Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
676/16.7T8PTM-B.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
CRÉDITOS POSTERIORES
ACESSO AO DIREITO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - O artigo 17º-E, nº1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) impõe que a decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º-C obste à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
II – Todavia, tal preceito apenas deve ser aceite, de modo irrestrito e em sentido literal, relativamente às “ações para cobrança de dívidas” cujo prosseguimento não teria sentido por o pagamento do crédito exequendo estar já abrangido pelo plano aprovado.
III - Nos caso em que esse crédito não esteja abrangido no referido plano por motivos não imputáveis ao credor – designadamente por, embora já judicialmente invocado, ainda não se encontrar vencido aquando do prazo para a reclamação prevista no nº 2 do artigo 17º-D do CIRE -, sempre se terá de possibilitar ao credor o respetivo ressarcimento sob pena de não ter meio de cobrar o seu crédito.
IV – Assim, uma interpretação do preceituado no artigo 17º-E, nº 1, do CIRE que considere ser aplicável tal preceito às ações executivas instauradas após a homologação do plano de recuperação do devedor mas que tenham por objeto créditos invocados judicialmente em data prévia ao PER mas vencidos apenas posteriormente à data em que poderiam ser nele reclamados, padeceria de inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB, Lda., por apenso aos autos de execução sumária que lhe movem CC e DD, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Juízo Central Cível de Portimão - Juiz 4), veio deduzir embargos de executado, alegando, em síntese, que iniciou um processo especial de revitalização, tendo sido aprovado e homologado o respetivo plano, o que determina a extinção de todas as ações executivas, e terminou pedindo que os embargos sejam julgados procedentes e extinta a execução.
Os exequentes/embargados contestaram, alegando ser o crédito exequendo, por custas de parte, posterior à homologação do plano, concluindo pela improcedência dos embargos.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes os embargos.
Inconformada, a embargante apelou do assim decidido, tendo finalizado as alegações com as seguintes conclusões (transcrição):
«a) O presente recurso vem da discordância da sentença proferida a fls…, que julgou improcedentes os embargos de executado.
b) Uma vez que considerou que o crédito exequendo se venceu em momento posterior ao despacho inicial no “ PER” e à homologação da aprovação do plano de recuperação, motivo pelo qual inexiste motivo para julgar extinta a execução com tal fundamento.
c) Os exequentes instauraram contra a ora oponente, uma execução para pagamento de quantia certa no montante de € 1.530,00, relativa a custas de parte, reclamadas à executada, ora oponente, por carta datada de 16/12/2016.
d) A aqui executada, ora recorrente, iniciou um processo especial de revitalização, que correu os seus termos no Tribunal da Comarca de Faro, em Olhão, na Instância Central, secção de Comércio, J2, sob o nº 120/16.0T8OLH.
e) O Plano de revitalização foi homologado em 09 de Dezembro de 2016 e transitou em julgado em 02/01/2017.
f) O direito do exequente, venceu-se no dia 10 de janeiro de 2017.
g) Dispõe o nº 1 do artigo 17º E que:
“ A decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.
h) Com a aprovação e homologação do plano de recuperação, devem extinguir-se todas as ações executivas.
i) Pelo que, com a extinção da instância cessam todos os efeitos processuais e substantivos da pendência da ação, logo o direito subjetivo processual do exequente.
j) De igual forma está impedida a propositura de quaisquer ações ou execuções durante o período em que a “BB” cumprir o plano aprovado- PER.
k) Salvo o devido respeito por outra melhor opinião, o credor das custas de parte- exequente, deve junto do AJP solicitar que seja averiguada a natureza do seu crédito (não reclamado), para que lhe seja aplicada a medida prevista no plano de recuperação para créditos da mesma classe, sob pena de violação do princípio da igualdade de credores.
l) Violou pois assim, a douta sentença, entre outros, o disposto na alínea a) do nº 3, e nº 4 do artigo 17º C, nº 1 do artigo 17º E, nº 6 do artº 17º F, artº 25º RCP .
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, E COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXªS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, E EM CONSEQUÊNCIA REVOGAR-SE A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!».

Contra-alegaram os embargados, defendendo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se a presente execução deve, ou não, ser extinta por força da homologação, por sentença, do plano de revitalização relativo à executada.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e as ocorrências processuais relevantes para o julgamento do recurso são os descritos no relatório supra, a que acresce a seguinte factualidade também considerada na decisão recorrida:
1 – Os ora embargados instauraram ação declarativa contra a ora embargante, a qual correu termos sob o nº 676/16.T8PTM, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato-promessa de compra e venda da fração autónoma “O” no terceiro andar esquerdo destinado à habitação T2 do prédio urbano em propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o nº …, sito na urbanização …, lote … na freguesia de Armação de Pera, concelho de Silves, bem como de 1/89 da fração B do lote 14 do mesmo prédio urbano e a condenação da ré “BB” a pagar-lhe a quantia de € 120.000,00 acrescida dos juros vencidos desde a citação, à taxa legal, até integral pagamento. Mais pediram o reconhecimento do direito de retenção sobre os referidos imóveis.
2 – A ré, aqui embargante, não contestou a ação, a qual veio a ser julgada totalmente procedente por sentença proferida em 8 de junho de 2016, tendo a embargante sido ainda condenada no pagamento das custas do processo, em que se inclui a quantia € 1.530,00 a título de custas de parte, não tendo a recorrente contestado a notificação para pagamento daquele montante ocorrida em 16 de dezembro de 2016 (cfr. fls. 250 vº da ação declarativa).
3 – Os embargados enviaram à embargante, em 16.12.2016, a nota discriminativa e justificativa de custas de parte, solicitando o pagamento da quantia de € 1.530,00 – cfr. fls. 15 a 19 da execução.
3 – Os embargados instauraram a execução a que respeitam os presentes embargos, com vista a serem pagos da referida quantia devida a título de custas de parte, a qual deu entrada em juízo no dia 16 de maio de 2017 (cfr. fls. 24 do apenso referido apenso).
4 - A embargante submeteu-se a processo especial de revitalização o qual findou com a homologação do plano em 9 de dezembro de 2016.

O DIREITO
Entende a recorrente que os exequentes, credores de custas de parte devidas no âmbito da ação declarativa acima identificada, devem junto do administrador judicial provisório solicitar que seja averiguada a natureza do seu crédito (não reclamado), para que lhe seja aplicada a medida prevista no plano de recuperação para créditos da mesma classe, sob pena de violação do princípio da igualdade de credores.
Por sua vez, entendeu-se na decisão recorrida que o crédito exequendo não está abrangido pelas limitações decorrentes dos artigos 17º-C, nº 4 e 17º-E, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), uma vez que se venceu em momento posterior ao despacho inicial do PER e à homologação da aprovação do plano de recuperação, inexistindo assim fundamento para julgar extinta a execução.
Em termos temporais, temos que a decisão de homologação do PER foi proferida com data de 09.12.2016, sendo que a presente execução foi instaurada em 16.05.2017, ou seja, posteriormente a tal decisão, fundando-se em sentença proferida em 08.06.2016 que condenou a aqui embargante, além do mais, nas custas.
As custas de parte são devidas, nos termos do artigo 25º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais, até 5 dias após o trânsito em julgado da sentença, sendo que os exequentes enviaram, dentro do prazo, nota discriminativa e justificativa das custas de parte à executada e ao seu mandatário, que nada disse ou reclamou, nada tendo pago.
Por sua vez, em termos legais está em causa no recurso a interpretação do disposto no artigo 17º-E, nº1, do CIRE, o qual dispõe do seguinte modo:
«A decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação».
No que respeita à elucidação do conceito “acção para cobrança de dívidas”, a posição maioritária na jurisprudência[1] é a de que o mesmo abarca também as ações declarativas que tenham por finalidade obter a condenação do devedor numa prestação pecuniária (como a que, em parte, está na base da sentença judicial que serviu de título à presente execução).
O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização (art. 17º-A, nº1, do CIRE); assim, a impossibilidade de instaurar ações para cobrança de dívidas contra o devedor enquanto decorrerem as negociações, ou a suspensão das ações existentes, destina-se justamente a prevenir uma eventual inviabilização de um acordo por força do aparecimento de credores que invocam créditos ainda por definir.
Em todo o caso, este objetivo deve sempre compaginar-se com os direitos dos credores, surjam estes antes ou depois da nomeação do administrador ou da homologação do plano, ou seja, o afastamento dos credores por parte daquele que agora é revitalizando só poderá ser feito em relação aos que podiam reclamar o seu crédito no processo de revitalização; aos demais deverá sempre ser-lhes oferecida tal possibilidade sob pena de lhes ser negado um direito que sempre lhes assistiria.
No caso concreto, importa considerar que a presente execução foi instaurada depois da homologação do plano especial de revitalização (09.12.2016), quando já havia sido proferida sentença na ação declarativa devidamente transitada em julgado.
Por seu turno, o despacho liminar do PER foi proferido necessariamente antes de 09.12.2016, com a decorrente nomeação do administrador judicial, pelo que o crédito dos recorridos sobre a recorrente ainda não se encontrava vencido[2] aquando do vencimento do prazo previsto para a reclamação de créditos no próprio processo de PER e, por esse motivo, não apresentaram os recorridos/credores a competente reclamação de créditos, nem de igual modo pôde reconhecer o Administrador provisório o crédito dos mesmos.
Acresce que na execução que se lhe seguiu nunca foi declarada a respetiva suspensão por via do processo de revitalização.
Desde logo, por força do disposto no citado artigo 17º-E, nº 1, do CIRE, só se extinguem as execuções que foram suspensas, o que não sucedeu no caso em apreço, pelo que não se encontrando a execução suspensa, não poderia a mesma ser extinta.
E, a nosso ver, não o poderia ser, sobretudo porque se deu uma específica sucessão temporal que retirou a estes credores, em concreto, a possibilidade de reclamarem o crédito respetivo.
Com efeito, aquando do prazo de reclamação, o crédito ainda não estava vencido em sede declarativa e quando o mesmo se venceu definitivamente e não foi pago, verifica-se que a correspondente execução surgiu após a homologação do PER e, por isso, não ficou abrangido o crédito dos recorridos no acordo de recuperação homologado.
É que o artigo 17º-F, nº 6, do CIRE, apenas se aplica aos créditos que já existiam à data da reclamação de créditos e, por sua vez, a partir do disposto no artigo 17º-E, nº 1, do CIRE, só se podem reportar dívidas existentes na data em que foi proferido o despacho de nomeação do administrador judicial provisório.
Logo, terá que conferir-se aos exequentes o direito de exigir o pagamento do seu crédito em sede executiva, independentemente dos créditos apurados e inerentes ao processo de revitalização, pois sendo a presente execução instaurada em momento posterior à homologação do plano e, como tal, o crédito exequendo posterior à reclamação de créditos no PER, não se lhe aplica o disposto no artigo 17º-E, nº 1, do CIRE, e, por via disso, também a execução não podia, afinal, ter sido declarada extinta.
Fazemos por isso nossas as seguintes palavras do acórdão da Relação do Porto de 14.12.2017[3]:
«(…) interpretar o estatuído no art. 17º-E, nº 1, do CIRE, no sentido de ser aplicável às acções executivas instauradas após a homologação do plano de recuperação do devedor e tendo por objecto créditos vencidos posteriormente à data em que poderiam ser reclamados em sede de PER, configuraria uma situação de inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais - cfr. art. 20º da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, leia-se o Ac. da Relação de Guimarães de 22.10.2015, processo nº 1983/14.9T8GMR.G1 ou ainda da mesma Relação o Ac. de 19.01.2017, processo 823/13.0TTBCL.G1, ambos em dgsi.pt)».
Em síntese conclusiva:
O artigo 17-E, nº 1 parte final do CIRE quando refere, “extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação” apenas deve ser aceite, de modo irrestrito e com o sentido que aparenta, para aquelas “ações para cobrança de dívidas” cujo prosseguimento não teria sentido dado que o pagamento do crédito exequendo ficou abrangido pelo plano aprovado. No caso em que tal crédito não esteja abrangido no dito plano, por motivos não imputáveis ao credor – designadamente por não se encontrar o crédito vencido aquando do prazo para a sua reclamação previsto no nº 2 do artigo 17-D, no âmbito do PER -, sempre terá de se possibilitar a esse credor o prosseguimento da acção executiva, entendendo-se o crédito como pendente de decisão no momento da sua reclamação, sob pena de despojar este credor de meios para cobrar o seu crédito».
Não merece assim qualquer censura a decisão recorrida, não se mostrando violadas as normas invocadas pelos recorrentes ou quaisquer outras.
Em suma, improcede o recurso.

Vencida no recurso, a embargante/recorrente deverá suportar o pagamento das custas respetivas (artigo 527.º do Código de Processo Civil).

Sumário:
I - O artigo 17º-E, nº1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) impõe que a decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º-C obste à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
II – Todavia, tal preceito apenas deve ser aceite, de modo irrestrito e em sentido literal, relativamente às “ações para cobrança de dívidas” cujo prosseguimento não teria sentido por o pagamento do crédito exequendo estar já abrangido pelo plano aprovado.
III - Nos caso em que esse crédito não esteja abrangido no referido plano por motivos não imputáveis ao credor – designadamente por, embora já judicialmente invocado, ainda não se encontrar vencido aquando do prazo para a reclamação prevista no nº 2 do artigo 17º-D do CIRE -, sempre se terá de possibilitar ao credor o respetivo ressarcimento sob pena de não ter meio de cobrar o seu crédito.
IV – Assim, uma interpretação do preceituado no artigo 17º-E, nº 1, do CIRE que considere ser aplicável tal preceito às ações executivas instauradas após a homologação do plano de recuperação do devedor mas que tenham por objeto créditos invocados judicialmente em data prévia ao PER mas vencidos apenas posteriormente à data em que poderiam ser nele reclamados, padeceria de inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrente.
*
Évora, 12 de Julho de 2018
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] Cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 05.01.2016, proc. 172724/12.6YIPRT.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Só se venceu depois do envio pelos embargados/recorridos à embargante/recorrente da nota discriminativa e justificativa de custas de em 16.12.2016, já depois da homologação do plano de revitalização
[3] Proc. 5831/15.4T8OAZ.P1, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.