Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
176/21.3BEBRG.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: DISPENSA DE REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE PROCESSUAL
CASO JULGADO MATERIAL
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) Há que distinguir entre exceção de caso julgado e autoridade de caso julgado;
2) A autoridade de caso julgado visa a tutela do prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta;
3) A autoridade de caso julgado não exige, assim, a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) M. G. veio intentar ação de declarativa com processo comum contra J. C. e mulher L. C., onde conclui pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência:
A) Que os réus reconheçam que o autor é proprietário e usufrutuário do prédio id. em 1º deste articulado;
B) Que os réus sejam condenados a reconhecer que o muro construído na divisão entre os lotes nº 6 e 7 id. em 1º e 5º deste articulado está construído sobre o prédio do autor e ocupa uma faixa de 75 m2 do seu prédio;
C) Que os réus sejam condenados a derrubar o muro que construíram sobre o prédio do Autor ocupando uma faixa de 75 m2;
D) Que os réus sejam condenados no pagamento de custas e procuradoria.

Para tanto alega, em síntese, que o autor e M. F., à data ainda casados, compraram um lote de terreno que identificam, onde edificaram uma casa e, mais tarde, o autor adquiriu um outro lote, que viria a vender ao réu, entretanto os réus ocuparam uma faixa de terreno de 75 m2 do lote de que o autor é dono, que vedaram com esteios e arames, que o autor removeu, tendo os réus, na ausência do autor, construído um muro de alvenaria de tijolo, no local onde haviam colocado os esteios e arames.

Pelos réus J. C. e L. C. foi apresentada contestação e deduzido pedido reconvencional, onde concluem entendendo que:
a) Deve a invocada exceção do caso julgado ser considerada procedente; ou, quando assim se não entenda,
b) Deve a ação ser julgada totalmente não provada e improcedente; ou, quando assim se não entenda,
c) Deve o autor ser condenado a pagar aos réus, a título de indemnização pelos danos provocados, conforme o alegado em 22 a 30 deste articulado, o valor que resultar da perícia a realizar; e
d) Deve o autor ser condenado como litigante de má-fé, em multa e indemnização, nos termos alegados em 31 a 33.

Para tanto alegam, em síntese que no dia 01 de agosto de 2016, o aqui autor, M. G., intentou contra os aqui réus, J. C. e mulher, L. C., o processo 395/16.4T8AVV, o que consta do documento que juntam e onde termina pedindo:

A) Que os réus reconheçam que o autor é proprietário e usufrutuário do prédio id. em 1º deste articulado;
B) Que os réus sejam condenados a reconhecer que o muro construído na divisão entre os lotes nº 6 e 7 id. em 1º e 5º deste articulado está construído sobre o prédio do autor e ocupa uma faixa de 75 m2 do seu prédio;
C) Que os réus sejam condenados a derrubar o muro que construíram sobre o prédio do autor ocupando uma faixa de 75 m2.

Os réus contestaram e, a final, foi proferida sentença que julgou a ação integralmente improcedente, e, em consequência, absolveu os réus do peticionado, tendo o autor interposto recurso desta decisão, que veio a ser julgado integralmente improcedente por acórdão já transitado em julgado.
Assim, o autor vem propor agora uma ação idêntica àquela outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, pelo que se está perante a exceção do caso julgado.

O autor M. G. apresentou réplica onde conclui requerendo que:
a) Seja a Petição Inicial considerada provada e procedente;
b) Improceda a exceção de caso julgado, por não estarem verificados os respetivos pressupostos legais e por não estar provada;
c) Improceda a contestação dos réus, por não corresponder à verdade e por não provada;
d) Improceda tudo quanto peticionado a título de reconvenção por ser falso e não estar provado;
e) Sejam os réus condenados como litigantes de má-fé, em multa e indemnização, nos termos dos artigos 31. e 32. da presente.

Alega em síntese que a causa de pedir da presente ação é distinta da do processo 395/16.4T8AVV, porque o direito do autor se funda agora no ato jurídico de loteamento, não havendo coincidência de pedidos.
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B) Foi elaborado despacho saneador-sentença que julgou verificada a exceção dilatória do caso julgado nos presentes autos e, em consequência, absolveu os réus da instância, nos termos dos arts. 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea i), 578º, 580º e 278º, nº 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil.
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C) Inconformado, o autor M. G. veio interpor recurso (fls. 94 vº e segs), o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 106).
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Nas suas alegações, o apelante M. G. apresenta as seguintes conclusões:
a) Contrariamente ao sentenciado, in casu, não se verifica a exceção de caso julgado. Nem a causa de pedir, nem o pedido são idênticos àqueles que conduziram o processo nº 395/16.4T8AVV;
b) Porquanto, a causa de pedir no presente processo consubstanciou-se na invocação de factos, que se subsumem na alínea a) do nº 3 do artigo 13º do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação e no nº 5 do artigo 76º do Plano Diretor Municipal de ..., que conferem ao recorrente um direito subjetivo de caráter real, que acresce ao direito de propriedade e ao direito de usufruto de que é titular;
c) Ao passo que no processo nº 395/16.4T8AVV, não foram tais normas sequer convocadas a sustentar o pedido formulado pelo recorrente;
d) Nem o recorrente reivindicou a titularidade de tal direito;
e) Idem, os pedidos são, por conseguinte, diferentes;
f) Acresce que, o Tribunal a quo se eximiu de dirigir o presente processo, inobservando o disposto no nº 1 do artigo 6º do CPC;
g) Havendo dispensado a audiência prévia, em sede de despacho-saneador sentença, quando se impunha a sua realização;
h) Violando, desta forma, o preceituado na alínea d) do nº 1 do artigo 591º do CPC e fazendo, assim, padecer a sentença de nulidade;
i) Por último, o Tribunal a quo violou flagrantemente o princípio do contraditório, previsto no nº 3 do artigo 3º do CPC e o nº 4 do mesmo dispositivo legal;
j) Implicativamente, o Tribunal a quo desrespeitou o imposto pelo nº 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa;
k) Pelo que, deve a douta sentença ser substituída por outra que possibilite discutir em condições de garantir a prossecução do direito do contraditório, dando como procedentes a totalidade dos pedidos do recorrente;
l) O recurso de apelação está em tempo.
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Não foi apresentada resposta.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) As questões a decidir na apelação são as de saber:
1) Se a invocação da nulidade da falta de realização da audiência prévia é tempestiva;
2) Se deverá ser revogado o despacho saneador-sentença que julgou verificada a exceção de caso julgado.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Considerou-se provada a seguinte matéria de facto:
1. O autor e os réus são os mesmos em ambos os processos;
2. Na ação com o nº 395/16.4T8AVV, o autor peticionou:
“A) Que os réus reconheçam que o autor é proprietário e usufrutuário do prédio id. em 1º do articulado;
B) Que os réus sejam condenados a reconhecer que o muro construído na divisão entre os lotes nº 6 e 7 id. em 1º e 5º deste articulado está construído sobre o prédio do autor e ocupa uma faixa de 75 m2 do seu prédio;
C) Que os réus sejam condenados a derrubar o muro que construíram sobre o prédio do autor ocupando uma faixa de 75 m2.”;
3. Na presente ação, o autor peticiona:
“I. Que devam os réus reconhecer que o autor é legítimo proprietário e usufrutuário do prédio id. em 1º do articulado;
II. Que os réus sejam condenados a reconhecer que o muro construído na divisão entre os lotes nº 6 e 7 id. em 1º e 5º da presente petição inicial está construído sobre o prédio do autor e ocupa uma faixa de 75 m2 do seu prédio, violando ostensivamente o alvará de loteamento;
III. Que sejam os réus condenados a derrubar o muro que construíram sobre o prédio do autor ocupando uma faixa de 75 m2;
IV. Que sejam os réus condenados a construir novo muro à distância de cinco metros”;
4. Na ação com o nº 395/16.4T8AVV, o autor alegou que os réus, seus ex-sogros, aproveitaram a ausência do autor e construíram um muro entre os prédios de ambas as partes, invadindo uma faixa de terreno do autor;
5. Na presente ação alega precisamente a mesma factualidade, mas acrescenta que ao procederem de tal forma, os réus violaram o plano de loteamento, não tendo respeitado as medidas de afastamento de cinco metros entre os lotes;
6. A ação com o nº 395/16.4T8AVV foi julgada improcedente por sentença datada de 12.12.2018 e confirmada por acórdão do Tribunal da Relação, datado de 17.10.2019.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) O apelante veio referir que o tribunal dispensou a realização da audiência prévia, em sede de despacho-saneador sentença, quando se impunha a sua realização, violando, desta forma, o preceituado na alínea d) do nº 1 do artigo 591º do CPC e fazendo, assim, padecer a sentença de nulidade.

Importa notar que ainda que existisse a invocada nulidade – que no caso não existe, atento o disposto no artigo 592º nº 1 alínea b) NCPC, o que é, aliás referido na parte inicial do despacho que antecede o despacho saneador – sempre a sua alegação seria intempestiva, uma vez que a decisão foi proferida em 28/12/2021 e notificada às partes em 29/12/2021, tendo em conta que as partes não estiveram presentes na prolação da sentença, o prazo para a sua arguição é de 10 dias e terminou em 13/01/2022, pelo que tendo sido arguida em 07/02/2022, a sua arguição é manifestamente extemporânea (artigos 195º, 199º nº 1 e 149º nº 1 NCPC), sendo certo que a nulidade prevista no artigo 195º não beneficia da extensão do prazo prevista no artigo 615º nº 4 NCPC.
Conforme se refere no Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Edição, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, a páginas 762, “importa que se estabeleça uma separação entre as nulidades de processo (art. 195º) e nulidades de julgamento (art. 615º), sendo que o regime do preceito (artigo 615º) apenas a estas se aplica; as demais deverão ser arguidas pelas partes ou suscitadas oficiosamente pelo juiz, nos termos previstos noutros normativos.”
Também se refere no Acórdão do STJ de 26/05/2021, no processo 17919/16.0T8LSB-A.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Henrique Araújo, disponível em www.dgsi.pt, “Importando as nulidades de processo em desvios do formalismo processual - devido pela prática de um ato proibido ou por via da omissão de um ato prescrito na lei que tenha influência na decisão da causa - a pretensão do recorrente quanto à arguição da nulidade decorrente de tal omissão, perante este tribunal (STJ), ainda assim, deveria improceder, tanto mais que a mesma não foi devidamente arguida.
Com efeito, não se olvide que, em face da conjugação dos artigos 195º a 197º, 199º e 200º do CPC, não se tratando de nulidades de que a lei permita o conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das mesmas sobre reclamação dos interessados.
Ora, considerando a velha máxima de que “dos despachos recorre-se e das nulidades reclama-se", deveria o aqui recorrente, ao tomar conhecimento da sentença objeto do presente recurso, reclamar perante o tribunal a quo ( … ) suscitando então a prolação de despacho sobre tal nulidade, podendo posteriormente, e então aí, dependendo da decisão proferida, a mesma ser eventualmente impugnada por via de recurso, ainda que com a limitação constante do nº 2 do artigo 630º do CPC.
Veja-se que, em bom rigor, pese embora o recorrente reaja contra a sentença proferida, certo é que não ataca diretamente o seu conteúdo, mas sim a prévia omissão, pelo tribunal a quo, de um ato processual que se impunha, pelo que, o meio processual próprio para reagir contra aquela omissão seria, a nosso ver, a reclamação perante aquele tribunal, nos termos do artigo 199º do CPC.”
Improcede, assim, a arguição da nulidade.
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Levanta-se a questão de saber se deverá ser alterada decisão que julgou procedente a exceção de caso julgado.
A noção de caso julgado refere-se ao caso julgado material, enquanto no caso julgado formal se trata da repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo (cfr. Prof. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 308).
“Tanto o caso julgado material, como o caso julgado formal, pressupõem o trânsito em julgado da decisão. O caso julgado material cobre a decisão proferida sobre o fundo ou mérito da causa, enquanto o caso julgado formal aproveita às decisões sobre as questões de carácter processual.
O caso julgado material tem força obrigatória, não só dentro do processo em que a decisão é proferida, mas principalmente fora dele.
A força e a autoridade atribuídas à decisão transitada em julgado, quer ela se refira à relação processual, quer sobretudo quando respeita à relação material litigada, visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida mais tarde, em termos diferentes, por outro ou pelo mesmo tribunal. Trata-se de acautelar uma necessidade vital de segurança jurídica e de certeza do direito, acima da intenção de defender o prestígio da administração da justiça” (ibidem, pág. 309).
Atualmente o caso julgado constitui uma exceção dilatória (artigo 577º alínea i) do NCPC), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576º nº 2 NCPC).
A exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, conforme resulta do artigo 580º NCPC.

Quanto aos requisitos do caso julgado (e da litispendência) diz-nos o artigo 581º NCPC que:

“1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/09/2010, no Processo 392/09.6TBCVL.C1, relatado pelo Desembargador Jorge Arcanjo, disponível em www.dgsi.pt, “A expressão “caso julgado“ é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado“, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega.
O caso julgado material (arts. 671º e 673º do Código de Processo Civil – arts. 619º e 620º NCPC) implica dois efeitos – um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado (cf., para a distinção de ambas as figuras, cf., por ex., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 320, Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 384, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 576, e “O objeto da sentença e o caso julgado material“, BMJ 325, pág.171, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 325, Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, pág. 394).
A exceção do caso julgado pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir (arts. 497º e 498º do CPC – arts. 580º e 581º NCPC) e distingue-se da autoridade do caso julgado, onde este se manifesta no seu aspeto positivo.
Definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, refere Teixeira de Sousa - “A exceção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a exceção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (“O objeto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs.).
A jurisprudência tem acolhido esta distinção (cf., por ex., Ac do STJ de 26/1/94, BMJ 433, pág.515, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24 ), sendo que para a autoridade do caso julgado não se exige, segundo entendimento prevalecente, a coexistência da tríplice identidade, prevista no art. 498º do CPC – 581º NCPC – (cf., por ex., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 320, Ac do STJ de 13/2/2007, em www.dgsi.pt, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24, Ac RP de 2/4/98, Ac RC de 27/9/05, em www.dgsi.pt).

Neste contexto, pode distinguir-se ambos os institutos da seguinte forma:
A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas;
A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica).

Na verdade, considerando que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e exclui todo o efeito incompatível (…) mas estando judicialmente decidido, por trânsito em julgado, isso mesmo, não pode voltar a apreciar-se tal questão, por se lhe impor a primeira decisão sobre a relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo ou seja com a autoridade de caso julgado (arts.671º nº 1 e 673º do CPC).”

“A propósito dos limites subjetivos do caso julgado, muito embora a regra seja a vinculação entre as partes (eficácia relativa), há casos em que a sentença se projeta na esfera jurídica de terceiros, vinculando-os. Daí que tanto a doutrina, como a jurisprudência, tenham vindo a acolher a distinção entre “eficácia direta” e “eficácia reflexa” do caso julgado.
Neste contexto, assumem eficácia reflexa ou ultra partes, por exemplo as sentenças de anulação ou declarativas da nulidade de negócios, as proferidas em questões de estado, as formadas sobre uma relação jurídica que surge como fundamento de pretensões em ações posteriores (cf., por ex, António Cunha, Limites Subjetivos do Caso Julgado, pág. 14 e segs.).
Para Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág.588 e segs.), a eficácia reflexa vincula qualquer sujeito a aceitar aquilo que foi decidido entre todos os sujeitos com legitimidade processual, isto é, “quando a ação decorreu entre todos os interessados diretos (quer ativos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores (na expressão do art. 2503º § único, CC/1867) deve ser aceite por qualquer terceiro”.
No caso que nos ocupa, não há qualquer dúvida quanto à verificação da identidade dos sujeitos em ambas as ações, entendendo o apelante que nem a causa de pedir, nem o pedido são idênticos nas duas ações.
A este propósito, refere-se na decisão recorrida que “Relativamente aos pedidos, são exatamente os mesmos, com exceção da parte final do pedido do ponto II (“violando ostensivamente o alvará de loteamento”) e pedido efetuado em IV (condenação à construção de um novo muro).
Todavia, nesta parte entendemos (à semelhança da posição adiantada no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16.03.2017) que há identidade de pedidos, pois, apesar de não haver total coincidência, os pedidos da presente ação estão numa relação de decorrência lógica face aos pedidos da outra ação.”
( … )
“E aqui chegados, qual é a causa de pedir em ambas as ações?
É exatamente a mesma! Trata-se da factualidade relativa à construção de um muro por parte dos réus, que alegadamente invade uma faixa de terreno da propriedade do autor.
Se tal ocupação do terreno é ilegal ou ilegítima porque viola o direito de propriedade do autor ou porque viola as normas administrativas urbanísticas relativas ao plano de loteamento, já se trata de matéria de direito, ou seja, trata-se das “razões de direito que servem de fundamento à ação”.

Vejamos.

Quanto aos pedidos, está provado que:
2. Na ação com o nº 395/16.4T8AVV, o autor peticionou:
“A) Que os réus reconheçam que o autor é proprietário e usufrutuário do prédio id. em 1º do articulado;
B) Que os réus sejam condenados a reconhecer que o muro construído na divisão entre os lotes nº 6 e 7 id. em 1º e 5º deste articulado está construído sobre o prédio do autor e ocupa uma faixa de 75 m2 do seu prédio;
C) Que os réus sejam condenados a derrubar o muro que construíram sobre o prédio do autor ocupando uma faixa de 75 m2.”;
3. Na presente ação, o autor peticiona:
“I. Que devam os réus reconhecer que o autor é legítimo proprietário e usufrutuário do prédio id. em 1º do articulado;
II. Que os réus sejam condenados a reconhecer que o muro construído na divisão entre os lotes nº 6 e 7 id. em 1º e 5º da presente petição inicial está construído sobre o prédio do autor e ocupa uma faixa de 75 m2 do seu prédio, violando ostensivamente o alvará de loteamento;
III. Que sejam os réus condenados a derrubar o muro que construíram sobre o prédio do Autor ocupando uma faixa de 75 m2;
IV. Que sejam os réus condenados a construir novo muro à distância de cinco metros”;
Isto é, na presente ação acrescenta-se no pedido, a mais do que consta na 1ª ação, quanto ao 2º pedido, a expressão “violando ostensivamente o alvará de loteamento”.
A questão que se levanta, a este propósito, é a de saber se a expressão referida, constante do 2º pedido, contem, em si, algum pedido e a resposta é, claramente, não.
Conforme refere o Professor Antunes Varela, com os Drs. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora no seu Manual de Processo Civil, 2ª Edição a páginas 245, o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor, enquanto a causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
Ora, conforme se referiu, a expressão acrescentada no 2º pedido da presente ação, nada acrescenta ao pedido, dado que não formula qualquer nova pretensão de tutela jurisdicional, relativamente à 1ª ação, antes pretende acrescentar um outro argumento em defesa do mesmo anterior pedido.
No que se refere ao pedido formulado no ponto IV (Que sejam os réus condenados a construir novo muro à distância de cinco metros), efetivamente não constava da 1ª ação.
Importa ter em conta que, conforme referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Edição, a páginas 686, “a identidade de pedidos afere-se pela circunstância de em ambas as ações se pretender obter o mesmo efeito prático-jurídico, não sendo de exigir uma adequação integral das pretensões (STJ 14-12-16, 219/14, STJ 24-2-15, 915/09, e STJ 6-6-00, 00A327). Assim, se a forma como o autor se expressou na petição inicial e o modo como tal se refletiu na sentença são importantes para a aferição da identidade do pedido que foi formulado e apreciado, não deixa de ser importante o que, numa perspetiva substancial, está contido explicitamente e, por vezes, até implicitamente nessas formulações seguindo sempre um critério orientador segundo o qual, para além de ser dispensável a repetição da mesma causa entre os mesmos sujeitos, deve vedar-se a possibilidade de ocorrer, com a sentença que venha a ser proferida, uma contradição decisória.
A identidade de pedidos pode, aliás, ser apenas parcial e, ainda assim, ser bastante para que se considerem verificadas a exceção de litispendência ou de caso julgado. Por exemplo, em face de uma anterior sentença que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre um determinado prédio, com base num determinado fundamento, (ação de simples apreciação positiva), existe repetição da causa se for proposta uma ação de reivindicação na qual, com base no mesmo fundamento, se pretenda ainda a condenação do réu na restituição do bem.”
A identidade de causas de pedir verifica-se quando as pretensões deduzidas nas ações derivam do mesmo facto jurídico, analisado à luz da substanciação consagrada no nº 4. No que tange à noção operativa de causa de pedir para efeitos de litispendência, Mariana França Gouveia, A causa de Pedir na Ação Declarativa, defende que se identifica com o conjunto de factos principais que permitem preencher determinada norma jurídica, de modo que apenas quando noutra ação se aleguem normas que impliquem, pelo menos, um facto principal diferente será diversa a causa de pedir (p. 508). Continua a mesma autora que só haverá exceção de litispendência quando, na segunda ação, não são alegados factos principais diferentes dos alegados na primeira (p. 512) e que, para efeitos de exceção de caso julgado, a causa de pedir será definida “através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada (p. 497), daqui derivando que um mesmo acontecimento histórico possa ser reapreciado com base noutra norma jurídica quando algum dos factos que permitem a aplicação dessa norma não tenha sido apreciado pelo juiz.
Em STJ 14-12-16, 219/14, entendeu-se que a identidade e individualidade das causas de pedir tem de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial, não sendo afetada tal identidade, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão (neste sentido cf. ainda STJ 1-10-19, 20427/16), nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afete o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as ações, nem pela invocação na primeira ação de determinada factualidade, perspetivada como meramente instrumental ou concretizadora dos factos essenciais (cf. ainda STJ 17-4-181486/15, STJ 24/4/13, 7770/07 e RP 9-7-14, 16/13). Em STJ18-9-18, 21852/15, entendeu-se que, para delimitar determinada causa de pedir não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.”
Serve tudo para concluir que bem decidiu a 1ª instância quando considerou verificada a exceção de caso julgado.
Está bom de ver que não podem as partes, inconformadas com uma decisão anterior transitada em julgado, vir intentar nova ação, contra a mesma parte passiva, com base na mesma causa de pedir e com os mesmos pedidos, acrescentado um pedido, cuja decisão proferida na anterior sentença, já lhe retira qualquer utilidade por força dessa prévia decisão e baseado num fundamento jurídico artificioso que em nada altera aquela decisão.
Como se referiu supra, o caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior e se fosse permitida a reapreciação da anterior decisão, transitada em julgado, mediante pedidos que já estão englobados no núcleo essencial da anterior ação, estava aberto o caminho para a desfiguração do conteúdo e alcance do caso julgado.
De resto cumpre esclarecer que relativamente à conclusão b) da apelação refere o apelante que “a causa de pedir no presente processo consubstanciou-se na invocação de factos, que se subsumem na alínea a) do nº 3 do artigo 13º do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação e no nº 5 do artigo 76º do Plano Diretor Municipal de ..., que conferem ao recorrente um direito subjetivo de caráter real, que acresce ao direito de propriedade e ao direito de usufruto de que é titular” trata-se, manifestamente, de lapso, na medida em que por força do princípio estabelecido no artigo 1306º nº 1 do Código Civil “não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional.”
Aliás basta ler os normativos indicados para se perceber a falta de razão do apelante.
Com efeitos, os limites de afastamento construções em prédios vizinhos pertencentes a donos diferentes já constam do Código Civil, pelo que a invocação nesta ação de Regulamentos Municipais ou de Planos Diretores Municipais, não tem a virtualidade de extravasar do âmbito da anterior causa de pedir.
Assim sendo, verificando-se, entre a anterior ação e a presente, a identidade dos sujeitos, dos pedidos e da causa de pedir, daí resulta que se mostra verificada a exceção dilatória de caso julgado, que tem como consequência a absolvição dos réus da instância (artigos 576º, 577º i), 580º e 278º nº 1 e) NCPC).
De resto, ainda que assim não fosse – e é – sempre haveria lugar à invocação da autoridade do caso julgado, que se traduziria no mesmo resultado.
Como é manifesto, não há qualquer violação do princípio do contraditório, previsto no nº 3 do artigo 3º do CPC e o nº 4 do mesmo dispositivo legal, nem do disposto no nº 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que a apelação terá de ser julgada improcedente e, em consequência, confirmada a douta decisão recorrida.
Face ao decaimento da pretensão do apelante sobre o mesmo recai o encargo de pagamento das custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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E) Em conclusão e sumariando:
1) Há que distinguir entre exceção de caso julgado e autoridade de caso julgado;
2) A autoridade de caso julgado visa a tutela do prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta;
3) A autoridade de caso julgado não exige, assim, a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se julgar a apelação improcedente e confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
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Guimarães, 13/07/2022

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares
2ª Adjunta: Desembargadora Margarida Almeida Fernandes