Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1346/18.7T8EVR-D.E1
Relator: JAIME PESTANA
Descritores: ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO DO ADMINISTRADOR
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As omissões do administrador da insolvência configuram uma violação culposa dos seus deveres de, com prontidão, diligenciar pela imediata apreensão de todos os bens e direitos da insolvente e, de seguida, promover a venda expedita de tais bens e direitos por valores próximos do seu real valor de mercado.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1346/18.7T8EVR-D.E1

Nos autos principais, foi proferida sentença em 24-08-2018 que declarou a insolvência de (…), tendo sido nomeado, após sorteio, o Dr. (…) como administrador da insolvência.
Com o seu requerimento de 29-08-2018, o Dr. (…) declarou aceitar aquela nomeação.
Em 04-10-2018, o administrador da insolvência apresentou o relatório previsto no artigo 155.º, n.ºs 1 a 3, do CIRE.

Os credores (…) e (…), Lda. requereram a destituição do administrador da insolvência face ao estado dos autos de liquidação, bem como ao ocorrido no incidente de exoneração do passivo restante.
Notificado para o efeito, o administrador da insolvência, com o seu requerimento de 16-03-2020, opôs-se à requerida destituição.

Foi determinada a destituição do Dr. (…) das suas funções de administrador da insolvência nos presentes autos, bem como das funções de fiduciário.

Inconformado recorreu o Administrador da Insolvência tendo concluído nos seguintes termos:
1ª - Não se verifica, no caso concreto, qualquer violação por parte do recorrente dos seus deveres como Administrador Judicial.

2ª - Não há justa causa para a sua destituição.

3ª - Na interpretação e aplicação que dele fez ao caso concreto, o Mmº Juiz recorrido violou o disposto no artigo 56º/1 do CIRE.

Deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência revogada a decisão recorrida e substituída por outra que mantenha em funções o senhor AI aqui recorrente, com todas as consequências legais.

Factualidade relevante para a apreciação do objecto do litígio:

Em 04-10-2018, o administrador da insolvência apresentou o relatório previsto no art. 155.º, n.ºs 1 a 3, do CIRE.
Em anexo ao referido relatório juntou o auto de apreensão do prédio urbano afeto a habitação, sito na Rua da (...), n.º 5, freguesia de Cabeção, concelho de Mora, distrito de Évora, inscrito na matriz sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mora com o n.º (...) da dita freguesia, com o valor patrimonial de € 11.352,46.
Daquele relatório consta ainda o seguinte:
- “A devedora exerce as funções inerentes à categoria profissional de “motorista” por conta da sociedade comercial que gira sob a firma “(...), Lda.”, auferindo a remuneração mensal no valor de € 580,00 (quinhentos e oitenta euros). Porém, neste momento, a devedora encontra-se de baixa médica, auferindo um subsídio de doença no valor diário de € 16,66.”
- “Da informação prestada pela devedora nos autos resulta que a devedora celebrou, em 03.06.1996, um contrato promessa de compra e venda, em que figura como promitente vendedora (juntamente com o seu ex-marido) de uma fração de um terreno reconhecida como lote pela Câmara Municipal do Seixal, cujo preço se encontra integralmente pago, mas cuja escritura ainda não se realizou. Em face do exposto, encontra-se em curso a pesquisa de elementos que permitam perceber qual o estado do negócio prometido, nomeadamente se já existe possibilidade de formalizar a escritura de compra e venda.”
- “Correm contra a devedora, os processos de execução infra identificados: Proc. n.º 5135/17.8T8LRS, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo de Execução de Loures - Juiz 1, em que é exequente Pastelaria (...), Unipessoal, Lda. - cuja apensação foi requerida por nele se encontrar penhorado o imóvel pertença da devedora;
Proc. n.º 3100/15.9T8LRS, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo de Execução de Loures - Juiz 3, em que é exequente (...) – cuja apensação foi requerida por nele se encontrarem penhorados bens (imóvel e móveis) pertença da devedora.”
No mencionado relatório, quanto à modalidade de venda do identificado imóvel, consta ainda o seguinte: “Considerando que sobre o imóvel apreendido e a liquidar existe uma hipoteca a favor do Banco (...), S.A., bem como o valor presumível de venda de tal imóvel e a possibilidade de aquele credor pretender ainda avaliar o bem em causa e pronunciar-se sobre o valor mínimo a fixar para a respetiva venda, é razoável considerar a forte probabilidade de ser esse mesmo credor a requerer a adjudicação desse bem. Neste quadro não se alcança nenhuma especial vantagem na opção de venda pela modalidade de leilão eletrónico, ao contrário do que ocorrerá na venda por propostas em carta fechada no âmbito da negociação particular (art. 811.º e segs. do CPC), a qual não se antecipa como mais dispendiosa e apresenta maior celeridade no tratamento do processo. Ante o supra exposto propõe-se que a liquidação do bem apreendido na modalidade de venda por negociação particular (art. 811.º e segs. do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho).”
No início da petição inicial onde requereu a declaração da sua insolvência, a ora insolvente informou o seguinte: “(...), divorciada, residente na R. (...), lote (...), Pinhal do (...), (...), Seixal, com o CC (...) e o nif (...), mas atualmente domiciliada na R. da (...), 5, Cabeção, Mora.”
Em 04-10-2018, o administrador da insolvência constituiu o respetivo apenso de apreensão de bens (Apenso A), juntando ao mesmo um auto de apreensão que menciona unicamente o identificado imóvel.
Em 15-10-2018 foi realizada a assembleia de credores onde se deliberou pela imediata liquidação dos bens da insolvente, tendo ainda sido proferidos os seguintes despachos:
- “Encarregar o Exmo Sr. Administrador de Insolvência, de no prazo de 30 (trinta) dias identificar aos autos os bens móveis, detidos em regime de compropriedade pela Insolvente e respectivo valor, transmitindo tal informação aos autos.”
- “Oficie aos processos identificados a fls. 150 verso, solicitando o envio de certidão de onde conste a identificação das partes, o estado dos autos, bem como, informação sobre os bens penhorados, respectivo valor e titularidade.”
Pelo despacho de 23-10-2018 foi liminarmente admitida a requerida concessão da exoneração do passivo restante, tendo ainda sido determinado “que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que a devedora venha a auferir - englobando todos os rendimentos que a mesma venha a auferir, com exclusão do montante equivalente a € 580,00 -, se considere cedido ao fiduciário, nomeando-se para o exercício de tal cargo o Exmo. Administrador de Insolvência.”
Nesta data foi ainda declarado encerrado o processo apenas para efeito do início do período da cessão de rendimentos.
Em 06-12-2018 foi proferido o seguinte despacho: “Notifique o Exmo. Sr. AI para: - prestar as informações em falta e - dar início ao apenso de apreensão de bens devidamente instruído.”
Com o seu requerimento de 28-11-2018, os credores (...) e (...), Lda. referiram a existência de bens móveis na atual morada da insolvente sita na Rua da (...), 5, Cabeção, Mora.
Com o seu requerimento de 29-12-2018 o administrador da insolvência informou o seguinte: “O AJ notificou a insolvente para obter informações mais detalhadas dos bens móveis a fim de proceder à sua apreensão. Sucede que até à data ainda não logrou obter qualquer resposta. Pelo que o AJ insistiu junto da insolvente. Assim não poderá o AJ por ora instruir o apenso de apreensão porquanto ainda não logrou apreender todos os bens. Termos em que, Requer a V. Exa que se digne a conceder o prazo de 20 (vinte) dias para concluir a apreensão.”
Em 07-01-2019, o administrador da insolvência juntou ao Apenso A um auto de apreensão de diversos bens móveis que correspondem aos bens móveis penhorados no mencionado Processo n.º 5135/17.8T8LRS.
Em 13-03-2019, o administrador da insolvência foi notificado do teor da certidão extraída do Processo n.º 5135/17.8T8LRS do Juízo de Execução de Loures, Juiz 1, onde consta a penhora, designadamente, de diversos bens móveis que constituem o recheio da habitação sita na Rua (...), lote (...), Pinhal do (...), Fernão Ferro, Seixal.
Em 04-06-2019 foi proferida no respetivo apenso sentença que verificou e graduou os créditos reclamados, da qual não foi interposto recurso.
No apenso de liquidação, os credores (...) e (...), Lda., com o seu requerimento de 03-04-2019, informaram, nomeadamente, que “Foi pela razão de não poder ser realizada, até agora a escritura definitiva do imóvel, que a credora (...), Lda. penhorou o direito sobre o contrato de promessa prometido, para que o credor fosse ressarcido, em 50% do valor do imóvel, ficando a substituir a insolvente, no lugar que ocupa no mesmo contrato de promessa de compra e venda.”
Pelo despacho de 04-11-2019, foi determinado o seguinte: II - Notifique o Administrador da Insolvência para, no prazo de 10 dias, sob pena de multa e eventual destituição: a) diligenciar pela alienação do imóvel já apreendido (descrito na Conservatória do Registo Predial de Mora sob o n.º ...), bem como dos bens móveis apreendidos para a insolvência; cabe ao administrador da insolvência o poder legal de decidir quanto à escolha da modalidade da alienação dos bens (artigo 164.º, n.º 1, do CIRE), incluindo a definição dos respetivos valores base [vide acórdão de 20-07-2017 do TRC, Proc. n.º 55/14.0TBMIR-F.C1]; assim, cabe ao Administrador da Insolvência decidir sobre o requerido pelos credores (...) e Pastelaria (...), Lda. (vide requerimento de 28-11-2018); b) averiguar se o lote de terreno identificado no ofício da Câmara de 23-10-2019 pertence à insolvente e, em caso afirmativo, diligenciar pela sua apreensão e subsequente registo; c) no prazo de 20 dias, deverá o Administrador da Insolvência prestar informação nestes autos sobre o estado da presente liquidação.”
Com o seu requerimento de 17-12-2019, a insolvente veio informar, designadamente, que “o lote designado (...) pelo loteador clandestino e designado (...) no alvará de licença de loteamento .../2013, é o edifício ali construído, sem licença de construção e sem licença de utilização, não é seu. Na verdade não é titular de qualquer direito real sobre aquele imóvel, seja em compropriedade ou seja em comunhão. No que a este imóvel respeita, a insolvente e o seu ex-marido, também credor, têm o direito decorrente da celebração do contrato promessa de compra e venda celebrado com os proprietários da parcela de terreno (lote clandestino ...) integrada no imóvel loteado e neste identificado como lote (...). Esse direito e apenas esse direito, do ativo patrimonial da insolvente, pode vir a ser objeto de liquidação, a menos que ocorra a celebração do prometido contrato de compra e venda que opere a mudança de titularidade do direito de propriedade sobre esse imóvel urbano ou seja, se possível, requerida a execução específica do contrato.”
Pelo despacho de 08-01-2020, foi determinado o seguinte: “Notifique o administrador da insolvência para, no prazo de 10 dias, sob pena de multa e eventual destituição, cumprir integralmente o determinado no despacho de 04-11-2019, designadamente, nas respetivas alíneas a) e b). Quanto ao mencionado lote de terreno, referido na indicada alínea b), deverá o administrador da insolvência averiguar junto da insolvente e dos promitentes vendedores qual o concreto direito da insolvente sobre o mesmo (vide ponto 1 do requerimento de 17-12-2019 e documentos juntos aos presentes autos a fls. 14 e seguintes) e agir em conformidade.”
Com o seu requerimento de 05-02-2020, o administrador da insolvência veio informar o seguinte: “O credor Banco (...), SA - credor hipotecário apresentou proposta de adjudicação para o imóvel (…) sito na Rua da (...), n.º 5, freguesia de Cabeção, concelho de Mora, (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Mora sob o n.º (...) da dita freguesia pelo valor de € 17.757,00, que foi aceite. Nesse sentido, e face à manifestação dos filhos dos insolventes para exercer o direito de remição, foi o S/ Ilustre Mandatário notificado dos termos e condições da venda para querendo exercer o aludido direito. Por requerimento datado de 24 de Janeiro de 2020 informaram os filhos da insolvente (...) e (...) apresentar requerimento para o exercício do direito de remição. Pelo que, o AJ procedeu à adjudicação do bem aos filhos, diligenciando pela marcação da escritura de compra e venda, a ocorrer no presente mês de acordo com a disponibilidade das partes.”
Tendo-se constatado que o administrador da insolvência não notificou os demais credores para se pronunciarem sobre a aludida proposta de aquisição pelo valor de € 17.757,00, pelo despacho de 10-03-2020 foi determinada a não realização daquela adjudicação.

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso (art.º 639.º, CPC).
Discute-se a verificação de justa causa legitimadora da destituição do Administrador de Insolvência.

Nos termos do no art. 56.º, n.º 1, do CIRE o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa.
O conceito de justa causa legitimadora da destituição do Administrador de Insolvência num processo de insolvência preenche-se e concretiza-se: i) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo; ii) ou com a conduta traduzida na “inobservância culposa” dos seus deveres, “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado” (art. 59.º, n.º 1, do CIRE); iii) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado” (acórdão de 03-11-2016 do TRG, proc. n.º 618/14.1T8VRL-F.G1), também citado na decisão recorrida.
Nos termos do art. 149.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social.
Nos termos do disposto no art. 158.º, n.º 1, do CIRE, transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa.
Tendo por assente a matéria de facto apurada e não impugnada, subscrevemos na íntegra as consequências jurídicas que daquela Factualidade foram retiradas em sede de apreciação de justa causa legitimadora da destituição do Administrador de Insolvência.

«Até à presente data, o administrador da insolvência nada decidiu quanto ao direito da insolvente emergente do contrato promessa de compra e venda respeitante ao lote de terreno e habitação nele construída sito na Rua (…), lote (…), Pinhal do (…), (…), Seixal, sendo certo que tal direito foi logo mencionado no apresentado relatório; não podendo proceder à apreensão daquele lote de terreno, deveria ter procedido à apreensão do direito da insolvente decorrente do referido contrato promessa, tanto que o preço prometido estará pago na sua maior parte ou mesmo na totalidade (vide documentos juntos aos autos onde os promitentes vendedores declaram o seu interesse em ver cumprido o contrato definitivo);
- até à presente data, o administrador da insolvência não procedeu à apreensão dos bens móveis existentes na atual residência da insolvente ou sequer justificou tal omissão de apreensão;
- quanto ao imóvel apreendido para a insolvência, no âmbito da venda por negociação particular e apenas em fevereiro último, adjudicou o mesmo pelo valor de € 17.757,00, valor seguramente abaixo do seu valor de mercado, tanto que o respetivo valor patrimonial é de € 11.352,46 que, como é bem sabido, apenas vale para efeitos fiscais e não reflete o valor de mercado do mesmo bem; por tal razão, esta adjudicação revela-se ilícita, acrescendo que os demais credores não foram sequer notificados da apresentada proposta de aquisição pela credora hipotecária, procedimento que se impunha face à concreta modalidade de venda adotada; aliás, o mencionado valor de € 17.757,00 corresponde ao montante do crédito garantido por hipoteca reclamado pela credora Banco [este crédito foi concedido em 2005 e a hipoteca garantia inicialmente o capital de € 38.500,00 e, com juros e despesas, garantia então o montante total de € 51.440,00, cfr. certidão do registo predial junta ao apenso A].
- quanto aos bens móveis já apreendidos para a insolvência, o administrador da insolvência não procedeu a qualquer concreta diligência visando a sua alienação, tendo-se limitado a juntar aos autos uma proposta de novembro de 2018 dos credores (…) e (…), Lda.. sobre a qual nunca tomou uma decisão de aceitação ou rejeição.
As apontadas omissões do administrador da insolvência configuram uma violação culposa dos seus deveres de, com prontidão, diligenciar pela imediata apreensão de todos os bens e direitos da insolvente e, de seguida, promover a venda expedita de tais bens e direitos por valores próximos do seu real valor de mercado, salvo circunstâncias excecionais que nestes autos não ocorreram».

Por todo o exposto acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente.
Évora, 14 de Julho de 2020
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral
Maria Rosa Barroso