Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
18/15.9T9MMN.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FOTOCÓPIA DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 05/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Sendo aceite fotocópia como prova da existência e conteúdo do original, a exibição ou entrega de fotocópia de documento que a arguida sabia ter sido falsificado, constitui uma das modalidades do crime de uso de documento falsificado previsto na al. e) do nº1 do art. 256º do C.Penal.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Montemor-O-Novo (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, foi sujeita a julgamento, AA, divorciada, gestora de projetos, natural da Holanda, a quem o MP imputara a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação p. e p. pelo artigo 256.°, n, 1, alínea e), do Código Penal.

O assistente, BB, na sequência do reenvio dos autos para a forma de processo comum, deduziu acusação particular contra a arguida.

2. Realizada Audiência de Discussão e Julgamento, o tribunal singular decidiu condenar a arguida, AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação p. e p. pelo artigo 256.°, n,º 1, alínea e), do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 12 (doze euros), perfazendo o montante global de € 1.440 (mil quatrocentos e quarenta euros);

3. Desta decisão, vem a arguida interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes

«III. CONCLUSÕES
A) Resultou provado nos presentes autos que aquilo que teria sido entregue na clínica veterinária Optivet não havia sido uma declaração falsificada, mas uma fotocópia.

B) Não existe, no caso concreto, uma declaração (documento com relevo jurídico, idóneo a provar facto juridicamente relevante) mas apenas uma fotocópia.

C) A fotocópia em questão não pode integrar o conceito de documento para efeitos de direito penal, ou seja, idóneo a provar facto juridicamente relevante, nos termos do disposto no artigo 255.°, aI. a), do CP.

D) O relatório pericial constante dos autos não foi, nem poderia ser, conclusivo, sendo que aquilo que daí resultou foi a da existência de probabilidade de a assinatura constante de um hipotético documento subjacente à fotocópia poder ter sido manipulada.

E) Não se encontra preenchido o tipo legal em causa porquanto não foi utilizado um documento com relevo jurídico penal, mas apenas uma fotocópia a qual não era idónea a provar facto juridicamente relevante.

F) O tipo legal de crime em questão pressupõe que haja intenção daquele que usa um documento falso (o que, como vimos, não se verificou por não estarmos perante um documento e, por isso, não poder o mesmo ser falso, mas apenas uma fotocópia impressa) de obter para si ou para outra pessoa um benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

G) A Arguida ao requerer o registo do canídeo em seu nome não pretendeu obter nenhum benefício ilegítimo.

H) A decisão recorrida violou, de resto, o disposto nos artigos 255.°, al. a), e 256.°, n. 1, al. e), ambos do CP.

Termos em que, e nos melhores de Direito doutamente supridos por Vossas Excelências, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a Arguida do crime que lhe é imputado,

Assim se fazendo inteira JUSTIÇA!»

4. Notificados, o MP e o Assistente, BB, vieram apresentar resposta ao recurso em que pugnam pela sua improcedência.

5. Nesta Relação, o senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

6. Sentença recorrida (transcrição parcial):

«2.1. Factos provados 1
Com interesse para decisão da vertente causa penal resultaram demonstrados os seguintes factos:

Das acusações
1. A arguida AA e BB foram casados desde 08 de Agosto de 2008, tendo vivido até 2014 na Herdade...

2. Desde Junho de 2013 que a arguida e BB tinham consigo um canídeo de raça boxer, tigrado.

3. No dia 18/06/2013, o referido canídeo foi registado no SIRA (Sistema de Identificação e Recuperação Animal), com o Código de Chip 982000210065759, em nome de BB.

4. Em Maio de 2014, aquando do terminus da relação conjugal, a arguida decidiu que iria transferir a propriedade do referido canídeo para si.

1 Consigna-se que não se consideram os factos constantes da acusação particular na parte em que referem que a própria arguida falsificou a declaração que constitui o cerne dos autos, aí colocando ela mesma, mediante montagem, a assinatura do assistente, cabendo relembrar que o Ministério Público emitiu despacho de arquivamento nesse tocante (v., aliás, fls. 12 e 13 do despacho do Ministério Público de 7.11.2016) e que o assistente não reagiu contra o mesmo, mormente requerendo a abertura da instrução. Não obstante, sempre é de considerar que, ainda que assim não fosse, sempre a factualidade aduzida pelo assistente sempre resultaria elencada de entre os factos não provados, pois que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não foi viável esclarecer quem produziu a montagem, nomeadamente não se extraindo de qualquer meio de prova quem a terá realizado.

5. De forma não concretamente apurada, sem o conhecimento de BB, desconhecidos, apuseram em declaração de cedência, no Detentor Anterior, a assinatura daquele, através de montagem e mediante cópia extraída dessa declaração e assinatura.

6. Assim, de forma não concretamente apurada, a arguida entrou na posse da cópia extraída da declaração de cedência e da assinatura de BB aí montada, bem sabendo que tal assinatura não tinha sido aposta pelo punho daquele.

7. Na posse da cópia da declaração referida em 6., que sabia ser falsa, a arguida, no dia 19/05/2014, entregou-a na Optivet - Serviços Médicos Veterinários, Lda, solicitando a alteração do registo do canídeo ao veterinário, e em consequência, desde essa data até 09/12/2014, o referido animal encontrou-se registado no SIRA em seu nome.

8. A arguida sabia que a referida cópia de declaração de cedência que entregou na Clinica Veterinária seriam enviados, mediante digitalização, como efectivamente o foi, para o SIRA e faria crer enganosamente às entidades competentes que BB assinara tal documento expressando a sua vontade de ceder a posse do canídeo registado em seu nome, colocando assim em crise a fé inerente aos documentos e aos registos públicos, bem sabendo que, assim, prejudicava - como fez - o BB.

9. Mais sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Da contestação
10. O canídeo supra referido apareceu na Herdade …, tendo sido atirado por cima da cerca da Herdade.

11. A arguida acolheu-o, como seu, tendo, desde então, tratado dele, alimentando-o, levando-o ao veterinário e dando-lhe afecto.

12. Aquando do seu aparecimento, a arguida e o assistente levaram o canídeo ao veterinário no próprio dia porquanto uma das patas do mesmo aparentava não estar bem.

13. O veterinário JC estimou a idade do cão em cerca de 6 a 12 meses, tendo a arguida decidido por uma data de nascimento, a qual foi levada ao registo do SIRA.

Mais resultou demonstrado com relevância que:
14. A arguida não tem quaisquer condenações inscritas no certificado de registo criminal que se lhe refere.

15. A arguida é titular de contas bancárias com saldo aproximado de dois milhões de euros, as quais refere não conseguir movimentar.

16. A arguida mantém dezenas de litígios judiciais com o assistente, sendo patrocinada por advogados.

17. A arguida foi membro dos órgãos estatutários das seguintes pessoas colectivas:

Saddlecloth Services Limited - Sucursal Em Portugal; Royal Blue Equi, Lda.; K. - Associação de Pescadores; S. Stables Limited - Sucursal Em Portugal; MH Horses, Unipessoal, Lda ..
*
2.2. Factos não provados
Com relevância para a decisão dos presentes autos ficou por demonstrar a seguinte factualidade:

A. O referido em 12. tenha sido na companhia do filho da arguida.

B. A data de nascimento de 11.11.2012, por referência ao mencionado em 13., foi atribuída em memória de um amigo de longa data da arguida (Kahn), que faleceu um ano antes.

C. A questão do registo de propriedade do canídeo Shogun foi discutida entre a arguida e o assistente, tendo este entendido que o mesmo deveria ser registado no nome da arguida, nunca a isso se tendo oposto.

D. O assistente nunca quis saber do cão, nunca o tendo cuidado, tratado ou alimentado.
*
2.3. Motivação de facto
(…)
I
II. Fundamentação de Direito
3.1. Enquadramento jurídico-penal do tipo incriminador cuja prática é imputada à arguida o crime de falsificação visa tutelar, enquanto bens jurídicos, a segurança e a credibilidade dos documentos no contexto do tráfego jurídico, sendo que documento é «a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta» (cfr. artigo 255.°, alínea a), do Código Penal).

No que se refere às alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 256.° do Código Penal, pode concluir-se que se trata de um crime de resultado, uma vez se impõe uma alteração material do documento em causa. No que concerne às restantes alíneas, e) e f), é um crime de mera actividade, uma vez que, ao contrário das alíneas anteriores, não existe qualquer manipulação do documento, sendo certo que a adulteração do mesmo ocorre em momento anterior.

Por sua vez, atendendo à separação de alíneas referida no parágrafo anterior, é um crime de perigo abstracto em referência ao primeiro grupo de alíneas, uma vez que o bem jurídico não é ainda atingido nas modalidades de cometimento do tipo aí referidas, isto porque o documento ainda não é posto em circulação; é um crime de dano no que concerne ao segundo grupo de alíneas, uma vez que nestas formas de cometimento do tipo o documento manipulado é posto a circular e utilizado.

No que se refere ao tipo objectivo, o mesmo assume as formas referidas nas alíneas previstas no artigo 256.°, n. 1, do Código Penal, ou seja, a fabricação (originária) de documento, manipulação de documento já existente (a que a doutrina e jurisprudência chamam de falsificação material), aposição no documento de assinatura de terceiro, constatação em documento de facto falso juridicamente relevante e, por fim, colocação de documento falsificado em circulação, a qual se pode referir à utilização e detenção do documento, mas também ao acto de facultá-lo a terceiro. São, pois, estas as formas de cometido do crime de falsificação.

No n.º 3 do artigo 256.° do Código Penal prevê-se uma agravação quando os factos a que alude o n.? 1 deste artigo «disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale de correio, a letra de câmbio, a cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso, ou qualquer outro título de crédito (. . .}»,

No que concerne ao tipo subjectivo, é exigida uma actuação dolosa por parte do actor criminis em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.° do Código Penal.

Refira-se, ainda, que o tipo em questão prevê um elemento subjectivo específico, uma vez que o agente deve agir com a intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter para si benefício ilegítimo, ou, ainda, com o intuito de preparar, facilitar, executar ou encobrir a prática de um outro crime.

3.2. Subsunção dos factos provados ao tipo incriminador

No caso vertente é de relembrar que à arguida é imputada a prática de um crime de falsificação do artigo 256.°, n.º 1, alínea e), do Código Penal, ou seja, é imputada à arguida a utilização de documento falsificado, sendo ainda de recordar que o Ministério Público, no que tange propriamente à elaboração do documento em referência, não deduziu acusação, daí que o objecto processual esteja delimitado a respeito daquela utilização e já não no que concerne em que contexto a declaração a que aludem os autos foi produzida.

Prosseguindo, resultou sedimentado que a arguida entregou uma cópia de uma declaração de cedência atinente a um canídeo junto de uma clínica veterinária de molde a ser alterado o registo atinente a esse animal junto do Sistema de Identificação e Recuperação Animal, resultando ainda que resultava de tal declaração uma assinatura como aí tendo sido aposta por BB, enquanto detentor anterior, acontecendo, porém, que essa assinatura aí foi aposta contra a vontade de tal pessoa mediante montagem.

A questão que se discute com maior acutilância é a de aferir se existe, em sentido próprio, objecto do crime cuja prática é imputada à arguida, não se olvidando que esta, tal como fez exarar na contestação que impetrou nos autos, entende que uma cópia não integra o conceito de documento (falsificado), pugnando, dessa forma, pela correspondente absolvição.

Para dilucidar a questão enunciada no parágrafo antecedente é de ter em mente, desde logo, o disposto no artigo 255.°, alínea a), do Código Penal, aí se definindo documento enquanto «a declaração corporizada em escrito (. . .) intelegível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente (. . .}», A este propósito, ensina Helena Moniz que «documento, para efeitos de direito penal, não é o material que corporiza a declaração mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação). O que permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado do direito civil, que têm força probatória plena, mas qualquer outro - escrito, registo em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico - que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (. . .)>>, esclarecendo ainda, com particular relevância para o caso concreto, que «a falsificação de uma fotocópia é coisa distinta da falsificação do documento através da fotocópia. Neste segundo caso estamos a utilizar a fotocópia como o meio técnico que nos permite a falsificação. O documento, em vez de ser falsificado através de impressão de um novo documento, é fotocopiado criando-se um documento distinto do original. Ou seja, a alteração do conteúdo de um documento, quer esta alteração se tenha verificado porque o agente imprimiu um novo documento (com conteúdo distinto do documento original), ou porque o agente o fotocopiou, é irrelevante para efeitos penais - na verdade, em todos os casos trata-se de uma falsificação material do documento. Na verdade, a utilização da fotocópia é a utilização de um documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao crime de falsificação de documentos (. . .) - (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pp. 667 e 670-671).

Ainda com relevância para a resposta a conferir à questão suscitada na contestação, é de reter o entendimento subscrito por Paulo Pinto de Albuquerque, o qual refere que «a fotocópia também pode ser utilizada como meio de manipulação do conteúdo de um documento, nos casos de uma fotocópia de parte de um documento verdadeiro ou de uma fotocópia de uma montagem de vários escritos. Nestes casos, verifica-se uma falsificação de documento, uma vez que o aparelho técnico não é utilizado na sua função de reprodução automática, mas como meio de fabricação de um documento» (Comentário do Código Penal, 2.a Edição, Universidade Católica Editora, p. 752).

O Supremo Tribunal de Justiça também se pronunciou sobre a temática em apreço, mormente no Acórdão de 20.12.2006 (relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Santos Cabral, processo n. 06P3663, disponível para consulta em www.dgsi.pt) consignando que «uma vez que o documento para efeitos de direito penal é a declaração e não o objeto ou suporte material da declaração, a simples falsificação da fotocópia, do suporte do documento, não constitui falsificação de documentos, pois não se verifica uma falsificação de um documento enquanto declaração, já que a fotocópia, em si, constitui um suporte que não permite reconhecer o emitente da declaração, e em relação à qual (fotocópia) se encontram diluídos os interesses de credibilidade e segurança no tráfico jurídico», mas clarificando que «situação distinta é aquela em que o próprio ato de produção da fotocópia é, também, instrumento de manipulação do original fotocopiado, cujo conteúdo é alterado por essa forma. Tal alteração pode ser efetuada através da montagem do texto original, ou da sua digitalização, mas constitui sempre uma alteração do documento original que está a ser fotocopiado e, como tal, inscreve-se nos elementos constitutivos do crime de falsificação».

Volvendo ao caso dos autos, cumpre precisamente efetivar a distinção a que supra se alude. Com efeito, a declaração a que se reportam os autos não constitui uma fotocópia de um original e que sequentemente foi adulterada, permanecendo o original intacto, caso, aliás, em que não se verificaria a prática de um crime de falsificação. O documento a que o presente processo se atém constitui uma cópia de um formulário - isto é, a declaração de cedência - em que foi aposta uma montagem da assinatura do assistente, sendo a cópia, em si própria, o objeto e o meio da falsificação. Na verdade, mediante a cópia em referência unificou-se, por um lado, uma formulário de declaração de cedência de um canídeo e, por outro, o extracto de um documento contendo a assinatura do assistente, produzindo-se, dessa forma, uma aparência de documento por via do qual BB cedia o mencionado animal à arguida.

Importa, pois, considerar, que a falsificação foi obtida mediante alteração do campo atinente à assinatura do cedente resultante de montagem da assinatura do assistente, criando-se um documento novo por via de cópia da sobreposição da montagem dessa assinatura naquela declaração, sendo, assim, de reiterar a cópia em si mesma viabilizou a alteração deste documento, havendo, por isso, falsificação de documento nos termos e para os efeitos conjugados dos artigos 255.°, alínea a), e 256.°, n. 1, alínea a), ambos do Código Penal.

Ademais, a cedência de um canídeo perante um serviço de registo (in casu, o Sistema de Identificação e Recuperação Animal) constitui facto jurídico relevante e consubstancia a representação de uma pretensa vontade do assistente. Assim, tendo a arguida utilizado o referido documento (declaração de cedência com aposição da assinatura do assistente obtida mediante cópia), entregando-o numa clínica para que fosse remetido àquele serviço, praticou facto penalmente relevante, mais concretamente nos moldes qualificados na acusação.

É ainda de notar que a cópia em referência foi digitalizada e sequentemente remetida ao SIRA, o que constituiu circunstância adicional no sentido de aparentar ser fidedigna, contribuindo para que este serviço tivesse procedido à alteração do registo respeitante ao cão a que se tem feito alusão nos autos.

É de reter que a arguida actuou a título de dolo, pois que efectivamente quis utilizar o mencionado documento, pese embora conhecesse a sua natureza adulterada, com vontade de se produzir a alteração no registo atinente ao canídeo.

É ainda de considerar que a circunstância de a arguida se considerar como cuidadora do canídeo supramencionado não exclui a ilicitude e, por outro lado, a circunstância do registo em apreço ter sido revertido igualmente não interfere com a consumação do crime em apreço, pois que o benefício ilegítimo (e concomitante prejuízo para o assistente) foi obtido pela arguida no imediato momento em que procedeu (ou seja, utilizou) o documento a que se tem aludido na clínica veterinária.

Assim sendo, é de concluir pela procedência da acusação.
*
3.3. Escolha e medida concreta da pena
(…)

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.
*
II. Fundamentação

1. Questão a decidir
É pacífica a jurisprudência no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

No caso presente, há que decidir se ao agir como descrito no ponto 7) da factualidade provada, o arguido usou documento falso, nos termos do art. 256º nº1 al. e), por referência à al. a), do C. Penal, conforme decidido na sentença recorrida, ou se, como pretende a arguida, não se encontra preenchido o tipo legal de uso de documento falsificado ali previsto, porquanto resultou provado nos presentes autos que aquilo que teria sido entregue na clínica veterinária Optivet não havia sido uma declaração falsificada, mas uma fotocópia, que não pode integrar o conceito de documento para efeitos de direito penal, ou seja, idóneo a provar facto juridicamente relevante, nos termos do disposto no artigo 255.°, al. a), do CP.

2. Vejamos.
2.1. Como referido, o arguido vem condenado pela autoria de um crime de uso de documento previsto na al. e) do nº1 do art. 256º, o que nos remete para a noção de documento do artigo 255º a) do C. Penal, pois para que o crime se verifique é necessário que o agente use documento que tenha sido objeto de falsificação ou contrafação por alguma das formas previstas nas alíneas a) a d) do nº1 do artigo 256º do C. Penal.

Ora, no que aqui importa, o art. 255º al. a) do CP define documento para efeitos penais, como a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; (..)”

Diferentemente do que sucede no direito civil, em que o documento é o objeto no qual se incorpora uma declaração, no direito penal o documento é a própria declaração.

A noção de documento, tal como consta atualmente do art. 255º a) do C. Penal, permite, pois, reconhecer nela as três funções atualmente atribuídas ao documentos, pela doutrina e jurisprudência: (a) função de perpetuação, referida à manutenção da declaração de vontade num suporte capaz de fixá-la no tempo e de torná-la cognoscível para outras pessoas, distintas do emissor; (b) função probatória, que permite demonstrar processualmente a existência da declaração de vontade do seu emissor e (c) função de garantia, pela qual se garante a imputação do declarado ao autor da declaração – cf. Enrique Bacigalupo, Documentos Electrónicos y Delitos de Falsedad Docuemntal in Revista Electrónica de Ciência Penal e Criminologia, acessível em http://criminet.ugr.es/recpc e Helena Moniz, O crime de falsificação de documento. Da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento, 2ª Reimpressão, Coimbra Editora-2004, p.p. 170-1 e Comentário Conimbricense do Código Penal-Parte Especial. Tomo II, Coimbra Editora, p. 667.

2.2. No caso presente, somos confrontados com a existência de uma declaração de cedência de animal a favor da arguida, que se apresenta integrada por uma cópia da assinatura do assistente, BB, aposta no local destinado à assinatura do “detentor anterior”, através de montagem feita por desconhecidos, conforme se descreve no ponto 5 da factualidade provada e pode visualizar-se a fls 101 dos autos, que permite constatar que aquela “Declaração de Cedência” constitui formulário que foi preenchido manualmente em diversos campos, relativos à identificação do animal, do cedente e da nova detentora, a ora arguida. Assim, como se diz na sentença ora recorrida, “… mediante a cópia em referência unificou-se, por um lado, um formulário de declaração de cedência de um canídeo e, por outro, o extrato de um documento contendo a assinatura do assistente, produzindo-se, dessa forma, uma aparência de documento por via do qual BB cedia o mencionado animal à arguida”.

Desta montagem, originariamente feita por desconhecidos, foi extraída cópia que entrou na posse da arguida de forma não concretamente apurada, que aquela entregou no dia 19/05/2014 na Optivet - Serviços Médicos Veterinários, Lda, solicitando aí a alteração do registo do canídeo ao veterinário, e em consequência, desde essa data até 09/12/2014, o referido animal encontrou-se registado no SIRA em seu nome.”, conforme pode ler-se nos pontos 5, 6 e 7, da factualidade provada.

2.3. Ora, a declaração de cedência impressa e parcialmente manuscrita, em que foi montada cópia da assinatura do assistente, constitui documento elaborado por desconhecidos com abuso daquela assinatura, na medida em que nela se declara, embora falsamente, que o assistente cedia à arguida a detenção sobre o animal, mostrando-se, assim, idónea para provar um facto juridicamente relevante, ou seja, “um facto que, isolado ou conjuntamente com outros factos, origina o nascimento, manutenção, transformação ou extinção de um qualquer direito ou relação jurídica de natureza pública ou privada.” [1], in casu para provar juridicamente a cedência do animal a favor da arguida, nomeadamente junto da SIRA.

A referida utilização de cópia (fotocópia) da assinatura do assistente na elaboração da declaração de cedência falsa não põe em causa a sua qualificação como documento, nos termos do art. 255º al. a) do C.Penal, pois não estamos perante “falsificação de fotocópia”, que não poderia reputar-se falsificação de documento, visto que o documento para efeitos de direito penal é a declaração e não o objeto ou suporte material da declaração. Como pode ler-se no Ac STJ e Ac STJ de 20.12.2006, rel. Santos Cabral, “…é evidente que a falsificação de uma fotocópia não pode integrar um crime de falsificação pois que consubstancia uma declaração corporizada num suporte que não permite reconhecer o seu emitente, e em relação à qual fotocópia se encontram diluídos os interesses de credibilidade e segurança no tráfico jurídico. Situação distinta é aquela em que o próprio acto de produção da fotocópia é, também, instrumento de manipulação do original fotocopiado cujo conteúdo é alterado por essa forma.”

O que se verifica no caso presente é, pois, a elaboração de uma declaração de cedência de canídeo falsificada mediante utilização de fotocópia da assinatura de quem ali figurava como cedente que, através de montagem, passou a integrar o documento falsificado, o que constitui falsificação de documento punível nos termos do art. 256º nºs 1 a) e c), conjugado com o art. 255º a), ambos do C. Penal, mostrando-se frustradas, com a conduta aludida, as funções de perpetuação, de prova e de garantia, do documento, enquanto declaração.

Todavia, não se provou quem procedeu à falsificação do documento, conforme referido no ponto 5) da factualidade provada, e a arguida não vem condenada pela elaboração de documento falso, mas antes pelo uso desse mesmo documento, nos termos do art. 256º nº 1 al. e) do C.Penal.

2.4. Pretende a arguida, porém, como vimos, que a sua conduta não integra a prática de um crime de uso de documento falsificado, uma vez que aquilo que teria sido entregue na clínica veterinária Optivet não havia sido uma declaração falsificada, mas uma fotocópia, que não pode integrar o conceito de documento para efeitos de direito penal, ou seja, idóneo a provar facto juridicamente relevante, nos termos do disposto no artigo 255.°, al. a), do CP.

Não tem razão, porém, pois a entrega de fotocópia de documento que a arguida sabia ter sido falsificado, conforme descrito no ponto 7) da factualidade provada, constitui ainda modalidade do crime de utilização ou uso de documento falsificado previsto na al. e) do nº1 do art. 256º do C.Penal. Por um lado, porque o preceito incriminador não limita a punição do uso de documento falso a certas modalidades de ação, como sucederia se a lei penal exigisse a exibição ou entrega da própria declaração falsificada, antes se referindo, indistintamente, ao uso do documento. Por outro, porque ao fazer circular dolosamente no comércio jurídico fotocópia de documento falso que seja aceite em representação do original, são atingidas as funções de perpetuação, prova e garantia, do documento, enquanto declaração, que se pretendem salvaguardar através da punição do mero uso de documento falsificado por outrem.

Concluímos, pois, que sendo aceite fotocópia como prova da existência e conteúdo do original, a exibição ou entrega de fotocópia de documento que a arguida sabia ter sido falsificado, constitui uma das modalidades do crime de uso de documento falsificado previsto na al. e) do nº1 do art. 256º do C. Penal, pelo que o tribunal recorrido interpretou corretamente as disposições do art. 255º a) e 256º nº 1 e), ambos do C. Penal, ao julgar preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal incriminador de uso de documento falsificado nelas previsto e condenar a arguida nos termos em que o fez.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, AA, confirmando a sentença condenatória recorrida.

Custas pela arguida, fixando em 3 UC a taxa de justiça devida – cfr. art. 513º CPP e art. 8º nº5 e tabela anexa, do RCP.

Évora, 7 de maio de 2019

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas

Carlos Jorge Berguete

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[1] Ebermayer, citado por Helena Moniz, ob. cit. p. 167.