Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
517/13.7TBMMN.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A cessão da posição contratual configura um negócio causal.
II - A cessão da posição contratual implica a existência de dois contratos: o contrato-base e o contrato-instrumento da cessão, que é o realizado para transmissão de uma das posições derivadas do contrato-base.
III - Não é suficiente para caracterizar a cessão da posição contratual a afirmação feita pela autora (promitente compradora), numa carta enviada à ré (promitente compradora), de que o contrato relativo ao imóvel prometido comprar e prometido vender seria formalizado, do lado da compradora, por outra sociedade.
IV - À cessão da posição contratual do promitente comprador aplicam-se as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB, S.A. instaurou a presente ação declarativa de condenação, então sob a forma de processo ordinário, contra CC, S.A., pedindo que seja proferida sentença que se substitua à declaração negocial da ré, declarando efetivada a compra pela autora de metade indivisa do prédio objeto do contrato de promessa identificado nos autos (prédio rústico com dois montes de habitação, sito na freguesia de …, concelho de Montemor-o-Novo), com transferência para a esfera patrimonial da autora do respetivo direito de propriedade sobre tal metade indivisa.
Subsidiariamente, pediu que se declare definitivamente incumprido, por parte da ré e por culpa exclusiva desta o contrato promessa que celebrou com a autora em 18.11.2002 e, em consequência, que se conde a ré a entregar à autora a quantia de € 287.800,00 a título de reembolso do sinal que lhe foi pago e indemnização pelo seu incumprimento, bem como a pagar-lhe a título de indemnização pelas benfeitorias introduzidas no prédio, a quantia de € 56.100,00.
Alegou em síntese, que em 18 de Novembro de 2002, celebrou com a ré um contrato, mediante o qual esta prometeu vender àquela, que prometeu comprar, metade indivisa do prédio rústico sito na freguesia de …, concelho de Montemor-o-Novo, pelo preço de € 143 900, o qual foi, então, integralmente pago à ré, acordando ainda que a autora passaria a usar essa metade, aí podendo implantar construções/benfeitorias, que seriam propriedade de quem as levasse a efeito e que iriam diligenciar junto das autoridades competentes com vista à divisão física da propriedade e que a escritura seria celebrada no prazo de seis meses, sucedendo que até ao momento tal escritura não foi feita, apesar das insistências da autora.
Mais alegou que em 23.04.2012, a ré informou a autora que o direito resultante do contrato promessa foi arrolado a favor da Massa Insolvente da DD, S.A., o que foi confirmado pela autora, tendo inclusive sido ordenada a respetiva venda judicial, continuando, porém, a autora a manter interesse na compra do imóvel, acrescendo que logo após a outorga do contrato promessa, com o conhecimento e consentimento da ré, a autora autorizou a sociedade DD, S.A., a usar e ocupar a parte do terreno objeto do contrato promessa, no qual aquela sociedade implantou diversas benfeitorias, no valor de € 56.100,00.
Contestou a ré, contrapondo que o direito a que a autora se arroga foi transmitido à sociedade DD, sem que a ré se tenha oposto a essa transmissão, sendo que após a celebração do contrato promessa a ré permitiu o uso da parte do terreno nele identificado, uso esse que foi feito pela dita sociedade, com o consentimento e anuência da ré, acreditando esta que estão já reunidas as condições para se realizar a divisão aludida no contrato promessa.
Mais alegou ter recebido uma comunicação do autor, datada de 19 de Março de 2004, em que lhe foi dito que o contrato relativo ao prédio dos autos, que cabia à autora, seria formalizado pela DD, S.A., ficando a ré a perceber, face a tal comunicação, que a compradora final seria aquela sociedade, tendo respondido à autora que nada tinha a opor, sucedendo que em 2006, a dita sociedade foi declarada insolvente, vindo a ré a ter conhecimento de que o direito objeto do contrato prometido estava arrolado na massa insolvente e que a sua venda tinha sido ordenada.
Alegou ainda que comunicou à administradora da Insolvência que nunca se opôs à cessão da posição contratual para a insolvente, tendo recebido daquela uma comunicação da qual resultou para si que o direito tinha sido arrolado no processo de insolvência e que existiam comprovativos idóneos da transmissão de tal direito da autora para a insolvente, sindicados pelo Tribunal, pelo que ficou a aguardar que o futuro adquirente do direito a notificasse para realizar o contrato prometido, sendo certo que a autora não adotou qualquer procedimentos adequado para fazer valer o direito de que se arroga, no processo de insolvência da DD, S.A., estando em condições de o fazer, atento o conhecimento que tinha da situação que envolvia a insolvente, através de membros de órgãos sociais e colaboradores em comum, a que acresce o facto de ter sido a sociedade insolvente que realizou benfeitorias no terreno e não a autora.
Respondeu a autora, pedindo que seja julgada improcedente “a exceção invocada pela ré” e concluindo como na petição inicial.
Foi deduzida oposição espontânea pela sociedade EE, S.A., pedindo que: i) seja declarado e reconhecido que o direito de promitente compradora da metade indivisa objeto do contrato promessa pertence à opoente; ii) autora e ré sejam condenadas a reconhecer esse direito; iii) autora e ré sejam condenadas a abster-se da prática de qualquer ato que limite, impeça ou perturbe o direito da opoente; iv) a ré seja condenada a outorgar na qualidade de vendedora a escritura de compra e venda relativa à metade indivisa do prédio supra identificado, no prazo de 30 dias a contar da prolação da sentença.[1]
Por impulso da autora, foi admitida a intervenção principal da empresa DD, S.A. (fls. 260).
Citada para o efeito, veio a mesma aderir aos articulados da ré, acrescentando não ter dúvidas que a posição de promitente compradora do prédio da ré não pertence à autora, que nunca esteve no terreno nem o pagou, tendo a autora aparecido na formalização do negócio, apenas por razões comerciais (testa de ferro).
Termina pedindo a absolvição da ré e a condenação da autora como litigante de má-fé.
Foi realizada audiência prévia, no decurso da qual a autora se opôs ao pedido de condenação como litigante de má-fé formulado pela chamada, tendo ainda sido solicitadas informações ao processo de insolvência, consideradas determinantes para a prolação do despacho saneador.
Recebidas tais informações, foi proferido despacho em 20.04.2017, a fls. 468 dos autos, determinando que as partes fossem ouvidas sobre a existência da eventual nulidade do erro no meio processual, em face do que dispõem os arts. 146º, nºs 1, 2 e 3 e 148º do CIRE, que preveem um meio processual próprio para reclamar da massa insolvente a restituição de bens apreendidos.
A ré pronunciou-se no sentido de o meio próprio e único de reação à apreensão efetiva de um bem/direito em processo de insolvência ser o previsto nos arts. 141º e seguintes do CIRE, defendendo a extinção da instância por inutilidade por inutilidade da lide;
Já a autora considerou que com a presente ação não pretende exercer o direito à restituição de bens que tenham sido apreendidos pela massa insolvente da DD, S.A., antes tem por objeto apurar a responsabilidade civil contratual por parte da ré, relativamente às obrigações por esta assumidas para com a autora no contrato promessa, pelo que a ação tem que prosseguir sob pena de violação da proibição do “non liquet”, tanto mais que o processo de insolvência aguarda pela decisão desta ação.
Foi então proferido saneador-sentença, no qual, a propósito da nulidade do erro no meio processual, se decidiu:
«(…), impõe-se confrontar os pedidos formulados pela autora com o fim a que, segundo a lei, o processo sumário a que alude o artº 144 e 146 do CIRE se destina e aferir se, de alguma forma, é esse processo sumário o apropriado para dirimir a pretensão da autora suscitada na presente acção.
A acção sumária supra referida que deve correr por apenso ao processo de insolvência (146, nº 3 do CIRE) tem precisamente como escopo retirar da massa insolvente um bem ou direito que, na perspectiva do requerente tenha sido incorrectamente incluído nessa massa.
Não tenho qualquer dúvida que é esse o meio mais adequado para fazer valer tal direito, tanto mais que, só nesse espaço os demais credores podem contestar a mesma. A procedência de tal pretensão neste processo, acarretaria a violação dos direitos dos credores da insolvente expressamente previstos no artº 146, nº 1 do CIRE.
Continuando o direito em questão apreendido nos autos de insolvência era nessa acção de execução universal que a questão deveria ser apreciada.
Não obstante, optou a autora por propor a presente acção, peticionando o reconhecimento à execução específica do contrato promessa.
Caso esta acção procedesse, a decisão em causa não poderia ser oponível aos credores da insolvência identificada nos autos, o que, por si só, leva a questionar, a utilidade desta acção.
Contudo, considerando que:
- Conforme veremos “infra”, a presente acção não poderá proceder;
- A liquidação do processo de insolvência está suspensa, aguardando o resultado deste processo;
- Os pedidos subsidiários deduzidos pela autora encontram-se fora do âmbito da acção a que aludem os artº 144 e 146 do CIRE;
Será ainda possível afirmar que a presente forma de processo, atendendo ao modo como a autora configura a acção, não enferma de erro que acarrete a nulidade processual que urja declarar e corrigir.
Assim sendo, prosseguirão os presentes autos os seus termos.»
Seguidamente o Mm.º Juiz conheceu do mérito da causa, tendo proferido decisão em cujo dispositivo consignou:
«Nestes termos e em função do exposto, o Tribunal decide:
1 - Declarar procedente a excepção de não cumprimento invocada pela ré CC e, em consequência, absolver a mesma, de todos os pedidos formulados pela autora BB, S.A. (artss 576, nº 3, 579 e 595, nº 1, alo b) do CPC).
2 - Absolver a autora do pedido de condenação como litigante de má fé, deduzido pela interveniente DD, S.A.;
Custas da acção pela autora.
Custas do pedido de condenação em litigância de má fé, pela interveniente DD, S.A. (sem prejuízo do benefício de apoio judiciário deduzido).»
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões:
«A) O ofício/carta, datado de 18.03.2004, ainda que dirigido pela A. à Ré, referindo que "conforme nossa conversa telefónica de hoje, venho confirmar que o contrato relativo ao prédio sito em …, que cabe à “BB” será formalizado, pelo lado do comprador, pela “DD, S.A.” não configura um contrato de cessão da posição contratual a terceiro (in casu, à DD, S.A) dos direitos decorrentes para a A. do contrato promessa de compra e venda que em 18.11.2002 celebrou com a Ré e que teve por objeto “metade indivisa do prédio rústico com dois montes de habitação, denominado "Palhota e anexos – um”, sito na freguesia de …, concelho de Montemor-o-Novo, com a área de vinte e cinco hectares, oito mil, setecentos e sessenta e seis centiares, composto por pinhal, montado de sobro, vinha, figueiras, olival, solo subjacente de cultura arvense, laranjeiras, horta, outras árvores de fruto, arrozal, eucaliptal, dependências agrícolas, a parte rústica inscrita na matriz sob parte do art° …º, da Secção “BB” e a urbana, que são os montes de habitação, inscrita sob os artºs …º e …º”. Na verdade,
• O contrato de cessão da posição contratual pressupõe um acordo de vontades, bilateral, sinalagmático, com reciprocidade de obrigações para as partes que nele intervêm (cfr. artº 424° do CC), in casu, entre a A., por um lado, enquanto cedente do direito em causa e, por outro lado, a DD, S.A, enquanto cessionária do mesmo, o que o sobredito ofício que foi dirigido à Ré CC, desde logo por se tratar de uma declaração unilateral, não substitui nem consubstancia.
• Tal “contrato de cessão da posição contratual”, consubstanciado no dito ofício datado de 19.03.2004 (como se defende na douta Sentença recorrida), por não se encontrar subscrito pelas partes que nele teriam de se obrigar (e que in casu seriam a A., como cedente e a DD como cessionária), como exige o nº 2, do artº 410º, ex vi do artº 424º ambos do CC, sempre teria de considerar-se nulo ou juridicamente inexistente.
• Ao considerar que aquele ofício/carta de 19.03.2004, dirigido à Ré, “consubstancia uma cessão da posição contratual nos moldes exigidos pelos arts. 424º e 425º do Código Civil”, a douta Sentença recorrida fez errada interpretação dos factos e errada interpretação e aplicação da lei, violando o disposto nos artºs 217º, nº 2, 219º (2ª parte), 220º, 410º, nº 2, 424° e 425°, todos do CC.
B) Para além disso, ainda que se entendesse que tal ofício faz presumir ou supor a existência de um contrato (informal) de cessão da posição contratual, versando o contrato a que se refere tal posição contratual um imóvel e exigindo a lei (n.º 2 do art. 410º do C.C.), sob pena de nulidade (artº 220° do CC), documento escrito assinado pelas partes que se vinculam como forma do contrato-promessa de compra e venda que tenha por objeto bens imóveis, como é o caso dos autos, a mesma exigência quanto à forma (documento escrito e assinado por quem se vincula) e consequência quanto à sua inobservância (nulidade) legalmente se impõe para o contrato de cessão da posição contratual decorrente dessa promessa (cfr. art° 425º do CC), exigência legal que também não se verifica no caso em apreço, pelo que sempre teria de ser declarado nulo, o que se requer.
Por outro lado e sem prescindir,
C) Para validamente celebrar contratos como o em apreço a A. não se vincula nem vinculava à data dos factos com apenas uma assinatura dos seus administradores, sendo necessária a assinatura conjunta de dois dos seus administradores, e dos autos também não se vê que tal tenha ocorrido com a pretensa “cessão da posição contratual”.
D) Resulta ainda dos autos que tal cessão da posição contratual efetivamente nunca existiu: a A. nega-o, a Ré refere desconhecer a sua existência, a própria DD S.A. não diz que ela existiu e também refere desconhecer a sua existência, o Mmo. Juiz daquele processo de insolvência da DD decidiu, no âmbito desse processo, que relativamente à alegada cessão da posição contratual por parte da A. à insolvente, que (...) “tal prova documental não foi localizada” (...), “não foi possível demonstrar neste processo que a insolvente detinha na sua esfera jurídica tal direito” (...) e a própria Exma. AI. desse processo admite nesses autos que a apreensão de tal verba se fez apenas porque tal direito estava lançado na contabilidade da insolvente.
E) Ao invés do defendido na douta Sentença recorrida, não resulta dos autos que em face daquela carta/ofício “qualquer pessoa na posição da CC” concluiria que a A. estava a querer ceder a sua posição no contrato-promessa que celebrou” porquanto, nos termos do art. 236º do CC a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante e que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida, e nos autos encontra-se documentalmente provado que depois de ter recebido o dito ofício/carta, a Ré (declaratário) enviou em 11.06.2008 à Exma. Administradora de Insolvência da DD, S.A ofício onde refere que (...) “existe um contrato promessa celebrado entre esta sociedade (leia-se Ré) e a firma BB, S.A.” (leia-se “A.”) e que (...) “nunca fomos notificados nem conhecemos nenhum documento relativo à efetivação da cessão da posição contratual, a qual, para todos os efeitos, não existe para esta sociedade. Donde, atenta a realidade conhecida, apenas poderemos realizar a venda a que se reporta tal contrato-promessa à dita “BB, S.A.”, não o podendo fazer a qualquer outro terceiro que venha a apresentar proposta quanto a esse direito na insolvência. Isto só não será assim se nos habilitar com título suficiente e idóneo, comprovativo da dita cessão da posição contratual” (...), donde se conclui que para a Ré aquela carta/ofício não consubstanciou qualquer cedência ou mera proposta de cedência a terceiro (in casu à DD, S.A.) da posição contratual da A. decorrente do dito contrato-promessa de compra e venda, a qual para si inexistia.
• Seja com vista a apurar o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário possa deduzir daquele comportamento do declarante, seja com vista a determinar se tal declaratário conhece - e neste caso apurar qual seja - a vontade real do declarante, torna-se necessário apurar o concreto circunstancialismo em que tal declaração ocorreu, qual o seu contexto, quais os concretos comportamentos que em consequência de tal declaração o declarante e o declaratário adotaram, etc.
• Ao que acresce que nos negócios formais, como é o caso dos autos, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (cfr. art° 238º do CC).
• E assim se procedendo, inequívoca é a conclusão que, ao invés do interpretado pelo Mmo. Juiz a quo no douto despacho aqui recorrido, o declaratário real (a aqui Ré) daquela comunicação alegadamente da A não a interpretou como configurando qualquer cedência a terceiro da posição contratual da A decorrente daquele contrato-promessa, a qual para si, Ré, inexistia e continuava a inexistir, tal como o seu comportamento posterior ao recebimento de tal comunicação o demonstra e, por outro lado, tratando-se in casu de um negócio formal, a interpretação do dito ofício que é efetuada na douta Sentença recorrida não encontra no texto do respetivo documento aquele mínimo de correspondência que o artº 238° do CC exige.
• Assim, entende a A. que a este propósito na sentença recorrida é efetuada errada apreciação dos factos e errada interpretação e aplicação dos artºs 236º e 238º do CC.
F) Mesmo com a factualidade considerada assente de 1 a 26 do douto despacho Saneador/Sentença ora recorrido (cujo julgamento a A. também não se conforma), entende a A. que tal factualidade não conduz à solução de Direito que foi encontrada pelo Mmo Juiz a quo mas sim à procedência do pedido principal que a A. formula nos autos. Na verdade,
• Considerando-se assente que em 18.11.2002 a A. e Ré celebraram um contrato escrito nos termos do qual esta prometeu vender àquela o imóvel que nele melhor se identifica, pelo preço aí referido e já integralmente pago, cuja escritura definitiva de compra e venda teria lugar no prazo de 6 meses a contar daquela data, no qual também se declara transferir de imediato para a A., como efetivamente se transferiu, a posse do terreno aí prometido vender-lhe e que não obstante as sucessivas insistências da A. junto da Ré para que fosse formalizado o contrato prometido, até ao presente tal não ocorreu, mantendo a A. interesse na compra desse imóvel e aceitando a Ré nada ter a opor a tal pedido principal da A. (veja-se factos assentes com os n.ºs 1, 2, 3, 4, 7 e 10), tem a A. o direito a exigir da Ré o cumprimento das obrigações que perante si esta assumiu na dita promessa, nomeadamente tem o direito a que seja proferida Sentença que substituindo-se à declaração negocial da Ré, declare efetivada a compra pela A. da metade indivisa do prédio que é objeto de tal contrato promessa, nos termos do disposto no art. 830º, n.º 1, do CC.
• E a tal não obsta a “exceção” ora invocada pela Ré para não outorgar tal contrato prometido, no sentido de que é obstáculo à formalização desse contrato o facto de ter sido arrolada no processo de insolvência da DD, S.A a posição decorrente para a A. do dito contrato promessa porquanto o que nesses autos de insolvência foi arrolado é uma mera posição contratual e não qualquer direito real incompatível com a outorga do contrato prometido entre A. e Ré, que legalmente a impeça, não configurando, pois, exceção juridicamente relevante que obste ao cumprimento da obrigação que assumiu para com a A. e que, como tal, importe a sua absolvição nos autos.
• Assim não tendo decidido e julgando procedente tal “exceção” invocada pela Ré e atribuindo-lhe a virtualidade de fazer extinguir aquela obrigação que esta assumiu para com a A., a douta Sentença recorrida fez errada aplicação aos factos do artº 576º do CPC, violando o disposto nos arts. 406º, nº 1, 762º, nº 1 e 830º n.º 1, estes do CC, devendo, pois, ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido principal formulado nos autos pela A
Sem prescindir, relativamente ao julgamento da matéria de facto:
G) Entende a recorrente que os pontos 5, 6, 17 e 20 dos factos considerados assentes na douta Sentença recorrida foram incorretamente julgados porquanto, ao invés do aí defendido, da prova documental e da posição das partes nos respetivos articulados, resulta que:
1) A data de “23.04.2012” referida nesse ponto 5) é a data da carta que a A. enviou à Ré, notificando-a para que procedesse à marcação da escritura de compra e venda relativamente ao prédio aqui em apreço e não a da ocorrência do facto aí vertido, entendendo a A. tratar-se de simples lapso de escrita porquanto aí terá pretendido dizer-se (...) “por carta datada de 7 de maio de 2012 a ré informou a autora que o direito resultante do contrato promessa foi arrolado a favor da Massa Insolvente da DD, S.A.” (...) e não (...) “em 23.04.2012” ( ... );
2) Relativamente ao facto n.º 6, o que sobre tal matéria confessou a A. é o que consta do nº 16 da sua p.i., sendo que a expressão aí empregue “apurou então a A.” refere-se a momento temporal próprio (isto é depois da data de 22.03.2013 a que alude em 15 da sua p.i.) e ainda assim afirmando de 19 a 24 da mesma p.i. desconhecer qual seja o direito resultante de contrato-promessa que foi arrolado, bem como desconhecer se para além daquele contrato-promessa que celebrou com a A., a Ré tenha celebrado com a referida DD, S.A, outra promessa de venda com o mesmo objeto daquela que celebrou com a A, afirmando ainda desconhecer a causa ou razão de ser do teor daquele edital, de modo que o facto considerado assente no nº 6 da douta Sentença recorrida não traduz factualidade confessada pela A, pelo que deve ser eliminado dos factos assentes;
3) Relativamente ao facto assente com o n.º 17, entende a A. que referindo-se ele a um facto que é imputado à Ré, ele nunca poderia ser “confessado” pela A. e caso se entenda existir aí lapso de escrita, por forma a que onde aí se lê “ré” deva ler-se “autora”, sempre se dirá que tal factualidade também não foi por esta admitida ou confessada, pelo que, em qualquer caso, tal matéria também deverá ser eliminada dos factos assentes;
4) Relativamente ao facto n.º 20, não se vê onde tenha a A. admitido não ter adotado os “procedimentos adequados” para fazer valer o direito que aqui se arroga no processo de insolvência da DD, S.A. Para além disso entende a A. que o vertido naquele nº 20 é conclusivo, pelo que também por esta razão sempre teria de ser eliminado dos factos assentes.
H) Acresce que para além daqueles factos que o Mmo. Juiz a quo considerou assentes na douta Sentença recorrida, outros há que não levou em conta e que são relevantes para a solução de Direito dos presentes autos e que resultam provados quer por terem sido admitidos pelas partes nos respetivos articulados, quer por constarem dos documentos juntos aos autos e cuja autenticidade e veracidade não foi colocada em causa, a saber:
1) A A. tem sucessivamente insistido junto da Ré no sentido de ser formalizada a prometida venda à A., o que mais recentemente fez através da carta que sob registo dos CTT e com aviso de receção a A. enviou à Ré em 23 de abril de 2012;
2) Por carta que o seu mandatário enviou à Ré em 22.03.2013, sob registo dos CTT e com aviso de receção, a A. notificou a Ré para no dia 03.04.2013, às 18h00, comparecer ou fazer-se representar por outrem com poderes para o ato, no escritório da Ex.ma Srª Drª …, sito na Rua …, em Santa Maria da Feira, a fim de ser outorgado e assinado o documento definitivo de venda à aqui A. da metade indivisa do imóvel a que alude o contrato-promessa que subscreveram em 18.11.2002;
3) Naquele dia, hora e local a Ré não compareceu nem se fez representar;
4) Em cumprimento do referido contrato-promessa que celebraram em 18.11.2002, entregou a A. à Ré a quantia de € 143.900,00 em pagamento do respetivo preço;
5) A Ré, por ofício datado de 11.06.2008 que enviou à Exma. AI. da DD, S.A, refere que ( ... ) “nunca fomos notificados nem conhecemos nenhum documento relativo à efetivação da cessão da posição contratual, a qual, para todos os efeitos, não existe para esta sociedade. Donde, atenta a realidade conhecida, apenas poderemos realizar a venda a que se reporta tal contrato-promessa à dita “BB, S.A”, não o podendo fazer a qualquer outro terceiro que venha a apresentar proposta quanto a esse direito na insolvência. Isto só não será assim se nos habilitar com título suficiente e idóneo, comprovativo da dita cessão da posição contratual” (...);
6) A fls. 2639 dos autos de insolvência da DD, S.A. foi em 06.10.2015 proferido douto Despacho, transitado em julgado, nos termos do qual se decidiu que (...) “a “EE, S.A.” veio requerer a anulação parcial da venda dos bens da insolvente, designadamente no que à verba n.º 34 respeita, alegando que tendo adquirido a totalidade dos bens apreendidos nestes autos veio a ser confrontada com ação que correu termos no 1º Juízo Cível do Tribunal de Montemor-o-Novo sob o n.º 517/13.7TBMMN, na qual a DD S.A. se arrogava ser a promitente compradora do direito apreendido na verba n.º 34, não tendo sido exibido à requerente o documento que pudesse titular a cessão da posição contratual da A. daqueles autos à insolvente o que tem por consequência a impossibilidade de ser transmitido à requerente, pela insolvente (ou MI) do referido direito” ( ... ),
7) Acrescentando-se naquele mesmo despacho que (...) “procedeu-se a inúmeras diligências de recolha de elementos que nos habilitassem a decidir tal questão, tendo a Exma. AI. procurado recolher documentação que demonstrasse que o direito apreendido sob a verba 34 existia na esfera jurídica da devedora pelo que poderia ter sido transmitido/adjudicado ao ora requerente. Porém tal prova documental não foi localizada, tendo a Exma. AI admitido que a apreensão de tal verba se fez porque estava tal direito lançado na contabilidade e a devedora usava efetivamente o prédio que alegadamente havia prometido comprar como estaleiro” ( ... ),
8) E ainda aí se decidindo que (...) “não tendo sido possível demonstrar-se neste processo que a insolvente detinha na sua esfera jurídica o direito que foi transmitido à requerente, é forçoso concluir-se que a venda efetivada à requerente, no que à verba n.º 34 respeita, é nula por ter recaído sobre bens de terceiros” (...). “'Atendendo a que se trata de um direito que a requerente não pretende diligenciar no sentido de efetivamente ser colocada na titularidade do mesmo e que a tal não se opôs nem a Exma. AI nem a comissão de credores, não vemos impedimento à apreciação e decisão da questão. Pelo que se declara a anulação parcial da venda que dos bens da devedora foi feita à requerente no que à supra citada e melhor identificada verba n.º 34 respeita e, em consequência, eliminando-se tal verba dos bens apreendidos nestes autos, determina-se que seja devolvido à requerente o preço pago por tal verba, a saber, a quantia de 200.000,00 €” (...).
9) Em tal processo de insolvência a A. BB, S.A, por dele não ser parte, não foi notificada da inclusão do direito em causa no rol de bens da insolvente e também nunca contestou tal inclusão.
• Trata-se, no entender da ora recorrente, de factualidade aceite pelos intervenientes processuais e/ou documentalmente provada, de relevo para a decisão de Direito da presente ação, atentas as várias soluções possíveis, de forma que deverá ser incluída nos factos considerados assentes, o que a este Venerando Tribunal da Relação é permitido efetuar, atento o disposto no art° 662° do CPC, o que respeitosamente se requer.
I) Também de acordo com tal factualidade inequívoco é concluir pela inexistência de qualquer (pelo menos juridicamente válida) cessão da posição contratual por parte da A. à DD, S.A, dos direitos para si decorrentes do contrato-promessa que celebrou com a Ré, o que é, aliás, do conhecimento da Ré e da Interveniente, que expressamente o admitem nos autos, bem como do referido processo de insolvência da DD e do respetivo A.I., inexistindo qualquer causa que juridicamente obste a que a Ré cumpra com as obrigações que assumiu para com a A. no dito contrato-promessa que com esta celebrou em 18.11.2002 e que nos presentes autos reafirma querer cumprir.
• Com tal factualidade, entende a A. que deveria o Mmo. Juiz a quo declarar procedente o pedido principal que a A. formula nos autos, atento o disposto nos artºs 406º, nº 1, 762º, nº 1 e 830º, nº 1, todos do CC. Ao não ter assim decidido a douta Sentença recorrida violou o disposto nas citadas disposições legais, devendo pois ser revogada e substituída por outra que, alterando a matéria de facto considerada provada na douta Sentença recorrida nos termos expostos supra e aditando aos factos assentes aquela matéria também supra elencada pela aqui recorrente, julgue improcedente a exceção invocada pela Ré e, consequentemente a condene no pedido principal que contra si é formulado pela A.
J) E mesmo que se considerasse, como a nosso ver erradamente o faz a douta Sentença recorrida, ser procedente a dita “exceção” de não cumprimento, sempre deveriam os autos prosseguir com vista a aquilatar da eventual aplicação ao caso em apreço das regras constantes dos artºs 790º e ss. do CC. Assim não tendo decidido, a douta Sentença recorrida fez errada aplicação do disposto no art. 595° do CPC, violando tais disposições legais.
K) A concluir-se que a matéria de facto apurada nos autos não permite (ainda) uma decisão de sobre o litígio, sempre teriam os autos de prosseguir com tal objetivo. Assim não tendo decidido a douta Sentença recorrida fez errada aplicação do disposto no artº 595º do CPC.
QUANTO AO PEDIDO SUBSIDIÁRIO QUE É FORMULADO NOS AUTOS PELA A:
L) Prevenindo a hipótese de a solução de Direito a encontrar não ser aquela que a título principal reclama, deduziu a A. pedido subsidiário contra a Ré, pedindo que se declare definitivamente incumprido, por parte da Ré e por culpa exclusiva desta, aquele contrato-promessa que celebrou com a A. em 18.11.2002 e, em consequência, condenar-se a Ré a entregar à A. determinada quantia em dinheiro a título de reembolso do sinal/preço que lhe foi pago em cumprimento de tal contrato-promessa e indemnização pelo seu incumprimento contratual, bem como a pagar-lhe quantia adicional a título de indemnização pelas benfeitorias introduzidas naquele mesmo prédio que é objeto do dito contrato-promessa. Porém,
• Porque tal matéria, maxime no que concerne à extensão, quantificação e valor dessas benfeitorias, foi objeto de impugnação por parte da Ré, sempre deveriam, os autos prosseguir com vista ao seu apuramento.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vªs Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores, sabiamente suprirão, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o douto Despacho Saneador/Sentença que foi proferido nos autos, substituindo-se o mesmo por outro que julgue improcedente a exceção invocada pela Ré e procedente, por provado, o pedido principal formulado pela A.
Subsidiariamente, deve alterar-se o julgamento que no mesmo despacho recorrido foi efetuado sobre a matéria de facto, em conformidade com o exposto supra, concluindo-se como se pede a título principal.
Prevenindo-se a hipótese de tal não ser o douto entendimento de Vªs Exªs e entendendo-se que os autos ainda não permitem uma decisão sobre o mérito da pretensão, deve ordenar-se o seu prosseguimento, até final,
Assim se fazendo, como se espera e é apanágio de Vªas Exªs, JUSTIÇA.»

Contra-alegaram a ré e a interveniente, defendendo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões[2]:
- pressupostos da cessão da posição contratual;
- nulidade/validade da alegada cessão da posição contratual;
- forma de obrigar a autora;
- alteração da matéria de facto;
- pedido subsidiário e indemnização por benfeitorias realizadas na coisa.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1) Em 18 de Novembro de 2002, a autora celebrou com a ré um contrato, mediante o qual esta prometeu vender àquela, que prometeu comprar, metade indivisa do prédio rústico sito na freguesia de …, concelho de MMN, com a área de 25 8766 ha, inscrito nas matrizes respetivas, a parte rústica sob parte do artigo …, da secção BB e as urbanas, sob os artigos … e …, pelo preço de € 143.900,00 o qual foi, então, integralmente pago à ré.
2) Mais acordaram, que a autora passaria a usar essa metade, aí podendo implantar construções/benfeitorias, que seriam propriedade de quem as levasse a efeito.
3) E que iriam diligenciar junto das autoridades competentes com vista à divisão física da propriedade e que a escritura seria celebrada no prazo de seis meses.
4) Até ao momento tal escritura não foi feita.
5) Em 23.04.2012, a ré informou a autora que o direito resultante do contrato promessa foi arrolado a favor da Massa Insolvente da DD, S.A., o que, na sua perspetiva, obstaculizava a celebração da escritura.
6) A autora apurou que o direito em questão foi efetivamente apreendido como massa insolvente no âmbito do Processo nº 6254/06.1TBVFR.
7) A autora mantém interesse na compra do imóvel.
8) A autora autorizou que a firma DD S.A., logo após a outorga do contrato promessa, com o conhecimento e consentimento da ré, usasse e ocupasse a parte do terreno objeto do contrato promessa.
9) Tendo a DD implantado diversas benfeitorias.
10) A ré CC, afirmou nada ter a opor ao primeiro pedido da autora, na medida em que tem todo o interesse em transmitir a propriedade desse direito a favor de quem for o seu legítimo titular.
11) O uso do terreno objeto do contrato promessa foi feito pela DD SA, com o conhecimento e anuência da ré.
12) Em 19 de Março de 2004, foi dirigida missiva à ré, com o seguinte teor: «Conforme nossa conversa telefónica, de hoje, venho confirmar que o contrato relativo ao prédio sito em …, que cabe à “BB”, será formalizado, pelo lado do comprador pela DD S.A.».
13) Da carta supra referida consta uma assinatura, por baixo de “BB, S.A. - A Administração”.
14) Em resposta, a ré referiu que: «confirmamos que nada há a opor no que diz respeito à formalização do contrato, pelo lado do comprador, que será assim, a DD».
15) Em 21.08.2006, foi proferida sentença no âmbito do Processo 6254/06.1TBVFR que declarou DD SA insolvente. A sentença em causa transitou em julgado em 28.09.2006.
16) Encontra-se apreendido como parte integrante da massa insolvente do processo supra referido, sob a verba nº 35, o direito identificado em 1).
17) A ré teve conhecimento de que o direito objeto do contrato prometido estava arrolado na massa insolvente e a sua venda foi ordenada.
18) Em 11.06.2008, a ré comunicou à Administradora da Insolvência que nunca se opôs à cessão da posição contratual para a insolvente;
19) Recebeu daquela comunicação datada de 13.06.2008, constante do documento de fls. 94, cujo teor dá como integralmente reproduzido, salientando-se, o seguinte:
«Em Agosto de 2006, foi arrolado a favor da massa insolvente da DD, o direito proveniente do contrato promessa que V. Exªs. juntaram à vossa comunicação acima referida.
Junto com a cópia do referido contrato promessa foram entregues todos os documentos contabilísticos da transação entre a DD e a EE, bem como a vossa autorização para a cedência da posição contratual.
Todos esses documentos estão nos autos de insolvência e comprovam a transação em causa, tendo já sido objeto de análise quer pelos Srs. Credores, quer pelos (à data) legais representantes da insolvente, quer pelo próprio Tribunal.
A venda que está em curso, não é da minha iniciativa, inserindo-se num processo com regras próprias e sujeito à fiscalização judicial pelo que, me incomoda que V. Exªs ponham em causa, já não digo a minha competência (que certamente é inexistente), mas a de todos os outros órgãos incluindo o Tribunal».
20) A autora não adotou os procedimentos adequados para fazer valer o direito de que se arroga, no processo de insolvência da DD S.A.
21) A autora admite que a assinatura única do documento de fls. 91 junto pelo ré, seja de um dos seus administradores, à data (19.03.2004).
22) O contrato promessa está assinado por dois administradores da autora.
23) Consta da Certidão de registo da matrícula da autora que esta se obriga com a intervenção de dois administradores ou um só administrador a quem o conselho de administração tenha conferido matérias devidamente especificadas.
24) Por despacho proferido em 06.10.2015, foi determinada a anulação da venda do direito identificado em 1), tendo sido determinada a restituição da quantia de duzentos mil euros ao comprador do direito.
25) Não obstante, o direito em questão, mantem-se apreendido nesses autos como parte da massa insolvente, encontrando-se o Processo 6254/06.1TBVFR a aguardar o desfecho desta ação, no que respeita à liquidação.
26) Em sede de audiência prévia, autora, ré e interveniente referiram que mantém interesse no cumprimento do contrato de promessa que fundamenta a presente ação, apurado que esteja, quem deve vigorar como comprador.

O DIREITO
Pressupostos da cessão da posição contratual
Nos termos do artigo 412º, nº 1, do Código Civil [CC], os direitos e obrigações resultantes do contrato-promessa que não sejam exclusivamente pessoais transmitem-se aos sucessores das partes, acrescentando o nº 2 que a transmissão por atos entre vivos está sujeita às regras gerais, ou seja, às regras dos artigos 424º e seguintes do CC.
O instituto da cessão da posição contratual encontra-se definido no artigo 424º do CC, cujo nº 1 dispõe que, no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão.
Podemos dizer que «a cessão da posição contratual consiste no negócio pelo qual um dos outorgantes em qualquer contrato bilateral ou sinalagmático transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato»[3].
Pires de Lima e Antunes Varela[4] analisam assim a estrutura deste instituto:
«A cessão da posição contratual implica a existência de dois contratos: o contrato-base e o contrato-instrumento da cessão, que é o realizado para transmissão de uma das posições derivadas do contrato-base. E envolve três sujeitos: o contraente que transmite a sua posição (cedente); o terceiro que adquire a posição transmitida (cessionário); e a contraparte do cedente no contrato originário, que passa a ser contraparte do cessionário (contraente cedido ou, simplesmente, o cedido). A relação contratual que tinha como um dos titulares o cedente é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário».
Por seu turno, escreve Mota Pinto[5] que «[o] efeito típico principal da cessão de contrato, caracterizador da sua função económico-social, é a transferência da posição contratual, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava no momento da eficácia do negócio, de uma das partes do contrato para outra. Verifica-se a extinção subjectiva da relação contratual, quanto ao cedente, sendo a mesma relação adquirida pelo cessionário e permanecendo idêntica, apesar desta modificação de sujeitos. O cedente perde os créditos em relação ao cedido, fica liberado das suas obrigações em face dele, igualmente se passando as coisas quanto aos demais vínculos inseridos na relação contratual. Todas essas situações subjectivas, activas e passivas, cujo complexo unitário, dinâmico e funcional, constitui a chamada relação contratual, passam a figurar na titularidade do cessionário.»
A doutrina sublinha ainda que a cessão da posição contratual é um negócio pluricausal, não um negócio abstrato, pois «traduzindo-se numa alienação, pode revestir tantas modalidades causais quantas as modalidades alienatórias existentes: compra e venda, doação, dação em cumprimento, entrada de bens em espécie na constituição ou aumento de capital de uma sociedade (apport en nature), etc.»[6]
Importa, pois, determinar se estão provados factos necessários à caracterização da cessão da posição contratual que a sentença recorrida entende ter-se verificado, contrariamente ao que defende a recorrente.
Relembre-se que em causa está um contrato-promessa de compra e venda da metade indivisa de um prédio rústico celebrado entre a autora e a ré (contrato-base), cujo alegado incumprimento está na origem da ação que a recorrente instaurou contra a ré, pedindo que seja proferida decisão que se substitua à declaração negocial da ré, declarando efetivada a compra pela autora daquela metade indivisa, com transferência para a esfera patrimonial da autora do respetivo direito de propriedade.
Escreveu-se no saneador-sentença recorrido:
«Alega a ré CC que, não cumpriu o contrato promessa que celebrou com a autora porque não sabia quem, era a titular dos direitos conferidos à promitente compradora por força do mencionado contrato.
Na minha perspectiva, resulta da interpretação da factualidade assente, que tais dúvidas são fundadas e foi o comportamento da autora que deu azo às mesmas.
Efectivamente, a ré CC foi informada por parte da Administração da autora que o “contrato relativo ao prédio sito em …, que cabe à “CC”, será formalizado, pelo lado do comprador pela DD S.A.”.
Tal declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (artº 236, nº 1 do Código Civil).
Qualquer pessoa na posição da ré CC, concluiria que a autora estava a querer ceder a sua posição no contrato promessa que celebrou.
A isto acresce que a A. autorizou que a firma DD S.A., logo após a outorga do contrato promessa, com o conhecimento e consentimento da ré, usasse e ocupasse a parte do terreno objecto do contrato promessa, tendo a DD implantado diversas benfeitorias.
Mais, sabendo a autora que tal direito foi apreendido a favor da massa insolvente da DD S.A., não adoptou os procedimentos adequados para fazer valer o direito de que se arroga, no processo de insolvência respectivo.
Ou seja, a autora agiu sempre de forma compatível com cedência da sua posição contratual à DD, SA.
Tudo junto, não há qualquer dúvida que a declaração da administração da autora dirigida a ré, consubstancia uma cessão da posição contratual, devidamente autorizada pela ré, nos moldes exigidos pelos artsº 424 e 425 do Código Civil.»
Salvo o devido respeito, afigura-se que não se pode extrair a existência de um contrato de cessão da posição contratual da matéria de facto provada, que corrobore a tese de que o contrato-promessa deixou de produzir quaisquer efeitos entre autora e ré.
O Mm.º Juiz invocou o disposto no artigo 236º, nº 1, do CC, segundo o qual “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
O sentido atendível para um declaratário normal, à luz da teoria da impressão do destinatário consagrada neste normativo, significa que a declaração negocial vale com o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo que podia conhecer[7].
No domínio da interpretação dos negócios formais estabelece a regra especial contida no artigo 238º, nº 1, do CC que “a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”.
Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (nº 2 do citado artigo 238º).
Admite-se, assim, que um sentido não traduzido, rudimentarmente sequer, no respetivo documento, possa valer, desde que corresponda à vontade real e concordante das partes, mesmo no caso de real impropriedade das expressões utilizadas, traduzida na máxima falsa demonstratio non nocet, se não existir oposição das razões determinantes da forma do negócio a essa validade da declaração[8].
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos[9], «sempre que a solenidade da forma se não funde em exigência de publicidade, ou seja, em todos os casos em que não seja posto em causa o conhecimento ou cognoscibilidade por terceiros do negócio ou da concreta estipulação de cuja interpretação se trate - situação em que a protecção de terceiros impõe a tutela da aparência e da confiança -, já não haverá fundamento para a objectivação consagrada no nº 1 do artigo 238º do Código Civil», tendo aplicação o critério interpretativo estabelecido no nº 2 deste preceito, que visa a determinação do sentido subjetivo da declaração.
Sucede, porém, que em data posterior à missiva que lhe foi enviada pela autora em 19 de Março de 2004, informando que o «contrato relativo ao prédio sito em …, que cabe à “BB”, será formalizado, pelo lado do comprador pela DD, S.A.», a ré enviou à Administradora da Insolvência da DD, S.A. uma carta datada de 11.06.2008, a que se alude no ponto 18 dos factos provados, na qual, além do mais, escreveu:
«Tomámos conhecimento do Edital de Venda de Bens da Insolvente.
Pela presente cumpre-nos informar que no tocante à verba n.º 4, existe um contrato promessa celebrado entre esta sociedade e a firma “, nos termos da cópia aqui junta.
Não nos opusemos à intenção de “BB, S.A.” em ceder a posição nesse contrato promessa à insolvente.
Todavia, nunca fomos notificados, nem conhecemos qualquer documento relativo à efectivação da cessão da posição contratual, a qual, para todos os efeitos, não existe para esta sociedade. Donde, atenta a realidade conhecida, apenas poderemos realizar a venda a que se reporta tal contrato-promessa à dita “BB, S.A.”, não o podendo fazer a qualquer outro terceiro que venha a apresentar proposta quanto a esse direito, na insolvência. Isto só não será assim se nos habilitar com título suficiente e idóneo, comprovativo da dita cessão da posição contratual (…)».
Ou seja, ainda que se pudesse considerar, à luz da teoria da impressão do destinatário consagrada no art. 236º, nº 1, do CC, que a declaração constante da carta da autora de 19.03.2004, pudesse valer, em abstrato, com o sentido que lhe foi atribuído na decisão recorrida, o certo é que assim não foi para a ré, como esta expressamente refere na missiva acima transcrita.
Ademais, uma coisa é a intenção de ceder a posição contratual e outra diferente concretizar tal cessão, sendo certo que a ré só poderia ter assumido a posição contratual da autora (promitente-comprador) através de um contrato (o contrato-instrumento de que fala a doutrina).
Ora, tal contrato não se mostra minimamente identificado: quando foi celebrado, qual o seu teor. Recorde-se que a cessão da posição contratual é causal.
Em suma, não se encontrando minimamente caracterizado o contrato instrumento da alegada cessão, não se pode dizer que tenha havido cessão da posição contratual, nem, consequentemente, que tenha havido comunicação e aceitação.
Ainda que assim não se entendesse, o que não se concede, haveria que enfrentar a problemática da nulidade da cessão por falta de forma e que constitui outra das questões suscitadas no recurso.

Da nulidade/validade da alegada cessão da posição contratual
Configurando a cessão da posição contratual um contrato de causa variável, como se referiu supra, é em função desse contrato, e não do contrato - base, que se aferem os requisitos relativos à forma da transmissão, capacidade, falta e vícios da vontade e relações entre as partes.
A este propósito, afirma Antunes Varela[10]:
«A forma como o artigo 425º define o regime da falta e vícios da vontade, no contrato de cessão, remetendo para a disciplina do tipo negocial que serve de base à cessão (a venda, a doação, a dação em cumprimento, a sociedade, etc.), mostra que a nulidade e a anulação, fundadas na falta ou nos vícios da vontade dos outorgantes, obedecem aí à disciplina própria dos negócios causais.
Assim, se a posição do contrato de fornecimento de matérias-primas tiver sido comprada pelo adquirente (cessionário), mas o consentimento deste tiver sido extorquido por coacção ou determinado por dolo ou erro relevantes (cfr. artigos 247º e segs.), o contrato de cessão será anulável como qualquer outro contrato de compra e venda. Como anulável será a cessão a título oneroso feita pelo pai a um dos filhos, sem o consentimento dos demais nos termos do artigo 877º.
De igual modo se aplicam à cessão as prescrições da forma, as regras da capacidade, as indisponibilidades, etc., próprias da doação, quando tenha sido por meio de uma liberalidade entre vivos que as partes operaram a transmissão da posição contratual.»
Quanto à forma da cessão da posição contratual do promitente comprador tem-se entendido que se aplicam as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão. A este propósito ensina o Prof. Vaz Serra que «no caso da cessão da posição contratual do promitente-comprador, as razões por que a lei (art.410 nº2 C. Civil) exige documento assinado pelo promitente para a validade da promessa de compra são igualmente aplicáveis à cessão da posição contratual desse promitente, já que o cessionário irá ocupar a posição do cedente, não havendo mais razão para com o fim de proteger o promitente contra a precipitação e ligeireza, se exigir forma especial (documento assinado) para a declaração negocial do primitivo promitente-comprador do que para o novo promitente-comprador (cessionário)»[11].
É também esta a posição sufragada pela jurisprudência conhecida, sustentando que se para a celebração de contrato promessa de compra e venda de imóvel a lei exige a forma escrita, por identidade de razão deve também ser exigida idêntica forma para a cessão da posição contratual[12].
Conclui-se assim pela não comprovação da cessão da posição contratual que, a existir, seria formalmente nula.
Procedem, desta forma, estes fundamentos do recurso, mostrando-se prejudicado o conhecimento das demais questões no mesmo suscitadas, sendo que relativamente à nulidade do erro na forma de processo, a mesma foi conhecida e decidida no saneador/sentença, o qual, nessa parte, transitou em julgado.

Sumário:
I - A cessão da posição contratual configura um negócio causal.
II - A cessão da posição contratual implica a existência de dois contratos: o contrato-base e o contrato-instrumento da cessão, que é o realizado para transmissão de uma das posições derivadas do contrato-base.
III - Não é suficiente para caracterizar a cessão da posição contratual a afirmação feita pela autora (promitente compradora), numa carta enviada à ré (promitente compradora), de que o contrato relativo ao imóvel prometido comprar e prometido vender seria formalizado, do lado da compradora, por outra sociedade.
IV - À cessão da posição contratual do promitente comprador aplicam-se as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, declarando-se transmitida para a autora a metade indivisa do prédio rústico com dois montes de habitação, sito na freguesia de …, concelho de Montemor-o-Novo, com a área de 25 8766 hectares, a parte rústica inscrita na matriz respetiva sob parte do artigo …º, da secção “BB” e a urbana (montes de habitação), inscrita na matriz sob os artigos …º e …º, pelo preço de € 143.900,00, integralmente pago.
Custas da ação e da apelação a cargo da ré e da interveniente principal.
*
Évora, 8 de Fevereiro de 2018
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

__________________________________________________
[1] A opoente veio posteriormente a desistir dos pedidos formulados na oposição, desistência essa que foi homologada por sentença proferida a fls. 335/336, transitada em julgado.
[2] Segue-se a ordem das questões elencadas nas alegações de recurso.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. II, 7ª edição, p. 385.
[4] Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, 4ª edição, pp. 400-401.
[5] Cessão da Posição Contratual, Almedina, Reimpressão, 1982, p. 450.
[6] Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 2002, p. 456-7,
[7] Ac. do STJ de 15.01.2015, proc. 883/08.6TVPRT.P1.S1.
[8] Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora - 1980, p. 423.
[9] Teoria Geral do Direito Civil, 2012, 7ª ed., p. 478.
[10] Ob. cit., p. 395.
[11] In RLJ, ano 108º, p. 346
[12] Cfr., inter alia, Ac. STJ de 21.06.2007, proc. 07B1974; Ac. RL de 10.09.2009, proc. 4595/07, Ac. RC de 24.02.2015, proc. 528/13.2TBPBL.C1, disponíveis em www.dgsi.pt; e Ac RC de 25.03.1993, in CJ, ano XVII, tomo III, p. 43.