária, a quantia de € 333,86 (trezentos e trinta e três euros e oitenta e seis euros), a título de:
- remanescente da retribuição correspondente ao trabalho prestado no mês de Dezembro de 2019, no montante de € 200,00, e respectivos juros de mora, no montante de € 12,25.
- retribuição de dois dias de férias não gozados, no montante de € 114,59, e respetivos juros de mora, no montante de € 7,02.
M) A ré não pagou ao autor a retribuição correspondente ao trabalho prestado para a ré, em França, interpoladamente, durante seis semanas, no período compreendido entre o mês de Agosto e o mês de Outubro de 2019.
N) A ré não pagou ao autor a retribuição de férias correspondente a sete dias não gozados, vencidas em 01/01/2017.
O) A ré não pagou ao autor a retribuição de 17 dias de férias não gozados, vencidas no dia 1 de Janeiro de 2018.
P) A ré não pagou ao autor a retribuição de férias correspondente a sete dias não gozados, vencidas em 01 de Janeiro de 2020;
Q) A ré pagou ao autor o valor correspondente ao subsídio de férias referente aos duodécimos de Setembro a Dezembro de 2020.
R) O trabalhador foi contactado pela ACT e informado que deveria regressar ao trabalho, o que aquele recusou.
*
Os factos não provados são os seguintes:

1) O período normal de trabalho diário era de 9 horas, entre as 8-12 horas e as 13-18 horas, de segunda a sexta-feira, e o horário semanal de 45 horas.
2) A retribuição correspondente ao trabalho prestado em França era de € 250,00 por semana.
3) O autor, quando questionado sobre a ausência, manifestou à ré o propósito de não regressar ao trabalho.

4. Apreciação do recurso

4.1. A Apelante pretende que seja considerada como provada a seguinte matéria:

a) Que o autor solicitou à ré a declaração da situação de desemprego em data anterior à denúncia por esta efectuada;
b) Que o autor não tinha intenções de retomar o seu posto de trabalho, independentemente do não pagamento integral das quantias em dívida;
c) Que o autor manifestou à ré o propósito de não regressar ao trabalho;
d) Que, com o pagamento dos dois salários, cessou a suspensão do contrato de trabalho.

O constante da al. d) é claramente matéria de direito, excluída da actividade probatória, competindo ao tribunal apreciar se da factualidade que se apurar se pode extrair tal conclusão à luz do direito aplicável.
Quanto aos factos das restantes alíneas, reconduzem-se ao dado como não provado sob o n.º 3), sendo os restantes meramente instrumentais.

A decisão proferida sobre tal facto foi motivada pelo tribunal recorrido nos seguintes termos:
«A matéria constante em 3 dos factos não provados, resulta do correlacionamento de toda a prova produzida em audiência, dela tendo resultado que em nenhum momento o autor demostrou à ré não pretender regressar ao trabalho que não fosse devido ao não pagamento das quantias que entendia lhe serem devidas, o que não é contraditório com a matéria constante do artigo 14.º da contestação (facto apurado em R), quer porque descontextualizada no tempo, quer considerando, desde logo, os pagamentos efetuados pela ré em 12/07/2021 – facto provado em L) – que comprovam não ter a ré, à data de 02/10/2020, procedido ao pagamento dos créditos laborais em dívida, para fazer cessar a suspensão do contrato de trabalho, por falta de pagamentos devidos, operada pela declaração aludida no ponto E) dos factos provados.»
Concorda-se com a decisão e sua fundamentação.
Com efeito, das provas produzidas e invocadas pela Apelante não resulta que – como se refere na sentença – «o autor demostrou à ré não pretender regressar ao trabalho que não fosse devido ao não pagamento das quantias que entendia lhe serem devidas», ou, pelo menos, devido a estar ciente de que não precisava de trabalhar enquanto a ré não lhe pagasse o remanescente das quantias que tinham fundamentado a suspensão do contrato de trabalho.
Concretizando.
No que respeita ao depoimento e declarações do próprio autor, perguntado se alguma vez solicitou a declaração da situação de desemprego, foi peremptório em dizer que não. O único pedido que consta dos autos é o constante do documento junto com a resposta à contestação, mas formulado já em 12/01/2021, na sequência da invocação pela ré de abandono de trabalho. Por outro lado, o autor solicitou a declaração aludida em I) dos factos provados, que também se destina a requerer o comumente denominado «subsídio de desemprego», por suspensão ou resolução do contrato de trabalho com fundamento em salários em atraso. Aliás, mais adiante, a instâncias do Sr. Procurador, o autor referiu estar a receber «subsídio de desemprego» desde que deixou de trabalhar para a ré, com fundamento em salários em atraso, dado não ter condições para trabalhar. Ademais, perguntado porque não retomou o trabalho depois de efectuado o pagamento das retribuições de Julho e Agosto, referiu que já não se sentia moralmente com disposição para trabalhar na empresa e, instado, esclareceu que era porque ainda não lhe tinham pago o restante e que foi isto que respondeu à empresa quando foi interpelado para se apresentar ao trabalho.
Em suma, o que se retira do depoimento do autor é que a sua conduta foi toda ela conforme à sua preocupação principal de ter direito a receber «subsídio de desemprego», ou com base na suspensão do contrato de trabalho com fundamento na falta de pagamento integral das quantias reclamadas, ou com base numa declaração de situação de desemprego em que a ré reconhecesse que o desemprego era por facto alheio à vontade do autor, pelo que não se pode concluir que este manifestou à ré a vontade inequívoca e incondicional de não continuar ao seu serviço. O autor podia até não estar interessado em trabalhar, mas desde que não fosse por motivo a si imputável, para não perder o direito a «subsídio de desemprego», e foi isso que fez saber à ré.
Quanto ao depoimento da testemunha Manuel J. C. Carvalho, sobre o pedido da declaração de situação de desemprego pelo autor, é equívoco e inconsequente pelas mesmas razões. O mesmo refere, aliás, que o autor terá dito que o formulou por causa do não pagamento da retribuição de Outubro… O que se infere deste depoimento é que o autor não pretendia da ré qualquer declaração de situação de desemprego, mas uma que comprovasse que o desemprego não era por vontade sua.
O mesmo se diga do depoimento da testemunha C., ao referir que o autor lhe terá dito que o ideal era poder ficar em casa, «se o Sr. V. M. lhe desse o subsidio de desemprego» e, adiante, que «queria o papel para ir para o fundo de desemprego», o que reitera que o autor não manifestou nem quis manifestar o propósito de deixar de trabalhar por efeito de vontade unilateral sua.
Concluindo.
O que releva para efeitos de abandono do trabalho, que vale como denúncia do contrato de trabalho pelo próprio trabalhador, é se o autor manifestou à ré através da sua conduta a vontade inequívoca e incondicional de não mais retomar o trabalho, não relevando só por si que não tivesse vontade de trabalhar, ou que não se sentisse moral ou fisicamente capaz de o fazer, ou que pretendesse que a ré lhe facultasse a declaração de situação de desemprego que lhe permitisse requerer «subsídio de desemprego» (que pressupõe, precisamente, que a ré reconhecesse no mesmo o desemprego involuntário do autor), tanto mais que, simultaneamente, o autor contava que não precisasse de trabalhar enquanto a ré não lhe pagasse o remanescente das quantias que tinham fundamentado a suspensão do contrato de trabalho (no total de € 314,59, acrescido de juros de mora, que a ré só lhe pagou em 12/07/2021).
Em face do exposto, improcede a pretensão da Recorrente de alteração da matéria de facto.

4.2. Conforme se alcança do recurso, a sua procedência dependia essencialmente da modificação da decisão sobre a matéria de facto, pelo que, mantendo-se esta inalterada, aquele soçobra necessariamente.

Com efeito, estabelece o art. 403.º do Código do Trabalho:

Abandono do trabalho
1 - Considera-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador do serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelam a intenção de não o retomar.
2 - Presume-se o abandono do trabalho em caso de ausência de trabalhador do serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador seja informado do motivo da ausência.
3 - O abandono do trabalho vale como denúncia do contrato, só podendo ser invocado pelo empregador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida deste.
4 - A presunção estabelecida no n.º 2 pode ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da ausência.
5 - Em caso de abandono do trabalho, o trabalhador deve indemnizar o empregador nos termos do artigo 401.º.

Assim, são dois os elementos constitutivos do abandono do trabalho:

- um elemento objectivo, traduzido na ausência do trabalhador ao serviço, isto é, na não comparência, voluntária e injustificada, no local e no tempo de trabalho a que está obrigado;
- um elemento subjectivo, traduzido na intenção de não retomar o serviço, ou seja, na intenção de não comparência definitiva ao trabalho, a retirar de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.

Em suma, antes de mais, é suposto que o trabalhador esteja numa situação de faltas injustificadas, seja por carência de motivo atendível, seja por falta de comunicação, mas, ainda, é também necessário que o trabalhador assuma um comportamento concludente, no sentido de evidenciar que, de facto, quis pôr termo ao contrato de trabalho, embora sem proceder a uma declaração expressa nesse sentido junto do empregador (1).
No entanto, através da presunção de abandono do trabalho estabelecida no n.º 2 do preceito em análise, cuja base consiste na falta ao serviço durante 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador seja informado do motivo da ausência, o legislador veio libertar o empregador de provar o elemento subjectivo, pois, invocados tais elementos da presunção de abandono pelo empregador, por carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida do trabalhador, nos termos do n.º 3, passa a incumbir ao trabalhador a prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da ausência.
Já a comunicação prevista no n.º 3 não integra um facto constitutivo da denúncia do contrato por abandono do trabalho, tratando-se apenas de um requisito ou condição de atendibilidade ou de invocação da cessação do contrato pelo empregador.
Retornando ao caso em apreço, provou-se que o autor esteve em situação de baixa médica entre os dias 31 de Agosto e 23 de Setembro de 2020 e que, no dia 11 de Setembro de 2020, comunicou à ré a suspensão do contrato de trabalho, por falta de pagamento pontual da retribuição dos meses de Julho e Agosto de 2020, de uma parte da retribuição do mês de Dezembro de 2019 e de dois dias de férias vencidos no ano de 2019, ao abrigo do disposto no art. 325.º do Código do Trabalho, tendo ainda, por carta datada de 15/09/2020, solicitado à ré a entrega da declaração de salários em mora, Modelo GD 18/2010 – DGSS, para efeitos de requerer «subsídio de desemprego».
Mais se provou que, no dia 30 de Setembro de 2020, a ré pagou ao autor a retribuição dos meses de Julho e Agosto de 2020, no valor de € 2.278,00, e, em 12/07/2021, lhe pagou a quantia de € 333,86, a título de remanescente da retribuição de Dezembro de 2019, no montante de € 200,00, e respectivos juros de mora, no montante de € 12,25, e de retribuição de dois dias de férias não gozados, no montante de € 114,59, e respetivos juros de mora, no montante de € 7,02.
Nos termos conjugados dos arts. 294.º, n.º 3 e 325.º, n.º 1 do Código do Trabalho, no caso de falta de pagamento pontual da retribuição por período de 15 dias sobre a data do vencimento, o trabalhador pode suspender o contrato de trabalho, mediante comunicação por escrito ao empregador e ao serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área laboral, com a antecedência mínima de oito dias em relação à data de início da suspensão.
Resulta do art. 295.º, n.º 1 que, durante a suspensão, mantêm-se apenas os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho.

Finalmente, com interesse, dispõe o art. 327.º que a suspensão do contrato de trabalho cessa:

a) Mediante comunicação do trabalhador, nos termos do n.º 1 do art. 325.º, de que põe termo à suspensão a partir de determinada data;
b) Com o pagamento integral das retribuições em dívida e juros de mora;
c) Por acordo entre trabalhador e empregador para regularização das retribuições em dívida e juros de mora.

Ora, como se alcança da factualidade enunciada, a ré estava informada da suspensão do contrato de trabalho pelo autor e de que este pretendia receber «subsídio de desemprego» e, por outro lado, nem o autor lhe dirigiu comunicação nos termos da al. a) do art. 327.º, nem se verificou qualquer uma das situações previstas nas demais alíneas, designadamente porque só em 12/07/2021, com o pagamento da quantia de € 333,86, ocorreu o pagamento integral das retribuições em dívida – reclamadas, uma vez que, na verdade, estavam também em dívida as indicadas sob os pontos M), N) e O) – e juros de mora.
Consequentemente, o autor não tinha que retomar o trabalho em 2 de Outubro de 2020, não sendo a ausência injustificada e estando a ré informada do respectivo motivo.
Em face do exposto, a invocação pela ré da cessação do contrato de trabalho por denúncia do trabalhador através de abandono do trabalho não tem fundamento legal, não podendo deixar de equiparar-se a despedimento ilícito, como se entendeu na sentença recorrida (2).

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
13 de Julho de 2022

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso


1. Cfr. o Acórdão desta Relação e Secção Social de 17 de Dezembro de 2019, proferido no processo n.º 1777/18.2T8BCL.G1, disponível em www.dgsi.pt.
2. Cfr. o Acórdão desta Relação e Secção Social de 22 de Outubro de 2015, proferido no processo n.º 216/14.2TTVRL.G1, não publicado.