Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4233-17.2T8STB-C.E1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: MASSA FALIDA
BEM APREENDIDO
BENS DE TERCEIRO
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O acréscimo do prazo de 10 dias depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.
2. No domínio da interpretação de um contrato surgem como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos.
3. A restituição e separação de bens da massa insolvente é admitida em três situações, a que se refere o artigo 141.º, n.º 1:
a) Direito de restituição, a seus donos, de bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse um mero possuidor em nome alheio;
b) Direito de separação por parte do cônjuge do insolvente, dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns;
c) Direito de separação dos bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade ou sejam estranhos à insolvência ou insuscetíveis de apreensão para a massa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. 4233-17.2T8STB-C.E1

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I- RELATÓRIO

(…) intentou a presente ação de restituição e separação de bens, a qual seguiu os termos da ação declarativa de condenação, sob a forma comum, nos termos do disposto no artigo 146.º e seguintes do CIRE, após aperfeiçoamento, contra:

1) Insolvente Sociedade Agro-Pecuária da Quinta do (…), Lda.;

2) Massa Insolvente de Sociedade Agro-Pecuária da Quinta do (…), Lda.

3) E demais credores reconhecidos nos autos principais.

Peticionando a separação da massa e restituição do prédio urbano descrito nos artigos 11º, 12º, 13º e 16º do requerimento inicial ao requerente e à sua irmã, procedendo-se ao registo a favor destes da plena propriedade da casa e logradouro objeto do contrato de compra e venda de ações livre e ónus ou encargos.

Alegou em síntese que:

-No âmbito de acordo de venda de ações e cessão de créditos outorgado entre … (pai do requerente); o ora requerente; … (irmã do requerente); Sociedade Agropecuária Quinta do (…), Lda., ora insolvente e (…) – Sociedade de Criação Pecuária, Lda., todos na qualidade de vendedores e do outro (…), Investments B.V., na qualidade de compradora, outorgado em 3 de outubro de 2007 foram transferidas para a sociedade compradora a totalidade das participações sociais que integravam a totalidade do capital social da sociedade insolvente (conhecida ainda como …);

-Essa sociedade era proprietária de vários imóveis que se mantiveram na sua titularidade apesar da mudança de titulares das participações sociais;

-Entre esses imóveis encontrava-se o prédio urbano sito na freguesia da Quinta do (…), com a área total de 8271 m2 descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º (…), o qual é composto por 7 artigos matriciais urbanos, entre eles o artigo matricial urbano n.º (…), sito na Rua (…), Quinta do (…), freguesia da (…), Concelho de Palmela, com o valor patrimonial de € 108.522,50, que era à data do referido contrato, casa de morada de família do pai do requerente e do próprio requerente;

-Em momento algum foi intenção dos referidos transmitirem aquele imóvel, apesar de terem cedido o capital social da … (ora insolvente) à referida (…), Investments B.V., pelo que, fizeram constar do próprio contrato a obrigação de destaque da referida parcela e posterior retransmissão aos vendedores do capital social;

-Mais outorgaram um contrato de comodato relativamente à mesma parcela, com a área total de 1.310 m2: composto por habitação com área de 320 m2, alpendre com 50 m2 e logradouro com 940 m2;

-Contudo, a sociedade insolvente até ao presente não transmitiu a propriedade do imóvel para o pai do requerente (entretanto falecido) nem para o requerente;

-O pai do requerente, (…), residiu no imóvel até à data do seu óbito em 11 de setembro de 2014, e aí residiu e reside o requerente;

-Só recentemente apuraram que não só não havia sido efetuado o destaque, como em 2014 o imóvel havia sido dado em hipoteca como garantia;

-A ora insolvente obrigou-se a transmitir a propriedade de parte do imóvel para o pai do requerente;

-Todas as contra-prestações do contrato mostram-se cumpridas da parte dos vendedores, encontrando-se a insolvente em falta com as suas obrigações.

Foi indeferido liminarmente o pedido de registo a favor do requerente da plena propriedade da CASA e logradouro objeto do contrato de compra e venda de ações, livre de ónus ou encargos, por inadmissibilidade legal.

Citados os credores e a massa insolvente, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, veio o credor Caixa de Crédito Agrícola Mútuo deduzir contestação, onde alega em síntese que:

-O autor é parte ilegítima desacompanhado da sua irmã dado que pretende exercer um direito na qualidade de herdeiro de seu pai, assumindo igualmente a sua irmã, essa mesma qualidade;

- A petição inicial é inepta dado que o dever de destacar o terreno ou a existência de uma qualquer promessa não foi assumida pela insolvente, mas por outra sociedade a (…), Investments BV que não é sequer parte na ação;

- Apenas existe o prédio/bem imóvel descrito sob o n.º (…), da freguesia da (…), concelho de Palmela, dado que o artigo matricial apenas serve os seus efeitos e esgota-os na relação jurídica fiscal;

- Sobre tal prédio, que é propriedade da insolvente desde 27 de março de 1973, foi constituída hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, devidamente registada pela Ap. (…), de 30 de dezembro de 2014;

- A sociedade (…), Investments B.V. adquiriu apenas as ações representativas da totalidade do capital da Sociedade (…), SGPS, S.A. que por sua vez é a única sócia da Sociedade Agro-Pecuária da Quinta do (…), Lda., ora insolvente;

- A compradora assumiu a obrigação de após divisão do imóvel identificado no número 1 b) do Anexo XIX, proceder à transmissão da respetiva propriedade a favor de (…);

- O bem imóvel a transmitir não existia, nem existe hoje, dependendo do cumprimento de uma obrigação de meios pela (…), Investments BV;

- A proprietária do imóvel, ora insolvente, não se vinculou quer quanto ao destaque do imóvel quer quanto à venda;

- A existir uma promessa de compra e venda a mesma foi outorgada pela sociedade (…), Investments BV e constitui promessa de venda de bem alheio, cuja sanção é a nulidade;

- Ou poderá configurar-se como promessa de venda de bem futuro, eventualmente incumprida pela (…), Investments BV.

Concluiu pela improcedência dos pedidos deduzidos pelo autor.

A massa insolvente contestou, arguindo a ilegitimidade passiva da massa insolvente, dado que, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, a ação deve ser proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor.

Assim a ré é parte ilegítima.

Arguiu ainda a Ilegitimidade processual ativa atendendo a que o autor invoca que lhe assiste a si e a sua irmã, o direito a parte do imóvel apreendido para a massa insolvente, pelo que ao propor a ação sem a presença de todos os outorgantes verifica-se a preterição de litisconsórcio necessário, o que preenche a exceção dilatória de ilegitimidade constante da alínea e) do artigo 577.º do CPC que é do conhecimento oficioso, devendo a ré ser absolvida da instância caso não seja suprida a referida exceção.

Alegou ainda que o imóvel em causa encontra-se apreendido nos autos, e a liquidação vem sendo protelada pelas manobras encetadas pelo autor;

O autor propôs ação que correu termos sob o n.º 1803/18.5T8STB, no Juiz 1 do Juízo Central Cível de Setúbal, a qual foi declarada extinta por deserção;

-Não existe qualquer prédio autónomo relativamente ao imóvel apreendido nos autos;

-Por outro lado, a insolvente não se vinculou a proceder ao destaque do imóvel, dado que o negócio foi celebrado com a (…) e é inoponível à massa insolvente;

-A (…) obrigou-se a transmitir um bem alheio sendo esse negócio nulo;

Por outro lado, o único contrato celebrado entre autor e a ré foi o de comodato, de onde se infere a falta de titularidade do bem por parte do autor;

A ré nunca se obrigou perante o autor, nem é possuidora em nome alheio do imóvel em causa.

Concluiu pela improcedência da ação e deduz pedido reconvencional de condenação do autor na desocupação imediata e definitiva do aludido imóvel.

Foi o autor convidado a deduzir pedido de intervenção principal relativamente aos credores e insolvente na qualidade de réus, sob pena de não o fazendo ser a ré absolvida da instância.

Foi ainda convidado o A. a concretizar quem é o cabeça de casal pela herança de seu pai e concretizar o direito que detém à posse do referido imóvel.

Na sequência veio o A. requerer a intervenção principal provocada de (…), sua irmã, dado terem ambos a qualidade de herdeiros de (…), que reputam de proprietário do imóvel. Tal pedido foi deferido por despacho de 13-07-2020.

A interveniente não deduziu qualquer intervenção nos autos apesar de citada para os mesmos.

Deduziu ainda incidente de intervenção principal provocada relativamente aos credores, Ministério Público, o que foi deferida por despacho de 13-07-2020.

Foi julgada improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial deduzida nos autos.

Foi ainda indeferido o pedido reconvencional deduzido.

Foi dispensada a realização de audiência prévia.

Realizou-se audiência final, e na sequência, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação, e, em consequência, absolveu a insolvente, a Massa Insolvente de Sociedade Agro-Pecuária da Quinta do (…) e demais credores do pedido deduzido nos autos.

O autor (…), inconformado com o decidido, interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) Deverá ser dado como provado que “A insolvente obrigou-se a destacar o imóvel objeto do contrato de comodato e respetivo aditamento e registar definitivamente a favor de (…) e propriedade do mesmo”.

B) Aditando-se assim um facto nº 27 à matéria dada como prova e eliminando-se o único facto dado como não provado.

Uma vez que,

C) Por um lado, no acordo de Compra e Venda de Acções a compradora (…) promete destacar o imóvel em causa, agindo em nome e em representação da … (ora insolvente) da qual naquele momento passou a ter o domínio total.

D) Por outro lado, porque a insolvente diligenciou e efectuou um pedido de destaque do dito imóvel.

E) E ainda porque outorga o contrato de comodato e, posteriormente, o seu aditamento.

F) Estes escritos e comportamentos, interpretados segundo as regras do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, na posição de um declaratário normal leva-nos a concluir de que a insolvente se vinculou a proceder ao destaque e registar a propriedade a favor do pai do requerente.

G) Logo, devendo ser aditado o referido facto, mencionado em A), como provado.

H) Ao não o ter feito, a douta sentença violou o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil.

I) Devendo ser proferido acórdão que condene a Insolvente a proceder ao destaque e ao registo da propriedade a favor dos herdeiros de (…), o ora requerente e sua irmã.

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

A recorrida Massa Insolvente da Sociedade Agro-Pecuária da Quinta do (…), Lda. apresentou contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

A. O recurso vem interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo em 5 de abril de 2021 que determinou a ação integralmente improcedente e absolveu a ora Recorrida e demais credores do pedido deduzido nos autos, é entendimento da Recorrida que andou bem o Tribunal a quo.

B. Acresce que o presente recurso deve ser considerado inadmissível uma vez que apenas seria justificável a apresentação de alegações no dia 7 de maio de 2021 como o foi, e já em terceiro dia de multa, caso o Recorrente pretendesse beneficiar da prerrogativa do n.º 7 do artigo 638.º caso da reapreciação da prova gravada.

C. Sucede que, não só não consta devidamente identificada nas Alegações do Recorrente dessa intenção, como, também, acaba por não resultar das mesmas, em obediência ao disposto no artigo 640.º do CPC, que as formalidades por esse artigo exigidas tenham sido cumpridas.

D. Mas mais, não resulta, sequer, dos autos que tenham sido requeridas as gravações da audiência de julgamento por parte do Recorrente, para proceder a qualquer apreciação da prova gravada.

E. De onde se conclui que o recurso a este instituto não serviu senão para justificar a extemporaneidade do recurso apresentado pelo Recorrente.

F. Ora, mesmo que se possa concluir (o que admite por mera cautela, sem conceder) e ainda que insuficientemente, terem sido cumpridas as formalidades constantes das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 649.º, já não é possível a propósito da alínea b).

G. É que incumbia ao Recorrente “sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”.

H. E é quase no fim das diversas considerações dispersas, não intituladas e sem qualquer identificação de reapreciação de prova gravada ou identificação da matéria de facto a impugnar que o Recorrente vem alegar o seguinte testemunha (…), economista e contabilista certificado, que exerceu as funções de contabilista e de acompanhamento dos negócios a nível geral” na insolvente de 1995 até 2009 inclusive, teve oportunidade de dizer ao Tribunal que a … (ora insolvente), na sequência, do dito acordo, fez um pedido de destaque da moradia em causa (gravação 20210114095344_3595901_2871790, minutos 23:30)”.

I. Parágrafo que encerra, literalmente, o cumprimento da alínea b) que o Recorrente entendeu dar nas suas alegações. E que foi nenhum, uma vez que no minuto 23:30 não se pode ouvir nada do referido pelo Recorrente.

J. Como se pode ler, e ouvir, nada do que consta alegado pelo Recorrente é dito nesta passagem (nem, como se demonstrou, seguidamente).

K. Foi, aliás, e muito certamente, por não possuir sequer as aludidas gravações que o Recorrente indicou um minuto aleatório da gravação e sem qualquer correspondência com o que pretendia alegar para justificar que a testemunha tinha dito algo quando, nesse momento da gravação, apenas se procede à identificação de documentos a fls. do processo para a confrontar.

L. Mas mais, o Recorrente prossegue a alegação dizendo que, após o minuto 23:30, a testemunha acrescenta diversas afirmações que, como se pôde demonstrar, e se poderá confirmar ouvindo o restante da gravação, não constam na passagem da gravação referida pelo Recorrente, nem no seguimento da mesma. Aliás, nada disso consta nem com mais, nem com menos “exactidão” na passagem referida – porque não consta, de todo, tal como exige a alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º.

M. De onde se pode concluir, e em obediência a esse normativo, deve imediatamente ser rejeitado o recurso. Não sendo sequer necessário referir “nesta parte” uma vez que é apenas “nesta parte” que o Recorrente fundamenta o seu Recurso e impugna (ou, pelo menos, tenta) a prova gravada.

N. Termos em que, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º deve ser de imediato rejeitado o recurso interposto pelo recorrente.

O. Ainda que se entenda, o que se equaciona por (excesso de) cautela e dever de patrocínio, que as Alegações do Recorrente são admissíveis, tão pouco deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto que o Recorrente pretendeu impugnar. A Sentença Recorrida concluiu, e bem, que nenhuma obrigação foi assumida por parte da insolvente perante o Autor.

P. Aliás, tal facto resulta, desde logo, do Contrato de Compra e Venda de Acções e Cessão de Créditos, no qual a insolvente (Recorrida) apenas figura como Vendedora e não lhe cabendo, portanto, assumir obrigações de Compradora. Assim sendo, logo se vê que tal se encontra devida e documentalmente provado e é insusceptível de ser “contrariado” por um qualquer testemunho.

Q. Do mesmo modo que o testemunho apresentado pelo Recorrente, e citado para fundamentação do presente recurso, se trata de um testemunho parcial e pouco fiável uma vez que a testemunha reconhece, logo no início (Minuto 00:48 até 1:40) que ainda hoje trabalha para o Autor (aqui Recorrente) e sua irmã. O seu depoimento foi sempre induzido pela mandatária do Recorrente, sendo especialmente flagrante no momento em que a Meritíssima Juíza pedia os seus esclarecimentos (27:38 a 33:55).

R. Depois de terminado um depoimento, aqui se percebe como a testemunha apenas tinha os conhecimentos certos, na altura certa (no momento das dúvidas da Meritíssima Juíza) e se as questões fossem conduzidas pela mandatária da parte que a indicou. E tudo isto para concluir que, afinal, não acompanhou o processo por isso não tem conhecimento!

S. É gritante este tipo de preparação e indução do testemunho e resulta evidente, em conclusão, que a testemunha estava a falar de um processo que não conhecia porque, afinal, nem sequer tinha acompanhado. O que também, a esse propósito, acaba por concluir, a instâncias da mandatária da ora Recorrida (36:22 a 36:38).

T. É claro, portanto, que esta testemunha, não obstante ter trabalhado na (…) no momento da celebração do aludido negócio, relata apenas o que “ouvia dizer” e não revela conhecimento directo dos contornos exactos e relevantes nem da suposta tentativa de destaque que o ora Recorrente vem, agora aqui, tentar sugerir para fundamentar uma alteração da matéria de facto. Nem, sequer, conhecimento daquilo em 17/19 que se alicerçou o contrato existente e que poderia justificar a solução defendida pelo Recorrente. Sendo, portanto, claramente inepta a produzir o resultado que o Recorrente pretende.

U. Ilustrativo da credibilidade da convicção desta testemunha é, também, a passagem no minuto 35:53 quando a única testemunha invocada pelo Recorrente nas suas Alegações, deixou bem claro que a convicção que tinha da suposta obrigação da Recorrida resulta apenas da sua própria interpretação do contrato. E não – como deveria – tem qualquer correspondência com a letra e o que consta do mesmo. O que ainda é ilustrativo para concluir sobre a credibilidade deste testemunho.

V. Por fim, note-se a hesitação em confirmar que a habitação do Recorrente é própria e permanente, um conceito que não deveria ser alheio a um contabilista certificado, e que só se pode conjugar com o facto de o Recorrente, nesse então Autor, se ter apresentado no dia do julgamento com uma morada em Carcavelos (minuto 37). Tudo o que releva especialmente quando fundamenta o efeito suspensivo que entende deve ter o presente recurso na alínea b) do n.º 3 do artigo 647.º que é destinado especificamente a acções em que se discuta a posse ou propriedade da casa de habitação.

W. Também a instâncias do mandatário da Caixa de Crédito Agrícola se tornou evidente a incoerência deste testemunho e a falta dos conhecimentos que dizia ter aquando das questões da Mandatária do Recorrente (44:30 a 47:20).

X. Testemunha que apenas confirmou o que resulta do n.º 4 da Cláusula 10.º do contrato: após o pretendido destaque, a compra e/ou permuta tinha como condição que os adquirentes (o Recorrente) entregassem à vendedora (a …, Investments, B.V.) uma contra-prestação. Em suma, o Recorrente e familiares teriam que pagar ou permutar algo, como condição para que lhes fosse transmitida a propriedade de futuro prédio a constituir, tal como afirmado no n.º 4 da Cláusula 10ª do Contrato “as escrituras de compra e venda e/ou permuta serão efectuadas, em simultâneo,” e confirmado por esta testemunha. Não tendo resultado provado que estes tivessem entregue à (…), Investments, BV o preço ou outra contraprestação respeitante ao negócio que tinha por objecto o prédio futuro. Mas ainda que assim tivesse sido, tal estaria na esfera do contratado com a (…) e nunca com a insolvente.

Y. Assim se percebe que aquilo que o Recorrente pretendia – e que não logrou, por tudo o que já se disse, era partir de um facto não provado para fundamentar que essa obrigação existia e que devesse ser dada como provada o que não tem qualquer hipótese de proceder.

Z. A partir da pretendida alteração da matéria de facto, vem o Recorrente sustentar que se poderia confirmar, então, que a aqui Recorrida se obrigou a proceder ao que nesta acção vem peticionar o Recorrente. Tal não poderia estar mais afastado da realidade, nem poderia estar mais bem fundamentado na Decisão Recorrida.

AA. Ainda que se entendesse que tal obrigação teria sido assumida pela (…), essa obrigação estava dependente da existência jurídica dessa construção – o que apenas sucederia apos o destacamento (para o qual essa sociedade não tinha legitimidade), essa promessa era uma promessa de bem alheio, que é nula nos termos do artigo 892.º do Código Civil.

BB. Ou ainda que se entendesse, por mero dever de cautela, que a (…) se teria comprometido a, através da sua participada (…) levar a que a participada desta (…) procedesse ao destacamento, tal seria uma promessa de bem futuro, que nunca chegou a existir até hoje.

CC. Acrescente-se que nunca o Recorrente diligenciou pela efectivação do seu suposto direito previamente aos anúncios de venda do imóvel (onde se encontra inserto o terreno e a moradia) no âmbito do processo de insolvência.

DD. Também nunca, anteriormente, interpelou a Recorrida para o cumprimento da suposta obrigação que agora aqui pretende ver reconhecida: nem aquando da constituição e registo da hipoteca, o que resultou cristalino do depoimento das duas testemunhas da Caixa de Crédito Agrícola (… e …).

EE. Do mesmo modo que no processo de insolvência, nunca reclamou um qualquer crédito, conceito que abrange bens e direitos, in casu, o direito a uma prestação de facto, segundo a versão trazida a estes autos nem sequer diligenciou pelo chamamento da (…) ou da (…) ao presente processo.

FF. Atingindo o suprassumo da inércia e desinteresse quando, como muito bem refere a Decisão Recorrida, e cuja Certidão consta dos autos, deixou que fosse julgada deserta, pela sua exclusiva falta de impulso processual, acção de execução específica de contrato promessa. Tal como conclui a Decisão Recorrida “Resulta, pois, que os Autores se desinteressaram da referida acção, onde poderiam obter, por decisão judicial, a substituição da vontade do declaratário vendedor em incumprimento”.

GG. Vindo agora, com a presente acção, lançar mão de mais um expediente processual dilatório para obstar à venda do activo da massa e obter um efeito definitivo e directo para a sua esfera através de uma sociedade que a nada se obrigou e efeito que não é juridicamente possível. É que a existir algum direito na esfera do Recorrente, hoje em dia, esse é o de accionar a (…) por via de uma acção de responsabilidade civil.

HH. Acrescente-se que não é concebível nem aceitável, no âmbito do processo de insolvência, que possa o tecido económico (que constitui a maioria dos credores deste tipo de processos – bancos, empresas, etc.) ver sustados os processos e suspensas as liquidações por conta de supostas obrigações assumidas pelos, em tempos, “accionistas de accionistas” dos, hoje, insolventes. Devendo prosseguir a liquidação do património da insolvente para satisfação dos seus efectivos credores–o que configura a finalidade maxima do processo de insolvência.

II. De onde se conclui que não poderia o tribunal a quo ter considerado provado o pretendido pelo Recorrente, não merecendo qualquer censura a Decisão Recorrida.

Foi admitido o recurso.

Foi dado cumprimento aos vistos por via eletrónica.

II- OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso e sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:

1. Se o recurso é extemporâneo (questão suscitada pela recorrida);

2. Se foi dado cumprimento ao ónus previsto no artigo 640.º do CPC (questão suscitada pela recorrida);

3. Impugnação da decisão de facto;

4. Do direito à restituição e separação dos bens.

III- FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância fixou-se a matéria de facto da seguinte forma:

A) Factos provados:

1. No dia 3 de outubro de 2007, foi celebrado um escrito, denominado “Contrato de Compra e Venda de Ações e de Cessão de Créditos (Doc. 1), entre os seguintes vendedores:

a. … (pai do ora requerente);

b. … (ora requerente);

c. … (irmã do ora requerente e interveniente principal);

d. Sociedade Agro-Pecuária Quinta do (…), Lda. (ora Insolvente), e

e. (…) – Sociedade de Criação Pecuária, Lda..

2. E do outro a sociedade (…), Investments B.V., na qualidade de compradora, junto de fls. 8 a 20 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os legais efeitos.

3. Consta do referido documento o seguinte: “Cláusula 7ª (…) 2. A Compradora obriga-se, entre a presente data e até à data do fecho ao seguinte:

a. (…)

b. (…)

c. Permitir a utilização do imóvel identificado no número 1 b) do Anexo XIX, nos termos do Contrato de Comodato a celebrar entre a (…) e o Primeiro Vendedor, em termos substancialmente idênticos aos constantes do modelo de contrato de comodato que se junta como anexo XX. (…).

Cláusula 10ª (…) 2. A compradora obriga-se perante os vendedores a:

a) No prazo de seis meses, proceder ao destaque e posterior transmissão da propriedade a favor do Primeiro Vendedor da Casa da Quinta do (…), propriedade da (…), do imóvel identificado no número 1 b) do Anexo XIX, devendo para o efeito praticar todos os atos e assinar todos os documentos que considerar necessários no sentido de atingir o resultado junto das entidades competentes, nomeadamente junto da Conservatória do Registo Predial de Palmela, bem como, da Câmara Municipal de Setúbal, devendo até ao registo definitivo do aludido destaque e da transmissão da propriedade junto das conservatórias do registo predial e do serviço de finanças competentes.

(…) 3. No prazo de seis meses após a data de fecho, deverão ser realizadas as escrituras de compra e venda e/ou permuta dos imóveis descritas no Anexo XIX, assumindo as Partes o compromisso de tomar todas as medidas necessárias para que tais transmissões sejam efetuadas em simultâneo e não tenham qualquer impacto no pacto definido no presente Contrato.

4. À data da celebração do referido contrato o ora requerente, sua irmã, e seu pai (…), eram titulares da totalidade do capital social da sociedade (…), S.A., por sua vez detentora da totalidade do capital social da ora insolvente.

5. No âmbito do mencionado contrato, os vendedores, a saber, o ora requerente, sua irmã e seu pai, venderam à Compradora (…), Investments, entre outros bens, as participações sociais que integravam a totalidade do capital social da Sociedade Agro-Pecuária Quinta do (…), também denominada (…), ora Insolvente, de que eram os únicos titulares.

6. Essa sociedade, por sua vez, era proprietária de diversos imóveis, que constituíam um ativo da mesma e que se mantiveram como tal, apesar da alteração de titulares do capital social da (…).

7. Entres esses imóveis encontrava-se o prédio urbano sito na freguesia da Quinta do (…), com a área total de 8.271 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º … (antiga descrição n.º …, do Livro n.º …).

8. Este imóvel é composto por 7 (sete) artigos matriciais urbanos, junto do serviço de Finanças.

9. Entre eles figura o artigo matricial urbano n.º (…), sito na Rua (…), Quinta do (…), da freguesia da (…), concelho de Palmela, descrito como habitação com 2 pisos com 15 divisões, com a área total do terreno de 370 m2 e 320 m2 de área de implantação, com o valor patrimonial de € 110.150,34.

10. Este imóvel era à data da celebração do contrato supra identificado, a casa morada de família do pai do ora Requerente, Sr. (…), e do próprio requerente (…), que nele residiam há largos anos.

11. O imóvel referido na cláusula 10ª, n.º 2, al. a) corresponde ao referido artigo urbano n.º (…) acrescido de logradouro de 940 m2, com a configuração constante de fls. 29 verso dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.

12. A 3 de dezembro de 2007, foi celebrado escrito denominado contrato de comodato, entre a insolvente e (…), nos termos e com o teor constante de fls. 30 a 32 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os legais efeitos.

13. No âmbito do contrato referido em 12, foi acordado, designadamente, o seguinte: “(…) Nos termos do mencionado Contrato de Compra e Venda, foi acordado entre o segundo contraente e a (…) permitir a utilização pelo segundo contraente da casa de estilo D. João V, incluindo o respetivo recheio e logradouro, sito na Quinta do (…), no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…) e prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia da (…), concelho de Palmela, destinado a habitação (conforme planta junta ao presente Contrato como Anexo I), propriedade do primeiro contraente, mediante a celebração de um contrato de comodato até à data do Fecho, i. e, 60 dias a contar da data da assinatura do contrato de compra e venda de ações (…).

Primeira

(Identificação do Imóvel)

A primeira Contraente é dona e legitima proprietária da casa de estilo D. João V, incluindo o respetivo recheio e logradouro, sito na Quinta do (…), no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o número (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia da (…), concelho de Palmela, destinado a habitação (doravante designado apenas por “Prédio”).

Segunda

1. Pela celebração do presente contrato, a Primeira Contraente entrega gratuita e temporariamente ao Segundo Contraente o Prédio, para que este se sirva dele, usando-o como habitação própria, no âmbito das suas funções normais.

2. Por seu turno, o Segundo Contraente aceita por comodato o empréstimo do Prédio nos do número anterior do presente Artigo.

Segunda

(Prazo)

O presente contrato é celebrado pelo prazo de 10 meses, com inicio na presente data, não sujeito a renovação.

(…)

Quarta

(Obrigações do comodatário)

O segundo contraente expressamente se obriga a:

(…) h) Restituir o prédio, no mesmo estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, sendo da sua responsabilidade eventuais encargos com a restituição.

(…)

Oitava

(Restituição)

1. Rescindindo, denunciado ou caducado este contrato, o segundo contraente, obriga-se a retirar imediatamente todos os bens e equipamentos de sua pertença eventualmente colocados no prédio objeto do presente contrato.

2. Caso não sejam observados os procedimentos previstos no número anterior, o Segundo Contraente considera-se desde já responsável pelos danos ou prejuízos decorrentes da sua omissão, podendo a primeira contraente usar dos direitos de retenção e venda extra-judicial desses materiais ou equipamentos pertença do segundo, e de querer ver ressarcidos, a expensas do Segundo Contraente os referidos danos ou prejuízos (…)”.

14. Por escrito datado de 3 de outubro de 2008, outorgado entre a insolvente e (…); (…) e (…), constante de fls. 33 a 34 verso e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, foi acordado, nomeadamente, o seguinte:

“(…) Cláusula 2ª (Parte do Acordo) 1. Pelo presente aditamento, a Primeira Contraente confere ao senhor (…) e à senhora (…) todos os direitos que atribui no Contrato de Comodato ao senhor (…). 2. O Senhor (…) e a senhora (…) declaram expressamente que conhecem o mencionado contrato de comodato, aceitando todos os direitos e obrigações que pelo mesmo lhe são atribuídos.”

Cláusula 3ª

(Objeto)

Pelo presente aditamento, as Partes acordam e aceitam alterar o disposto na cláusula 2ª do Contrato de Comodato para a seguinte redação:

“O presente contrato entra em vigor na data da sua assinatura e manter-se-á em vigor pelo prazo de 10 (dez) anos ou até à data em que a propriedade do imóvel seja efetivamente transmitido para o Senhor (…).”

Cláusula 4ª

(Efeitos e Interpretação)

1. Os efeitos deste aditamento produzem-se a partir da data da celebração do contrato de comodato (...)”.

15. Não foi efetuado o destaque da referida parcela de terreno e casa de habitação, nem o seu registo a favor de (…).

16. O prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Palmela, Freguesia da (…) sob o n.º (…), consta inscrito a favor da insolvente, por aquisição por arrematação em hasta pública, pela Ap. (…), de 1973/02/27.

17. Sobre o prédio referido em 16 foi constituída hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, pela Ap. (…), de 2014/12/30, abrangendo 7 prédios e para garantia de empréstimo à Sociedade Agrícola de (…), S.A., com o montante máximo assegurado de € 1.587.300,00, referente aos contratos juntos pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo pelo requerimento de 14-01-2021, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os legais efeitos.

18. Tal prédio foi objeto de penhora registada pela Ap. (…), de 2017/02/01, no âmbito dos autos de processo executivo n.º 8733/16.3T8STB da Comarca de Setúbal, em que foi exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL.

19. Tal prédio foi objeto de apreensão nos presentes autos, sob a verba n.º 4 do auto de apreensão, constando inscrita a declaração de insolvência pela Ap. (…), de 2017/09/11, no âmbito dos presentes autos.

20. Correu termos a ação com o n.º 1803/18.5T8STB no Juiz 1, do Juízo Central Cível de Setúbal, onde foram autores (…) e (…) e réus Sociedade Agro-Pecuária da Quinta do (…), Lda.; (…) Investments B.V. e Crédito Agrícola Mútuo entre (…) e (…), CRL.

21. Tal ação foi proposta ao abrigo do artigo 830.º do Código Civil, para execução específica de Contrato-Promessa e os autores (…) e … peticionaram o seguinte:

“Proferir sentença produtora da declaração negocial da 1ª Ré, em substituição desta, transmitindo para os Autores, a plena propriedade do imóvel objeto do contrato promessa celebrado, que consiste em parte do prédio urbano sito na freguesia da (…), com a área total de 8.271mw, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela nº … (antiga descrição nº …, do Livro nº B-4), inscrito na matriz urbana nº (…), sito na Rua (…), (…), da freguesia da (…), concelho de Palmela, com o valor patrimonial de € 108.522,50.

b) Que a 1ª Ré seja condenada a entregar o montante do débito garantido à 3ª Ré ou o valor nele correspondente à fração do edifício objeto do contrato e dos juros respetivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral, para efeitos de expurgação da hipoteca.

c) Ou, que caso assim não se entenda, que se declare que os autores têm o direito de executar a fração identificada nesta petição, de modo que o direito de crédito correspondente á parte do imóvel aqui executado, seja satisfeito com o produto da venda judicial, e que têm o direito real de a reter na sua posse até que o crédito que aqui peticionam seja satisfeito.

22. Tal ação foi declarada deserta por sentença de 30-04-2019, transitada em julgado em 12/06/2019, por falta de resposta à notificação para indicação de morada completa da ré (…), Investments BV, na sequência de impossibilidade de citação.

23. (…) residiu no imóvel até à data do seu óbito ocorrido em 11 de setembro de 2014.

24. São herdeiros de (…), os ora Autores (…) e (…).

25. No mesmo imóvel residia o ora A., (…).

26. Era aí que dormiam, que faziam as refeições e recebiam amigos e família.

27. É aí que reside (…).

IV- FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Se o recurso é extemporâneo.

Sustenta a recorrida que o recurso deve ser considerado inadmissível, uma vez que as alegações de recurso foram apresentadas no dia 07 de maio de 2021, e não consta das mesmas a intenção de reapreciação da prova gravada, sendo certo que não resulta dos mesmos que tenham sido requeridas as gravações da audiência de julgamento.

De harmonia com o disposto nos artigos 638.º, n.º 1, do CPC e 9.º, n.º 1, do CIRE, o prazo geral para a interposição do recurso é de 15 dias e conta-se a partir da notificação da decisão.

Todavia, “se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias” (artigo 638.º, n.º 7, do CPC).

“Na verdade, havendo impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que tenha por objeto a reapreciação da prova gravada, a lei concede um alargamento do prazo, por mais dez dias, para a interposição do recurso de apelação. Este benefício no prazo justifica-se, inicialmente, pelo ónus que recaía sobre o recorrente de “proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda” (artigo 690.º-A do CPC de 1961, introduzido pelo DL n.º 39/95, de 15 de fevereiro) e tem razão de ser, posteriormente, de forma a permitir o cumprimento do ónus de alegação consagrado no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, para o qual, evidentemente, é indispensável a audição da prova gravada (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, págs. 594 e 595, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 138).[1]

“O acréscimo do prazo de 10 dias depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.”[2]

No caso em apreço, o recorrente impugnou a matéria de facto, concluindo que deve ser dado como provado que “A insolvente obrigou-se a destacar o imóvel objeto do contrato de comodato e respetivo aditamento e registar definitivamente a favor de (...) a propriedade do mesmo”, aditando-se assim um facto nº 27 à matéria dada como provada e eliminando-se o único facto dado como não provado (Conclusões A) e B), sendo que na motivação do recurso, invoca o depoimento gravado da testemunha (…).

Tanto basta para que a recorrente beneficie do acréscimo de prazo de recurso referido no n.º 7 do artigo 638.º do CPC.

De harmonia com o disposto no artigo 155.º, n.º 1, do CPC, “A audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada, devendo apenas ser assinalados na ata o inicio e o termo de cada depoimento, informação, esclarecimento, requerimento e respetiva reposta, despacho, decisão e alegações orais”.

Com o atual regime, em resultado de uma opção do legislador, a gravação tem um outro significado e uma maior amplitude: abarca a gravação da audiência final e não apenas da prova oralmente produzida: e reporta-se a todas as audiências finais, ou seja, audiências de ações, de incidentes e de procedimentos cautelares. Ademais, ocorre por imposição legal, sem necessidade de requerimento e independentemente da questão do recurso”.[3]

No caso em apreço, as partes foram notificadas da sentença recorrida no dia 6-04-2021, pelo que se considera efetuada nos termos do artigo 248.º, n.º 1, do CPC, no dia 9-04-2021.

Assim sendo, e tendo em conta o prazo acima citado, constata-se que as alegações deram entrada nos termos do artigo 139.º, n.º 5, do CPC, pelo que se tem de considerar tempestivo o recurso.

Improcede a questão prévia, sendo tempestiva a interposição da apelação.

2. Se foi dado cumprimento ao ónus previsto no artigo 640.º do CPC.

Considera a recorrida que o recurso deve ser rejeitado de imediato nos termos do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, porquanto o recorrente indicou uma passagem de gravação, mas nada do que consta alegado é dito nesta passagem.

Dispõe o artigo 640.º do CPC, com a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Conforme se escreveu no Acórdão do STJ, de 21-03-2019[4]: “Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640.º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1, alíneas a), b) e c), do referido artigo 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o n.º 2, alínea a), do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.

IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto”.

Não constitui assim fundamento de rejeição imediata do recurso quanto à impugnação da decisão de facto a não coincidência entre o que é alegado pelo recorrente e o que consta da passagem indicada. Quanto muito, pode levar ao insucesso da pretendida alteração da matéria de facto.

Em suma, o recorrente cumpriu de forma satisfatória os ónus previstos no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

3. Impugnação da decisão de facto.

Dispõe o artigo 662.º. n.º 1, do CPC, o seguinte: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

“Na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal da Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, após reapreciar os meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que, mostrando-se relevantes, se encontrem acessíveis, podendo proceder à alteração do julgamento sobre a matéria de facto provada e não provada efetuado pela primeira instância, sempre que conclua, com a necessária segurança, que a análise e apreciação das provas produzidas impõem diferente resultado.”[5]

Entende o recorrente que o tribunal a quo fez uma incorreta apreciação da matéria de facto, ao não considerar como provado que “A insolvente obrigou-se a destacar o imóvel objeto do contrato de comodato e respetivo aditamento e registar definitivamente a favor de (…) a propriedade do mesmo”, aditando-se assim um facto n.º 27 à matéria dada como provada e eliminando-se o único facto dado como não provado.

O Tribunal a quo formou a sua convicção da seguinte forma:

“O facto provado resulta da inexistência, nos autos, de qualquer prova do mesmo. Com efeito, tal facto não pode inferir-se dos documentos juntos e muito menos dos depoimentos prestados, que se limitaram a referir diligências encetadas pelos administradores das várias sociedades com vista ao destaque, o que terão tentado por uma vez, e lhes foi recusado.”

Invoca como meio probatório o depoimento da testemunha (…) que exerceu as funções de contabilista e de acompanhamento dos negócios a nível geral na insolvente de 1995 até 2009, inclusive.

A recorrida sustenta, por seu turno, que esta testemunha, não obstante ter trabalhado na (…) no momento da celebração do aludido negócio, relata apenas o que “ouvia dizer” e não releva conhecimento direto dos contornos exatos e relevantes nem da suposta tentativa de destaque que o ora recorrente vem, agora aqui, tentar sugerir para fundamentar uma alteração da matéria de facto. Acresce que se trata de um testemunho parcial e pouco fiável uma vez que a testemunha reconhece, logo no inicio que ainda hoje trabalha para o autor (aqui recorrente) e sua irmã.

Procedeu-se à audição integral de todos os depoimentos prestados em audiência final. Relativamente à testemunha (…), cumpre dizer que o mesmo nada disse de relevante e diferente relativamente ao conteúdo dos contratos, sendo certo que não conseguiu responder a várias questões que lhe foram colocadas relativamente às circunstâncias subjacentes à celebração dos mesmos.

Assim sendo, e relativamente a esta matéria, teve-se em consideração as regras de interpretação dos contratos previstas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.

Mantêm-se, pois, inalterada a decisão de facto.

4. Do direito à restituição e separação dos bens.

Sustenta o recorrente que a sentença recorrida violou o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, considerando que a posição de um declaratário normal leva-nos a concluir, que a insolvente se vinculou a proceder ao destaque e registar a propriedade a favor do pai do requerente.

Respondeu a recorrida que não resultou provado que foi entregue à (…), Investments, BV, o preço ou outra contraprestação respeitante ao negócio que tinha por objeto o prédio futuro. Mas ainda que assim tivesse sido, tal estaria na esfera do contratado com a (…) e nunca com a insolvente.

Na sentença recorrida entendeu-se que “da matéria de facto provada, e do teor do contrato outorgado, apenas resulta que a Sociedade Compradora, a (…), Investments BV se obrigou a proceder a posterior transmissão do primeiro vendedor, a saber, (…), da casa da Quinta do (…), propriedade da (…) no imóvel identificado no número 1 b) do Anexo XIX, devendo para o efeito praticar todos os atos e assinar todos os documentos que considerar necessários no sentido de atingir o referido resultado junto das entidades competentes (…).

Efetivamente, não é mencionado que os contraentes se obrigam ou que a ora insolvente e a compradora (…), se obrigam. Do texto do contrato resulta inequívoco: “A compradora obriga-se perante os Vendedores a:”

No início do contrato mostram-se identificadas as partes outorgantes, figurando apenas com compradora a (…), Investments BV.

Da leitura do contrato, não resulta qualquer obrigação constituída sobre a sociedade, ora insolvente, que interveio na qualidade de mera vendedora de capital, assim como, os requerentes e o respetivo progenitor, (…).

Com efeito, foi a sociedade (…) Investments BV, que assumiu a obrigação de proceder ao destaque e retransmissão ao Sr. (…) da parcela do terreno identificada nos autos e designadamente do levantamento topográfico anexo ao contrato de comodato.

Efetivamente, qualquer obrigação existente impende, apenas e só, sobre a compradora, isto é, a (…), Investmens BV”.

As normas relativas à interpretação das declarações negociais encontram-se previstas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.

Artigo 236.º (Sentido normal da declaração)

1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

Artigo 237.º (Casos duvidosos)

Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menor gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.

Artigo 238.º (Negócios formais)

1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com o sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

Rui Pinto Duarte[6] sintetiza os conteúdos relevantes em matéria de interpretação da seguinte forma:

-Em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (artigo 236.º, n.º 2);

-No tocante a negócios formais, o sentido a atribuir à declaração tem de ter um mínimo de correspondência no texto (artigo 238.º, n.º 1), não se aplicando tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (artigo 238.º, n.º 2);

-Não se conhecendo a vontade real dos declarantes, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, atribua à declaração (artigo 236.º, n.º 1);

-Em caso de dúvida, se tratar de negócio oneroso, prevalece o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações e se tratar de negócio gratuito o sentido que for menos gravoso para o disponente (artigo 237.º).

Diz-nos ainda Rui Pinto[7] que sendo “o contrato um acordo de vontades (artigo 232.º), há que buscar a “vontade comum”, não apenas a vontade de cada um dos intervenientes” e que se deve ir buscar a chamada vontade real dos contraentes e só se nada apurar quanto à mesma é que se aplicam as restantes regras.

O STJ tem seguido o critério segundo o qual qualquer elemento de um conjunto deve ser interpretado enquanto tal, isto é, no seu contexto.

Acórdão de 5.07.2012[8]:

“I - Na interpretação de um contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo.

II - Em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (artigo 236.º do CC).

III - No domínio da interpretação de um contrato há que recorrer, para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente à letra do negócio, às circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos, os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento) e a finalidade prosseguida.”

Acórdão de 16.04.2013[9]:

“Na interpretação de um contrato, a efectuar de acordo com as normas previstas nos artigos 236.º a 238.º do CC, deve buscar-se não apenas o sentido das declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas procurar-se o sentido juridicamente relevante daquele contexto, atendendo, em especial, à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a celebração do contrato ou são contemporâneas das mesmas, às negociações entabuladas pelas partes e às finalidades por elas prosseguidas, ao próprio tipo negocial, à lei, aos usos e costumes, e à posição assumida pelas partes na concretização do negócio.”

Em face do exposto, há a considerar que “o sentido relevante da declaração apura-se no seu contexto. A lei não limita, em regra, os elementos ou circunstâncias suscetíveis de serem levados em conta na interpretação. Apenas exige, no caso dos negócios formais, que o resultado interpretativo apurado tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (artigo 238.º). Não se provando o sentido da vontade real dos declarantes aplica-se o critério normativo objetivo do n.º 1 do artigo 236.º, em principio, a declaração vale como o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima, vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente de boa fé. O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real.”

Importa ainda dizer que “constitui matéria de facto saber qual foi o sentido efetivamente pretendido pelo declarante (a sua vontade real) e o eventual conhecimento da mesma pelo declaratário. Mas a interpretação em si mesmo é uma operação jurídico-valorativa e, desse modo, uma questão de direito”.[10]

Vejamos agora a cláusula relevante para a questão em apreço:

Cláusula 10ª (…) 2. A compradora obriga-se perante os vendedores a:

a) No prazo de seis meses, proceder ao destaque e posterior transmissão da propriedade a favor do Primeiro Vendedor da Casa da Quinta do (…), propriedade da (…), do imóvel identificado no número 1 b) do Anexo XIX, devendo para o efeito praticar todos os atos e assinar todos os documentos que considerar necessários no sentido de atingir o resultado junto das entidades competentes, nomeadamente junto da Conservatória do Registo Predial de Palmela, bem como, da Câmara Municipal de Setúbal, devendo até ao registo definitivo do aludido destaque e da transmissão da propriedade junto das conservatórias do registo predial e do serviço de finanças competentes.

(…) 3. No prazo de seis meses após a data de fecho, deverão ser realizadas as escrituras de compra e venda e/ou permuta dos imóveis descritas no Anexo XIX, assumindo as Partes o compromisso de tomar todas as medidas necessárias para que tais transmissões sejam efetuadas em simultâneo e não tenham qualquer impacto no pacto definido no presente Contrato.

Da factualidade dada como provada não é possível apurar o sentido da vontade real dos outorgantes do contrato denominado “Contrato de Compra e Venda de Ações e de Cessão de Créditos”, pelo que há que fazer apelo ao critério do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil. E segundo este critério, entendemos que a cláusula acima referida não pode ser interpretada com o sentido pretendido pelo recorrente; ou seja, a insolvente vinculou-se a proceder ao destaque e registar a propriedade a favor do pai do requerente.

A restituição e separação de bens é regulada pelos artigos 141.º e ss do CIRE. “Nestes casos, o terceiro tem uma pretensão de natureza real, a separar da massa bens de que o insolvente não é o efetivo dono, constituindo assim uma situação distinta da reclamação de créditos, em que estão em causa créditos sobre a insolvência. Dado que a lei não permite que a oposição à indevida apreensão de bens para a massa insolvente tenha lugar através de embargos de terceiro (artigo 342.º, n.º 2, CPC), prevê-se, para esse efeito, a restituição e separação de bens, que constitui um meio específico de oposição, que se processa em termos semelhantes à verificação de créditos.

A restituição e separação de bens da massa insolvente é admitida em três situações, a que se refere o artigo 141.º, n.º 1:

a) Direito de restituição, a seus donos, de bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse um mero possuidor em nome alheio;

b) Direito de separação por parte do cônjuge do insolvente, dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns;

c) Direito de separação dos bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade ou sejam estranhos à insolvência ou insuscetíveis de apreensão para a massa.

O primeiro fundamento da restituição é a existência de um direito real ou pessoal de gozo por parte de terceiro sobre os bens apreendidos, que atribua a esse terceiro a posse em nome próprio dos mesmos e que consequentemente não se devem considerar pertinentes à massa.

O segundo fundamento de restituição é a existência de um direito do cônjuge a separar da massa os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns. O exercício deste direito depende, naturalmente, de não ter havido declaração de insolvência de ambos os cônjuges, como se prevê nos artigos 264.º e ss.

O terceiro fundamento da restituição é a existência de bens de terceiro indevidamente apreendidos, bem como de bens de que o insolvente não seja o pleno e exclusivo proprietário, e ainda de bens estranhos à insolvência ou indevidamente apreendidos pela massa insolvente.”[11]

Prescrevem os artigos 46.º, n.º 1 e 149.º do CIRE que a massa insolvente abrange todo o património do devedor e deve ser objeto de apreensão pelo administrador de insolvência, mesmo que os bens que o integram tenham sido arrestados, penhorados, apreendidos ou detidos, sejam em que processo for (excepto apreendidos em sede penal).

Pretende o ora recorrente a separação da massa e restituição do prédio urbano descrito nos artigos 11º, 12º, 13º e 16º do requerimento inicial.

No caso em apreço, o AI apreendeu, sob a verba nº 4 do auto de apreensão, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, freguesia da (…) sob o n.º (…), inscrito a favor da insolvente, por aquisição por arrematação em hasta pública, pela Ap. (…), de 1973/02/27, constando inscrita a declaração de insolvência pela Ap. (…), de 2017/09/11 (factos provados 16 e 19).

Concluiu a sentença recorrida que “não resulta que os requerentes ou a herança do seu progenitor sejam titulares de qualquer direito sobre o imóvel apreendido nos autos descrito sob o n.º (…), na Conservatória do Registo Predial de Palmela, Freguesia da (…), ou parcela do mesmo, pelo que, cumpre julgar a presente ação totalmente improcedente”.

Com efeito, não tendo sido alterada a matéria de facto, a decisão de direito não poderia ser diferente da proferida, sendo que o apelante também nada mais invoca de direito que justifique maior análise jurídica.

Em suma, não procedem, de todo, as conclusões recursórias, não violando a sentença recorrida o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil (alíneas F) e G) das conclusões).

Improcede, assim, a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

(…)

V- DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora, 14 de julho de 2021

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Lopes Barata

Maria Emília Ramos Costa

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[1] Ac. do STJ de 15-11-2017, proc. 461/14.0T8VFR.P1.S1, relator Olindo Geraldes, www.dgsi.pt.

[2] Ac. do TRP de 11-02-2021, proc. 151/19.8T8AVR.P1, relator Filipe Caroço, www.dgsi.pt. Cfr. ainda Acórdãos do TRL de 2-04-2019, proc. 1096/16.9T8BRR-C.L1-1, relatora Maria Adelaide Domingos, www.dgsi.pt. e do STJ de 28-04-2016, proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt. com o seguinte sumário: “3. A extensão do prazo de 10 dias previsto no artigo 638.º, n.º 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação. 4. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC”.

[3] António Santos Abrantes, Paulo Pimenta, Luís Felipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 189.

[4] Proc. 3683/16.6T8CBR.C1.S2, relatora Rosa Tching, www.dgsi.pt.

[5] Ac. do STJ de 13-4-2021, proc. 109/17.1T8BJA.E1.S1, relator João Cura Mariano, www.dgsi.pt.

[6] A Interpretação dos Contratos, 2017, Almedina, pp. 54-55

[7] Obra citada, p. 56.

[8] Proc. 1028/09.0TVLSB.L1.S1, relator António Joaquim Piçarra, www.dgsi.pt.

[9] Proc. 2449/08.1TBFAF.G1.S1, relator António Joaquim Piçarra, www.dgsi.pt.

[10] Evaristo Mendes/Fernando Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pp. 537 e 540.

[11] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2015, 6ª edição, Almedina, pp. 223 e 224.