Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1283/16.0 T8MMN-B.E1
Relator: SÍLVIO JUSÉ TEIXEIRA DE SOUSA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE
PENHORA
TÍTULO TRANSLATIVO DE PROPRIEDADE
APREENSÃO
INSOLVÊNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Após a reforma do processo de execução - que relegou a adjudicação dos bens para o agente de execução -, a transferência, na venda executiva, da propriedade do bem penhorado “só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão”; sendo este emitido, depois da apreensão do bem para a massa insolvente, na sequência da declaração de insolvência do executado e numa altura em que a propriedade do bem penhorado não se encontra transferida, definitivamente, é o mesmo nulo/ineficaz, com as inerentes consequências. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos de execução, para pagamento de quantia certa, na forma de processo sumário, em que é exequente a Sociedade Agrícola …, S.A. e executada L…, Lda., declarou-se, com fundamento na circunstância de “a adjudicação/transmissão do dito imóvel penhorado nestes autos a favor da sociedade exequente (…) ter sido realizada e consumada em período subsequente à apreensão do mesmo para a massa insolvente”, a “ineficácia da adjudicação operada nos presentes autos, com todas as consequências legais”.


Inconformada com o decidido, recorreu a mencionada exequente, pugnando pela revogação do despacho recorrido, com as inerentes consequências, a pretexto, nomeadamente, de não ser a “emissão do título de transmissão que opera a transferência do direito de propriedade”.


Contra-alegaram a Massa Insolvente da Executada L…, Lda. e a Exma. Procuradora da República, votando pela manutenção do decidido.


O recurso tem por objeto a seguinte questão: saber se é ou não de manter o despacho impugnado.

Foram colhidos os vistos legais.

Fundamentação


A.a - Os factos (despacho recorrido/extratos)


“Compulsados os autos, verifica-se que, na sequência da declaração de insolvência da sociedade executada, o AE decidiu-se pela suspensão da presente execução, nos termos do artigo 88º do CIRE. Tal ocorreu por decisão comunicada a este processo em 27.06.2018.


Efetivamente, a executada foi declarada insolvente por sentença de 30.05.2018 (…).


Sucede que nestes autos de execução foi penhorado um imóvel (denominado “Herdade da …”), vindo o mesmo a ser adjudicado e registado a favor da sociedade exequente. O título de transmissão foi emitido em 19.06.2018 e o registo da aquisição data de 22.06.2018.


Nesta sequência, a Administradora da Insolvência requereu que se dê sem efeito a adjudicação da “Herdade da …” operada nestes autos, porquanto a mesma foi realizada em data posterior à declaração de insolvência da sociedade aqui executada.


(…)


Nesta execução, foi adjudicado e registado a favor da sociedade exequente o dito imóvel, sendo que o título de transmissão é de 19.06.2018 e o registo de aquisição data de 22.06.2018. Serviu de base ao registo da aquisição o Título de Transmissão emitido pela AE.


Todavia, anteriormente, a sociedade executada foi declarada insolvente, por sentença (…) emitida no dia 30-05-2018.


Compulsados os autos, verifica-se, ainda, que, por força da sentença declarativa da insolvência, por auto de apreensão de 18.06.2018, a AI aprendeu o imóvel em causa, ou seja, o prédio misto, denominado por “Herdade da …”, passando o mesmo, em conformidade, a integrar o elenco dos bens da massa insolvente.


(…)


Nestes termos, não restam dúvidas de que a adjudicação do imóvel em causa (…), ocorrida em 19.06.2018 - como diligência suscetível de afetar a massa insolvente - não poderia produzir quaisquer efeitos, uma vez que as diligências de execução estavam suspensas desde a data da declaração de insolvências da executada, não mais podendo produzir efeitos e, concretamente, não podendo produzir os efeitos que lhe seguiram desde o dia 30.05.2018.


(…)


Dito isto, logo daqui se extrai que a adjudicação a favor da exequente da “Herdade da …” não se afigura eficaz, porquanto foi realizada e consumada numa data em que tal herdade estava já, por força da lei, apreendida a favor da massa insolvente da sociedade executada.


(…) Nesse sentido, o imóvel penhorado e adjudicado nestes autos de execução foi aprendido para massa insolvente em data anterior à emissão do título de transmissão.


De facto, quando foram cumpridas as obrigações fiscais e emitido o título de transmissão, a execução estava suspensa - por força do artigo 88ºdo CIRE - e o imóvel em causa estava a apreendido a favor da massa insolvente - por força do artigo 36º., alínea g) do CIRE - não podendo o título de transmissão ser emitido e assinado pela AE, pois à data de 19.06.2018 a emitente carecia de legitimidade para prosseguir com as diligências de venda.


(….)


Só o efeito registral é que fica dependente da emissão do título de transmissão, mas o o que o registo predial tem uma função meramente declarativa, de simples publicidade, não constitutiva de direitos.


(…)


Face ao exposto, concluímos que a adjudicação/transmissão do dito imóvel penhorado nestes autos a favor da sociedade exequente é ineficaz (…)”.


A.b - Datas relevantes para a decisão do recurso


- O imóvel penhorado, no âmbito da presente execução, foi vendido, através de leilão eletrónico, em 18 de janeiro de 2018, sendo a melhor proposta - €430.000,00 - apresentada por T…;


- Em 5 de fevereiro de 2018, a recorrente/exequente, notificada para o feito, declarou “que pretende exercer o direito de preferência relativamente à proposta de € 430.000,00 para aquisição do Prédio Misto denominado Herdade da … (…)”;


- Em 14 de fevereiro de 2018, a recorrente/exequente foi notificado, pela Exma. Agente de Execução “para, no prazo de 15 (quinze) dias, efetuar o pagamento, utilizando para efeito as referências Multibanco constantes em rodapé, do valor de 14.797,16 Euros, correspondentes à parte do preço em falta, do bem adjudicado a V. ExA, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 824º do código de processo civil (CPC)”;


- A recorrente/exequente efetuou o pagamento antes mencionado, em 1 de março de 2018;


- Em 19 de março de 2018, a recorrente/exequente foi notificada, pela Exma. Agente de Execução, nos seguintes termos: “Na sequência da aquisição do imóvel penhorado nos autos e considerando a sentença de graduação de créditos, fica V. Exa. notificada para vir juntar liquidação de impostos, designadamente Imposto de Selo e IMT”;


- Em 21 de junho de 2018, a recorrente/exequente comprovou a liquidação dos aludidos impostos, o que aconteceu, no dia 19 do antes referido mês;


- Em 30 de maio de 2018, foi decretada a insolvência da executada;


- A apreensão do imóvel em causa, para a massa insolvente, verificou-se em 18 de junho de 2018;


- O título de transmissão foi emitido em 19 de junho de 2018;


- Em 23 de junho de 2018, a Exma. Administradora da Insolvência deu conhecimento da mesma aos presentes autos;


- A presente execução foi suspensa, em 27 de junho de 2018.





B - O direito/doutrina/jurisprudência


- A venda executiva está sujeita ao regime geral da compra e venda e às disposições especiais relativas, nomeadamente, ao pagamento do preço e sua inobservância, devendo ser caraterizada como “um contrato especial de compra e venda com as caraterísticas de ato de direito público” [1];


- “Realizada esta, os direitos do executado, quer se trate de um direito de propriedade, de crédito, de usufruto, ou de qualquer outro, transferem-se para o adquirente. Este porque é adquirente de direitos alheios, não pode arrogar-se senão aqueles que competiam ao transmitente, ou seja, ao executado” [2];


- Os efeitos da venda executiva são, nomeadamente, os seguintes: “a) Transferência de direitos para o adquirente; b) Caducidade dos direitos reais de garantia e dos direitos reais de gozo; c) Transferência dos direitos de terceiros para o produto da venda; d) cancelamento dos registos (…). Por a transferência dos bens ter como contrapartida o pagamento do preço, aplica-se à venda executiva, sempre que as circunstâncias o não desaconselhem, designadamente se nada se encontrar especialmente determinado no CPC, o regime da compra e venda (…). Mas sem jamais olvidar que a obrigação de pagamento do preço surge para o adquirente no desenvolvimento do processo, onde se encontra a sua disciplina” [3];


- A declaração de insolvência do executado obsta o prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência[4];


- (…) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, no que toca à venda por propostas em carta fechada, e com a outorga do instrumento de venda, no que respeita à venda por negociação particular. E para que aquele título seja emitido e esta outorga se efetive, terá o adquirente de pagar previamente o preço de devido e satisfazer as obrigações fiscais inerentes à transmissão (…)[5];


- (…) sendo a venda constituída por um conjunto encadeado de atos, um verdadeiro ato complexo de formação sucessiva (composto por atos preparatórios, como a avaliação dos bens penhorados, a publicitação da venda, o acesso aos bens penhorados por parte dos interessados na venda, ente outros; atos de transmissão propriamente ditos, como a abertura de propostas, a deliberação sobre as propostas apresentadas e a aceitação da proposta vencedora, e finalmente, atos de conclusão do procedimento em quem a venda se traduz, como, por exemplo, o cumprimento de obrigações tributárias a que a transmissão dá lugar, emissão do titulo de transmissão e cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda executiva), parece-nos defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão” [6];


- “I - Na venda em execução, o efeito translativo do direito de propriedade só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel (art. 827º., nº 1, do CPC). II - Com a declaração de insolvência, suspendem-se, necessariamente, as execuções pendentes (art. 88º., nº 1 do CIRE). III - Se, não obstante a declaração de insolvência, devidamente anunciada, a execução prossegue, deve declarar-se oficiosamente a nulidade dos atos praticados após aquela declaração, onde se inclui o título de transmissão do bem imóvel, entretanto emitido pelo agente de execução” [7];


- “I - A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º als. a) a c) do Código Civil. II - Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, diferentemente sucede na venda executiva, porquanto nela os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, ou seja, a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do título de transmissão. III - Na venda por leilão eletrónico, a adjudicação, cuja decisão é da competência do agente de execução, deve ser realizada nos termos previstos para a venda por propostas em carta fechada, por força da parte final do artigo 8º, nº 10, do Despacho n.º 12624/2015 da Ministra da Justiça. Esse regime é o que se acha no artigo 827º e inclui a emissão pelo agente de execução de título de transmissão a favor do proponente adjudicatário” [8];


-“A venda judicial compreende a prática de uma sequência de atos processuais, culminando na emissão do título translativo, nos termos do nº 1 do artigo 827º. do CPC. Apenas com a emissão desse título a venda se considera concluída e, em consequência, se transmitem os direitos do executado sobre a coisa vendida, nos termos do artigo 824º. do Código Civil” [9];


- “1. A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão de propriedade da coisa - artº 879º do Código Civil. 2. Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, na venda executiva esta apenas tem lugar com a emissão, pelo agente de execução, do respetivo título de transmissão, o que apenas ocorre depois de este último se ter certificado do pagamento do preço e do cumprimento (ou da isenção) das legais obrigações fiscais” [10];


-“III - Tendo o título de transmissão sido emitido em data posterior à declaração de insolvência da executada/insolvente, ele está ferido de nulidade, o que é conhecido e declarado oficiosamente, cfr. art. 88º. nº1 do CIRE e 294º. do C. Civil. IV - Sendo nulo o título de transmissão do bem, o mesmo não produziu quaisquer efeitos, designadamente não se produziu a verificação da condição suspensiva de que estava dependente o efeito translativo da propriedade do imóvel, vendido nessa execução mediante propostas em carta fechada” [11];


- “Na venda executiva a transmissão da propriedade do bem vendido só ocorre com a emissão do título de transmissão pelo agente de execução, no caso da venda por propostas em carta fechada, e com a outorga do instrumento de venda no que respeita à venda por negociação particular” [12];


- “ I - A venda executiva reveste a natureza de um negócio jurídico que se realiza com a aceitação de determinada proposta, ficando, contudo, o efeito translativo da propriedade da coisa ou da titularidade do direito sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos a que se refere o art. 815º do Código de Processo Civil. II - Verificada a condição, transfere-se “ipso jure” a propriedade da coisa ou a titularidade do direito, retroagindo esse feito à data da aceitação da posposta, o que se atestará pelo respetivo título de transmissão” [13].

                  C - Aplicação do direito aos factos


                  Saber quando, após a reforma do processo de execução - que relegou a adjudicação dos bens para o agente de execução -, se opera, na venda executiva, a transferência da propriedade do bem penhorado, não é, ainda, uma questão pacífica, sendo, contudo, “defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão”, doutrina que, atualmente, vem sendo acolhida pela jurisprudência desta Relação e não só.


                  Assim, e situando-se no âmbito da mesma, pelos motivos dela contantes, não subscreve esta Relação a pretensão da recorrente Sociedade Agrícola da …, S.A., veiculada através da presente apelação.


                  Efetivamente, aquando da emissão do título de transmissão, o imóvel em causa - a Herdade da … - já se encontrava apreendido para a massa insolvente da executada L…, Lda., na sequência da sua declaração de insolvência.


                  Sucede, ainda, que, nessa altura, a propriedade da referida herdade não se encontrava transferida, definitivamente, para dita recorrente.


                  Deve, pois, esta Relação declarar, oficiosamente, a nulidade/ineficácia do antes mencionado título, com as inerentes consequências.


                  Decisão:


                  Pelo exposto, decidem os Juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter o despacho impugnado.


                  Custas pela recorrente.


                  *******


                  Évora, 16 de janeiro de 2020


                  Sílvio José Teixeira de Sousa (relator)


                  Manuel António do Carmo Bargado


                  Albertina Maria Gomes Pedroso

                  __________________________________________________
                  [1] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva, Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, pág. 346.
                  [2] Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, pág. 96, e artigos 824º., nº 1 e 879º., a) do mesmo diploma.
                  [3] José Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007,págs. 390 e 391.
                  [4] Artigo 88º., nº 1 do CIRE.
                  [5] Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 1ª edição, 2007, pág. 391.
                  [6] Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo, in A Ação Executiva, Anotada e Comentada, 2015,pág. 539.
                  [7] Acórdão do STJ, de 19 de junho de 2018 (processo nº 5664/14.5T8ENT-A.E1.S1/6ª secção), in www.dgsi.pt..
                  [8] Acórdão da Relação de Évora, de 6 de dezembro de 2018 (processo nº 1866/14.2T8SLV-B.E1), in www.dgsi.pt..
                  [9] Acórdão da Relação de Évora, de 12 de junho de 2019 (processo nº 1297/14.4 TBSTR-C.E1), in www.dgsi.pt..
                  [10] Acórdão da Relação de Guimarães, de 3 de março de 2016 (processo nº 976/09.2 TBBGC-C.G1), in www.dgsi.pt. (cfr., ainda, o acórdão desta Relação de 29 de maio de 2014 (processo nº 63/07.8 TBAMR-B.G1), no mesmo portal).
                  [11] Acórdão da Relação do Porto, de 20 de maio de 2014 (processo nº 616/12.2 TYVNG-C.P1), in www.dgsi.pt..
                  [12] Acórdão da Relação do Porto, de 15 de outubro de 2000 (processo nº 0626352), in www.dgsi.pt..
                  [13] Acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de abril de 2015 (processo nº 30347/09.4 T2SNT.L1-1), in www.dgsi.pt..