Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2088/18.9T8STB-D.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
FACTOS-ÍNDICE
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Embora se possa afirmar que, pelo facto do requerido ter deixado de pagar as prestações a que se tinha obrigado perante a requerente, a sua situação económica não é boa, sendo débil, daí não resulta a constatação de situação de “penúria generalizada” conducente a possibilitar a declaração da sua insolvência.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2088/18.9T8STB-D.E1 (2ª Secção Cível)



ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (Juízo de Comércio de Setúbal – Juiz 2) Banco de (…) Imobiliário, S.A., instaurou ação especial de declaração de insolvência contra, (…), pedindo o decretamento da insolvência deste alegando em síntese:
- Ter celebrado, em 16-12-2005, com o requerido um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, pelo qual, lhe emprestou a quantia de € 70.000,00,
- Para garantia do capital mutuado, respetivos juros e despesas, o requerido, constituiu a favor do Banco Requerente, uma hipoteca sobre a fracção “(…)” correspondente ao terceiro andar esquerdo, destinado a habitação, com arrecadação no sótão, do prédio urbano, sito na Rua (…), LT 12, Blocos A, B, C, D e E, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
- No dia 25-08-2008 o requerido deixou de cumprir as suas obrigações emergentes do contrato acima referido, encontrando-se em dívida o capital de € 68.217,34;
- Em 16-12-2005 foi, também, celebrado o contrato de mútuo com hipoteca, no valor de € 10.000,00. Para garantia do capital mutuado, juros e respetivas despesas o requerido constituiu a favor do requerente hipoteca sobre o imóvel supra referido, tendo, no entanto, deixado de cumprir as suas obrigações em 25/11/2009, encontrando-se em dívida o capital de € 9.583,78;
- No exercício da sua atividade, a pedido e no interesse do Requerido, foi também celebrado com a Requerente um contrato de abertura de crédito sob a forma de conta corrente, à qual foi atribuído o n.º (…), a qual apresenta um saldo devedor no montante de € 373,13;
- O requerido deve-lhe a quantia global a título de capital de € 114.153,88 e não tem meios próprios de liquidez que lhe permita fazer face à liquidação do passivo, revelando impossibilidade de satisfação pontual das suas obrigações.

Citado o requerido veio deduzir oposição, pedindo o indeferimento do pedido e alegando, em síntese:
- Não se encontra em incumprimento para com o requerente, pois foi este que ao instaurar acção executiva que corre termos sob o n.º 127/10.0TBSTB da Instância Central de Execução de Setúbal, J1, cuja quantia exequenda à data da respectiva proposição era de € 68.217,34;
- O requerente efectua um uso abusivo do processo, dado que propôs já ação executiva e o insolvente tem rendimentos e ativos que lhe permitem satisfazer as obrigações, auferindo um vencimento mensal de € 900,00 e é proprietário do imóvel dado em hipoteca à requerente, não tendo outras dívidas.
Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença que decretou a insolvência do requerido.
+
Inconformado veio o requerido, interpor recurso, tendo apresentado as respetivas alegações e formulado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1º - A inexistência de crédito e a demonstração de que se encontra pendente processo executivo sobre o mesmo deveria ter determinado desde logo a extinção do processo de insolvência.
Aliás, no que respeita ao recorrente da insolvência, importa reiterar que num processo de insolvência não é possível a determinação concreta do valor da divida, não há como fazer prova e contraprova desse facto; não é possível determinar se a divida existe ou não, sendo certo que no entendimento do recorrente a divida não é superior a € 2.000,00 pois que corresponde apenas a 5 ou 6 prestações hipotecárias, não afetadas de incumprimento uma vez que instaurada o Requerimento Executivo. Não mais o BII aceitou receber o pagamento das prestações. Logo, nem sequer existe mora.
Em suma, o único crédito que pode existir é o respeitante ao mútuo hipotecário a favor do Banco de (…) Imobiliário, pendente no processo executivo.
Adianta-se que o Insolvente sempre quis e quer pagar o credito ao BII.
Não existe assim qualquer crédito, qualquer que seja o valor que justifique o prosseguimento do processo, ou seja, a insolvência devia ter sido declarada extinta com base em inutilidade superveniente da lide, tal como solicitado de forma especificada, pelo insolvente, e com apresentação de prova documental bastante.
Está em causa não a cobrança privada de dívidas – para isso o credor dispõe de execução singular – mas o despoletamento de um processo a que é atribuído uma tarefa social, comunitária, visando-se o interesse comum dos credores, adiantando-se que o processo de insolvência não tem por vocação ou prova seja em que grau for, da existência do crédito litigioso do credor a que o artigo 20º atribui legitimidade para despoletar o processo.
Efetivamente quando se verifica, como é o caso, que o devedor não tem outro credor para além do requerente da insolvência, o presente instância não pode prosseguir, não tem qualquer função social, sendo que não se destina ao apuramento da existência do crédito e tão pouco à cobrança privada de dívidas.
Assim, conclui-se que o credor litigioso tem legitimidade para desencadear o processo de insolvência, mas este processo deixa de fazer qualquer sentido devendo ter-se como improcedente logo que se verifica a inexistência de outros credores.
Só com a liquidação de bens na ação executiva, o que prossupõe um julgamento do prévio da oposição/embargos tempestivamente apresentada que com o presente processo de insolvência impediu que o tribunal declarar se afinal qual era a divida? Se existe ou não divida e se existe ou não alguma impossibilidade de pagar a divida excedentária, caso exista!

Foram apresentadas contra alegações, por parte da requerente, nas quais pugna pela manutenção da decisão impugnada.

Cumpre apreciar e decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a questão que importa apreciar é a de saber se estão verificados os factos presuntivos conducentes à declaração de insolvência.

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. O requerido (…), é divorciado, nascido em 10-04-1964, titular do contribuinte fiscal nº (…), residente na Rua (…), lote 50, r/c direito, 2955-000 Pinhal Novo;
2. Consta inscrito a favor do requerido, pela Ap. (…) de 2005/11/18 a aquisição por compra do requerido, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º …/20071026, da freguesia do Pinhal Novo, terceiro andar esquerdo – para habitação com entrada pela Praceta (…), n.º 12-A, com arrecadação no sótão;
3. Pela Ap. (…) de 2005/11/18 mostra-se constituída a favor do Banco de (…) Imobiliário hipoteca voluntária sobre o imóvel referido em 2, para garantia do capital mutuado de € 70.000,00, com um montante máximo assegurado de € 89.936,00;
4. Pela Ap. (…) de 2005/11/18 mostra-se constituída a favor do Banco de (…) Imobiliário, S.A. hipoteca voluntária sobre o imóvel referido em 2, para garantia do capital mutuado de € 10.000,00, com um montante máximo assegurado de € 13.631,60;
5. Consta registada pela Ap. (…) de 2010/02/18 penhora a favor do Banco de (…) Imobiliário, S.A., realizada nos autos de processo executivo n.º 127/10.0TBSTB, Vara de Competência Mista de Setúbal;
6. Por escritura pública outorgada em 16-12-2015, no Cartório Notarial Privado, sito na Avenida do (…), 29-A, Alto do Seixalinho, Barreiro, o requerido adquiriu, pelo preço de € 70.000,00 o imóvel correspondente ao terceiro andar esquerdo, destinado à habitação, com arrecadação no sótão, que constitui a fração autónoma designada pela letra “G” do bloco A, do prédio urbano sito na Rua (…), lote 12, Blocos A, B, C, D, e E, da freguesia de Pinhal Novo, Concelho de Palmela, descrita na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número (…) da referida freguesia, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…);
7. Pela mesma escritura foi constituída a favor do Banco de (…) Imobiliário, S.A. hipoteca sobre o imóvel referido em 6;
8. Por escritura pública outorgada em 16 de Dezembro de 2005 no Cartório Notarial Privado, sito na Avenida do (…), n.º 29-A, Alto do Seixalinho, Barreiro, foi outorgado contrato de mútuo com hipoteca entre requerente e requerido através do qual o requerente mutuou ao requerido a quantia de € 10.000,00, tendo o requerido para garantia da quantia mutuado constituído hipoteca a favor do requerente sobre o imóvel correspondente ao terceiro andar esquerdo, destinado à habitação, com arrecadação no sótão, que constitui a fração autónoma designada pela letra “G” do bloco A, do prédio urbano sito na Rua (…), lote 12, Blocos A, B, C, D, e E, da freguesia de Pinhal Novo, Concelho de Palmela, descrita na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número (…) da referida freguesia, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…);
9. Pela utilização dos capitais mutuados, o requerido comprometeu-se a pagar juros sobre o capital em dívida, à taxa nominal anual nos prazos e condições constantes dos documentos junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
10. Sucede que o requerido não pagou à credora nem na data do vencimento, nem posteriormente, a prestação vencida em 25-08-2008, relativamente ao mútuo de € 70.000,00;
11. Nem procedeu, relativamente ao mútuo de € 10.000,00 ao pagamento da prestação 25-11-2009 e subsequentes;
12. Encontrando-se em dívida a quantia de € 68.217,34 referentes às prestações vencidas e não pagas, quanto ao primeiro mútuo e € 9.583,78, referente ao segundo mútuo;
13. O requerido aufere a título de vencimento quantia que ronda os € 900,00 mensais.

Foram considerados não provados os seguintes factos:
a. No exercício da sua actividade, a pedido e no interesse do Requerido, foi também celebrado com a Requerente um contrato de abertura de crédito sob a forma de conta corrente, à qual foi atribuído o n.º (…), conforme detalhe da conta que junto com a petição inicial como documento 7.
b. Em consequência dos movimentos bancários a debito e a crédito efectuados pela Insolvente, a conta de depósito à ordem n.º (…) de que este é titular apresenta um saldo devedor no montante de € 373,13;
c. O insolvente tem rendimentos e ativos que lhe permitem satisfazer as obrigações;
d. O imóvel tem valor superior ao montante em dívida;
e. Não fora a propositura da acção executiva e o requerido teria continuado a cumprir o contrato outorgado.


Conhecendo da questão
Tendo em atenção os factos supra elencados, dados como provados, caberá apreciar se estão preenchidos os requisitos para o decretamento da insolvência do requerido.
É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artº 3º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE) consignando-se no artº 20º, n.º 1, do mesmo Código como indícios (presunções juris tantum) da situação de insolvência do devedor, designadamente:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; (…)
O Julgador “a quo” entendeu que o requerido, em face da pretensão do requerente, não logrou fazer prova da sua solvência como lhe competia, em face do que dispõe o artº 30º, n.º 4, do CIRE, reconhecendo mostrar-se preenchido o pressuposto da al. b) do artº 20º, n.º 1, do CIRE, salientando em parte da sua fundamentação o seguinte:
… resultou que o requerido não procedeu ao pagamento das quantias em dívida, que ascendem ao montante de cerca de € 80.000,00 a título de capital, relativamente a créditos hipotecários, sendo que o imóvel que constitui garantia não foi apurado o seu valor patrimonial, dado que apenas consta na informação da conservatória do valor à data da aquisição sobre o qual decorreram cerca de 13 anos.
Mais resultou apurado que o requerido aufere vencimento da ordem dos € 900,00 mensais.
Assim, tendo em consideração o montante em dívida ao requerente e preço de aquisição do imóvel, é fácil concluir que o mesmo não terá valor suficiente para garantir o pagamento ao requerente, bem como, o valor dos rendimentos, importa concluir pela impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Encontra-se pois preenchida a al. b) do n.º 1 do art. 20º do CIRE.
Cabendo ao requerido a prova de factos que permitissem concluir que, apesar da verificação dos factos índice do art. 20º, n.º 1, do CIRE, ainda assim a situação de insolvência não se verificava, não o logrou fazer. Com efeito, não demonstrou a existência de outros bens (que apenas seria possível por documento autêntico), ou rendimentos suficientes para liquidar as quantias em dívida.
O recorrente discorda da posição assumida pelo Julgador “a quo”, e quanto a nós com razão.
Temos de reconhecer, perante os factos dados como provados, que para além da dívida ao requerente, o requerido não terá quaisquer outras dívidas, pelo que o requerente apresenta-se como seu único credor com o seu crédito garantido por hipoteca sobre o imóvel propriedade do requerido.
Embora não se provando que o bem imóvel tem valor superior ao montante em dívida, não pode olvidar-se que a dívida em causa é resultante de empréstimo que o requerente efetuou ao requerido e nesse âmbito foram constituídas hipotecas voluntárias sobre tal bem, donde será de presumir que o bem teria valor suficiente para garantir tais créditos. Pois, se assim não fosse, o requerente nunca teria aceitado o mesmo como garantia dos seus créditos.
Daí decorre que muito embora o requerido se encontre em incumprimento para com o requerente, tal incumprimento não assume a relevância para constituir o facto índice a que alude a al. b) do n.º 1 do artº 20º do CIRE, uma vez que para além da alegação da situação de incumprimento, não foram alegadas outras concretas circunstâncias que conjugadas e demonstradas permitissem razoavelmente concluir que o requerido se encontra numa situação de penúria generalizada, impossibilitado de cumprir todas as suas obrigações vencidas. De facto, não basta a alegação da falta de uma ou mais obrigações do devedor, sendo ainda necessário provar-se que esse facto revela a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das obrigações por parte do devedor, o que reconhecidamente não é o caso, uma vez que não foi alegado nem demonstrado que o requerido tem outras dívidas e muito menos que estivessem vencidas em situação de incumprimento (v. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 2ª edição, 205; Ac. do TRP de 04/10/2007 no processo 0733360 disponível em www.dgsi.pt; Ac. do TRL de 24/05/2007 no processo 2609/2007-6 disponível em www.dgsi.pt).
Se o imóvel à data tinha valor suficiente para garantir a totalidade dos créditos, podemos deduzir que, presentemente, também o terá, visto tratar-se de uma fracção com, apenas, cerca de 13 anos e ser público e notório a carência de imóveis para habitação, situação que tem inflacionado o preço no mercado imobiliário.
Por isso, por via do processo executivo que moveu ao requerido, a requerente terá possibilidade de se ver ressarcida do pagamento do seu crédito, através cobrança coerciva atendendo à garantia hipotecária de que é detentora, até porque em algum momento a requerente invoca que procedendo-se à venda do bem hipotecado, o produto da mesma não é suficiente para satisfação do valor integral da dívida do requerido.
Embora possa afirmar-se pelo facto do requerido ter deixado de pagar as prestações a que se tinha obrigado perante a requerente, que a sua situação económica não é boa, sendo débil, mas daí não resulta a constatação de situação de “penúria generalizada” conducente a possibilitar a declaração da sua insolvência.
Por isso, mesmo existindo o incumprimento de obrigações nos termos descritos nos factos provados, tal não permite concluir com a certeza exigível que o requerido se encontre numa situação de inelutável impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações vencidas, realidade esta conducente com uma situação de insolvência.
Em suma diremos, que não se verifica uma situação de insusceptibilidade do recorrente poder cumprir, as suas obrigações para com o requerente, nem se evidencia a impotência de satisfazer quaisquer outros compromissos que havia assumido, até porque nem foram alegadas, nem resultaram provadas, quaisquer outras situações devedoras e muito menos em incumprimento.
Nestes termos, entendemos ser de julgar procedente o recurso e de revogar a sentença recorrida.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, absolvendo-se o requerido do pedido de declaração de insolvência.
Custas pelo apelado.
Évora, 08-11-2018
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes