Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
219/15.0T8ALR.E2
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: INVENTÁRIO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Só a transmissão da respectiva posição sucessória obsta ao direito do herdeiro de exigir a partilha e de requerer o inventário, e não a penhora do seu quinhão hereditário, que constitui um mero acto de oneração que não afecta aquele direito.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 219/15.0T8ALR.E2


Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório.
1. (…), divorciado, residente na Zona Industrial de (…), Lote (…), em Almeirim, impugnou em juízo a decisão da Senhora Notária de Almeirim que o julgou parte ilegítima no processo de inventário por óbito de seu pai, (…) e em que é cabeça-de-casal (…).

2. Admitido o recurso e remetidos os autos a juízo foi proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:
“(…) nega-se provimento ao recurso interposto pelo Recorrente e mantém-se a decisão recorrida.”

3. É desta decisão que (…) agora recorre, formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“I. Vem o presente recurso interposto da Douta Decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, que negou provimento ao recurso interposto pelo Recorrente da decisão proferida pela Exmª. Senhora Notária, mantendo a decisão recorrida.
II. O Tribunal “a quo” em sede de decisão deu como provado que em 18 de Fevereiro de 2010, para pagamento da quantia exequenda de € 89.403,49 proveniente da execução fiscal nº (…) e Apensos instaurada por dívidas de IVA do ano de 2002; 2004; 2005; 2006 e 2007; IRC do ano de 2002; 2004; 2005; 2006 e 2007 Coimas Fiscais dos anos de 2007 e 2008 em nome de (…), por reversão de (…) Contabilidade e Serviços Lda, foi penhorado “o Direito e Acção a 3/16 da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…) ocorrido em 22/11/2009 participado em 11/02/2010 e que é composta por três bens imóveis e um bem móvel, e que em 24 de Junho de 2011, o bem identificado em 1. foi vendido a (…), com o NIF (…), pelo valor de € 9.400,00.
III. A matéria de facto considerada assente foi-o de forma simplista, não retratando fielmente o que consta da documentação em que se baseia, pelo que o presente recurso visa também a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
IV. O que foi penhorado, vendido e adjudicado, foi o direito e ação a quota-parte da herança daqueles bens em concreto, e não de quaisquer outros.
V. O Tribunal a quo considerou que foi penhorado o direito e ação a 3/16 da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…), que é composta pelos bens aí discriminados e que não obstante a redacção do auto de penhora, apenas se pode considerar que o bem aqui penhorado consiste no direito do Recorrente na herança.
VI. Conclui o Tribunal a quo que não assiste razão ao Recorrente quando alega que foi penhorado o direito e ação a quota-parte de herança composta pelos bens elencados no auto de penhora, dado que é inadmissível penhorar-se uma parte específica de bens indivisos e por isso aquele não possuía legitimidade para requerer o inventário.
VII. Deste modo, atento os factos dados como provados e as questões de direito, salvo melhor opinião, consideramos que o Tribunal a quo deveria ter tido uma decisão diversa, pois não ficou provado que o agora Recorrente seja parte ilegítima no presente processo de Inventário.
VIII. Considera o Recorrente que conforme consta do auto de adjudicação, foi na realidade penhorado o direito e ação a 3/16 da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…), dos bens ali discriminados.
IX. Afirmar que foi penhorado e vendido 3/16 do direito e ação à herança, parece-nos não poder ser o correto, pois a herança não se limita apenas a uma quota-parte de bens concretos, devidamente identificados e vendidos, mas sim ao conjunto de um património.
X. Em sede de inventário, ficou provado que existem mais bens do que os constantes do auto de adjudicação, porque como bem sabe, existem efetivamente muitos mais bens pertencentes à herança, que não constam do auto de adjudicação da certidão fiscal.
XI. Basta o simples confronto do auto de adjudicação com os bens já relacionados nos presentes autos.
XII. O que foi adjudicado foi o direito e ação a quota-parte de herança, composta pelos bens aí elencados.
XIII. Não foi penhorado e adjudicado o direito e ação a quota-parte de depósitos em dinheiro, nem a quota-parte de recheio de casa
XIV. Pelo que, subsiste inequivocamente a legitimidade do requerente! XV. Não pode o Recorrente ser coartado no seu direito à sua quota-parte nesses bens não elencados no Auto de Adjudicação de Bens.
XVI. O Recorrente viu a sua parte nos bens constantes no Auto de Adjudicação ser penhorada e vendida por um determinado valor, montante este que liquidou dívidas suas ao Serviço de Finanças, e se desse Auto constasse todos os bens em falta que não foram relacionados pela Cabeça de Casal em sede de imposto de selo no Serviço de Finanças, poderia eventualmente mais montantes em divida, a existirem, serem liquidados.
XVII. Não se compreende que, o Recorrente fique despojado do seu direito nos restantes bens da herança, de valor superior aos constantes do auto de adjudicação, pois a ser assim, os 3/16 do direito e ação à herança foram adjudicados por um valor irrisório, que não teve em conta a totalidade dos bens da herança.
XVIII. A herança é um conjunto de bens que constituem um património autónomo e indiviso, constituído por bens móveis, imóveis e valores, do autor da herança à data da sua morte.
XIX. O direito a herdar de qualquer herdeiro até à partilha é uma quota ideal e recai sobre a universalidade de toda a herança, sendo que o titular desse direito, ou seja, o herdeiro, não sabe até à celebração da partilha que bens preenchem o seu quinhão na herança.
XX. No caso concreto, foi vendido 3/16 do direito à herança de bens identificados e determinados que estão integrados no património da herança, não 3/16 do direito ao património da herança, pelo que o Requerente continua a ter direito à sua quota ideal nos restantes bens.
XXI. Pois se na citada venda se quisesse transmitir 3/16 da totalidade da herança, não teriam discriminado a relação de todos os bens, com valores atribuídos a cada um deles, bem como um valor total correspondente ao somatório do montante de 3/16 de cada bem.
XXII. Pela citada venda executiva foram transmitidos 3/16 de bens móveis e imóveis a (…), sendo esta exclusivamente proprietária desta fração de bens, não lhe tendo sido transmitido o direito e ação da totalidade do quinhão que o requerente possui nesta herança.
XXIII. Facto corroborado pela análise da relação de bens, pedido de relação adicional e reclamação onde se constata que a herança do inventariado é composta por outros bens que não, os penhorados e transmitidos, nomeadamente outros bens móveis, veículos e valores monetários.
XXIV. Pelo exposto, é o Recorrente um herdeiro legítimo, que tem direito ao seu quinhão hereditário nos restantes bens da herança, tem o interesse direto em demandar e agir e é apossado de toda a legitimidade. Artigo 4º, nº 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário.
XXV. Atento ao que se deixou dito, consideramos que a decisão do Tribunal a quo deverá ser substituída por outra que considere o Recorrente parte legítima nos autos de processo de inventário.
Nestes termos e no mais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência a decisão recorrida ser substituída por outra que considere o Recorrente parte legítima nos presentes autos de Inventário, prosseguindo os autos os seus trâmites legais.”
Não houve lugar a resposta.
Observados os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso.
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir se o Recorrente tem legitimidade para o inventário.

III. Fundamentação.
1. Factos.
A decisão recorrida fundamentou-se nos seguintes factos que julgou provados:
1. Em 18 de Fevereiro de 2010, para pagamento da quantia exequenda de € 89.403,49 proveniente da execução fiscal n.º (…) e Apensos instaurada por dívidas de IVA do ano de 2002; 2004; 2005; 2006 e 2007; IRC do ano de 2002; 2004; 2005; 2006 e 2007 Coimas Fiscais dos anos de 2007 e 2008 em nome de (…), por reversão de (…) Contabilidade e Serviços Lda., foi penhorado “o Direito e Ação a 3/16 da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…) ocorrido em 22/11/2009 participado em 11/02/2010 e que é composta pelos seguintes bens:
IMOVEIS
VERBA N.º 1 ½ Prédio urbano sito no Parque de campismo – (…), Freguesia de (…), Concelho de Alcobaça, Distrito de Leiria inscrito na matriz, sob o Artigo (…), que se compõe de casa pré-fabricada para habitação com 2 divisões, casa de banho e varanda, superfície coberta de 22,36m2 e varanda 38,54m2, a confrontar de norte, sul, nascente e poente com terreno da Junta de Freguesia. Com o valor patrimonial de € 3049,15.
VERBA N.º 2 ½ da Fração Autónoma R, destinada a habitação – correspondente ao 3.º andar esquerdo do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua (…), n.º 7-3.º andar, Freguesia de (…), Concelho de Caldas da Rainha, Distrito de Leiria inscrito na matriz, sob o Artigo (…), que se compõe de 4 divisões, cozinha, 2 casas de banho 3 varandas estendal e corredor, a confrontar do norte com Rua de (…) com lote 8, de nascente e poente com Ruas. Tem o valor patrimonial de € 30.671,70.
VERBA N.º 3 ½ Prédio urbano sito na Rua (…), n.º 33, Freguesia de (…), Concelho de Almeirim, Distrito de Santarém inscrito na matriz, sob o Artigo (…), que se compõe de casa de R/C e 1.º andar para habitação, tendo no R/C 2 divisões, com 25,86m2, 1 divisão com 11,22m2, WC e corredor com 9,12m2, dispensa com 2,97m2, hall de entrada com 8,20m2, garagem com 18,15m2, quintal com 244,48m2 e no 1.º andar 3 divisões com 58,80m2, vestíbulo e WC com 15,15m2, cozinha com 15,98, dispensa 1,32. Com o valor patrimonial de € 27.511,25.
BEM MOVEL
VERBA N.º 4 Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Renault Clio com a matrícula 32-97-(…).”
2. Em 24 de Junho de 2011, o bem identificado em 1. foi vendido a (…), com o NIF (…), pelo valor de € 9.400,00.

2. Direito.
2.1. Se o recorrente tem legitimidade para o inventário.
Adjetivando o direito de exigir a partilha que assiste a qualquer co-herdeiro (artº 2101º, nº 1, do CC), a lei processual confere legitimidade para requerer o inventário aos interessados directos na partilha, nestes se incluindo os herdeiros legitimários (artº 2157º, do CC) que são admitidos a intervir em todos os atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e implicar eventual redução das respetivas liberalidades (artº 4º, nº1, al. a) e nº 2, da Lei 23/2013, de 5/3, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário).
Mas casos existem em que o herdeiro legitimário pode deixar de ter interesse direto na partilha; a herança ou o quinhão hereditário podem ser alienados (artº 2124º, do CC) e a “alienação de uma sucessão aberta desenvolve ou prolonga, dalgum modo, o processo sucessório transferindo a outrem a posição de sucessor”[1].
É este o pressuposto da decisão da Exmª Notária, bem como da decisão recorrida que a confirmou; o direito e ação do Recorrente na herança de seu pai foi alienado em execução fiscal e transmitida assim a posição sucessória do Recorrente, este não tem qualquer interesse na partilha dos bens que constituem o acervo hereditário daquele, surgindo no respetivo inventário como parte ilegítima.
O recurso não questiona estas regras de direito e circunscreve a divergência com o decidido, tão só, ao âmbito da alienação que teve lugar na execução fiscal; enquanto a decisão recorrida considera que a execução fiscal teve por efeito a alienação do quinhão hereditário do Recorrente, o direito e ação que lhe correspondia na herança aberta por óbito de seu pai, este defende que a venda executiva incidiu apenas sobre 3/16 dos bens móveis e imóveis discriminados no auto de penhora não agregando, assim, o universo de todos os bens da herança, permanecendo incólume o seu direito a quinhoar os bens remanescentes, ou seja, os bens da herança não incluídos no auto de penhora que a relação de bens junta ao inventário documenta existirem.
E estas dúvidas são, a nosso ver, inteiramente justificadas face aos embaraços que a realizada penhora e venda em execução fiscal suscitam.
A venda em execução constitui um negócio jurídico causal da alienação do quinhão hereditário, mas a penhora não pode incidir sobre bens compreendidos no património comum ou sobre uma fração de qualquer deles (artº 743º, nº 1, do CPC); o que se compreende, sucedendo o herdeiro na totalidade ou numa quota ideal do património do falecido (artº 2030º, nº 2, do CC), a alienação, antes da partilha, de bens concretos da herança, na execução movida contra um dos herdeiros, comporta uma alienação de bens alheios, porque tais bens pertencem à herança e não aos herdeiros singularmente considerados (artº 2091º, nº 1, do CC).
O auto de penhora e a venda em execução, a que se reportam os pontos 1 e 2 dos factos provados, ignoram abertamente esta disciplina. Pondo de parte, a determinação da forma à partilha a que procede, deslocada ainda que houvesse respeitado a lei – e não é o caso, pois a quota do Recorrente na herança de seu pai, como apontado pela Exmª Notária, é de 3/32 avos e não de 3/16 avos como se declarou penhorar – não podia a execução fiscal penhorar bens que não pertenciam ao executado, como é o caso de bens concretos e frações de bens da herança ainda não partilhada e muito menos proceder à venda de bens que não penhorou (venda do bem – e não do direito – penhorado em 1, quando se mostra penhorado apenas e na lógica do auto de penhora 3/16 do mesmo).
Dir-se-á que estas questões deveriam ter sido oportunamente suscitadas nos autos de execução e aí resolvidas, que a inacção oportuna dos interessados sanou as apontadas ilegalidades e que, regular ou irregular, a venda do quinhão hereditário do Recorrente na acção executiva tem por efeito a transmissão da posição sucessória do Recorrente na herança de seu pai com a consequente falta de legitimidade para o inventário.
Equação admissível, caso a venda na execução houvesse tido por objeto a alienação do quinhão hereditário do Recorrente, como afirmado pela decisão recorrida e pela decisão notarial que confirmou, mas não cremos poder assentar neste ponto.
A alienação não teve por objeto o quinhão hereditário do Recorrente na herança de seu pai, mas tão só dum concreto bem (ponto 2 dos factos provados) que ao Recorrente, então executado, não pertencia, o que constitui, a nosso ver, causa da anulação da venda ou, na terminologia da lei, caso em que a venda fica sem efeito (artº 839º, nº 1, al. d), do CPC) e significa, para os autos, que o quinhão hereditário do Recorrente foi penhorado na execução (não sem esforço atenta a discriminação concreta de bens no auto da penhora) mas não foi alienado, porque a venda incidiu, tão só, sobre o concreto bem já anotado e não sobre o direito e ação do Recorrente na herança de seu pai.
Resta-nos assim a penhora do quinhão hereditário, enquanto ato preparatória da venda executiva, mas a penhora não constitui um ato de alienação, constitui um ato de oneração insusceptível de operar, em si, a transmissão da posição sucessória do Recorrente.
Em conclusão, só a transmissão da posição sucessória obsta ao direito do herdeiro de exigir a partilha e de requerer o inventário, a penhora do quinhão hereditário constitui um mero ato de oneração que não afecta aquele direito.
No caso dos autos, a venda executiva não teve por objeto o quinhão hereditário do Recorrente e sendo esta inverificada razão o fundamento da sua declarada ilegitimidade para o inventário, revoga-se a decisão recorrida e, em consequência, determina-se a prossecução dos autos de inventário, sem prejuízo de ser conhecida qualquer outra questão que a tal obste e não tenha, ainda, sido objeto de apreciação na decisão sob recurso.
Procede o recurso.

2.3. Custas.

Procedendo o recurso com a inexistência de qualquer oposição, as custas serão suportadas por quem as houver que pagar a final (artº 527º, nº 1, última parte, do CPC).

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento dos autos de inventário, sem prejuízo de ser conhecida qualquer outra questão que a tal obste e não tenha, ainda, sido objeto de apreciação na decisão sob recurso.
Custas por quem as houver que pagar a final.
Évora, 21/12/2017
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
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[1] Galvão Telles, Direito das Sucessões, 1978, 114.