Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
155/17.5GEALR.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A ratio do tipo legal de crime de violência doméstica não está na proteção da comunidade familiar, mas, fundamentalmente, na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
- Este tipo legal de crime não exige a prática reiterada de maus-tratos, consuma-se com verificação de um único ato, desde que o mesmo, por si só, afete o bem jurídico protegido.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório

1.1 - No âmbito do Proc. Comum com intervenção do Tribunal Singular N.º 155/17.5GEALR., do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Setúbal - Inst. Local - Sec. Criminal - J2, foi julgado, o arguido:

JCGC…………….., e outra,

tendo sido proferida sentença, com o teor seguinte:

“a) condenar o arguido JCGC pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, do C.P., na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos.

a) Condenar o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 295 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, no valor de 1.475,00 € e em cúmulo jurídico na pena única de três anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e 295 dias de multa à taxa diária de 5,00€.

b) Condenar o arguido no pagamento à ofendida de uma indemnização civil no montante de 7.500,00€ pelos danos não patrimoniais sofridos.

c) (…)

d) condenar o arguido por custas criminais, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida, tendo em conta a complexidade da causa (artigos 513.º do Código de Processo Penal (C.P.P.) e artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais (R.C.P)).

e) Custas do pedido cível na proporção do decaimento, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, bem como da isenção do Hospital.

(…).”

1.1.1 - O arguido, inconformado, interpôs recurso.

Nas suas alegações apresentou as conclusões seguintes:

“1ª) De toda a prova produzida, em momento algum os factos vertidos em 3, 4, 5, 6, 7, 8 , 14, 15 e 16 da matéria de facto dada como provada, ficaram clara e totalmente provados.

2ª) O Tribunal formulou a sua convicção apenas e só nas declarações da Ofendida que também era Arguida nos presentes autos por factos praticados contra o arguido (aqui recorrente).

3ª) Pelo que tal situação não pode ser desconsiderada na valoração da prova e, consequentemente, na decisão de facto.

4ª) O depoimento encontra-se registado, com início às 11h12m19s, do dia 20/05/2019 e com final às 11h44m36s, e o mesmo comprova o aqui alegado.

5ª) Ademais, o depoimento da Arguida/testemunha mostra-se dúbio, confuso e orientado pelas questões que lhe iam sendo colocadas.

6ª) Os factos dados como provados no ponto 3, atendendo ao depoimento da ofendida, e sem mais prova produzida objetiva não é possível concluir que o arguido tenha tido uma relação extraconjugal de 10 anos com outra pessoa e que a Arguida/ofendida lhe pediu o divórcio.

7ª) Pelo que tal facto não pode ser considerado como provado.

8ª) Também não poderia ter sido dado como provado que o Arguido recusou o propósito de se divorciar e que a partir daí mudou radicalmente o seu comportamento.

9ª) Segundo a douta sentença nos seus pontos 5. e 6., onde se diz que “pelo menos a partir do mês de Outubro de 2016, o arguido JC passou a gritar com a sua mulher S, apodando-a de “estúpida”, “parvalhona” e “ordinária”, assim como lhe dizia “Dou cabo de ti”; “A partir da referida altura, e sob o menos pretexto, o arguido apertava o pescoço de S, assim como lhe cuspia na cara” não pode o depoimento ser atendido, pois baseia-se única e exclusivamente no depoimento da Arguida/Ofendido e noutros alegados meios de prova que objetivamente não podem ser atendíveis.

10ª) No ponto 7. foi dado como provado que “pelo menos por uma vez, o arguido JC encheu a banheira de água com o propósito de ali fazer mergulhar a cabeça da sua mulher S e afogá-la, propósito que anunciou mas que nunca conseguiu concretizar por o filho de ambos o haver impedido”.

11ª) De notar que o referido filho apesar de já ter 17 anos de idade não foi arrolado pelo M.P. como testemunha não tendo sido ouvido em audiência de julgamento nem em outra qualquer fase do processo, logo, tal facto não poderia ter sido dado como provado, sendo que assim é completamente impossível ao arguido defender-se das imputações que lhe são feitas, violando-se princípios fundamentais do direito.

12ª) O mesmo se passando com o vertido no ponto 8. Da matéria dada como provada, “no decurso das referidas discussões, o arguido JC dizia para a mulher S “eu mato-te” e “eu dou-te um tiro na cabeça”

13ª) No ponto 14. É dado como provado que “Assim, no dia 22 de Março de 2017, cerca das 06.30h, SB deslocou-se à casa onde vivia JCC para pedir uma chave para poder entrar na habitação e dali retirar os objectos pessoais dela e do filho de ambos que ainda ali se encontravam, o que aquele negou e após, agarrou com força num dos braços de S, ao mesmo tempo que a puxou para junto de si, sendo que S conseguiu libertar-se e refugiou-se no interior do seu veículo automóvel”.

14º) Primeiro há que notar a que horas a Arguida/Ofendida se desloca a casa do Arguido/Ofendido, CERCA DAS 6.30H.

15ª) a Lei prevê legalmente horas para que sejam efetuadas buscas domiciliárias em determinados casos e não é por acaso… é normal uma pessoa que se encontra em alegadas más relações com a outra se dirigir a casa deste ás 6.30h da manhã para pedir uma chave?

16ª) E é razoável ou da experiencia comum que a Arguida/Ofendida tivesse POR ACASO uma embalagem de laca à mão no seu veículo?

17ª) Dando-se como provado que, “No entanto, e como CC o a continuasse a perseguir, SB retirou uma embalagem de laca que guardava dentro do porta-luvas do seu veículo automóvel e pulverizou os olhos e rosto de CB com a mesma”.

18ª) É da experiencia comum que quase ninguém usa laca, e muito menos que ande com uma embalagem de laca no carro.

19ª) Dirigir-se a casa do seu ex-marido num dia às 6.30h da manhã e com uma embalagem de laca no seu veículo parece-nos sim, com o devido respeito por opinião contrária que resultado da experiência comum é demonstrativo de que a Arguida/Ofendida já ia com intenção de confrontar o Arguido e de o atingir fisicamente.

20ª) Pelo que o resultado da sentença deveria ser o da absolvição, ao abrigo de um outro princípio, o do "in dubio pro reo".

21ª) Os factos dados como provados nos pontos 5 e 6 da douta sentença, atendendo a que a Arguida/Ofendida no seu depoimento, vagamente, refere algumas expressões e factos sem os contextualizar no tempo e no espaço, não poderiam ter sido valorados.

22ª) No que concerne aos pontos 3 a 18 da douta sentença é claro do depoimento das testemunhas que estas nada viram, apenas sabem o que lhe contaram e mais concretamente o que a Arguido/Ofendida contou, pelo que, nos termos do disposto no art. 129º do C.P.P., tais factos não podiam nem deviam ter sido dados como provados.

23ª) Tendo em conta o que aqui foi dito e o único depoimento não ter tido uma consistência clara, e tendo sido proferido por alguém que também era Arguido nos presentes autos por factos praticados contra o Arguido sendo que muitas vezes se mostra parcial em relação ao arguido, nunca este podia ser condenado da forma como foi nem na pena elevada em que foi.

24ª) A condenação fixou em 3 anos de prisão, o que parece exagerado, atendendo ao facto de o arguido ser primário, respeitado e respeitador, como consta da douta sentença.

25ª) Não teve pois, a Mma. Juiz na sua decisão, em consideração todos os elementos constantes do art. 71º do CP.

26ª) Portanto, a punição é exagerada, para os factos que foram dados como provados, mas que na verdade é que não o podiam ser.

27ª) Quanto à fixação da indemnização (€7.000,00), também ela se mostra claramente exagerada, uma vez que o arguido não dispõe de quaisquer rendimentos que lhe permitam proceder ao pagamento dos valores fixados,

basta ver a matéria constante dos autos referente á situação económica e profissional do Arguido, para se verificar isso mesmo.

28ª) Quanto ao alegado crime de detenção de arma proibida, que se dá como provado nos pontos 19., 20. e 21. Há que ter em atenção que a casa onde o Arguido se encontrava não era a sua casa, mas sim a casa de seu pai.

29ª) O facto de o Arguido ter a chave da casa, uma vez que o seu pai permitiu que aí ficasse a pernoitar não é motivo suficiente para concluir que este detinha o domínio da casa, para mais quando a referida arma é encontrada na garagem.

30ª) Não esquecendo que conforme prova documental que se encontra nos autos, a arma se encontra registada em nome de seu pai, sendo assim inequivocamente propriedade deste.

31ª) Sem grandes delongas, parece-nos obvio que uma arma pertença legalmente do Pai do Arguido, que se encontra na garagem (e não em qualquer divisão da casa) da casa que apesar de provisoriamente habitada pelo Arguido é propriedade do pai do Arguido que é o dono da referida habitação estará na posse deste e não do Arguido.

32ª) Não nos podemos esquecer que aquela não era a sua residência, mas sim a residência de seu pai, onde este habitava apenas desde algum tempo após a separação/Divorcio da sua mulher/Arguida/Ofendida.

33ª) Nestes termos e melhores de direito que Vossas Excelências muito doutamente suprirão, proferindo uma decisão que revogue a sentença ora recorrida e substituindo-o por outra que absolva o arguido farão a tão costumada JUSTIÇA.

É, pois e em suma, quanto me parece.

Melhor dirão V. Excelências

E assim se fará justiça!”.

1.2 - O Magistrado do Ministério Público e a demandante civil, SMB, apresentaram resposta ao recurso concluindo:

1.2.2 - O primeiro

“Na verdade, a versão que colheu perante a Mma. Juiz teve apoio na prova produzida na audiência de discussão e julgamento, na qual se ancorou validamente, pelo que não pode o recorrente sindicá-la, atento o princípio da livre apreciação da prova estabelecido no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

IV. Tendo sido valorado determinado depoimento, o da ofendida SMSB, em detrimento de outros, significa que à escolha da Mma. Juiz presidiu justamente a credibilidade que tal prova mereceu, em prejuízo de outros meios de prova, designadamente o depoimento do arguido.

V. O arguido detinha em sua posse, no interior da garagem da sua residência uma espingarda, sendo, por isso, totalmente irrelevante para o preenchimento do tipo que a mesma pertencesse ao pai e, por outro lado, evidentemente inverosímil a versão por ele apresentada na audiência de julgamento ao afirmar que o pai – o proprietário – tinha acesso ao local onde a arma foi encontrada, versão que não logrou obter qualquer sucesso, perante a perspicácia da Mma. Juiz a quo.

VI. A leitura da prova efectuada pelo Tribunal a quo é insindicável por representar justamente o núcleo de reserva do julgador – assim se privilegiando o principio da imediação –, leitura essa que, por não coincidir com a percepção da prova feita pelo recorrente, não lhe confere razão na pretendida impugnação da valoração feita pela Mma. Juiz a quo.

VII. Por fim, atentas as elevadas necessidades de prevenção geral e especial, afigura-se-nos que a pena concreta fixada se encontra ponderada de acordo com os critérios legais e jurisprudenciais, não merecendo a pena aplicada qualquer censura ou reparo.

VIII. Assim, não tendo sido violada qualquer norma jurídica, deve o recurso interposto improceder, mantendo-se na íntegra a douta sentença recorrida.

Porém, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA”.

1.2.2 - A segunda

“A Douta Sentença recorrida face à matéria de facto provada, julgou com acerto e perfeita observância da lei aplicável pelo que deve ser mantida.

Ademais, parece-nos que o recurso deve ser rejeitado por falta total de conclusões.

Assim se se espera por ser de JUSTIÇA.”

1.3 - Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo:

“Quanto ao Recurso propriamente dito, sempre se dirá que carece de fundamento as alegadas violações do art 410º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.

Existe erro notório quando se está perante “facto de que todos se apercebem directamente, ou que, pela generalidade dos cidadãos adquire caracter notório” (Ac. STJ, de 6/4/1994, C. J., Acs. Do STJ, Ano II, Tomo 2, pág. 186), e existe contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão proferida quando “… seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão …” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/4/2013, in www.dgsi.pt), prevalecendo a valoração da prova realizada pelo Tribunal recorrido e decaindo a convicção do arguido quanto à credibilidade dos meios de prova produzidos, situações que não são, obviamente, o caso sub judicio, face à prova produzida em audiência e julgamento, resultando evidente que o Tribunal a quo fez uma correcta apreciação dos factos e da lei, tendo decidido fundamentadamente e em conformidade.

Acresce, ainda, que a prova indirecta ou indiciária incide sobre factos diversos do tema da prova mas que permite, a partir de deduções e induções objectiváveis e com auxílio de regras de experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/3/2012), seguindo-se os ensinamentos de Ferrer Beltrán, segundo o qual “para se considerar provada uma hipótese de culpabilidade devem encontrar-se preenchidas simultaneamente as seguintes conclusões:

1) A hipótese deve ser capaz de explicar os dados disponíveis, integrando-os de forma coerente, e as previsões de novos dados que a hipótese permita formular devem ter resultado confirmadas¸ e

2) Devem ter-se refutado todas as demais hipóteses plausíveis explicativas desses mesmos dados que sejam compatíveis com a inocência do acusado, excluídas as meras hipóteses ad hoc”.

Deste modo, a livre apreciação da prova e a admissão da prova indirecta sempre se traduzirá numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência, o que permite motivar a decisão do juiz, estando-lhe, assim, vedada a decisão imotivada por não corresponder a um iter objectivado que comprove se o raciocínio que levou à decisão é lógico ou se é absurdo (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II Volume, pág. 126 e ss.), pois “a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptíveis de motivação e controlo”, Figueiredo Dias, “Direito de Processo Penal”, 1º Volume, Coimbra Editora, 1974, pág. 202 e 203.

Acresce, ainda, que do cotejo dos autos, apura-se que o Tribunal a quo apreciou devida e cuidadosamente a prova produzida e os demais elementos, objectivos e subjectivos, carreados para o processo e analisados em sede de julgamento, fazendo uma correcta aplicação dos preceitos legais e fundamentando devidamente a sua decisão, designadamente no que concerne os imperativos legais que disciplinam a qualificação jurídica dos factos ilícitos sub judicio e a aplicação da medida da pena, razão pela qual a Sentença ora posta em crise, quer quanto à qualificação jurídica do crime imputado ao recorrente quer quanto à medida concreta da pena aplicada mostrando-se a mesma adequada ao condenar o arguido e revelando-se a pena aplicada adequada, proporcional e suficiente face à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial que neste caso se fazem sentir, não incorrendo em qualquer nulidade e/ou inconstitucionalidade, pelo que se entende que não merece qualquer reparo, devendo, por isso, ser integralmente mantida.

Assim, sem necessidade de outros considerandos,

É PARECER do Ministério Público que o Recurso interposto deve ser julgado improcedente...”.

1.4 - Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º, n.º 2, do C.P.P.

1.5 - Foram colhidos os vistos legais.

1.6 - Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

2.1 - O teor da decisão recorrida, na parte que importa, é a seguinte:

“A) De facto

1 – Factos provados

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram assentes os seguintes factos:

1. JCGC e SMSB casaram um com o outro em ……, tendo fixado residência na ……………………, Almeirim.

2. Fruto da referida união nascei, em ……………., um filho de nome DJSC.

3. Em data não concretamente apurada, mas que se situa em meados do ano de 2016, SB tomou conhecimento que o seu marido, e aqui arguido JCC, vinha mantendo há já cerca de 10 anos, uma relação extraconjugal, face ao que lhe transmitiu que pretendia o divórcio.

4. No entanto, o arguido JCC recusou o propósito de se divorciar e, a partir de então, alterou de forma radical o seu comportamento com a sua mulher SB.

5. Assim, e pelo menos a partir do mês de Outubro de 2016, o arguido JC passou a gritar com a sua mulher S, apodando-a de “estúpida”, “parvalhona” e “ordinária”, assim como lhe dizia “Dou cabo de ti”.

6. A partir da referida altura, e sob o menos pretexto, o arguido apertava o pescoço de S, assim como lhe cuspia na cara.

7. Sendo que, e pelo menos por uma vez, o arguido JC encheu a banheira de água com o propósito de ali fazer mergulhar a cabeça da sua mulher S e afoga-la, propósito que anunciou, mas que nunca conseguiu concretizar por o filho de ambos o haver impedido.

8. Bem como, e no decurso das referidas discussões, o arguido JC dizia para a mulher Sónia “eu mato-te” e “eu dou-te um tiro na cabeça”.

9. Por não aguentar mais viver naquelas condições e temer mesmo pela sua integridade física e vida, no dia 21 de Outubro de 2016 SB abandonou a casa de morada de família na companhia do seu filho, passando a residir com os seus pais em Almeirim.

10. Apesar do supra referido, o arguido JC continuou a procurar a sua mulher S, ora em casa dos pais daquela, ora no seu local de trabalho, ocasiões em que a tentava convencer a regressar a casa, assim como a ameaçava nos moldes já referidos e retornava a apodá-la de “estúpida”, “parvalhona” e “ordinária”.

11. Uma dessas ocasiões teve lugar no dia 20 de Dezembro de 2016, sendo que, e quando eram cerca das 21.00h, o arguido se deslocou a casa dos pais de SB, sita ………………Almeirim.

12. Naquela ocasião, o arguido JC voltou a insistir com SB para que voltasse para casa, ocasião em que lhe disse “Dou-te um tiro na cabeça e de seguida mato-me a mim”, o que fez diante do filho do casal e da mãe de S, sendo que se dirigiu a esta última dizendo-lhe “Ela é minha, faço dela o que eu quiser.”

13. Em data não concretamente apurada, mas que se situa em momento anterior ao dia 22 de Março de 2017, o arguido JC mudou as fechaduras da casa de morada de família, pelo que, e após SB tentar ir buscar as roupas de Verão para si e para o filho do casal, entre outros objectos pessoais, viu-se impedida de o fazer.

14. Assim, no dia 22 de Março de 2017, cerca das 06.30h, SB deslocou-se à casa onde vivia JCC para pedir uma chave para poder entrar na habitação e dali retirar os objectos pessoais dela e do filho de ambos que ainda ali se encontravam, o que aquele negou e após, agarrou com força num dos braços de S, ao mesmo tempo que a puxou para junto de si, sendo que S conseguiu libertar-se e refugiou-se no interior do seu veículo automóvel.

15. No entanto, e como CC a continuasse a perseguir, SB retirou uma embalagem de laca que guardava dentro do porta-luvas do seu veículo automóvel e pulverizou os olhos e rosto de CB com a mesma, o que lhe causou forte incómodo e ardor com hiperémia das conjuntivas, o que lhe determinou um dia de doença sem afectação da capacidade para o trabalho.

16. Com as condutas acima expostas, o arguido JCGC quis molestar física e psicologicamente, a sua mulher SMB, bem sabendo que dessa forma ofendia a honra, a consideração, a liberdade de autodeterminação e o corpo e a saúde desta e que praticava tais actos na residência comum do casal e na presença do filho menor.

17. De igual modo, o arguido JCGC representou e quis causar sobre a mesma receio sobre a sua integridade física e vida, conforme fez.

18. Assim como sabia tratar-se a mesma da sua cônjuge e mãe do seu filho e que, por via dessa relação, estava vinculado para com aquela aos deveres de respeito e cooperação.

19. No dia 03 de Abril de 2017, o arguido detinha em sua posse, no interior da garagem da sua residência, sita na………… Almeirim, desmontada e dentro de uma caixa de papelão, uma espingarda da marca “Ignacio Ugartechea”, com o número 131206, de dois canos, calibre 12.

20. O arguido detinha em sua posse a referida arma de fogo, bem como as referidas munições, não sendo possuidor de qualquer licença para o efeito.

21. O arguido conhecia as características da arma e das munições que detinha, bem sabendo que necessitava de possuir licença válida para o efeito, o que não sucedia, e, não obstante, quis detê-los conforme fez.

22. A arguida SMSB, ao agir como se descreveu no ponto 15, previu e quis ofender o corpo, em concreto os olhos, de JCGC, tal qual fez.

23. Desconhecem-se anteriores condenações penais aos arguidos, constando do seu certificado de registo criminal que os não têm.

24. O arguido JC vive em casa arrendada com a companheira e a mãe, pagando 300,00€ de renda mensal.

25. É acabador na construção civil.

26. Encontra-se a aguardar uma cirurgia, declarando não receber qualquer valor a título de baixa médica.

27. Declara viver com o auxílio da mãe e da companheira, sendo que a primeira aufere 230,00€ de pensão de reforma e a segunda trabalha, auferindo 580,00€ mensais.

28. Paga cerca de 140,00€ mensais de empréstimo à habitação, relativo à casa onde vivia com a arguida SB.

29. Tem um filho de 17 anos, de quem tem a guarda partilhada.

30. Possui o 9.º ano de escolaridade.

31. A arguida SB trabalha em uma loja, auferindo o salário mínimo nacional.

32. Vive em casa arrendada com o filho, pagando 250,00€ de renda mensal.

33. Paga cerca de 144,00€ mensais de empréstimo à habitação, relativo à casa onde vivia com o arguido JC.

34. Possui o 6.º ano de escolaridade.

35. Como consequência dos comportamentos do arguido, a lesada SB tem ao longo deste tempo e ainda hoje vive permanentemente sobressaltada e receosa que o arguido a agrida e ofenda.

36. Ao longo daqueles anos, e ainda hoje, é constante o estado de tensão, enervamento, inquietude e intimidação da lesada.

37. É também muita a vergonha que a lesada sente face aos escândalos públicos gerados pelo demandado com os seus actos, ao longo deste tempo.

2 - Factos não provados:

Não ficaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa, consignando-se que não se tiveram em conta considerações de direito, conclusivas ou irrelevantes para a boa decisão da causa:

A. Nas circunstâncias de tempo mencionadas em 14, os factos ocorreram na anterior casa de morada da família.

B. Sabia a arguida SMSB que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, assim como tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

C. Como resultado daqueles comportamentos do arguido, a lesada tem desde 2016 até hoje sofrido permanentemente de depressão, e tem sido forçada a recorrer constantemente a tratamento médico.

3 - Motivação:

O tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto provada com base na prova produzida em julgamento, apreciada de acordo com regras de razoabilidade, experiência e bom senso.

Essencialmente foi tomado em consideração o depoimento prestado pela ofendida, SB, a qual prestou um depoimento espontâneo e sentido, não demonstrando qualquer animosidade para com o ofendido e narrando os factos constantes da acusação com objectividade, apenas tendo incorrido em imprecisões mínimas, que não são de estranhar, face à distância que já separa a data dos factos do presente.

De notar que a ofendida, na qualidade de arguida, narrou igualmente os factos constantes da acusação que pende contra ela, com objectividade, explicando porque se deslocara à habitação do ofendido/arguido, JC, e declarando que se sentira ameaçada e fora por isso que lhe deitara a laca para os olhos, por forma a libertar-se dele.

O seu depoimento foi em tudo corroborado pelo de sua mãe, MSS, também arrolada como testemunha, e que não tendo conhecimento de todos os factos, por não se encontrar constantemente na casa do casal, tinha conhecimento dos que se passaram na sua presença, nomeadamente o que o arguido dissera à sua filha quando em Dezembro com ela falara na casa dos pais, e mesmo do modo como a tratava quando, ainda casados, tinham discussões na sua frente.

Também esta testemunha se mostrou credível por produzir um depoimento objectivo e calmo, não demonstrando qualquer animosidade para com o arguido, de quem chegou a dizer que, enquanto sogra, não tinha qualquer razão de queixa.

A referida testemunha serviu igualmente para corroborar o depoimento da sua filha, mesmo quanto àquilo a que não assistira, na medida em que contou o que por ela lhe tinha sido contado, e que se mostrou coerente com os factos constantes da acusação, não tendo entrado em qualquer contradição com a ofendida.

Também quanto aos factos da acusação contra a filha a testemunha se mostrou sabedora, apesar de não a ter acompanhado à data dos mesmos, por aquela lhe ter contado. A referida testemunha, por outro lado, serviu igualmente para atestar o estado de espírito da ofendida, naquela data – segundo ela, desesperada por não ter o que vestir, com o filho, o que fez com que confrontasse o arguido.

Também as testemunhas SS e LC serviram para corroborar as declarações da ofendida SB, na medida em que chegaram a assistir a visitas do arguido ao estabelecimento onde todas trabalhavam, e a ouvir – no caso de SS – e a assistir – no caso de LC – o modo como o arguido tratava a esposa, enquanto estavam casados.

Acresce que a versão apresentada pelo arguido não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal, na medida em que se limitou a negar todos os factos, negando até ter tido uma relação extraconjugal, o que foi dado como provado por apelo até a uma das testemunhas por si arroladas, que declarou saber que “o arguido tinha outra companheira ainda durante o casamento”, e bem assim, por apelo às declarações da ofendida e do seu tio JMSP, que declarou que o próprio arguido lho tinha confirmado. As declarações do arguido, por outro lado, foram proferidas com alguma frieza e desprendimento, tendo o Tribunal ficado com a ideia de que o arguido não interiorizou o desvalor daquilo de que era acusado. Acresce que a sua versão, além de ser pouco conforme às regras da experiência, nomeadamente quanto aos factos relativos à arma que tinha na sua garagem, tinha contradições e imprecisões.

Note-se que o arguido declarou nunca ter chamado à ofendida os nomes que constam da acusação, mas por outro lado disse que no âmbito de uma discussão pode ter-se excedido, acrescentando, no entanto, que apenas poderá ter falado mais alto. Estas declarações foram contraditas não só pelo depoimento da ofendida e da sua mãe, mas também das testemunhas LC e SS, que corroboraram o dito pela ofendida, pelo que aquela lhes tinha contado e também pelo que última terá assistido.

Uma das declarações do arguido que não faz qualquer sentido é a de que nada disto se terá passado porque quando a ofendida/arguida lhe pediu o divórcio não levou a sério, porque quando estava zangada ela falava em divórcio. Na verdade, este tipo de afirmação leva o Tribunal a acreditar precisamente que a afirmação de que a ofendida era dele e fazia dela o que quisesse é verdadeira, parecendo de facto que o arguido tinha um sentimento de posse tal para com ela que não concebia que a mesma, apesar de traída, o deixasse.

Assim, todas as declarações do arguido se mostram pouco credíveis, tendo-se pelo contrário, pelas declarações sentidas proferidas pela arguida, e porque corroboradas pelas demais testemunhas, merecido as dela credibilidade ao Tribunal.

Outra contradição do depoimento do arguido foi este ter sempre declarado que a ofendida tinha a chave de casa e que nunca mudara a fechadura, o que não só é contradito pela própria situação em que a ofendida/arguida lhe atira laca para a cara, altura em que terá ido lá para recuperar acesso à casa, como também pelo depoimento da mãe da ofendida e pela versão da ofendida.

Quanto ao facto de o arguido ter agido sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei e que agiu com intenção de humilhar e agredir física e psicologicamente a ofendida, decorre das regras da experiência comum, tanto que a violência doméstica é um dos crimes mais falados hoje em dia, e por isso não é concebível que alguém o pratique sem a perfeita consciência do que implica a sua actuação.

Relativamente à detenção da arma proibida pelo arguido, não obstante ter sido junta prova documental que a mesma era do pai do arguido, o que é certo é que não é minimamente credível que, apesar de a família não viver já naquela morada, a referida pessoa tivesse tido a iniciativa, sem nada dizer ao filho, de guardar lá a referida arma

De resto, a ofendida declarou nada saber sobre se o sogro tinha chave da garagem, e o mesmo entendeu por bem não prestar depoimento, pelo que não corroborou sequer a versão apresentada pelo arguido. Assim, e porque o arguido era quem tinha a chave de casa e aí se encontrava a arma, foi dado como provado todo o vertido na acusação quanto à mesma.

As testemunhas arroladas pelo arguido não tiveram qualquer relevância, por não terem assistido a qualquer dos factos, e terem apenas declarado que o casal se dava se dava bem, o que não contradiz a versão apresentada pela acusação, uma vez que os factos se passaram dentro de casa sendo normal que a situação vista de fora – note-se que nem sequer são amigos, apenas pessoas conhecidas, o que só por si mostra uma personalidade pouco sociável pelo arguido – não seja a mesma que dentro de casa.

De resto, quanto à situação da ofensa pela qual a arguida vinha acusada, há que dizê-lo, a versão do arguido novamente se mostra cheia de contradições com a da testemunha PD. Por um lado, o arguido afirmou que quando saiu de casa a arguida já lá se encontrava com o carro estacionado atrás do seu, e a testemunha declarou que a tinha visto a chegar, após o arguido sair.

De resto, nem se mostra credível que a testemunha estivesse a assistir e se limitasse a deitar-lhe água para o rosto em vez de o levar ao hospital, como afirmou, por este ter insistido em ir sozinho.

O próprio facto de a testemunha viver com o arguido, mas negar ter com ele a relação extraconjugal que consta da acusação se mostra pouco credível, nomeadamente pela explicação apresentada para estar a viver com ele desde a sua separação.

Quanto a esta ofensa, foi tido em conta o auto de exame médico de fls. 171 a 172 e quanto às armas e munições foi tido em conta o auto de exame e avaliação de fls. 83 a 86. Foi ainda tida em conta a prova documental que se mostra junta aos autos, nomeadamente auto de notícia de fls. 19 a 21, informação hospitalar de fls. 24, assentos de nascimento de fls. 29 a 32 – quanto aos factos do casamento e filho em comum – o termo de entrega de fls. 53 – quanto às armas -, relatório de busca domiciliária de fls. 72 a 73 – também quanto às armas e auto de denúncia e relatório de urgências – no apenso – quanto à agressão da arguida ao ofendido.

Tendo, no entanto, sido dada credibilidade à versão da arguida, no sentido de dar como provado que o arguido/ofendido a ter agarrado por um braço e puxado para si, na medida em que se mostra muito mais consonante com as regras da experiência comum, entende o Tribunal que é de dar como não provado que a arguida tivesse consciência de o seu comportamento ser proibido e punido por lei, uma vez que é sabido que se se estiver a ser atacado, é legal que o visado se defenda.

Assim, e porque se mostra credível que a arguida tenha agido para se defender, entende o Tribunal ser de, em obediência ao princípio in dúbio pro reo, dar aquele facto como não provado.

Quanto ao outro facto que foi dado como não provado, o Tribunal deu-o assim por se ter provado que a agressão se terá dado junto à casa onde o arguido reside agora, e não na casa de morada da família, por tal ter sido referido por todos os intervenientes.

Quanto à ausência de anteriores condenações dos arguidos, o Tribunal teve em conta o certificado de registo criminal do mesmo, que se mostra junto aos autos.

As condições de vida dos arguidos foram apuradas pelo cotejo das suas declarações e pelo facto de não existir outros dados sobre o mesmo no processo.”

2.2 - O registo magnetofónico da prova permite, ao tribunal de recurso, sindicar a matéria de facto (desde que o recorrente dê cumprimento ao disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P., o que não ocorre, no caso “sub judice), apreciar as questões de direito avançadas pelo recorrente (Cfr. art. 428º, do mencionado compêndio adjectivo) e fazer a apreciação de eventuais vícios do art. 410°, n.º 2 CPP ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas.

Portanto, dentro dos parâmetros retro aludido, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), uma vez que as questões submetidas à apreciação da instância de recurso são as definidas pelo recorrente.

São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.

Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.

Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.

As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.3 - Analisadas as conclusões de recurso, dir-se-á que, no caso dos autos, as questões que o recorrente coloca são:

A) Impugnação de matéria de facto dada como provada;

B) Violação do princípio in dúbio pro reo;

C) Não se verificam os pressupostos dos elementos do tipo legal do crime de violência doméstica e de detenção de arma proibida;

D) A pena de três anos de prisão é exagerada;

E) O montante indemnizatório fixado, a favor da demandante civil, SB, é excessivo.

2.4 - Análise das questões do recurso

2.4.1- Pretensão de impugnação da matéria de facto.

Nos termos do disposto no artigo 428º, do C.P.P., o Tribunal da Relação, em fase de recurso, pode apreciar da matéria de facto e de direito, nos termos retro apontados.

No que respeita ao objecto de recurso sobre a questão de facto, a apreciação da prova, baseada nas regras da experiência comum e na livre convicção feita pelo tribunal de 1ª instância poderia ser censurada por este tribunal, pois existe documentação das declarações prestadas no decurso da audiência de discussão e julgamento.

O recorrente questiona os factos constantes dos pontos da matéria de facto provada nºs. 3, 4, 5, 6, 7, 8, 14, 15, 16 e 19 a 21º, que foram, na sua óptica, incorrectamente julgados e deveriam ter sido dados como não provados;

Desde logo, é necessário verificar o cumprimento do disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P.

O n.º 3, deste preceito legal - 412º, do C.P.P. estabelece que, quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto - no caso em análise não o fez - deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim as provas que impõe decisão diversa da recorrida e as que devem ser renovadas.

O n.º 4, refere que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c), do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2, do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.”.

A lei é exigente relativamente a essa impugnação.

O julgamento efectivo foi realizado no Tribunal da 1ª instância.

Neste Tribunal de recurso o que releva é a apreciação da regularidade do julgamento e não a realização de um efectivo e verdadeiro segundo julgamento. Tanto assim é que a própria lei, no art. 430º, do C.P.P., só permite a renovação da prova quando se verifiquem os vícios do art. 410º n.º 2, do referido compêndio adjectivo, portanto, quando do teor do texto da decisão judicial decorra a verificação de qualquer dos vícios aí apontados, v.g., insuficiência, contradição ou erro.

O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.

E tal exigência é dada, como é referido nos Acs. desta Relação Ns. 2542/01 e 2870/02, pelas seguintes imposições:

Especificação, e não mera referência, dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, sendo necessário precisar com clareza o ponto que se tem por erroneamente apurado;

especificação das provas, não sendo suficiente a menção genérica de toda a prova e dos depoimentos das testemunhas, etc.;

indicação concreta das provas que impõem decisão diversa;

especificação dos suportes técnicos, da prova documentada, com vista a facilitar a sua localização.

O recorrente/arguido faz uma menção ao local preciso - início e fim das declarações da demandante civil - da gravação, através do registo magnetofónico da prova, sem menção específica do conteúdo dessas declarações prestadas pela demandante civil, no decurso da audiência de discussão e julgamento, referente aos factos questionados respeitantes à matéria de facto dada como provada.

Não menciona nada mais, não dando, assim, cumprimento, cabal, ao estatuído no preceito legal supra citado.

O que o mesmo faz é ampla referência à sua apreensão das declarações, da demandante civil, SMB, prestadas no decurso da audiência.

Porém, sobre a prova produzida em julgamento, mais uma vez, afirmamos, não é feita a menção legal exigida no citado preceito legal. Todavia, é na audiência de julgamento, local privilegiado para produção da prova, onde o princípio da oralidade e da imediação permitem a apreensão directa dos elementos probatórios que devem ser analisados (Cfr. art.º. 355º, do CPP).

O mesmo pretende contestar a apreciação e valoração que o Tribunal a quo fez da prova.

Acresce que, tece críticas e discorda da matéria de facto apontada, não a impugnando, como já referido, verdadeiramente, no âmbito da pretensa impugnação da matéria de facto, nem, não alude, às provas concretas que impõem decisão diversa, tecendo, apenas, comentários sobre a valoração da prova feita pelo Tribunal, argumentando com considerações todas elas, apenas e exclusivamente, relativas a uma apreensão diversa da prova, valorando-a, de modo diverso, colocando dúvidas e interrogações, sem contudo, conseguir fundamentar e concretizar as provas que impõem decisão diversa. Como já referido, o que a lei pretende ao vincular o recorrente á indicação das provas que impõem decisão diversa, não é, certamente, formular uma outra versão da prova produzida.

Tal poderia ser suficiente para se considerar, manifestamente, improcedente o recurso, no que concerne à impugnação da matéria de facto provada, designadamente, a constante dos pontos supra aludidos n.ºs. 3, 4, 5, 6, 7, 8, 14, 15, 16 e 19 a 21º da matéria de facto provada.

Todavia, dir-se-á que a apreciação da prova constante do acórdão ou sentença, por imposição do art. 374º n.º 2, do C.P.P., não basta ser dúbia ou duvidosa, é necessário que seja, de modo óbvio, errónea impondo-se a qualquer homem ou cidadão mediano e fundamenta a existência do vícios a que alude o art. 410º n.º 2, al. c), do aludido compêndio adjectivo, ou não. Neste caso, deve cumprir-se as regras de impugnação supra mencionadas.

No nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127° do CPP, que estatui" salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.". A este propósito salienta o Sr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, v. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202: " Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo..."

E adianta, Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, " Meios de Prova", Livraria Almedina, pág. 227/228:" Por outro lado, livre convicção ou apreciação não poderá nunca se confundir com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A mais importante inovação introduzida pelo Código nesta matéria consiste, precisamente, na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação das decisões que conheçam a final do processo de modo a permitir-se um controlo efectivo da sua motivação".

Acresce que o recorrente, como já referido, não impugnou, na verdadeira asserção da palavra a matéria de facto, limitando-se a criticar a forma como foi valorada a prova e a percepciona-la de forma diversa.

O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.

Sobre esta questão, o Prof. Marques da Silva, In “ Curso de Direito Processual Penal, vol. II, pág. 126 e 127 refere:" O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente de imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente aplicáveis (v.g. a credibilidade eu se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as interferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.".

Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal, anotado", 9.ª ed., pág.322, refere "... livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica... ".

Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", II, pág. 126 e segs... a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração "racional e critica, de acordo com as regras, comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão...; com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim.

Como já referido, a convicção do julgado há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros".

O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes planos.

Em primeiro lugar trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).

Seguidamente, na valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.

Equaciona-se a questão de utilização de prova indiciária ou de presunções, lícita em processo penal, desde que verificados diversos pressupostos conforme jurisprudência do STJ (cfr. Ac. de 21. 10.2004, relator Cons. Simas Santos, Ac. de 24.3.2004, relator Cons. Henriques Gaspar e Ac. de 12.9.2007, relator Cons. Santos Monteiro) e também na doutrina (cfr. Euclides Dâmaso Simões, Prova Indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente), disponível em https://sites.google.com/site/julgaronline/a-julgar-on¬line/autores/descritores/prova-indiciaria).

Ora, reafirmamos que aos julgadores, no tribunal de recurso, está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, contrariamente ao que ocorre no tribunal da 1ª instância que contacta com uma multiplicidade de factores, relativos a percepção da espontaneidade dos depoimentos da verosimilhança, da seriedade, das hesitações, da linguagem, do tom de voz, do comportamento, das reacções, dos trejeitos, das expressões e, até, dos olhares.

Assim, condicionados pela impossibilidade da captação desses elementos directos, resultantes da imediação da prova, perante duas ou mais versões dos factos, só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374º n.º 2, do aludido compêndio adjectivo.

Acresce que, só a especificação de todos os elementos probatórios, os indicados pelo tribunal e os que se entende não foram tidos em conta, pode impor decisão diversa.

E as provas que impõem essa diversa decisão são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que o tendo sido ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida. Se a tais provas faltam esses pressupostos, não conduzem a outra decisão.

O problema posto pelo recorrente reconduz-se ao da apreciação da prova por parte do tribunal recorrido de que trata o art.º 127°, do CPP.

Mas revertendo para o caso concreto, dir-se-á que a questão básica da crítica à matéria facto provada, resulta, na óptica do recorrente, que não deveriam ter ficado, os pontos questionados, consignada nos factos provados, mas sim, não provados.

Não nos podemos esquecer, todavia, que, em termos globais, o Tribunal “a quo” formou a sua convicção, para fundamentar a matéria de facto dada como provado, como refere no ponto “3 Motivação”, da sentença recorrida, “Essencialmente foi tomado em consideração o depoimento prestado pela ofendida, SB, a qual prestou um depoimento espontâneo e sentido, não demonstrando qualquer animosidade para com o ofendido e narrando os factos constantes da acusação com objectividade, apenas tendo incorrido em imprecisões mínimas, que não são de estranhar, face à distância que já separa a data dos factos do presente.

De notar que a ofendida, na qualidade de arguida, narrou igualmente os factos constantes da acusação que pende contra ela, com objectividade, explicando porque se deslocara à habitação do ofendido/arguido, JC, e declarando que se sentira ameaçada e fora por isso que lhe deitara a laca para os olhos, por forma a libertar-se dele.

O seu depoimento foi em tudo corroborado pelo de sua mãe, MSS, também arrolada como testemunha, e que não tendo conhecimento de todos os factos, por não se encontrar constantemente na casa do casal, tinha conhecimento dos que se passaram na sua presença, nomeadamente o que o arguido dissera à sua filha quando em Dezembro com ela falara na casa dos pais, e mesmo do modo como a tratava quando, ainda casados, tinham discussões na sua frente.

Também esta testemunha se mostrou credível por produzir um depoimento objectivo e calmo, não demonstrando qualquer animosidade para com o arguido, de quem chegou a dizer que, enquanto sogra, não tinha qualquer razão de queixa.

A referida testemunha serviu igualmente para corroborar o depoimento da sua filha, mesmo quanto àquilo a que não assistira, na medida em que contou o que por ela lhe tinha sido contado, e que se mostrou coerente com os factos constantes da acusação, não tendo entrado em qualquer contradição com a ofendida.

Também quanto aos factos da acusação contra a filha a testemunha se mostrou sabedora, apesar de não a ter acompanhado à data dos mesmos, por aquela lhe ter contado. A referida testemunha, por outro lado, serviu igualmente para atestar o estado de espírito da ofendida, naquela data – segundo ela, desesperada por não ter o que vestir, com o filho, o que fez com que confrontasse o arguido.

Também as testemunhas SS e LC serviram para corroborar as declarações da ofendida SB, na medida em que chegaram a assistir a visitas do arguido ao estabelecimento onde todas trabalhavam, e a ouvir – no caso de SS – e a assistir – no caso de LC – o modo como o arguido tratava a esposa, enquanto estavam casados.

Acresce que a versão apresentada pelo arguido não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal, na medida em que se limitou a negar todos os factos, negando até ter tido uma relação extraconjugal, o que foi dado como provado por apelo até a uma das testemunhas por si arroladas, que declarou saber que “o arguido tinha outra companheira ainda durante o casamento”, e bem assim, por apelo às declarações da ofendida e do seu tio JMSP, que declarou que o próprio arguido lho tinha confirmado. As declarações do arguido, por outro lado, foram proferidas com alguma frieza e desprendimento, tendo o Tribunal ficado com a ideia de que o arguido não interiorizou o desvalor daquilo de que era acusado. Acresce que a sua versão, além de ser pouco conforme às regras da experiência, nomeadamente quanto aos factos relativos à arma que tinha na sua garagem, tinha contradições e imprecisões.

Note-se que o arguido declarou nunca ter chamado à ofendida os nomes que constam da acusação, mas por outro lado disse que no âmbito de uma discussão pode ter-se excedido, acrescentando, no entanto, que apenas poderá ter falado mais alto. Estas declarações foram contraditas não só pelo depoimento da ofendida e da sua mãe, mas também das testemunhas LC e SS, que corroboraram o dito pela ofendida, pelo que aquela lhes tinha contado e também pelo que última terá assistido.

Uma das declarações do arguido que não faz qualquer sentido é a de que nada disto se terá passado porque quando a ofendida/arguida lhe pediu o divórcio não levou a sério, porque quando estava zangada ela falava em divórcio. Na verdade, este tipo de afirmação leva o Tribunal a acreditar precisamente que a afirmação de que a ofendida era dele e fazia dela o que quisesse é verdadeira, parecendo de facto que o arguido tinha um sentimento de posse tal para com ela que não concebia que a mesma, apesar de traída, o deixasse.

Assim, todas as declarações do arguido se mostram pouco credíveis, tendo-se pelo contrário, pelas declarações sentidas proferidas pela arguida, e porque corroboradas pelas demais testemunhas, merecido as dela credibilidade ao Tribunal.

Outra contradição do depoimento do arguido foi este ter sempre declarado que a ofendida tinha a chave de casa e que nunca mudara a fechadura, o que não só é contradito pela própria situação em que a ofendida/arguida lhe atira laca para a cara, altura em que terá ido lá para recuperar acesso à casa, como também pelo depoimento da mãe da ofendida e pela versão da ofendida.

Quanto ao facto de o arguido ter agido sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei e que agiu com intenção de humilhar e agredir física e psicologicamente a ofendida, decorre das regras da experiência comum, tanto que a violência doméstica é um dos crimes mais falados hoje em dia, e por isso não é concebível que alguém o pratique sem a perfeita consciência do que implica a sua actuação.

Relativamente à detenção da arma proibida pelo arguido, não obstante ter sido junta prova documental que a mesma era do pai do arguido, o que é certo é que não é minimamente credível que, apesar de a família não viver já naquela morada, a referida pessoa tivesse tido a iniciativa, sem nada dizer ao filho, de guardar lá a referida arma

De resto, a ofendida declarou nada saber sobre se o sogro tinha chave da garagem, e o mesmo entendeu por bem não prestar depoimento, pelo que não corroborou sequer a versão apresentada pelo arguido. Assim, e porque o arguido era quem tinha a chave de casa e aí se encontrava a arma, foi dado como provado todo o vertido na acusação quanto à mesma.

As testemunhas arroladas pelo arguido não tiveram qualquer relevância, por não terem assistido a qualquer dos factos, e terem apenas declarado que o casal se dava se dava bem, o que não contradiz a versão apresentada pela acusação, uma vez que os factos se passaram dentro de casa sendo normal que a situação vista de fora – note-se que nem sequer são amigos, apenas pessoas conhecidas, o que só por si mostra uma personalidade pouco sociável pelo arguido – não seja a mesma que dentro de casa.

De resto, quanto à situação da ofensa pela qual a arguida vinha acusada, há que dizê-lo, a versão do arguido novamente se mostra cheia de contradições com a da testemunha PD. Por um lado, o arguido afirmou que quando saiu de casa a arguida já lá se encontrava com o carro estacionado atrás do seu, e a testemunha declarou que a tinha visto a chegar, após o arguido sair.

De resto, nem se mostra credível que a testemunha estivesse a assistir e se limitasse a deitar-lhe água para o rosto em vez de o levar ao hospital, como afirmou, por este ter insistido em ir sozinho.

O próprio facto de a testemunha viver com o arguido, mas negar ter com ele a relação extraconjugal que consta da acusação se mostra pouco credível, nomeadamente pela explicação apresentada para estar a viver com ele desde a sua separação.”

Em conjugação com esta prova por declarações da demandante e testemunhal nos termos supra indicados, para a formação da convicção do julgador foi ainda relevante a análise cuidada integrada e global da basta prova documental junta aos autos - auto de notícia de fls. 19 a 21, informação hospitalar de fls. 24, auto de exame médico de fls. 171 a 172, quanto às armas e munições foi tido em conta o auto de exame e avaliação de fls. 83 a 86 e relatório de busca domiciliária de fls. 72 a 73 -. Como já referido, trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).

Por outro lado, o dolo (vide pontos nºs 16 a 18 e 21, da matéria de facto), dada a sua natureza subjectiva, é insusceptível de apreensão directa, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou das regras gerais da experiência.

Isto, por recurso às regras de experiência e porque para se aferir ou não da existência da intenção criminosa, se há-de retirar os elementos confirmativos da sua verificação, da matéria fáctica dada como provada.

Da análise probatória global, efectuada igualmente pelo tribunal ad quo não pode de todo concluir-se por uma errada apreciação da prova em termos de julgamento pelo tribunal. Pelo contrário, os factos provados consignados e questionados, são totalmente pertinentes, por resultarem da conjugação de toda a prova, resultando a sua verificação de presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral de experiência.

Assim, o Recorrente pretende é substituir a sua convicção à convicção do Tribunal e o que o Recorrente impugna não é a matéria de facto dada como provada mas sim a convicção do Tribunal.

O Recorrente quer impor ao Tribunal a sua própria convicção, a ideia com que o mesmo ficou da prova, aquilo de que o próprio quis convencer o Tribunal.

Pois que, no caso “sub judice”, tal como se mostra mencionado, resulta da fundamentação da matéria de facto que, o tribunal “a quo” na análise e fixação da matéria de facto, baseou-se na observação de conjunto de provas legalmente válidas e interpretou-as, de forma livre, mas não arbitrária.

Resta apenas referir que de todo se constata qualquer evidência que permita concluir a violação do princípio da livre apreciação da prova.

O princípio da livre apreciação da prova, como princípio estruturante do direito processual do continente europeu e, especificamente do direito processual penal português, assume, na dinâmica do processo de fundamentação da sentença penal simultaneamente, uma dupla função de ordenação e de limite.

Vinculado ao princípio da descoberta da verdade material, contrariamente ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova, possibilita-se ao juiz um âmbito de discricionariedade na apreciação de cada uma das provas atendíveis que suportam a decisão.

Trata-se de uma discricionariedade assente num modelo racionalizado, na medida em que implica que o juiz efectue as suas valorações segundo uma discricionariedade guiada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação. Ou seja, «o princípio da livre convicção libertou o juiz das regras da prova legal mas não o desvinculou das regras da razão» cf. Michelle Taruffo, «Conocimiento científico y estándares de prueba judicial», Jueces para la Democracia, Información y debate, nº 52, Marzo, 2005, p. 67.

Ora conforme foi referido o Tribunal no caso concreto, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas utilizando exactamente as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência. Daí que não se vislumbra qualquer vício no seu modo de decidir e valorar essas provas que ponha em causa o principio da livre apreciação da prova.” (vide, Ac. R C, de 25/11/2009, proferido no Proc. N.º 219/05.8GBPCV.C1).

O tribunal recorrido apreciando criticamente todas as provas produzidas, conjugando-as e confrontando-as, como se fez constar, de forma detalhada, da respectiva fundamentação. É indiscutível que na sentença é mencionada, portanto, a razão da valoração de todos os elementos probatórios e credibilidade dos depoimentos das referidas testemunhas.

A conjugação desses elementos probatórios serviu para a convicção do tribunal “a quo” na forma vertida no acórdão recorrido.

Todos estes elementos de prova infirmam as afirmações do recorrente vertidas em alguns dos diversos pontos da sua conclusão da motivação de recurso e confirmam a matéria apurada e não provada consignadas.

Portanto, atentas as considerações supra tecidas, e ao contrário do recorrente, o Tribunal a quo valorou validamente a prova produzida, valorando ao abrigo do Principio da livre apreciação da prova, do Principio da imediação, e considerando as regras da experiência comum e da lógica, os diversos elementos probatórios carreados e produzidos nos autos, apreciando de modo imparcial e coerente.

Face a essa fundamentação da convicção feita pelo tribunal, colocar em causa a valoração da prova feita, sem concretizar devida e especificadamente matéria relevante para esse fim, não pode ser considerado como impugnação da matéria de facto.

Da análise de toda a prova supra referida, junta aos autos, emerge a convicção de que toda a prova produzida foi, em termos genéricos, correctamente valorada pelo Tribunal “a quo" não merecendo, reparo a matéria de facto fixada na sentença recorrida.

Assim, não se modifica tal matéria de facto, nos termos preceituados no art. 431º n.º 1 al. b), do C.P.P.

A matéria fáctica apurada é a que se mostra descrita, na sentença recorrida.

2.4.2 - A titulo complementar, de análise oficiosa dir-se-á que, não se verifica o vício expresso no art. 410º n.º 2 al. c) do CPP, o erro notório na apreciação da prova, no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal III/341 - defende que erro na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.

Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques - Recursos em Processo Penal/ 4ª edição/74, defendem que o erro na apreciação da prova consiste na falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se deu como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.

Não se está perante um erro notório na apreciação da prova quando a discordância advém da forma como o Tribunal avaliou a prova produzida.

Revertendo para o caso concreto, o Recorrente propugna, em síntese, que o Tribunal valorou a prova contra as regras da experiencia.

Face ao que acima foi dito - ponto anterior, para os quais remetemos - facilmente se concluiu que não integra o referido vício pois a sentença recorrida não padece de falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si.

Muito pelo contrário, nela é feita uma criteriosa e minuciosa análise da matéria de facto dada como apurada, demonstrativa da actuação do arguido, da factualidade não apurada, bem como, da sua subsunção aos normativos de natureza penal, tudo devidamente enquadrado e adequado.

Não podemos olvidar as regras de experiência e dedução lógicas, sendo certo que este delito é um crime normalmente oculto entre as paredes das residências, o qual, no caso concreto, foi em diversos momentos prolongados no tempo, alguns presenciados pelo filho menor de ambos, sendo mais do que são compreensíveis hesitações da vítima que muitas vezes se culpabilizam pelos actos vis de que são alvo.

O recorrente pode discordar da forma como o tribunal, perante os meios de prova produzidos, construiu a sua convicção e determinou a factualidade provada e não provada.

No caso concreto, verificamos, também, pela mera leitura da sentença recorrida, que essa obrigação legal e o exame crítico da prova se mostram realizados, pois que, na fundamentação da matéria de facto a sentença mencionou, de modo extenso, as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, no sentido de que os factos integradores dos crimes se encontravam provados, ou não provados.

Portanto, a fundamentação da sentença recorrida mostra-se efectuada de forma cabal, com referência, generalizada e global, da prova produzida, com indicação especificada do seu conteúdo e dos elementos esclarecedores dos motivos lógicos e racionais que levaram á convicção do tribunal e à sua opção por determinadas provas em detrimento de outras.

2.4.3 - Violação do princípio “in dubio pro reo”

Relativamente a este princípio "in dubio pro reo", cremos que o mesmo apenas se coloca no âmbito da matéria de facto, e apenas se verifica quando do texto da decisão recorrida resulte que o tribunal, na dúvida optou por decidir contra o arguido, sendo certo também que de haver prova divergente não significa que estejamos perante uma dúvida séria e honesta.

Seguindo a reflexão empreendida no douto acórdão de 4 de Novembro de 1998, do Supremo Tribunal de Justiça, in Colectânea de Jurisprudência, T III, 201, cujo resumo refere que “I - A aplicabilidade do princípio in dubio pro reo restringe-se à decisão da matéria de facto já que, em relação à questão de direito, o problema da dúvida na interpretação (que não é propriamente uma actividade probatória) nunca pode deixar de ser resolvido senão no sentido que se reputar juridicamente mais correcto, independentemente de ser ou não o que mais favorece o arguido. II - Aplica-se o mesmo princípio do in dúbio pro reo, sem qualquer restrição não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, como também às causas de exclusão da ilicitude, da culpa e da pena e, ainda, às atenuantes gerais e modificativas e na prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão susceptível de desfavorecer, objectivamente, o arguido. (…) IV - A livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos; dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela, objectivável e motivável”.

Escreve o Supremo Tribunal de Justiça (Conselheiro Leonardo Dias), que “antítese da "presunção de culpa" que, de facto, recaía sobre o suspeito, no processo inquisitório do Ancien Régime, a presunção de inocência, proclamada em 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, art. 9º, tornou-se, logo a partir dos princípios do Séc. XIX com o chamado processo penal reformado, um dos princípios fundamentais do processo penal do Estado de Direito (como, também, os da autonomia das entidades acusadora e julgadora, da contraditoriedade, da publicidade, da oralidade e da livre convicção probatória)”. A natureza da presunção de inocência (verdadeira presunção em sentido técnico-jurídico, simples verdade interina, ficção ou, ainda, uma simples regra de ónus da prova não terá “importância prática decisiva”. Refere ainda o Supremo que para autores como Figueiredo Dias, Pedrosa Machado, Francisco Tomas Y Valiente e Gomes Canotilho / Vital Moreira, “o princípio da presunção de inocência funda-se no da culpa – nulla poena sine culpa.

(…)

Assim concebido, o princípio da presunção de inocência (cujo âmbito de aplicação não se limita, portanto, ao caso do arguido em processo penal (…) relaciona-se com o da culpa em termos, apenas, de complementaridade, aumentando-lhe o alcance garantístico: nenhuma pena será aplicada sem que a culpa tenha sido provada, nos termos da lei e para além ou fora de qualquer dúvida. Da presunção de inocência, retiramos, imediatamente, a proibição tanto de fazer recair sobre o arguido o ónus de alegação e prova da sua inocência (na verdade, ele já não tem que a alegar e provar, pelo simples facto de, em consequência da integração da estrutura acusatória pelo princípio da investigação, nos termos do art.º 340, n.º 1, do Código de Processo Penal, inexistir, no processo penal, ónus da prova quer para a defesa quer para a acusação, cfr. Figueiredo Dias, cit. "Ónus de alegar...", págs. 125 e segs.) (…). Como se acentua no Acórdão n.º 168, da Comissão de Constitucional, de 24 de Julho de 1979, de que foi relator Figueiredo Dias, que “... o princípio da presunção de inocência na sua desimplicação histórica, assume uma pluralidade de sentidos que exigem a sua concretização e o seu detalhamento progressivos perante as diversas situações processuais penais que para ele apelam; mas sentidos, também, que não podem ser arbitrária ou desrazoavelmente multiplicados ou estendidos (…)» (B.M.J. n2 291, pág. 346).

(…) Questão controversa que (…) é a de saber como se relacionam, entre si, o princípio da presunção de inocência e a regra que impõe que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, a matéria de facto seja, sempre, decidida no sentido que mais favorece o arguido (que Stübel condensou na fórmula latina in dúbio pro reo).

Depois de um excurso minucioso de direito comparado o Supremo Tribunal de Justiça aborda a doutrina nacional nos seguintes termos: “Castanheira Neves entende que são princípios distintos, na medida em que, ao contrário da presunção de inocência, o do in dubio pro reo “se justifica apenas, jurídico-processualmente, i. é, fundamenta-se em termos imediatamente processuais ou sem que tenha fazer-se apelo a princípios metaprocessuais”. Daí considerar, por um lado, que «não é aceitável a afirmação generalizada na doutrina, de que o princípio in dubio pro reo só pode entender-se na base de uma "presunção de inocência, que, como exigência político-jurídica, se impusesse ao processo criminal”, e, por outro, que, sendo o resultado de uma directa intenção política, aquele pode «mesmo subsistir válido ainda numa ordem jurídica totalitária" (…) Para Eduardo Correia, a presunção de inocência é o princípio in dubio pro reo. (…) Helena Bolina afirma que o princípio da presunção de inocência não se esgota nem o seu objectivo é concretizado através do in dubio pro reo, do qual considera corolários os princípios da investigação e da livre apreciação da prova bem como a celeridade processual e a proibição de estatuições de culpa (ob. cit., págs 443/455). Cristina Líbano Monteiro entende que o princípio da presunção de inocência tem um vasto campo próprio de aplicação que o distingue, ao menos em parte, do in dubio pro reo (ob. cit., fls. 61); este último, «é condição da legitimidade da intervenção criminal, em termos definitivos, do poder público», garantindo a não intervenção do jus puniendi em casos de duvidosa legitimidade, ou seja, nos “das situações de dúvida na prova dos factos” (ob. cit. pág. 60/65 e 77). (...) Figueiredo Dias começou por afirmar a equivalência dos dois princípios (cits. "Ónus...", pág. 140. nota 1, e "Direito Processual…", pág. 214). Hoje, ensina que o da presunção de inocência assume uma pluralidade de sentidos, um dos quais, em matéria de prova, é o de in dubio pro reo”, que “vincula estritamente à exigência de que só sejam aplicadas àquele as medidas que ainda se revelem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente” ("Jornadas de Direito Processual Penal", C.E.J., Almedina, 1989, pg. 27).

É esta última, a concepção que nos parece correcta. Com efeito, se, por força da presunção de inocência, só podem dar-se como provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido, quando se tenham, efectivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então, é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável (…). Se é o próprio principio da presunção de inocência que impõe que, em matéria de prova, a duvida se decida a favor do arguido, isto é, que in dubio pro reo, então este não é um principio distinto mas, unicamente, a expressão que aquele mesmo assume nesse domínio.”.

Surgem ainda outras condicionantes estruturais à livre apreciação da prova, sendo uma delas, o princípio da legalidade da prova [art.º 32.º, n.º8 da CR.P.; artigos 125.º e 126.º, ambos do CP.P.] e outra o princípio do «in dubio pro reo», enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência [art.º 32.º, n.º2 da CR.P.; art.º 11.º, n.º l da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948; e art.º 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro]

Tudo isto vale por dizer que o princípio da livre apreciação da prova não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras de experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e «in dubio pro reo» [Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de Abril de 2006/ disponível em www.dgsi.pt/jtrp]

Uma outra nota deve ser acrescentada. É que, neste domínio, dever-se-á ainda tecer algumas consideração jurídicas sobre a valoração da prova produzida neste tipo de criminalidade, as mais das vezes, cometida no interior da privacidade do lar conjugal, não presenciada por ninguém, senão pelo próprio agressor e vítima, circunstância esta, porém, que não pode implicar uma intolerável impunidade motivada pela aparente contradição e da situação de incerteza criada pela palavra de um contra a palavra do outro -, antes reivindicando do julgador um empenho e atenção acrescidos no apuramento dos factos e na valoração da prova produzida, devendo esta prova ser apreendida e valorada, tendo em consideração o contexto e os constrangimentos em que os factos terão sido praticados, no aparente sossego e recato do lar, fazendo-se apelo às regras da experiência comum e da normalidade da conduta humana, e mais do que isso, neste concreto domínio, é nossa convicção de que deve o julgador, tal como sucede noutros casos igualmente complexos e sensíveis, como sejam os casos de abusos sexuais, formar a sua convicção a respeito, de acordo com a sua livre convicção, perante as evidências produzidas, fazendo um juízo de credibilidade e valoração que as mesmos devem merecer, atentos os contornos do caso concreto, de uma forma mais intensa do que noutros casos em que tal não sucede, por regra.

Todavia, o que é determinante e imperativo para a formação da convicção do julgador e consignação da prova, isto é, dar um facto como provado ou não provado, é a forte probabilidade da sua ocorrência ou não ocorrência, em face da valoração que faça dos meios de prova que lhe são apresentados pelos sujeitos processuais e, bem assim, pelos oficiosamente determinados, de acordo com a sua livre convicção nos termos permitidos pelo art.º 127.º do Cód. Proc. Penal, dado que existem constrangimentos naturais que impedem que o juiz tenha acesso à «verdade absoluta» dos factos submetidos a pleito.

Porém, para a verificação da violação do aludido princípio é preciso que o julgador esteja perante uma dúvida razoável e decida ou opte por decidir contra o arguido.

Revertendo para o caso concreto, no que respeita à violação deste princípio “in dubio pro reo”, dir-se-á que face à prova produzida, nomeadamente a constante dos questionados pontos nºs. 3, 4, 5, 6, 7, 8, 14, 15, 16 e 19 a 21º, não resultam quaisquer dúvidas, quer quanto a autoria dessa factualidade e respectivo circunstancialismo, não havendo, pois, lugar á aplicação do mencionado princípio, porquanto, o tribunal “a quo” não teve dúvida razoável, positiva, racional que o tenha impedido de formar a sua convicção, da forma descrita no texto da sentença recorrida.

Isto é, resultou inegável, isto é, sem qualquer margem para dúvidas, que “o arguido praticou os factos” vertidos nos pontos nºs. 1 a 21 e na qualidade demandado civil, causou os constantes dos pontos n.ºs 35 a 37, da matéria de facto provada.

Em todos os factos acima referidos, o arguido quis e conseguiu maltratar física e psiquicamente a ofendida, criando-lhe sofrimento físico e psicológico, tristeza, desgosto humilhação, vergonha e pânico. Bem como, rebaixou-a como ser humano e fazendo-a sentir diminuída na sua liberdade, ao mesmo tempo que lhe retirou a possibilidade de ter qualquer paz e sossego.

O arguido estava também ciente de que praticava parte dos factos acima descritos na presença do filho da assistente. Sabia ainda o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal, assim como tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

Acresce que, no que concerne ao crime de detenção de arma proibida, tal como referido na sentença recorrida, “Relativamente à detenção da arma proibida pelo arguido, não obstante ter sido junta prova documental que a mesma era do pai do arguido, o que é certo é que não é minimamente credível que, apesar de a família não viver já naquela morada, a referida pessoa tivesse tido a iniciativa, sem nada dizer ao filho, de guardar lá a referida arma. De resto, a ofendida declarou nada saber sobre se o sogro tinha chave da garagem, e o mesmo entendeu por bem não prestar depoimento, pelo que não corroborou sequer a versão apresentada pelo arguido. Assim, e porque o arguido era quem tinha a chave de casa e aí se encontrava a arma, foi dado como provado todo o vertido na acusação quanto à mesma.”

Alega o recorrente que não foi respeitado o princípio do in dubio pró réu, uma vez que face à contradição das declarações da demandante, se optou por dar credibilidade à descrição dos factos, prejudicial à situação do arguido.

Sem razão, todavia.

Pois, como já afirmado, o julgador não teve dúvidas sobre a forma como ocorreram os factos que a ele respeitam.

Acresce que, a dúvida tem de resultar da matéria dada como provada na decisão proferida.

A análise da decisão, como já afirmado, quanto à matéria provada, a que a mesma respeita, não resulta que o julgador tenha tido qualquer dúvida, pelo contrário, da fundamentação desenvolvida resulta clara e expressa a convicção do julgador.

Ora, como já afirmado, o que este recorrente alega no fundo é uma diversa interpretação/valoração da prova.

Portanto, da simples leitura da fundamentação da decisão recorrida, verifica-se que o tribunal não teve qualquer dúvida acerca da matéria provada e não provada, dúvidas que este tribunal de recurso, mesmo sem acesso à imediação e à oralidade, também não vislumbra.

Assim, no caso concreto, o tribunal recorrido não teve dúvidas em considerar o arguido/recorrente, o autor dos crimes pelos quais foi condenado. As explanações desenvolvidas nos dois pontos anteriores, para as quais remetemos, servem para ilustrar esta afirmação.

Não resulta do texto da sentença que o tribunal tenha violado o princípio “in dubio pro reo".

No que concerne à violação do disposto no art.º 32°, n° 2 da CRP, face a tal comando fundamental, não pode o Tribunal valorar, em claro prejuízo do arguido. Todavia, no caso concreto, tal não se vislumbra. Da análise do acórdão posta em crise, não pode ser feita censura, por violação de qualquer dos passos para a formação da convicção, designadamente a inexistência dos dados objectivos que se apontam na motivação, ou por violação dos princípios para a aquisição desses dados objectivos, pois que, a análise foi realizada segundo o raciocínio lógico e as regras da experiência comum.

Portanto, o tribunal “a quo”, após análise cabal, lógica e racional das provas, não teve dúvidas sobre a prática, pelo arguido, dos crimes que lhe eram imputados.

Por fim, é óbvio, da simples leitura da fundamentação da decisão recorrida que o tribunal não teve qualquer dúvida acerca dos pontos de factos que deu como assentes, dúvidas que este tribunal de recurso, depois da leitura dos depoimentos transcritos, mesmo sem acesso à imediação e à oralidade, também não vislumbra.

Do exposto haverá, assim, que concluir que o arguido praticou, em autoria material, os crimes pelos quais foi condenado - de violência doméstica agravada e de detenção de arma proibida -.

Não se vislumbrando a violação de preceitos legais, nem a do princípio da presunção de inocência.

2.4.4 - Não preenchimento dos elementos do tipo legal dos crimes pelos quais o arguido/recorrente foi condenado.

Para apreciar esta questão iniciaremos por atender à primeira das infracções criminais, e atender à sua previsão legal - art.º 152.º, n.ºs 1, alínea b) e 2 do Cód. Penal -.

Vejamos!

A revisão do Código Penal feita pela Lei nº 48/95 de 15 de Março alterou a disciplina relativa à incriminação dos maus-tratos conjugais.

Para além de alterar a epígrafe para “crime de maus-tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge”, a nova redacção dada àquele normativo, agora no artigo 152º, passou a contemplar na conduta punível também os maus-tratos psíquicos, alargou às pessoas equiparadas aos cônjuge (“quem conviver em condições análogas às dos cônjuges”) a qualidade de sujeito passivo do crime, fez desaparecer a referência ao dolo específico, modificou a moldura penal, que passou a ser a de prisão de 1 a 5 anos.

As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei nº 65/98 de 2 de Setembro também se fizeram sentir na disciplina relativa ao crime de maus-tratos.

O artigo 152º foi contemplado com uma nova epígrafe: “Maus-tratos e infracção de regras de segurança”, mantendo-se, contudo, a definição do tipo legal e medida da pena.

O regime penal do crime de maus-tratos sofreu alterações, em 2000, com a publicação da Lei nº 7/00 de 27 de Maio.

Este diploma amplia ao progenitor de descendente comum em 1º grau a qualidade de sujeito passivo deste tipo criminal – nº 3 – e, acrescenta à pena principal, cuja moldura penal mantém, uma pena acessória de proibição de contactos com a vítima, incluindo o afastamento da residência desta, por um período máximo de 2 anos – nº 6.

O art.152º do Código Penal Português, na redacção vigente à data da prática dos factos - Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, subsequente à Lei 59/2007, publicada em Diário da República (1º Série) em 4 de Setembro de 2007 - decreta o seguinte:

“Violência doméstica

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”

A Lei N.º. 112/2009 de 16 de Setembro e a Portaria n.º 220-A/2010, de 16 de Abril, legislaram sobre esta matéria, sem alterar a previsão, supra descrita, do citado art. 152º.

Da análise desse preceito ressalta para alguma doutrina, nomeadamente, para Taipa de Carvalho, in Código Penal Conimbricense, Coimbra, Tomo I, pág. 332, que a ratio deste tipo legal de crime não está na protecção da comunidade familiar, (...), mas, fundamentalmente, na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.

Todavia, para nós, é inquestionável que, este tipo legal de crime, na redacção do normativo legal aludido, não exige a prática reiterada de maus-tratos, consuma-se com verificação de um único acto, desde que o mesmo, por si só, afecte o bem jurídico protegido.

A perpetração de qualquer acto de violência que afecte, de modo, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, menor, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade familiar.

As condutas previstas e punidas por aquele preceito legal abrangem diversos géneros: ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos englobando humilhações, provocações, molestações, intimações e tratamentos desumanos.

No que concerne ao elemento subjectivo, para que este se verifique exige a lei o dolo, embora já não o específico traduzido na actuação por malvadez ou egoísmo.

O mesmo é constituído por um elemento dito intelectual – o conhecimento, pelo agente, dos factos que preenchem um tipo de crime – e um elemento volitivo – correspondente à vontade de praticar aqueles factos.

Na expressiva prelecção de Cavaleiro Ferreira, é a “vontade de realização do crime (facto ilícito) como conhecimento de todos os seus elementos essenciais ou, mais abreviadamente, dolo é consciência e vontade de cometer o crime (facto ilícito) ” – in Lições de Direito Penal, Parte Geral, A lei penal e a teoria do Crime no Código Penal de 1982, 4.ª Ed.,1992, pág. 294.”.

Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação a este preceito legal, in "Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem", Dezembro de 2008, Universidade Católica Editora, p.p. 403 e seguintes, refere que "os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, (...). O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima".

Adianta, ainda, que "o tipo objectivo inclui condutas de «violência» física, psíquica, verbal (...)", sendo certo que "os «maus tratos físicos» correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples".

O mesmo autor, na mesma obra, em idem, p. 385, na anotação que faz ao crime de ofensa à integridade física simples, refere que "não é condição da relevância típica a provocação de dor ou mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho, aleijão ou marca física (...). Mas é condição dessa relevância típica que o ataque assuma um grau mínimo de gravidade, descortinável segundo uma interpretação do tipo à luz do critério de adequação social".

No seguimento do já afirmado, o crime de violência doméstica gera uma relação de concurso aparente de normas e de especialidade com outros tipos legais de crimes, v.g. os crimes de injúrias e ofensas à integridade física.

Nesse sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-12-2010, proferido no Proc. 512/09.0PBAVR.C1, e o do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17-05-2010, proferido no Proc. nº 1379/07.9PBGMR.G1. Este último refere: “I - O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes. II - Se as condutas apuradas integram os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça, mas não satisfazem o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, apenas há que aplicar as normas gerais”.

Esse concurso aparente, actualmente, dada a letra da lei, pode abranger todos os tipos penais preenchidos pela arguida, a saber, as ofensas à integridade física (artigo 143º, nº 1 do Código Penal), do mesmo compêndio substantivo.

Não se questiona que, neste tipo de crime - violência doméstica - se está perante a protecção de um bem jurídico complexo, integrando a saúde física, psíquica e emocional, o respeito e a consideração de que a companheira, com quem o arguido viveu, como marido e mulher, durante cerca de 12 anos, lhe deveria merecer, especial e fundamentalmente, como ser humano, deveria estar protegida e não ser vítima de actos violentos, prevaricadores desses valores, quando inseridos numa relação familiar, ou por causa dela.

No caso “sub judice”, “atendendo aos factos provados, parece indubitavelmente preenchido os pressupostos objectivos e subjectivos, desse tipo legal de crime, pois que, como é, bem, referido na sentença recorrida, o arguido, no domicílio familiar integrado pela vítima, lhe impôs, nas situações descritas (nas quais foram perpetrados os núcleos de facto apurados) uma vivência que colidiu com a sua dignidade, ofensiva da sua saúde psíquica e física, sem respeito e consideração de que aquela era credora, como sua companheira e, acima de tudo, como ser humano.

A doutrina tradicional é a de que nos crimes cuja execução se prolonga no tempo, se durante o seu decurso surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto.

A subsunção dos factos ao direito, no que a este tipo legal de crime respeita, apesar questionado, pelo recorrente, foi acertada, porquanto mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs. 1, al. a) e 2 do Código Penal

Reafirmamos, a perpetração de qualquer acto de violência que afecte, de modo, a saúde física, psíquica e emocional da ex-mulher, vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.

As condutas previstas e punidas por aquele preceito legal abrangem diversos géneros: ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos englobando humilhações, provocações, molestações, intimações e tratamentos desumanos.

Portanto, o ponto fulcral do crime de violência doméstica é a dignidade da pessoa em relação livremente contraída.

No caso “sub judice”, atendendo aos factos provados, parece indubitavelmente preenchido esse bem jurídico complexo, pois que, mostram-se apurados factos integradores desses conceitos de maus tratos reiterados, ocorridos no âmbito do vinculo matrimonial estabelecido entre o arguido e a demandante, SB - alguns na presença do filho, então menor, de ambos -, que atentam contra a liberdade de autodeterminação pessoal desta, contidos na previsão do artigo 152º do Código Penal.

Efectivamente, consta do texto da sentença recorrida que, atenta a matéria de facto que resultou provada nos pontos deve concluir-se summo rigore que se verificam, pois, todos os elementos objectivo do tipo de legal de crime de violência doméstica, atenta a gravidade dos episódios de violência física, verbal e psíquica que o arguido infligiu na pessoa da ofendida SB, sua então mulher, nos termos supra apurados, dos quais resultam, inegavelmente e vistos em conjunto, uma ofensa à própria dignidade daquela ofendida, enquanto mulher, submetendo-a a situações de ofensa à integridade física e essencialmente de crueldade psicológica através das ameaças, das injúrias e das perturbações da paz e sossego, o que é deveras humilhante para qualquer mulher, (…)». Mais, «apurou-se nos pontos 7) e 12) e 16), ainda que tais factos foram cometidos pelo arguido, muitos deles no interior do domicilio comum e, nalgumas vezes, mesmo perante a presença do filho menor de ambos, pelo que se mostram verificados os factos que reivindicariam a agravação prevista no n.º 2 do citado art.º 152.º do Cód. Penal». Tudo para concluir que «em face da gravidade e reiteração das condutas adoptadas pelo arguido nos termos supra indicados, que as mesmas devam ser enquadradas na tipicidade objectiva do ilícito de violência doméstica, atenta a teleologia que lhe está subjacente, rectius por ofenderem a própria dignidade humana da ofendida SB, [sendo o crime de violência doméstica gizado especificamente pelo nosso legislador para situações de especial gravidade, cujas ofensas, insultos e ameaças atinjam a dignidade humana da vítima]». Mais refere a douta sentença que «atento o vertido nos pontos 16) a 18), provado ficou que o arguido agiu com pleno conhecimento e vontade de insultar, ameaçar, molestar fisicamente e ofender psicologicamente, como efetivamente conseguiu, nas apontadas circunstâncias de tempo, de modo e de lugar, a integridade física e psíquica da ofendida SB, que sabia ser a sua então mulher e mãe do seu filho, nos termos supra descritos, atuando, nessa medida, com dolo direto – [art.º 14.º, n.º1 do Cód. Penal]». Preencheu, assim, o recorrente, os elementos objetivos e subjetivos de um crime de violência doméstica agravado, conforme muito bem entendeu o Mm.º Juiz a quo. Com efeito, o crime de violência doméstica, como é consabido, tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana. (…) Quanto ao tipo subjetivo, exige-se o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade. O crime é agravado, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima. O tipo objetivo integra as condutas de violência física – crime de ofensa à integridade física –, violência psíquica – crimes de ameaça, coação, injúria, difamação – e ainda as tipificadas privações de liberdade e ofensas sexuais. Mas estas condutas só serão típicas quando traduzam acções efectivamente maltratantes, quando a acção ou as acções concretas, pela sua ofensividade, conduzem à degradação da dignidade da pessoa da vítima. Assim, o preenchimento do tipo pressupõe, em princípio, uma reiteração de conduta – integradora dos maus tratos físicos e/ou psíquicos – que conduza a um estado de agressão permanente, estado que evidencia a existência de uma relação de domínio, proporcionada pelo ambiente familiar, que reduz a vítima a uma situação humanamente degradante (cfr. Plácido Conde Rodrigues, ob. cit., pág. 307). Cremos ter sido esse o caso dos autos. Claro que casos há, em que uma única acção, pela intensidade dos sentimentos revelados e/ou pelas concretas consequências que produziu, assume uma gravidade tal que, por si só, tem aptidão para preencher o tipo. Não foi o que se passou no caso dos autos. Estamos perante reiteração de condutas, dolosamente levadas a cabo pelo arguido, umas mais graves do que outras, mas, na sua apreciação global, subsumíveis ao conceito de maus tratos, supra desenhado, que permitiram ao arguido, ao longo dos anos de duração da sociedade conjugal, criar sobre a demandante civil uma relação de domínio, a ele a sujeitando. E como também resulta da factualidade provada, as condutas reiteradas ocorreram na residência do casal e algumas, perante o filho menor de ambos. Assim, resta concluir que a apurada conduta do arguido, relativamente à assistente, preenche os elementos do tipo do crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) e 2 do C. Penal.

2.4.4.1 - No que concerne ao crime de arma proibida, p. e p. pelos artigos 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), com referência ao artigo 2.º, n.º 1, alínea p), n.º 3, alínea p), e artigo 3.º, n.º 1, e n.º 5, alínea a) e 7.º, todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro - RJAM - (adianta-se, desde já que a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24/07, aos aludidos preceitos legais, não altera a decisão, desde logo, porque a previsão do crime e a sua punição mantém-se, integralmente, sendo que algumas modificações, de pormenor, não afectam o decidido, nem são mais favoráveis ao arguido/recorrente) pelo qual o arguido foi condenado e que contesta essa condenação, deve fundamental atender à previsão dos mencionados preceitos legais.

Vejamos as mencionadas previsões legais!

O artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e d), preceitua:

“Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo

(…)

c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão, com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

(…)”

A análise deste preceito demonstra que é punida a mera detenção. A intenção da previsão legal é a de prevenir as consequências nocivas de apetrechos que consigam ser usados como armas.

Está-se, pois, perante um crime de perigo abstracto, porquanto, se pune o próprio risco de uma lesão, isto é, o tipo legal do crime preenchesse com a mera colocação em perigo dos bens jurídicos preservados, bastando, por isso, a mera detenção da arma. Não é, assim, necessária a sua utilização em qualquer tipo de actividade ilícita, bastando ter a arma na sua posse não estando para tal autorizado, nos termos legais.

Os bens jurídicos protegidos por este tipo legal de crime são basicamente, a vida, a integridade física, a liberdade, a paz social e até o património de um número indeterminado de pessoas.

O art.º 2.º, n.ºs. 1, alínea p) e 3, alínea p), da mesma Lei, estabelece:

“Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação e com vista a uma uniformização conceptual, entende-se por:

1 - Tipos de armas:

(…)

p) «Arma de fogo» todo o engenho ou mecanismo portátil destinado a provocar a deflagração de uma carga propulsora geradora de uma massa de gases cuja expansão impele um ou mais projécteis;

(…)

3 - Munições das armas de fogo e seus componentes:

(…)

p) «Munição de arma de fogo» o cartucho ou invólucro ou outro dispositivo contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do projéctil ou de múltiplos projécteis, quando introduzidos numa arma de fogo;”

Por sua vez, o art. 3º, sobre a epígrafe “Classificação das armas, munições e outros acessórios”, esclarece o conceito das armas que são enquadráveis nas referidas alíneas.

Este preceito legal nos n.ºs. 1 e 5, alínea a), preceitua: “1 - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.

(…)

5 - São armas da classe C:

a) As armas de fogo longas semiautomáticas, de repetição ou de tiro a tiro, de cano de alma estriada;”

O art.º 7.º , inserido na Secção II, referente à “Aquisição, detenção, uso e porte de armas”, preceitua: “1 - As armas da classe C são adquiridas mediante declaração de compra e venda ou doação, carecendo de prévia autorização concedida pelo director nacional da PSP.

2 - A aquisição, a detenção, o uso e o porte de armas da classe C podem ser autorizados:

a) Aos titulares de licença de uso e porte de arma da classe C;

(…)”

Como se refere, bem, na sentença recorrida, “… comete o crime previsto na alínea c) e d) respectivamente quem detiver ou transportar o primeiro e o segundo dos objectos, sem para tal estar devidamente autorizado, ou fora das condições legal, há que aferir se o arguido era detentor de autorização para os transportar ou deter.

Com efeito, foi dado como provado que o arguido não tinha qualquer autorização para a detenção da arma e das munições que se encontravam na sua casa.

Não obstante, a situação relativa à arma de fogo encontrada na garagem do arguido integra-se, claramente, na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 86.º, considerando-se preenchidos por isso os elementos objectivos do tipo legal de crime. Quanto às munições, integram a previsão da alínea d) do mesmo diploma legal, servindo a sua detenção como agravante do crime cometido.

Encontra-se igualmente provado que o arguido agiu deliberada e conscientemente, sabendo ser a sua conduta prevista e punida por lei, e que quis deter consigo a arma referida, conhecendo as suas características e sabendo não o poder legalmente fazer.

Assim sendo, a sua conduta integra a previsão do artigo 14.º, n.º 1, do C.P., tendo o arguido agido com dolo directo, o que demonstra o preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal.

Há ainda que ter em conta que não existem quaisquer circunstâncias que excluam a culpa ou a ilicitude da actuação do arguido.”

Acresce que, atendendo à matéria de facto provada constante dos pontos 19 a 21, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal deste crime de detenção de arma proibida, mostram-se preenchidos. Pois que, tal como é referido na resposta do MºPº “O arguido detinha em sua posse, no interior da garagem da sua residência uma espingarda, sendo, por isso, totalmente irrelevante para o preenchimento do tipo que a mesma pertencesse ao pai e, por outro lado, evidentemente inverosímil a versão por ele apresentada na audiência de julgamento ao afirmar que o pai – o proprietário – tinha acesso ao local onde a arma foi encontrada, versão que não logrou obter qualquer sucesso, perante a perspicácia da Mma. Juiz a quo.”

Concluindo, é inquestionável, atenta a matéria de facto provada que o arguido/recorrente JCGC cometeu, em autoria material, um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º, 1, alínea c) e d), da Lei n.º 5/2006.

2.4.5 - Da Medida da pena de prisão

Apenas a medida da pena de prisão de três anos imposta, ainda que com a execução suspensa, foi outra das questões colocadas, sobre a qual se entende mencionar que na graduação da pena deve olhar-se para a culpa do agente, mas não se pode perder de vista as funções de prevenção geral e especial das penas.

Sobre esta matéria, o Prof. Figueiredo Dias (Liberdade, Culpa, Direito Penal) refere que, “antes de tudo, compete ao direito penal uma função de protecção de bens e valores fundamentais da comunidade social, a fim de proporcionar as condições indispensáveis ao livre desenvolvimento e realização da personalidade ética do homem... o direito penal arranca sempre da protecção de bens jurídicos e, portanto, de interesses socialmente relevantes. Esta função de exterioridade, porém, tem sempre de ser limitada pela ideia e princípio da culpa, ponto óptimo de confluência das necessidades irrenunciáveis de defesa da liberdade da pessoa com a defesa dos interesses eticamente relevantes da sociedade.

O Código Penal espelhou estas preocupações nos artigos 70° e 71°.

Dá-se prevalência às penas não privativas da liberdade, mas tal tem de ser feito de uma forma fundamentada, pois há que apurar criteriosamente se a pena não detentiva realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 70°).

E «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa e das exigências de prevenção. Na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele ... » (art. 71°).

É com base nestes critérios, norteados ainda pelo princípio de que «o Código traça um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem sempre ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador» (preâmbulo do Código Penal em 1995) que se avaliará se as diversas circunstâncias que se provaram no julgamento, atenuam ou agravam a culpa deste arguido.

Efectivamente, a aplicação de uma pena tem como finalidade a tutela dos bens jurídicos violados e na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade - art. 40º, n.º 1, do Código Penal - sendo que esta terá sempre que começar no julgamento pela criteriosa apreciação da conduta, subsunção legal adequada e, quando for caso disso, com aplicação de uma pena proporcional à medida da culpa, pois, só a conjugação destes parâmetros contribuirá para uma assunção e interiorização da culpa por parte do arguido e, aceite esta, a sua recuperação e integração social será com certeza melhor conseguida.

A sua medida é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes - art. 71°, n.º 1, do Código Penal: à culpa comete a função de determinar o limite máximo da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos (dentro do que é consentido pela culpa) e cujo limite mínimo se encontra nas exigências de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial, cabe a função de encontrar o "quantum " exacto da pena, dentro da moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.

Os factores a ter em conta para a determinação da pena, conforme se indica no artigo 71°, n° 2 do Código Penal, são os elementos não constitutivos do tipo legal de crime, mas que intervêm por via da culpa ou da prevenção especial (ver Anabela Miranda Rodrigues, in RPCC, ano 2, 1991, pág. 253).

Segundo o mesmo preceito, o Tribunal deverá atender, concretamente, a todas as circunstâncias que, sendo exteriores ao tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, em "Consequências Jurídicas do Crime", a culpa define o limite máximo da pena, para além do qual não é possível passar, sob pena de violação do princípio de que não pode aplicar-se uma pena sem culpa.

Por outro lado, abaixo do limite máximo dado pela culpa, serão as razões de prevenção geral que vão delinear os limites máximo e mínimo, até ao limite da culpa.

Seguidamente, há que atentar na prevenção especial de socialização que, tendo como base abrangente a prevenção geral, vai determinar a medida exacta da pena concreta.

Assim, a quantificação dos limites da culpa e dos limites da prevenção, quer geral, quer especial, far-se-á através da ponderação das circunstâncias gerais presentes no caso concreto que deponham, quer a favor, quer contra o agente (n.º 2 do art. 71 ° do Código Penal), mas que não podem ter sido levadas em conta na determinação da medida abstracta da pena.

Enfim, o mínimo corresponde à defesa do ordenamento jurídico ou ponto criminalmente suportável.

O máximo, por seu turno, é a medida da culpa.

Por apelo a estes ensinamentos, a jurisprudência tem reiteradamente entendido que, quando o legislador dispõe de uma moldura penal para um certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até aos de maior gravidade - em função daqueles fixará o limite mínimo; em função destes o limite máximo da moldura penal respectiva - de modo a que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção.

«A medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.

«Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial.

«É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário.

«Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade.» Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 08-11-95, no Proco. 48 318.

«Uma pena superior à culpa é injusta e ilegal.

«Uma pena que não satisfaça minimamente as exigências de prevenção, é um desperdício. «Uma pena em medida que exceda aquelas exigências é desnecessária.

«Na determinação da medida concreta da pena, o que está em questão é a determinação pelo juiz da pena necessária para o caso concreto.» Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-96, no Proco 900/96, no BMJ 462°,220.

«A culpa e a prevenção são os dois termos do binómio com que importa contar para o delineamento da medida da pena,

«A culpa jurídico-penal traduz-se num juízo sintético de censura e funciona a um tempo, como fundamento e um limite inultrapassável da medida da pena, o que normativamente se projecta no n.º 2 do art. 40º do Código Penal.

«Por seu turno, com o recurso à prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo-se em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela de bens e valores jurídicos.

«Com apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências de socialização (ou ressocialização) do agente delitivo em ordem à sua integração digna no meio social.» Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2000, no Proc. 2528/2000.

Da conjugação dos artigos 71º e 40º do Código Penal «infere-se que a culpa e as exigências de prevenção geral e especial, que visam, respectivamente, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade são os princípios fundamentais para se determinar a pena.» Ac. da Relação de Évora de 15-07-03, no Rec. Penal n° 89/03.

O processo para alcançar a medida concreta da pena tem diversos momentos:

1. - Averiguação da pena abstractamente cominada ao ilícito no preceito incriminador;

2. - Escolha da pena a aplicar, devendo dar-se prevalência à pena não privativa de liberdade, se estivermos perante penas alternativas e se a mesma realizar adequada e suficientemente as finalidades da punição;

3. - Escolha da pena concreta que, efectivamente, deve ser cumprida. – Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Abril/Junho de 1991, pág. 249.

Nos termos do art. 40° n.º 1 do Código Penal a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por sua vez o n.º 2 da disposição legal referida estatui que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Como refere Germano Marques da Silva (DPP, V 01. 1ll/130) a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena.

“Nesta operação, deverá atender-se, em primeira linha, à culpa do agente, que constitui, em atenção à dignidade do ser humano, o fundamento e limite máximo da pena. O limite mínimo será determinado em função da prevenção geral, pois a pena visa a protecção de bens jurídicos, com o significado prospectivo traduzido na tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da norma infringida. Finalmente, dentro destes parâmetros, o tribunal fixará a pena, em última instância, de acordo com as exigências da prevenção especial de socialização” – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in “As consequências Jurídicas do Crime”, págs. 227 e seguintes.

O referido art. 71º n.º 2, indica as circunstâncias comuns que determinam a agravação ou atenuação da pena concreta dentro dos limites da penalidade. Esta indicação é feita a título exemplificativo sem indicar quais as circunstâncias agravantes e quais as atenuantes.

O valor de cada circunstância só pode determinar-se perante cada facto concreto.

A circunstância indicada na al. a) do n.º 2, do art. 71º (O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente) engloba todas as circunstâncias relativas ao facto ilícito.

Importa atender, também, ao grau de ilicitude do facto, à maior ou menor gravidade do ilícito considerando-se o modo de execução (quando não constitui elemento essencial do crime), a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.

Acresce que, no caso concreto, atendendo ao tipo legal de crime e ao flagelo, na nossa sociedade da sua prática, com consequências fatais para as vítimas, são muito elevadas as exigências de prevenção geral, segundo os crescentes índices de crimes de violência doméstica e, como tal, a constante necessidade de se reafirmar, de forma eficaz, a validade das normais incriminadoras, cuja violação vem, cada vez com maior frequência, conduzindo a resultados de uma gravidade extrema, e não raras vezes definitivos (com a morte da vítima), que felizmente, no caso em apreço, não ocorreu.

Traçado o quadro em que deve mover-se o Tribunal para proceder à escolha da natureza e determinação da medida da pena a aplicar ao arguido, importa agora proceder a observação dessa operação.

Iniciaremos por averiguar se o tribunal “a quo” procedeu de acordo com os critérios legais, fixando, em concreto, a pena, de modo justo e equilibrado, não ultrapassando a medida da culpa.

Revertendo ao caso concreto, deve considerar-se, desde logo, a moldura abstracta da pena é de dois a cinco anos de prisão.

O tribunal “a quo” considerou, para a fixação concreta da pena, em concreto, o seguinte:

“No que concerne às necessidades de prevenção especial, as mesmas apresentam-se algo graves, atentos os próprios factos que foram dados como provados e que o arguido ainda perseguiu a ofendida durante algum tempo, não obstante não apresentar antecedentes criminais e ser pessoa integrada e já com outra companheira. Tudo ponderado, consideramos que as necessidades de prevenção especial são medianamente graves.

É necessário ponderar, agora, em consonância com o disposto no artigo 71.º, n.º 2 do C.P., as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime praticado pelo arguido, depõem a seu favor ou contra ele.

Nestes termos, depõem contra o arguido a ilicitude do facto e o grau de violação dos deveres que lhe eram impostos, uma vez que enquanto marido da ofendida estava obrigado ao dever de respeito e assistência à mesma, tendo por isso um especial dever de a proteger e auxiliar em ordem ao desenvolvimento sadio da vida familiar, para mais tendo em conta que têm um filho em comum.

A ilicitude é tanto maior quanto das declarações do arguido se mostra que não interiorizou o desvalor da sua conduta, e actuou dentro do domicílio comum, em frente ao filho menor.

Bem assim, actua em desfavor do arguido, a intensidade do seu dolo – artigo 71.º, n.º 2, alínea b), do C.P. -, pois actuou na modalidade mais forte – dolo directo.

Depõe a favor do arguido o facto de não apresentar antecedentes criminais e ser integrado e ter refeito a sua vida com outra pessoa.

Por último, as consequências psicológicas para a vítima são de monta, na medida em que a mesma se sente ainda nervosa e com medo.

Considerando, em conjunto, os factos apontados e os elementos apurados relativos às condições e atitude do arguido considera-se que, tudo ponderado, demonstra uma necessidade de ressocialização de nível médio/alto.

Tendo em mente a moldura penal aplicável de entre 2 (dois) anos e 5 (cinco) anos de prisão, o Tribunal considera adequado e proporcional a aplicação ao arguido da pena próxima o limiar médio, ou seja 3 (três) anos de prisão, atenta a gravidade dos factos, mas também as condições do arguido e a sua atitude.”

Sem esquecer que o Código traça um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem sempre ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador» (preâmbulo do Código Penal em 1995) que se avaliará se as diversas circunstâncias que se provaram no julgamento, atenuam ou agravam a culpa deste arguido.

Acresce que, a violência no seio familiar é um flagelo da nossa sociedade, combatido, contudo, actualmente, com veemência e repúdio social.

Por tudo o exposto a pena concreta fixada e justa e adequada, sendo de manter.

Neste segmento do recurso, falece razão ao recorrente.

2.4.6 - De seguida analisar-se-á a invocada incorrecção no valor dos danos não patrimoniais causados à demandante civil, SMB, pela actuação da recorrente/demandada. Apenas o seu montante indemnizatório foi questionado, por exagerado.

Vejamos!

Os eventuais direitos que esta demandante civil pretende nos presentes autos resultam da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana por factos ilícitos dos demandados, cujo regime legal se encontra fixado nos artigos 483º e seguintes.

"São várias as condicionantes da obrigação de indemnizar imposta ao lesante, tal como pode ser aferido pela simples leitura do preceito citado. Assim" O dever de reparação resultante da responsabilidade por factos ilícitos está directamente conectado com a verificação dos seguintes pressupostos (cfr. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", Vol. I, Almedina. Coimbra, 73 edição, pág. 515 e ss.) : existência de um facto voluntário do agente (e não um mero facto natural causador de danos); que esse facto seja ilícito: que haja um nexo de imputação do facto ao agente; que da violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano; que se verifique um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima (de modo a que se possa afirmar que o dano é resultante da violação).

São, pois, estes os pressupostos que terão de se dar como verificados para que o demandante civil possa fazer valer os seus direitos nos presentes autos, que no presente recurso se mostram preenchidos.

Pois que, no caso dos autos, no que concerne à actuação do arguido/demandado, e aos danos com ela causados à demandante, SB, reúnem-se todos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos - a violação de um direito ou interesse alheio, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao agente, o dano moral, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano não patrimonial, relativamente aos danos dados como provados.

A expressão "danos não patrimoniais" abarca os danos morais propriamente ditos (ofensas à honra, humilhações, vexames e medos), os sofrimentos físicos e psíquicos e os complexos de pura ordem mental e estética (vide Prof. Antunes Varela, RLJ ano 123, pág. 253). E, nos termos dos artes. 496° n.º 3 e 494° do Cód. Civil, o valor da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as circunstâncias do caso, com realce para a gravidade do dano.

Com efeito, o art.º 496° manda atender na fixação da indemnização por danos não patrimoniais àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, daqui se extraindo que "o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios em que se tornam mais necessários o bom senso, o equilíbrio das proporções com que o julgador deve decidir" (Prof. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", pág. 627- 628). Assim, apenas são ressarcíveis os danos não patrimoniais graves, devendo a gravidade medir-se por critérios objectivos.

No âmbito destes danos é extremamente delicada a operação da respectiva quantificação porque estão em causa valores que não têm expressão pecuniária, socorrendo-se a lei aqui, com o em outros casos em que há manifesta dificuldade de quantificação abstracta das obrigações, da equidade, entregando aos tribunais a solução do caso concreto (a equidade vem sendo definida, desde Aristóteles, como a expressão da justiça no caso concreto), mas fixando os critérios dentro dos quais a equidade vai operar. Por outro lado, a indemnização por danos não patrimoniais não é uma indemnização no sentido próprio, sendo tão só uma satisfação ou compensação do dano sofrido, que não é verdadeiramente avaliável em dinheiro (Vide Prof. Vaz Serra, Boletim 83, pag. 83).

Como expõe o Prof. Antunes Varela, "a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar, de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente" - ob. cit., pág. 568 -.

A propósito da ressarciabilidade dos danos de ordem moral, sempre se dirá que não há possibilidade de os anular com dinheiro, visto serem insusceptíveis de uma avaliação deste tipo. No entanto, apesar de se concordar que o dinheiro não apaga as dores físicas, tristeza e angústia infligidas pelos demandados, através do seu comportamento, no demandante, a prestação pecuniária a cargo dos lesantes pode contribuir para atenuar e de algum modo compensar os danos sofridos pelo lesado" além de constituir para os lesantes uma sanção adequada. "Entre a solução de nenhuma indemnização atribuir ao lesado, a pretexto de que o dinheiro não consegue apagar o dano" e a de se lhe conceder urna compensação, reparação ou satisfação adequada, ainda que com certa margem de discricionariedade na sua fixação, é incontestavelmente mais justa e criteriosa a segunda orientação" (Antunes Varela, obra cit., pág. 598).

O Código Civil consagrou a tese da reparabilidade dos danos não patrimoniais, mas, nos termos do art.º 496°, n.°1 daquele diploma, só são ressarcíveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, o que caso concreto se considera. Segundo o n.º 3, deste preceito, naquilo que concerne à indemnização dos danos não patrimoniais, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494º, circunstâncias essas que são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que o justifiquem.

Estes danos - tradicionalmente designados de danos morais - resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação), verificando-se quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, maxime, de personalidade (ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 85 e 86, edição de 1976).

Apenas são ressarcíveis os danos não patrimoniais graves, devendo a gravidade medir-se por critérios objectivos.

E, como se disse, esta quantificação é deixada pela lei ao bom senso do julgador mas dentro dos critérios legais. Por outro lado, impõe-se ao julgador a ponderação dos parâmetros de facto legais de forma actualizante e com respeito pelos valores e direitos fundamentais da pessoa humana, em ordem que o ofendido seja devidamente compensado, valorando-lhe equitativamente os danos morais sofridos.

Ou seja, para que a indemnização por danos não patrimoniais responda actual ao comando do art.º 496° citado e constitua uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, sem esquecer, no entanto, o nível de vida médio do nosso país.

Reportando-nos, agora, ao caso “sub judice”, como é, bem referido na sentença recorrida, “mostram-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente o facto ilícito, a violência doméstica sofrida pela ofendida, a culpa do agente, nomeadamente pelo dolo, o dano, constante do nervosismo e medo sofrido pela ofendida e o nexo de causalidade que se mostra evidente, uma vez que claramente um foi causa do outro.

Sendo os danos não patrimoniais, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, há que referir que claramente merecem a tutela do direito, e que nos termos do n.º 4, se há-de fixar o montante da indemnização com recurso à equidade.

Ora, tendo em conta o nervosismo e medo, mas também que foi durante a separação, durante período relativamente curto, o Tribunal fixa o valor a indemnizar em 7.500,00€, a que acrescem juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento. ”

Deve, assim, indemnizar a demandante cível dos danos resultantes daquela violação.

O montante fixado para ressarcimentos dos danos não patrimoniais, causados à demandante, pelo demandado, foi equitativa e justamente fixado em 7500 € -, que deve ser mantido, pelos motivos expostos.

III - Decisão

Em face do exposto, acordam em declarar improcedente o recurso interposto, mantendo a sentença recorrida.

Custas, da parte crime, pelo recorrente fixando-se, em cinco unidades de conta, a taxa de justiça e acréscimos legais.

(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas - art. 94º n.º 2 do CPP).

Évora, 04/02/2020

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(Maria Isabel Duarte de Melo Gomes)

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(José Maria Simão)