Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2561/20.9T8VCT.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
FALTA DE CAUSA DE PEDIR
FACTOS ESSENCIAIS
INSUFICIÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
A ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir pressupõe que, do ponto de vista lógico e racional, o pedido se oponha e brigue com a causa de pedir
Não há ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir se o acervo fáctico que serve de base à pretensão deduzida for compreensível, pese embora, eventualmente, não conduza à procedência da ação.
A omissão de factos essenciais ao preenchimento do instituto ou da previsão normativa gera inconcludência da acção e não vício processual.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AUTOR: J. V..
RÉUS:
1- J. A., viúvo;
2ºS - M. F. e marido C. R.,
3º R. F.
4º P. V.
5º - D. D.,
O autor intentou acção de processo comum pedindo que os réus sejam solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia global de €198.502,09, a título de créditos salariais, de falta de formação profissional, retribuições, subsídios de férias e de Natal, diferenças salariais, trabalho nocturno, trabalho suplementar, descanso compensatório, férias, proporcionais, indemnização pela resolução com justa causa e danos não patrimoniais.
Sustenta que foi contratado para exercer as funções de Motorista/Manobrador de Máquinas, sob as ordens, autoridade, direcção, fiscalização e mediante remuneração, do 1º réu J. A. (também seu pai), para quem trabalhou desde 1-03-2000 até 12-09-2019. Por carta registada com aviso de recepção, datada de 12 de setembro de 2019, o autor comunicou ao 1º réu enquanto empregador, a resolução do contrato de trabalho com justa causa, por, em suma, terem sido sistematicamente violados os seus direitos, mormente trabalhando sem usufR. F.r dos dias legais de descanso e sem lhe ser paga a correspondente remuneração. Os demais réus (irmãos e/ou cunhadas do autor) são demandados na qualidade de herdeiros e/ou cônjuges de herdeiros da falecida esposa do 1º R (também mãe do autor e de alguns RR), porque esta seria também detentora do estabelecimento comercial onde o autor laborava, o qual faz parte da herança aceite por estes RR, pese embora ainda permaneça indivisa.

Os RR contestaram, por exceção e por impugnação. Entre o mais, excecionaram:

(i) a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir. Os réus P. V. e R. F. referem que a relação laboral invocada se dirige ao 1º R e, consequentemente, os RR não poderão ser condenados a título individual por eventual dívida do 1º réu, pai de ambos, ou da empresa por este explorada, quando muito poderia ser formulado pedido contra a herança indivisa por morte da mãe do A. e dos RR;
(ii) a ilegitimidade. O réu J. A. refere que, na versão do autor, este foi contratado pelo 1º R. para trabalhar num estabelecimento que era bem comum. Assim, a acção deveria ter sido instaurada contra a herança indivisa e não contra os RR a título individual. O réu R. F. refere que não é parte da alegada relação laboral, porque se o autor é credor da herança indivisa então deveria ser esta a demandada e não os RR a título individual.
No mais, em geral impugnam a existência da relação laboral, em especial o 1º R (pai do A e de alguns RR) sustenta que desde 2010 (data da morte da esposa) abandonou a gestão do estabelecimento comercial que ficou entregue ao autor e ao irmão, o réu R. F..
As partes foram notificadas para se pronunciarem sobre as excepções acima referidas.
Após, foi proferido o despacho ora recorrido onde se considerou que “ocorre uma manifesta contradição entre o pedido formulado (a condenação solidária dos RR.) e a causa de pedir (a existência de um contrato de trabalho apenas com o primeiro R.).”
E decidiu-se julgar ” procedente a excepção de ineptidão da petição inicial, absolvendo-se todos os RR. da instância”.“

RECURSO DO AUTOR- CONCLUSÕES:

I. O presente recurso vem interposto da douta sentença judicial proferida pelo tribunal a quo em 22/02/2022 (ref.ª48231528), que julgou verificada a exceção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolveu os réus da instância.
II. O tribunal a quo considerou que a causa de pedir é ininteligível e, por isso, a petição inicial é inepta, nos termos do artigo 186º, do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º2 alínea a) do Código Processo de Trabalho.
III. O Tribunal a quo considerou “(…) Afigura-se-nos que ocorre uma manifesta ineptidão da petição inicial, por contradição do pedido com a causa de pedir, nos termos do artº. 186, nº. 2, b), do C. P. Civil, vício este que é de conhecimento oficioso – artº. 196 do mesmo diploma.(…)”
IV. O aqui recorrente entende que inexiste qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir, a petição inicial não é inepta, pelo que não se verifica a exceção de nulidade de todo o processo prevista no artigo 186º do Código de Processo Civil.
V. A contradição entre o pedido e a causa de pedir só ocorre quando se verifique uma contradição ou incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico entre os dois termos da pretensão que nem sequer permita formular um juízo de mérito positivo ou negativo sobre a mesma. Assim, não basta uma simples desarmonia, exige-se que pedido e causa de pedir se neguem reciprocamente, uma conclusão que pressupõe uma premissa oposta.
VI. O Autor indicou factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir (contrato de trabalho, vigência e cessação) e o objecto imediato e mediato da acção (pagamento dos créditos emergentes da vigência e cessação da relação laboral).
VII. Não há contradição entre o pedido formulado (a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia global de €198.502,09, a título de créditos salariais, de falta de formação profissional, retribuições, subsídios de férias e de Natal, diferenças salariais, trabalho nocturno, trabalho suplementar, descanso compensatório, férias, proporcionais, indemnização pela resolução com justa causa e danos não patrimoniais) e a causa de pedir (a existência ( celebração e vigência) de um contrato de trabalho celebrado com o primeiro R., mas afecto ao estabelecimento comercial propriedade do 1.º Réu e da Herança Ilíquida e indivisa aberta por óbito de M. V.), e consequentes violações desse contrato.
VIII. Isto porque, o Autor aqui Recorrente entende que todos os Réus são parte legítima na presente demanda. Sendo certo que em sede de articulado inicial dos presentes autos foram demandados todos os herdeiros e foi alegada e fundamentada a legitimidade passiva de todos os Réus, ou seja a causa de pedir está plenamente concretizada.
IX. Designadamente, foi explanado pelo Autor nos artigo 294.º a 302.º da Petição inicial o seguinte:
“(…) 294. O primeiro Réu J. A. é viúvo de M. V., falecida em -/10/2010, com quem foi casado no regime da comunhão de adquiridos e em primeiras núpcias de ambos.
295. Na Constância do matrimonio o 1.º Réu adquiriu o estabelecimento comercial de venda ao público de materiais de construção civil, onde tem centrada toda a sua actividade comercial e de prestação de serviços e onde o Autor estava afecto.
296. São herdeiros de M. V. o conjugue aqui 1. º Réu e os seus filhos J. V. aqui Autor, e os 2.º, 3.º e 4.º Réus
297.C. R. e D. D. são cônjuges de herdeiros e já tinham adquirido essa qualidade na data de abertura da sucessão.
298. O referido estabelecimento comercial encontra-se indicado na relação de bens do processo de inventário por óbito de M. V. que corre seus termos junto do Cartório notarial em ... de A. C., sob o processo n.º 505/13.
299. Todos os herdeiros supra identificados já aceitaram a herança.
300. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091 do CC).
301. A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.
302. Por conseguinte, as partes são legítimas e dotadas de capacidade jurídica.(…)”
X. O primeiro Réu J. A. é viúvo de M. V., falecida em -/10/2010, com quem foi casado no regime da comunhão de adquiridos e em primeiras núpcias de ambos.
XI. Na constância do matrimonio o 1.º Réu adquiriu o estabelecimento comercial de venda ao público de materiais de construção civil, onde tem centrada toda a sua actividade comercial e de prestação de serviços e onde o Autor estava afecto.
XII. O estabelecimento comercial é um bem mercantil, que engloba o complexo de bens e direitos que o comerciante afeta à exploração da sua empresa, e que apresenta uma utilidade, uma funcionalidade e um valor próprios, distintos de cada um dos seus componentes e que o direito trata, unitariamente.
XIII. E, tratando-se de um bem suscetível de ser objeto de relações jurídicas, está integrado por um conjunto de bens autónomos, porque é constituído por alguns elementos que não são coisas, designadamente, os créditos, débitos e contratos, é ainda uma universalidade de direito mobiliária, “sui generis”, de natureza funcional.
XIV. Sendo o estabelecimento comercial uma universalidade, como unidade continua, enquanto explorado pelo cabeça-de-casal, até ao momento de ser partilhado.
XV. O estabelecimento em exercício é algo mutável – “um estabelecimento em exercício é verdadeiramente uma organização en faizant, não uma organização definitivamente já fait”, Orlando Carvalho, Critério e Estrutura do estabelecimento, p.719
XVI. Citando os escritos do Prof. Fernando Olavo, in Lições de Direito Comercial, Vol. I, pág. 269 e seguinte, “….. o estabelecimento surge como uma unidade, um organismo em que os factores capital e trabalho aliados a uma força de coesão que estrutura e liga o complexo de elementos heterogéneos que compõem o estabelecimento, lhe conferem uma determinada organização, uma função e uma destinação económica específicas, de tal modo que não será possível reduzir o estabelecimento comercial à simples pluralidade dos seus bens, já que, o valor económico de todo é maior do que a soma dos seus vários elementos componentes.
XVII. Transpondo este entendimento para a sede da tramitação típica do processo de inventário, deve reconhecer-se que o estabelecimento comercial, sendo uma universalidade de bens, relaciona-se sob uma única verba, como um todo único, um bloco, não sendo lícito desintegrar dele o seu passivo para o sujeitar ao regime das outras dívidas da herança, não podendo assim, tal passivo ser relacionado em separado.
XVIII. Como refere J. A. Lopes Cardoso (in Partilhas Judiciais – Teoria e Prática, Almedina, 1970, vol. III, p. 79 e 80), “sobre o passivo que onere um estabelecimento comercial que faz parte da herança inventariada (…) o estabelecimento relaciona-se e descreve-se como mera universalidade e o seu valor expressa-se pelo respetivo balanço, ou seja, pela diferença entre as verbas do ativo e do passivo que nele se compreendem”.
XIX. Desta forma, correspondendo o valor do estabelecimento ao que resultar do balanço e, compreendendo-se neste todos os elementos ativos e passivos, não deve desintegrar-se do estabelecimento o seu passivo, relacionando-o em separado e sujeitando-o ao regime das outras dívidas da herança.
XX. Por outro lado, todos os herdeiros, aqui Réus já aceitaram a herança XXI. Corre termos o processo de inventário n.º 3008/16.0T8VCT, junto do Juízo Local Cível de ... - Juiz 2, Tribunal da Comarca de ..., e que teve origem no processo de inventário n.º 505/13, que correu termos junto do Cartório Notarial da Exma. Senhora Notária Dra. A. C. Do Cartório Notarial De ....
XXII. Nesses autos de processo de inventário todos os herdeiros aceitaram a qualidade de herdeiros, sendo que após regularmente citados nenhum apresentou impugnação à qualidade de herdeiro, e todos sem exceção apresentaram reclamação à relação de bens, reclamando a falta de bens, inexatidão e impugnando o valor dos bens constantes da relação de bens.
XXIII. O Réu J. A., requerente do Processo de Inventário, aceitou o cargo de cabeça de casal, em sede de declarações de cabeça de casal reconheceu expressamente a sua qualidade de herdeiro, apresentou a relação de bens e respondeu às reclamações à relação de bens apresentadas.
XXIV. O Réu P. V. foi citado nos autos de inventário que corre seus termos sob processo n.º 3008/16.0T8VCT , que corres seus termos junto do Juízo Local Cível de ... - Juiz 2, Tribunal da Comarca de .... Nesses autos assumiu o título de herdeiro e apresentou reclamação à relação de bens, reclamando a falta de relacionação de bens, impugnando o valor atribuído aos bens, etc., requereu a produção de prova, para o efeito.
XXV. O Réu R. F. foi citado nos autos de inventário que corre seus termos sob processo n.º 3008/16.0T8VCT , que corres seus termos junto do Juízo Local Cível de ... - Juiz 2, Tribunal da Comarca de .... Nesses autos assumiu o título de herdeiro e apresentou reclamação à relação de bens, reclamando a falta de relacionação de bens, impugnando o valor atribuído aos bens, etc., requereu a produção de prova, para o efeito
XXVI. Por conseguinte, a prática de tais atos permite inferir a aceitação expressa da herança por todos os Herdeiros aqui Réus.
XXVII. A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (diz o n.º 2).
XXVIII. Em confronto com a noção geral de declaração expressa definida no n.º 1 do artigo 217º do Código Civil – a declaração negocial é expressa “quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade”- constata-se uma exigência acrescida na noção de declaração expressa de aceitação da herança: só pode constar de documento escrito e não já de “palavras ... ou outro qualquer meio directo de manifestação de vontade” e nesse documento escrito tem de declarar que aceita a herança ou assumir o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.
XXIX. Há aqui uma clara exigência de declaração inequívoca de aceitação da herança; de ser herdeiro e não mero sucessível. Exigência que se compreende, face à equivocidade de muitos actos praticados em relação aos bens que integram a herança. ( cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, (1998) vol. VI, págs. 92 e 93).
XXX. Quanto à aceitação tácita, não definida no artigo 2056º do Código Civil, tem-se entendido que resulta do disposto no artigo 217º, n.º 1 do mesmo código, que considera a declaração negocial tácita a manifestação de vontade que se revele, com toda a probabilidade, de simples factos. ( cfr. Acórdão do STJ, de 25/07/78, BMJ, 279,184)
XXXI. “I – Quem foi incluído pelo inventariante entre os herdeiros e, citado nessa qualidade, a não impugna e nesse processo defende os seus interesses, faz uma aceitação expressa da herança.” Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-03-2009, Processo n.º 270/04.5TBVCD.P1, in www.dgsi.pt
XXXII. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091 do CC).
XXXIII. A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.
XXXIV. “A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.”Cfr. Acórdao do Tribunal da Relação do Coimbra, Processo n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1, de 26-02-2019, in www.dgsi.pt.
XXXV. Por conseguinte, as partes são legítimas e dotadas de capacidade jurídica.
XXXVI. Deste modo, atenta a legitimidade passiva e a plena concretização do pedido contra todos os RR. não se vislumbra contradição entre o pedido e a causa de pedir.
XXXVII. Não olvidando que o estabelecimento comercial está integrado por um conjunto de bens autónomos, porque é constituído por alguns elementos que não são coisas, designadamente, os créditos, débitos e contratos, é ainda uma universalidade de direito mobiliária, “sui generis”, de natureza funcional. E ainda que se trata de um bem suscetível de ser objeto de relações jurídicas, tal como a que se discute nos presentes autos.
XXXVIII. Além disso, os réus J. A.; R. F. e P. V. contestaram a presente ação e interpretaram devida e cabalmente o sentido e o alcance da causa de pedir e pedidos indicados na petição inicial, tendo exercido plenamente o contraditório quanto aos factos ali alegados.
XXXIX. O aqui recorrente indicou a causa de pedir na petição inicial e esta é inteligível.
XL. Ora, no caso em apreço há nexo lógico entre os pedidos e a causa de pedir invocada pelo Autor.
XLI. Por tudo o exposto, a petição inicial não é inepta, pelo que não se verifica a exceção de nulidade de todo o processo prevista no artigo 186º do Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência revogado o despacho/sentença de que ora se recorre e substituindo por outra que julgue improcedente por provada a excepção de ineptidão da petição inicial nos termos supra expostos…”

CONTRA-ALEGAÇÕES- sustenta-se a rejeição do recurso por não cumprimento do dever de condensar as conclusões (639º, 3, CPC) e a improcedência por razão de mérito.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: sustenta a improcedência do recurso.
RESPOSTA DO AUTOR - reitera a posição anterior.
O recurso foi apreciado em conferência.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): excepção de ineptidão da petição inicial.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
São os constantes do relatório.

B) DIREITO
Preliminarmente rejeita-se a objeção dos RR feita ao conhecimento do recurso porque, pese embora as conclusões não sejam um modelo de concisão, cumprem as exigências legais. Ou seja, não são prolixas ao ponto de não permitirem a compreensão, mais ou menos rápida, do litígio - artigo 639º, 3, CPC.
Ademais, ainda que assim não fosse, a única consequência seria um mero convite ao aperfeiçoamento e não a rejeição do recurso, o que se entendeu desnecessário.
Exceção de ineptidão da petição inicial por contradição do pedido com a causa de pedir
O senhor juiz a quo absolveu da instância todos os RR (incluindo o 1ºR), por suposto vício de ineptidão da petição inicial que se estenderia a todos os demandados.
Em suma, considerou que a factualidade alegada pelo autor não lhe concede o direito arrogado e não permite a condenação dos RR. Isto porque só o 1º réu é apresentado como empregador e os demais são apresentados como herdeiros da esposa deste réu e também dona do estabelecimento comercial onde o A. desenvolveria a sua actividade profissional.

É ilustrativo deste pensamento o seguinte trecho:

“…a causa de pedir se consubstancia na existência de um contrato de trabalho com o primeiro R. e consequentes violações desse contrato.
Mas então, e com todo o devido respeito por opinião contrária, não vemos de que forma é possível, com a factualidade vertida no articulado do A., integrar o direito subjectivo que o pedido efectuado pressupõe, ou seja, a condenação solidária de todos os RR. no pagamento daquela quantia.
De acordo com o que consta da petição, os 2ºs, 3ºs e 4ºs. RR. nada têm a ver com aquela relação laboral: não são, nem nunca foram, a entidade empregadora do A.
Então a que título é que é formulado o pedido de condenação solidária destes?
Segundo a posição do A., por ter desempenhado as suas funções num estabelecimento comercial que pertence ao primeiro R. e à herança aberta por óbito da falecida mulher deste, de que os restantes RR. são representantes.
Julgamos que ocorre aqui uma manifesta confusão de conceitos.
Aquele estabelecimento comercial não é uma pessoa jurídica e, como tal, não é, nem podia ser, sujeito passivo das obrigações laborais que agora o A. pretende que sejam cumpridas.
Sublinhe-se este aspecto: o único sujeito passivo daquelas obrigações é apenas e tão só a sua entidade empregadora, neste caso, e de acordo com a sua alegação, o primeiro R.
A circunstância da sua actividade laboral ter sido realizada num estabelecimento comercial que tem outros titulares para além daquele, não torna estes outros titulares de forma alguma responsáveis pela satisfação dos seus créditos laborais.
Apenas faria algum sentido efectuar um pedido contra a herança da falecida mulher do primeiro R. (mas, sublinhe-se, não contra os herdeiros) se a causa de pedir fosse uma relação laboral estabelecida com o casal ou se se alegasse a comunicabilidade das dívidas.
Não é isto que consta da petição inicial.
Mas então, forçoso é concluir que ocorre uma manifesta contradição entre o pedido formulado (a condenação solidária dos RR.) e a causa de pedir (a existência de um contrato de trabalho apenas com o primeiro R.).”

Analisando:
A petição inicial é a peça através da qual a acção é proposta em juízo. Está sujeita a exigências, entre elas a formulação do pedido e narração da causa de pedir – 552º/1/d/e, CPC.
O pedido é a pretensão formulada ao tribunal, a providência que se quer decretada para resolver o litígio. É um corolário do princípio do dispositivo e do ónus de impulso processual inicial - 3º, 1, CPC.
A causa de pedir é o acervo essencial dos factos que tipicamente integram a previsão da norma ou instituto que concede à parte o efeito pretendido. São exemplos de causa de pedir: a alegação dos factos relativos ao mútuo da qual resulta a dívida do réu; a alegação de factos relativos ao arrendamento e à causa da sua resolução como por exemplo a falta de pagamento de rendas; ou a alegação de factos que integram a responsabilidade civil extracontratual que resulte de um acidente de viação, a saber quem conduzia, quando e onde, quem transgrediu as regras de trânsito e como, quais os danos resultantes, etc…
O autor deve completar a petição com indicação das razões de direito com base nas quais respalda o pedido- 552º, 1, d), 2ª parte, CPC. Trata-se de um ónus que não condiciona o juiz que é livre na tarefa da indagação, interpretação e aplicação das regras jurídicas - 5º, 3, CPC. A fundamentação de direito não individualiza o objecto do processo, mas não deixa de ser um auxiliar importante na compreensão da causa de pedir, sobretudo quando o grupo de factos alegados não evidencie logo qual a norma ou instituto jurídico que tutela o direito. Aliás, obriga o juiz a prévia audição das partes caso este enverede por fundamento jurídico por elas não configurado.
O pedido e a causa de pedir devem ter existência e ser compreensíveis. A petição é inepta se o pedido e a causa de pedir forem omitidos ou se, embora existindo, forem obscuros e não permitirem entender quais sejam, ou se a causa de pedir for tão genérica ou abstracta que, em bom rigor, não contem alegação de factos concretos - 186º, 2, a), CPC e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, Vol. I, 4º ed, p. 374.
Decisivo é que o tribunal não tenha dúvida sobre a tutela que é requerida, qual o seu fundamento e que a parte contrária possa exercer o contraditório -186º, 3, CPC.
Finalmente, o pedido a e causa de pedir, além de claramente enunciados, têm de “concordar”. O pedido tem de ser a conclusão, o resultado ou a consequência lógica da premissa ou fundamento alegado (a causa de pedir). É essencial perceber que está em causa uma mera contradição lógica e não uma inconcludência jurídica. O nexo que se exige é de coerência de raciocínio. Não se trata, portanto, de a materialidade alegada conduzir juridicamente à procedência do pedido. São exemplos correntes e ilustrativos de incompatibilidade entre o pedido e a causa de pedir: invocam-se factos referentes à nulidade do contrato e pede-se a condenação em obrigações dele emergentes ou alega-se que se está na posse de determinado bem e pede-se a sua restituição. Em bom rigor, estes são, ainda e também, exemplos de ininteligibilidade da causa de pedir enquanto fundamento do pedido e vice-versa.
Se da situação alegada como causa de pedir não se retirar o efeito arrogado pelo autor, por não preenchimento da previsão normativa, então estamos perante um caso de improcedência da acção por razões de mérito e não por vício processual. Dito de outro modo, não basta ao vício de contradição entre o pedido e causa de pedir a impossibilidade jurídica de retirar da premissa (causa de pedir) o efeito pretendido (pedido), porque aqui estamos já no campo substantivo e não processual. É preciso, pois, que do ponto de vista lógico o pedido se oponha e brigue com a causa de pedir - José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol 2, Coimbra editora, 1945, p. 381-2.
Finalmente, reconheça-se que em alguns casos é difícil traçar a fronteira entre a contradição e a inconcludência, sobretudo quando se usem expressões vagas e abstractas que podem descambar em omissão de causa de pedir ou em improcedência por falta de alegação da materialidade suficiente à procedência do pedido.

No caso:

O pedido da condenação do 1º réu em 198.502,09€ sustenta-se na seguinte alegação:

“2. O Autor mediante contrato verbal foi contratado pelo primeiro Réu em 01 de Março do ano 2000.
3.Tal contrato de trabalho celebrado entre o Autor e o primeiro Réu nunca foi formalizado, por escrito.
….5. Assim, o Autor foi contratado para exercer as funções e tarefas próprias da categoria profissional de Motorista/Manobrador de Máquinas, sob as ordens, autoridade, direcção, fiscalização e mediante remuneração, do aqui primeiro Réu J. A..
….7. O Autor trabalhou por conta do primeiro Réu sob sua direcção fiscalização, desde 01 de Março 2000 até 12 de Setembro de 2019, inclusive.
8. O Autor desenvolveu o seu trabalho de forma contínua e regular, sob as ordens, direcção e fiscalização do Réu.
9.De forma permanente e estável, completamente integrada na estrutura organizativa do primeiro Réu.
10. Respeitando um horário de trabalho previamente imposto pelo 1.º Réu.
11. Todos os instrumentos de trabalho eram fornecidos pelo Réu designadamente máquinas de terraplanagem, caminhões, carros, carrinhas, telemóvel, etc..
12. O Autor auferia na data de cessação do contrato de trabalho a remuneração mensal de € 900,00 (novecentos euros), acrescida de subsídio de alimentação de no montante de €4,50(quatro euros e cinquenta cêntimos), por cada dia.
13. Encontrando-se assim o Autor numa situação de dependência económica face ao primeiro Réu.
….20. Por carta registada com aviso de recpção, datada de 12 de Setembro de 2019, o Autor comunicou ao 1.º Réu enquanto empregador, a resolução do contrato de trabalho com justa causa, nos termos do disposto no n.º 1 e nas alíneas a); b); d);e);f); do n.º 2 do artigo 394.º do Código do Trabalho. Cfr. Carta que ora se junta sob n.º 130 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.
21. Tal resolução teve como fundamento comportamentos do empregador prolongados no tempo e continuados que integram a justa causa de resolução contratual.”
A concordância lógica entre as premissas e o pedido é perfeita.
Não se percebe, assim, a absolvição da instância do 1º réu, claramente apresentado como sendo a entidade empregadora. É alegada a relação laboral que entre ambos existiria (data, funções, local, vencimento, etc), bem com o facto que motivou a cessação do contrato e, ao longo do extenso articulado, as violações contratuais que terão tido lugar. A sua absolvição da instância é, claramente, errada.

No caso dos demais RR o pedido de condenação sustenta-se na seguinte alegação feita na petição inicial:

294. O primeiro Réu J. A. é viúvo de M. V., falecida em -/10/2010, com quem foi casado no regime da comunhão de adquiridos e em primeiras núpcias de ambos.
295. Na Constância do matrimonio o 1.º Réu adquiriu o estabelecimento comercial de venda ao público de materiais de construção civil, onde tem centrada toda a sua actividade comercial e de prestação de serviços e onde o Autor estava afecto.
296. São herdeiros de M. V. o conjugue aqui 1.ºRéu e os seus filhos J. V. aqui Autor, e os 2.º, 3.º e 4.º Réus.
297. C. R. e D. D. são cônjuges de herdeiros e já tinham adquirido essa qualidade na data de abertura da sucessão.
298. O referido estabelecimento comercial encontra-se indicado na relação de bens do processo de inventário por óbito de M. V. que corre seus termos junto do Cartório notarial em ... de A. C., sob o processo n.º 505/13.
299. Todos os herdeiros supra identificados já aceitaram a herança.
300. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de- casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091 do CC).
301. A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.
302. Por conseguinte, as partes são legítimas e dotadas de capacidade jurídica.”

Aqui, a existir vício processual, seria a ininteligibilidade da causa de pedir e não a contradição entre o pedido e a causa de pedir. O autor justificou a demanda destes RR com um fundamento diferente do apresentado para o 1º ré, por isso não existe contradição entre premissa e conclusão.
Aparentemente, o autor demanda os 2º a 5º RR na qualidade de sucessores da esposa do empregador e porque aqueles aceitaram a herança da qual faz parte o estabelecimento comercial onde trabalhava. O autor entende que estes RR, embora não sendo a sua entidade empregadora, podem ser responsabilizados porque terá falecido a co-titular do estabelecimento comercial e os RR são herdeiros daquela. Refere, ainda, que o 1º R e a falecida eram casados em comunhão de adquiridos e que o bem estabelecimento comercial (activo e passivo) foi relacionado no inventário que está a correr.
Não cabe aqui discutir o acerto deste enquadramento jurídico
É verdade que, com exceção do 1º R, quanto aos demais não se apreende logo com nitidez qual o pensamento jurídico do autor, qual o instituto em que quer enquadrar os fundamentos da pretensão. Poder-se-á questionar, como se fez no tribunal a quo, se haverá motivo para os herdeiros da falecida co-titular do estabelecimento comercial onde o A. trabalhava serem chamados e responder por dívidas laborais do empregador marido. O estabelecimento comercial é um bem que pode ser objecto (e não sujeito) de relações jurídicas, não tendo personalidade jurídica (não é ele o sujeito devedor). Pelo que terão de ser alegados factos dos quais se deduza que a falecida esposa do 1ºR empregador também é devedora (para além de eventual demanda da herança, questão, porém que se reporta à legitimidade e que não nos compete analisar por não ser objecto do recurso).
Caso se entenda que foram omitidos factos essenciais, então estamos perante uma questão de improcedência do pedido relativamente aos 2º a 5 RR. Caso se entenda que o fundamento é excessivamente abstracto e destituído de factos, então estamos perante uma omissão de causa de pedir quanto a estes RR.
No caso, os fundamentos acima elencados não são de tal modo vagos ou abstactos que não se alcance o pensamento do autor (sem prejuízo de eventual omissão de factos essenciais para os subsumir num instituto que leve à procedência do pedido). Ademais, os RR compreenderam e repudiaram a sua responsabilidade em termos coincidentes com a posição do autor (veja-se a resposta do autor no seguimento do cumprimento do contraditório, antes de ser proferido o despacho recorrido).
A motivação que presidiu ao despacho do juiz a quo revela que está em causa a ausência de factos que possam levar ao êxito da ação e/ou à confusão na mente do autor de conceitos jurídicos que possam levar, necessariamente, sem mais, à responsabilização dos réus, herdeiros da esposa do empregador.
Ou seja, julgamos que não se trata de uma ineptidão da petição inicial, nem por contradição entre o pedido e os fundamentos, nem por omissão de causa de pedir, mas sim, na própria visão do tribunal a quo, de um caso de inconcludência.
Consequentemente, é de revogar o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir para análise dos termos subsequentes.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos - 87º, CPT e 663º, CPC.
Custas a cargo dos RR.
Notifique.
13-07-2022

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins

1 - Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.