Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6604/21.0T8BRG.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: IMUNIDADE JURISDICIONAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
DIREITO INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
RELATIVIZAÇÃO DA IMUNIDADE JURISDICIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
A imunidade de jurisdição de organização internacional, constitui uma exceção dilatória, geradora da incompetência absoluta dos tribunais, que não fora essa imunidade, seriam competentes.
A imunidade de jurisdição das organizações internacionais tem como suporte a autonomia jurídica da organização, enquanto titular de direitos e deveres internacionais, sendo atribuída de acordo com o princípio da especialidade, tendo em vista dotar as mesmas dos instrumentos necessários à prossecução dos seus objetivos, de forma independente e plena, sem interferências dos Estados membros.
Da imunidade não deve resultar a impunidade das organizações, devendo estas, em respeito do princípio geral de direito internacional que constitui o direito de acesso a um tribunal, garantir meios alternativos de solução dos litígios.
Demonstrando-se a falta de meios alternativos para resolução do litígio, o Tribunal “doméstico”, pode aceitar tomar conhecimento do litígio, relativizando a imunidade.
As normas emanadas por organização Internacional, “Staff Rules“, reguladoras das relações laborais com a organização, regularmente aprovadas nos termos do respetivo Estatuto, constituem direito internacional, devendo ser respeitadas nos termos do artigo 8º da CRP.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

O requerente S. J., residente na Rua … - nº .., em Braga, intentou presente procedimento cautelar especificado de suspensão de despedimento contra o requerido Y - LABORATÓRIO IBÉRICO INTERNACIONAL DE NANOTECNOLOGIA, com sede na Avenida …, em Braga, pretendendo que seja determinada a suspensão do despedimento que alega que foi decidido pelo requerido.
O requerente alega que celebrou com o requerido um contrato de trabalho a termo certo com a duração de quatro anos. Este contrato de trabalho tem termo a 31 de maio de 2022. No decurso da relação laboral foi ponderada a celebração de um contrato de trabalho por tempo indeterminado. Esta possibilidade acabou por não ser aceite pelo requerido, o qual proferiu uma decisão no sentido do seu indeferimento e que o contrato de trabalho do requerente se manteria em vigor, até cessar no dia 31 de maio de 2022, tal como previsto inicialmente. O requerente considera que esta decisão consubstancia um despedimento porque fez operar a caducidade do contrato de trabalho. Além disso, considera que este despedimento é ilícito porque deve considerar-se que o contrato de trabalho a termo certo que celebrou com o requerido configura um contrato de trabalho por tempo indeterminado que não poderia cessar por caducidade.
Para sustentar este entendimento defende que as “Staff Rules” não podem sobrepor-se ao direito nacional, referindo conflito de leis, invocando o Regulamento n.º 593/2008 de 17 de junho de 2008.
No despacho liminar foi indeferido o requerido, por manifesta improcedência do pedido, considerando-se aplicáveis as “Staff Rules” aplicáveis na requerida.

O requerente interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:

B. Com efeito, e contrariamente ao decidido, a situação em causa integra-se no âmbito do procedimento cautelar de suspensão do despedimento, tendo essencialmente em consideração que: i. Se verifica aplicável, quanto à matéria em juízo, a Lei Portuguesa; ii. Face à duração do contrato de trabalho celebrado entre o Recorrente e a Recorrida, o mesmo qualifica-se enquanto sendo um contrato de trabalho por tempo indeterminado; iii. Atenta a ausência de motivo justificativo para celebração do contrato a termo, o mesmo qualifica-se enquanto sendo um contrato de trabalho por tempo indeterminado; iv. Mesmo que assim não se entendesse, sempre estaria em causa a conversão do alegado contrato de trabalho a termo em contrato de trabalho sem termo.
C. Com o presente procedimento cautelar, o Recorrente não pretende discutir outras questões além do despedimento, como sejam a existência de uma relação laboral ou a qualificação do contrato de trabalho.
D. Quanto à existência de uma relação laboral, é ponto assente que existe uma relação laboral atento o contrato de trabalho datado de 01.06.2018.
E. O mesmo vale para a questão da validade da caducidade/qualificação do contrato de trabalho, o que resulta evidente pelos factos que se expuseram no requerimento inicial e o que deverá ser abrangido pelo juízo de summario cognitio subjacente à decisão de uma providência cautelar. Este juízo tanto pode ser feito no âmbito deste procedimento, como na ação principal.
F. O que não pode suceder, como sucedeu, é deixar de ser analisada uma situação camuflada de “caducidade” que serve apenas como miragem para um despedimento ilícito, com fundamento na complexidade e na natureza internacional da Requerida.
G. A comunicação rececionada a 24.11.2021 pelo Recorrente consubstancia uma comunicação de despedimento, ou pelo menos, apresenta uma verosimilhança de despedimento e não, contrariamente ao afirmado na sentença recorrida, “uma mera reafirmação da relação laboral pelo período já anteriormente estabelecido.”
H. Sucede que, o contrato de trabalho celebrado entre Recorrido e Recorrente é um contrato de trabalho sem termo, em face do disposto no artigo 147.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CT, ou, no limite, se converteu num contrato de trabalho sem termo, ao abrigo do artigo 147.º, n.º 2, alínea b) do CT.
I. Consequentemente, a mesma comunicação rececionada pelo Recorrente consubstancia uma comunicação ilícita de despedimento, uma vez que é proibido o despedimento sem justa causa e, cumulativamente, não foi observado o procedimento legalmente exigido prévio ao envio da comunicação de despedimento.
J. A designação de “caducidade” oferecida pelo empregador não é vinculativa e não podemos ficar sujeitos à mesma, quando estamos perante um caso flagrante de comunicação (ilícita) de despedimento.
K. O juízo relativo à natureza da comunicação remetida ao Recorrente, o que implica, naturalmente, ajuizar e ter em consideração a natureza da relação laboral, é totalmente compatível com a natureza da providência cautelar, podendo e devendo ser abrangido pelo juízo da summario cognitio, sob pena de se fechar os olhos a uma manifesta e evidente ilegalidade, como é a que resulta da presente situação.
L. Não tendo o Recorrente reconhecido a jurisdição do referido Tribunal Administrativo, este não apresenta legitimidade para apresentação de reclamação no mesmo Tribunal, em face do disposto no artigo II (2), (5), (6) do Estatuto do ILOAT.
M. Por outro lado, considerando que o Recorrente não é um cidadão português, e mais considerando, sobretudo, que em matéria de licitude/ilicitude despedimento, a designação da entidade competente se encontra subtraída da vontade das partes, em face do disposto no artigo 387.º, n.º 1 do CT, o presente litígio não deve ser submetido aos tribunais arbitrais, sendo, consequentemente, competentes os tribunais judiciais para apreciação do mesmo aplicando para tal a Lei portuguesa.
N. Quanto à questão da aplicação da lei portuguesa, a mesma apresenta-se de fácil resolução, não sendo necessário reconduzi-la a um conflito de hierarquia das fontes de direito, pois que 1) Tratando-se as Regras do Staff Rules de regulamento interno, as mesmo não poderão sobrepor-se às regras imperativas constantes do Código do Trabalho – em causa não está qualquer previsão no âmbito de um tratado internacional; 2) Implicando o caso sub judice um conflito de leis, ao abrigo do Roma I o contrato de trabalho sempre deveria ser regulado pela lei portuguesa.
O. Por último, erra a sentença recorrida erra ao considerar que não se verificam os requisitos subjacentes ao procedimento cautelar comum, o qual sempre deveria ser considerado, a título subsidiário, caso se entendesse não decretar a providência cautelar especificada de suspensão do despedimento.
P. Quanto ao requisito do periculum in mora, e porquanto já foi devidamente analisado o fumus boni juris, deve referir-se que, apesar da celeridade que caracteriza o processo laboral, não é comum, nem provável que o presente litígio seja totalmente ultrapassado no prazo de cinco meses, isto é, até 31 de maio de 2022, não podendo o tribunal a quo assegurar, naturalmente, que isso aconteça.
Q. Por outro lado, já certo é que, chegados a 31 de maio de 2022, data em que produzirá efeitos a comunicação (ilícita) de despedimento, o Recorrente fique sem qualquer meio de subsistência que o permita providenciar e sustentar o seu agregado familiar, razão pela qual deve ser decretado o procedimento cautelar.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
A. Deve ser revogada a decisão a quo, substituindo-se a mesma por acórdão que defira a medida cautelar de suspensão do despedimento;
Caso assim não se entenda, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite,
B. Deve ser convolada a procedimento cautelar em procedimento cautelar comum com a consequente revogação da decisão a quo nesta parte, decretando-se a suspensão do despedimento, por ilicitude do mesmo.
Em contra-alegações sustenta-se o julgado e refere-se a incompetência referindo-se a imunidade de jurisdição.
O Exmº PGA pugna pela improcedência, referindo a imunidade.
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Com interesse para a causa temos os seguintes factos:

- Requerente e requerida celebraram contrato com a epígrafe “limited-Duration contract of employment”, conforme doc 1 junto com o requerimento inicial, no qual se refere a sua celebração de acordo com as “Staff Rules”, e sua submissão a estas, constando que as “Staff Rules” definem e codificam a relação jurídica entre as partes, e que uma referência a tal regulamento do pessoal é uma referência ao mesmo tal como está em vigor, e inclui quaisquer disposições subordinadas e que regem a sua aplicação.
- Tal contrato foi celebrado por 4 anos, com termos a 31 de maio de 2022, constando como local de trabalho o “Y”, Braga.
- Consta da clausula 24.1:
this agreement shall be governed by Staff Rules and the parties submit to the procedures for settlement of disputes defined therein in respect of all matters relating to the agrement
(este acordo será regido por regras de pessoal e as partes submetem-se aos procedimentos para solução de controvérsias nele definidos em relação a todos os assuntos relacionados ao acordo).
- O requerente consta do contrato como residente em Inglaterra.
- Foi efetuada avaliação da possibilidade de celebração de um contrato de trabalho por tempo indeterminado com o Requerente, de acordo com procedimento interno, de que resultou o relatório datado de 02.07.2021, junto como Documento n.º 6 com o requerimento inicial, que termina com recomendação para não oferecer contrato por tempo indeterminado.
- Com data de 11.08.2021 o Diretor-Geral do Requerido emitiu a resolução consubstanciada no doc. 7 junto com o requerimento inicial, do seguinte teor:
“ THE DIRECTOR-GENERAL,
Having regard to the Indefinite Contract Review Policy, Having regard to the Indefinite Contract Review Report and Recommendation of the Candidate,
HAS ADOPTED THIS RESOLUTION
1. The Candidate shall not be awarded an indefinite contract of employment with the category of Staff Rules Member for the Job Position mentioned above.
The limited duration contract currently in force shall continue until the date specified in the contract, when it shall terminate automatically without notice.
The HR Unit will notify the Candidate accordingly and will undertake all required end of contract formalities.
(O DIRETOR-GERAL,
Tendo em conta a Política de Revisão de Contrato por Tempo Indeterminado, Tendo em conta o Relatório de Revisão do Contrato Indefinido e a Recomendação do Candidato,
ADOTA A SEGUINTE RESOLUÇÃO
1. Não será atribuído ao Candidato um contrato de trabalho por tempo indeterminado com a categoria de Funcionário para o Cargo mencionado acima.
O contrato de duração limitada atualmente em vigor continuará até a data especificada no o contrato, quando este terminará automaticamente sem aviso prévio.
A Unidade de RH notificará o Candidato em conformidade e realizará todas as formalidades do contrato.)”
- O relatório e a resolução atrás mencionados foram enviadas ao requerente por e-mail de 12/8/2021 – doc. 8 do requerimento inicial.
- O requerente apresentou reclamação do resultado da avaliação, que foi rejeitada mantendo-se a decisão final – docs. 9 e 10 -, comunicada ao autor e por este rececionada a 24/11/2021.
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As questões colocadas prendem-se com saber se o tribunal é competente, sendo-o, se verifica uma situação de imunidade. Sendo de conhecer de mérito, importa saber qual a lei aplicável e se assiste razão ao requerente.
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A apreciação da imunidade, porque de uma exceção se trata, pressupõe que, não fosse essa imunidade, o tribunal seria internacionalmente competente. Assim e previamente àquela importa apreciar da competência do Tribunal Nacional.
Tratando-se de um contrato de trabalho, não fossem as particularidades do caso, a competência dos tribunais nacionais resultaria, à partida, do artigo 21º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012.
Vejamos da ocorrência de uma exceção à competência, no caso a verificação de uma situação de imunidade.
A requerida é uma “organização internacional”, de base convencional, dotada de autonomia jurídica – artigos 4º; 5º dos Estatutos, aprovados por Resolução da Assembleia da República n.º 59/2007, de 22 de novembro, Diário da República n.º 225/2007, Série I.
Relativamente ao pessoal, consta do artigo 18º, 4 dos estatutos; “O Diretor-geral, agindo sob delegação de poderes pelo Conselho, nomeia e despede todo o pessoal de acordo com regras adotadas pelo Conselho”. Esta norma, no que ao caso importa, autoriza a criação de “uma ordem jurídica própria” respeitante à contratação de pessoal e seu “estatuto”. Veja-se ainda o artigo 14º, nº 4 do mesmo Estatuto.

Por sua vez o artigo 5º do Acordo Sede (AS), em DR 1.ª série - N.º 150 - 5 de agosto de 2008, reconhece a imunidade de jurisdição e de execução à requerida, nos seguintes termos:

1 — No âmbito das suas atividades oficiais, o Laboratório e os seus bens gozam de imunidade de jurisdição e de execução, exceto quando:
a) O Laboratório a elas renuncie expressamente;
b) Se trate de um processo instaurado por terceiros para obtenção de uma indemnização pecuniária por morte ou danos sofridos em consequência de acidente provocado por veículos pertencentes ao Laboratório ou por ele utilizados, ou no caso de uma infração de trânsito que envolva um desses veículos;
c) Se trate da execução de uma decisão arbitral proferida nos termos dos artigos 21.º e 22.º do presente Acordo;
d) Se trate de um processo relacionado com um contrato de trabalho, celebrado entre o Laboratório e uma pessoa, que tenha por objeto a prestação de trabalho, no todo ou em parte, no território da República Portuguesa, e desde que essa pessoa tenha nacionalidade portuguesa ou residência permanente nesse território.
(…)
A imunidade de jurisdição tem como suporte a referenciada autonomia jurídica da organização, enquanto titular de direitos e deveres internacionais.
Os privilégios e imunidades, “não são concedidos para benefício pessoal dos representantes, do diretor-geral, dos funcionários e peritos, mas para garantir a independência do exercício das suas funções relacionadas com o trabalho do Laboratório” (artigo 17.º, n.º 1 do AS), de acordo com o princípio da especialidade, ou seja, os privilégios e imunidades são atribuídos em função das atribuições cometidas à organização, e entendidas como adequadas a realização dessas atribuições, o necessário para que possa prosseguir as suas funções de forma independente, plena e eficiente.
O respeito pelas imunidades impõe-se naturalmente aos Estados membros da organização, desde logo por força das responsabilidades mutuamente assumidas no ato de constituição.
Refere o requerente no requerimento inicial, residir em Portugal, não resulta, contudo, que se trate de residência permanente. Assim sendo não é de aplicar, como pretende o requerente, a previsão da alínea d) do artigo 5º, 1 do AS nos termos da qual a imunidade de jurisdição reconhecida no corpo do artigo não funciona. Não se verifica qualquer outra das exceções, prevista naquela norma, à imunidade reconhecida à organização.
Invoca a requerente que não tem como reagir, uma vez que não pode reclamar para o Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho (“ILOAT”), como previsto no artigo 257º, 2 das Staff Rules (Any complaint against such decisions shall be referred to the Administrative Tribunal of the International Labour Organisation (ILOAT)), e por força da cláusula 24º 1 do contrato celebrado, porquanto a requerida não reconheceu a jurisdição do referido tribunal.
Do “site” deste, https://www.ilo.org/tribunal/membership/lang--en/index.htm, resulta efetivamente a falta de reconhecimento. Nos termos do Estatuto daquele tribunal - adotada pela Conferência Internacional do Trabalho em 9 de outubro de 1946 e alterada pela Conferência em 29 de junho de 1949, 17 de junho de 1986, 19 de junho de 1992, 16 de junho de 1998, 11 de junho de 2008, 7 de junho de 2016, 17 de junho de 2019 e 18 de junho de 2021 -, seu artigo 2, nº 5, a competência depende de uma declaração a enviar ao Diretor-geral reconhecendo a jurisdição do tribunal.
A questão remete para a “relativização“ da imunidade, por alegada violação de direito fundamental de aceso à justiça, na sua dimensão de acesso a um “tribunal”, com garantias de independência e com procedimento equitativo – na nossa CRP, artigo 20º -; Na CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do Homem no artigo 6º e 13º; na DUDH (Declaração Universal dos Direitos do Homem), artigo 8º; na CADH (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), artigo 25º -.
Sobre a relativização da imunidade, entre outros, Vinícius Trindade, Responsabilidade e imunidade das organizações internacionais: prática e desafios, Revista de Direito Internacional, https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/view/7215, doi: 10.5102/rdi.v18i1.7215, pág. 30 ss; Bárbara Sollero, A Imunidade de Jurisdição das Organizações Internacionais Perante os Tribunais Domésticos: Estudo dos casos reunidos no acervo Oxford Reports on International Law ‒ International Law in Domestic Court, http://hdl.handle.net/1843/42596, pág, 54 ss; Fernanda Caetano, As Imunidades dos Sujeitos de Direito Internacional: Análise dos novos limites propostos pelo processo de relativização, http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_CaetanoFAK_1.pdf, pág. 200 ss, onde se refere, “quando a imunidade resulta, concretamente, em livrar uma pessoa de toda e qualquer possibilidade de julgamento, ela acarreta de facto a impunidade. Assim, como bem defende Verhoeven, quando a imunidade tiver por efeito a privação do demandante do “único” juiz ao qual ele poderia ter acesso, ela deverá ser afastada, podendo ser mantida nas demais situações…”
O tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Waite e Kennedy vs. Alemanha, disponível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-58912%22]}, estabeleceu que a imunidade jurisdicional pode depender da disponibilidade de garantias judiciais adequadas e efetivas. Refere-se neste (considerandos 67 e 68):
“67. The Court is of the opinion that where States establish international organisations in order to pursue or strengthen their cooperation in certain fields of activities, and where they attribute to these organisations certain competences and accord them immunities, there may be implications as to the protection of fundamental rights. It would be incompatible with the purpose and object of the Convention, however, if the Contracting States were thereby absolved from their responsibility under the Convention in relation to the field of activity covered by such attribution. It should be recalled that the Convention is intended to guarantee not theoretical or illusory rights, but rights that are practical and effective. This is particularly true for the right of access to the courts in view of the prominent place held in a democratic society by the right to a fair trial (see, as a recent authority, the Aït-Mouhoub v. France judgment of 28 October 1998, Reports 1998-VIII, p. 3227, § 52, referring to the Airey v. Ireland judgment of 9 October 1979, Series A no. 32, pp. 12-13, § 24).”
68. For the Court, a material factor in determining whether granting ESA immunity from German jurisdiction is permissible under the Convention is whether the applicants had available to them reasonable alternative means to protect effectively their rights under the Convention.”
(67. O tribunal é de opinião que quando os Estados estabelecem organizações internacionais para prosseguir ou fortalecer sua cooperação em certos campos de atividades, e quando atribuem a essas organizações certas competências e lhes conferem imunidades, pode haver implicações quanto à proteção de direitos fundamentais. No entanto, seria incompatível com a finalidade e o objeto da Convenção, se os Estados Contratantes fossem assim isentos de sua responsabilidade sob a Convenção em relação ao campo de atividade abrangido por tal atribuição. Deve-se lembrar que a Convenção visa garantir não direitos teóricos ou ilusórios, mas direitos práticos e efetivos. Outubro de 1998, Relatórios 1998-VIII, p. 3227, § 52, referente ao acórdão Airey v. Ireland de 9 de outubro de 1979, Série A no. 32, pp. 12-13, § 24).
68. Para o Tribunal, um fator importante para determinar se a concessão de imunidade à ESA da jurisdição alemã é permitida pela Convenção é se os requerentes dispunham de meios alternativos razoáveis ​​para proteger efetivamente seus direitos sob a Convenção.)
Voltando ao caso. Nos termos do artigo 257º do Staff Rules, não cabe recurso interno das decisões ali mencionadas, em que se incluem a não renovação ou não prorrogação de contrato, referenciando-se no nº 2 que qualquer reclamação contra tais decisões deve ser encaminhada ao Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho (ILOAT).
Ao não proceder ao reconhecimento daquele tribunal, a requerida; enquanto entidade com autonomia jurídica, enquanto pessoa coletiva de direito internacional atuando perante a comunidade internacional de forma independente e plena, em face dos Estados que a constituíram ou que dela fazem parte; deixa de cumprir uma obrigação decorrente de norma de direito internacional, a de garantir o aceso à justiça, com consagração em norma dos Staff Rules que prevê a “reclamação” para aquele tribunal.
Neste quadro de circunstâncias, inexistência de um meio adequado e solução do litigio, em violação do direito fundamental a um “tribunal” - (entendido em sentido amplo, qualquer meio de resolução que satisfaça as exigências de independência e garanta um processo equitativo), têm vindo alguns tribunais Nacionais a aceitar exercer a sua jurisdição, relativizando a imunidade, na estrita medida em que resulta violado o direito fundamental, considerado como norma de direito internacional geral, Entendimento que vem sendo defendido e desenvolvido por vária doutrina.
Considerando que o direito de acesso o tribunal constitui yus cogens, o Inter-American Court of Human Rights Case of Goiburú et al. v. Paraguay, Judgment of September 22, 2006, https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_153_ing.pdf.
A norma de direito internacional em causa, implica assim a obrigação para a organização internacional em garantir meios alternativos de resolução de litígios. Sobre a natureza da norma, entre outros, Ana Aguiar e Gabriel Gody, Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Ampliação do Conteúdo Material do Conceito Normativo de Jus Cogens, https://www.corteidh.or.cr/tablas/21857.pdf; Marília Nascimento, Limitação do Acesso do Individuo à Justiça Internacional no Âmbito dos Sistemas Regionais: Um Óbice à Efetividade da Proteção dos Direitos Humanos, https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32023/1/ulfd133510_tese.pdf, pág. 125 ss-.
Sobre a importância das normas imperativas de Direito internacional vejam-se os artigos 53º e 64º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de maio de 1969, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 67/2003; ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 46/2003; publicado no Diário da República I-A; n.º 181, de 07/08/2003.
Artigo 53.º
Tratados incompatíveis com uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens)
É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja incompatível com uma norma imperativa de direito internacional geral.
Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza.
Artigo 64.º
Superveniência de uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens)
Se sobrevier uma nova norma imperativa de direito internacional, geral, qualquer tratado existente que seja incompatível com essa norma torna-se nulo e cessa a sua vigência.
Na falta de demonstração de uma alternativa para apreciação do litígio, nos termos referenciados, pode aceitar-se a competência, neutralizando-se a imunidade, defendendo alguns que a invocação da imunidade em tais circunstâncias constituiria abuso da imunidade.
Contudo, contrariamente ao que o requerente pretende, tal não interfere com a lei aplicável, a lei que resulta do “ordenamento próprio “da organização internacional em causa, no caso as Staff Rulesaprovadas pelo conselho da requerida, nos termos dos respetivos estatutos.
Não se configura no caso qualquer conflito de leis. As normas “criadas” pelos organismos internacionais, no âmbito das suas atribuições, constituem direito internacional, devendo o Estado respeitar tais “ordenamentos” nos termos do artigo 8º da CRP. A não sujeição ao direito nacional pode ser essencial ao objeto legítimo das imunidades, tendo em vista garantir a autonomia e independência da organização em relação ao Estado em que tem a sede.

Refere o TEDH, caso WAITE E KENNEDY, considerando 72;
“… bearing in mind the legitimate aim of immunities of international organisations (see paragraph 63 above), the test of proportionality cannot be applied in such a way as to compel an international organisation to submit itself to national litigation in relation to employment conditions prescribed under national labour law. To read Article 6 § 1 of the Convention and its guarantee of access to court as necessarily requiring the application of national legislation in such matters would, in the Court’s view, thwart the proper functioning of international organisations and run counter to the current trend towards extending and strengthening international cooperation.”
(tendo em conta o objetivo legítimo das imunidades das organizações internacionais (n° 63 supra), o critério da proporcionalidade não pode ser aplicado de forma a obrigar uma organização internacional a submeter-se a um litígio nacional em relação às condições de emprego prescritas pela legislação trabalhista nacional. Ler o artigo 6 § 1 da Convenção e sua garantia de acesso ao tribunal como necessariamente exigindo a aplicação da legislação nacional em tais matérias seria, na opinião da Corte, contrariar o bom funcionamento das organizações internacionais e contrariar a tendência atual de extensão e fortalecimento da cooperação internacional.)
Ora considerando o direito aplicável, não é desde logo possível, afirmar uma probabilidade séria da existência do direito invocado pelo requerente. Não resulta provável que possa entender-se ter ocorrido um despedimento. O comportamento da requerida está em conformidade com o regulamento aplicável, e não se vê que ocorra qualquer facto que nos termos daquelas normas implique a conversão do contrato em contrato sem termo. A comunicação no sentido de que o contrato não seria prorrogado, ocorre no termo do procedimento interno previsto e tendo em vista a eventual celebração de contrato por tempo indeterminado. Tal procedimento tem em vista habilitar a instituição à tomada de decisão sobre a celebração de um contrato por tempo indeterminado. Tal procedimento, de acordo com os termos do regulamento, nem parece ser obrigatório, podendo a entidade simplesmente dar por findo o contrato, no seu termo. Não se demonstrando a probabilidade séria da existência do direito, foi acertada a decisão de indeferimento.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão
Custas pelo apelante.
13/7/22

Relator - Antero Veiga
Adjuntos - Alda Martins
Vera Sottomayor