Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
144/12.6TBTVR.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 06/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Reconhecido a uma demandante, por sentença, o direito às prestações sociais, em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, a decisão antes referida tem eficácia em relação a terceiros, no caso de nova acção, com idêntico fundamento, interposta por outra requerente, tendo como referência o mesmo beneficiário.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Apelação nº 144/12.6 TBTVR.E1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

(…), divorciada, residente na rua das (…), nº (…), Tavira, intentou a presente ação, na forma de processo comum, contra o Instituto de Segurança Social (ISS)/CNP, com sede no Campo Grande, nº 6, Lisboa, pedindo que lhe seja reconhecido o direito a uma pensão de sobrevivência mensal, para tanto alegando factos que, em seu critério, conduzem à sua procedência, a qual foi julgada improcedente.


Inconformada com a sentença, recorreu a demandante, culminando as suas alegações, com as seguintes “conclusões”:

- Vem a Autora recorrer da sentença, que não reconheceu a sua união de facto com o falecido (…), absolvendo a Ré do pedido;

- Para ter acesso à pensão de sobrevivência, a Autora não tem que provar, em Tribunal, que precisa do dinheiro para as despesas básicas, com alimentação, higiene e saúde; o que é necessário é demonstrar que vivia em união de facto, com o “de cujus”;

- É, para o efeito, admitida prova testemunhal;

- Pelo que não se entende como o Tribunal, apesar de tudo indicar o contrário, ter considerado que a Autora não havia apresentado prova do direito de que se arroga;

- Efetuada a análise da prova produzida, incluindo os depoimentos prestados em audiência e os documentos juntos, entende-se, ao invés, ter o Tribunal recorrido, apreciando-a, incorretamente, fixado por forma não criteriosa a matéria em causa, baseado e influenciado exclusivamente por depoimentos inconclusivos, parciais, subjetivos;

- Pois não considerou de todo a relevância das testemunhas apresentadas pela Autora que objetivamente conheciam o casal como marido e mulher e que não apresentam nenhum grau de proximidade com o mesmo, pelo que o seu depoimento sempre seria credível, porque imparcial e coerente;

- E a título de exemplo refere-se o depoimento de (…);

- (…), testemunha também isenta de parcialidade e subjetivismo, afirmou que (…);

- Ora, em clara contradição com os depoimentos supra descritos, são os depoimentos das testemunhas inquiridas oficiosamente pelo tribunal que negaram categoricamente que o “de cujus” tenha vivido, como marido e mulher, nos últimos dois anos que precederam a sua morte, com a Autora;

- Na verdade, estes últimos testemunhos sempre seriam de duvidar, na medida em que todas as pessoas inquiridas apresentavam algum grau de parentesco ou amizade com a outra pessoa que reclama ter vivido também com o falecido; assim, poderemos sempre dizer que estes são testemunhos parciais, carecidos de objetivismo, independência e verdade, conclusões estas a que facilmente se chega segundo as regras da experiência comum;

- Trata-se neste caso, e nunca melhor dizendo, da palavra da Autora contra a palavra da Ré, sendo que esta última jamais logrou fazer prova da falsidade do vertido na petição inicial;

- Da prova produzida, segundo a nossa perspetiva, ficou provado que o falecido viveu nos seus últimos 2 anos com a Autora, tendo, no entanto, falecido no rés-do-chão onde habita a filha, por aquele imóvel oferecer melhores condições;

- Assim, os concretos pontos de facto que foram dados como não provados, mas que, no entender da recorrente, se encontram demonstrados são os pontos 1, 2 e 3 da matéria de facto não provada, impondo decisão diversa da que foi proferida;

- Ao Tribunal corresponde o dever de ónus de apreciação precisa e específica, que sobre si recai, da apreciação da matéria de facto impugnada, com o cumprimento cabal do disposto no artigo 662.º, nº 2, do Código de Processo Civil; pretende, por isso, a apelante a reapreciação da matéria de facto sobre a qual assentou a decisão;

- A sentença deve ser revogada, por provados que se encontram os factos articulados, condenando-se, assim, a Ré no pedido.


Inexistem contra-alegações.

Face às conclusões das alegações, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: a) o invocado erro na apreciação da prova, que determine a alteração das respostas negativas dadas aos factos constantes dos pontos 1 [1], 2 [2], e 3 [3], dos factos “não provados”; b) o alegado erro na aplicação do direito aos factos assentes.


Foram colhidos os vistos legais.




Fundamentação


A - Os factos


Na sentença recorrida, foram considerados provados os seguintes factos:


1 – (…) faleceu, no dia 4 de Setembro de 2009, em Tavira, no estado de divorciado de (…), ora Autora;


2 - À data do falecimento, (…) era beneficiário da Segurança Social nº (…);


3 - No âmbito do processo nº …/11.0 TBTVR, do Tribunal Judicial de Tavira, em que é Autora (…) e Réu o Instituto da Segurança Social, I.P. – Caixa Nacional de Pensões, foi proferida sentença, em 3 de Dezembro de 2012, transitada em julgado, na qual se decidiu “declarar que a autora viveu em união de facto por mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges com (…) e que é titular das prestações por morte no âmbito dos regimes de Segurança Social”;


4 - A Autora recebe como único rendimento a quantia de € 366,47 mensais;


5 - O falecido auferia, à data da sua morte, uma pensão de € 208,00.


B - O direito


Quanto ao invocado erro na apreciação da prova, que determine a alteração das respostas negativas dadas aos factos constantes dos pontos 1, 2. 3, dos factos “não provados”


- “A quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer o facto seja positivo, quer negativo. À parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito” [4];


- “Se o juiz fica em dúvida sobre determinado facto, por não saber se ele ocorreu ou não, o non liquet do julgador converte-se, na sequência da diretiva traçada pelo nº 1 do artigo 8º. do Código Civil, num liquet contra parte a quem incumbe o ónus da prova” [5];


- “A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição; para que o segundo grau reaprecie a prova, não basta a alegação por banda dos recorrentes em sede de recurso de apelação que houve erro manifesto de julgamento e por deficiência na apreciação da matéria de facto devendo ser indicados quais os pontos de facto que no seu entender mereciam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração daquela resposta” [6];


-“No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto (…), a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova” [7];


- “A prova, no processo, pode (…) definir-se como a atividade tendente a criar no espírito do juiz a convicção (certeza subjetiva) da realidade de um facto. Para que haja prova é essencial esse grau especial de convicção, traduzido na certeza subjectiva” [8].


Quanto ao alegado erro na aplicação do direito aos factos


- O membro sobrevivo da união de facto beneficia, independentemente da necessidade de alimentos, de proteção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social [9];


- “A alteração que a Lei nº 23/2010, de 30 de agosto, introduziu na Lei nº 7/2001, de 11 de maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime” [10].


C- Aplicação do direito aos factos


Quanto ao invocado erro na apreciação da prova, que determine a alteração das respostas negativas dadas aos factos constantes dos pontos 1, 2, 3, dos factos “não provados”


A recorrente (…) fundamenta a impugnação das respostas negativas aos factos antes referidos (não provados) nos depoimentos das testemunhas (…), (…), (…) e (…), com especial relevo para este último.


No que concerne a este depoimento, importa realçar que esta testemunha – empreiteiro de construção civil, que fez trabalhos na casa da recorrente – não conseguiu localizar, no tempo, quando levou a cabo os ditos trabalhos, solicitado e pagos, quer pelo falecido Fernando Brito, quer pela mencionada demandante / recorrente.


Por seu turno, a testemunha (…) – mecânico de profissão, que consertou o veículo automóvel da recorrente (…), por, nomeadamente, “não pegar”, quando chovia – limitou-se a referir, com relevo para a matéria de facto em causa, que viu o falecido (…), “duas ou, no máximo, três vezes” na residência daquela, nas ocasiões em que consertou a referida viatura, não sendo capaz de indicar, com a suficiente precisão, as datas em que os ditos consertos aconteceram, que apenas foram solicitados e pagos, pela dita recorrente.


A testemunha (…) – amiga da Autora – referiu, por seu lado, que, quando ia a casa da recorrente (…), o falecido (…) “estava lá”, acrescentando que chegou a vê-los “na rua” e que “iam ao café juntos”, em alturas que não localizou, no tempo.


Do depoimento da testemunha (…) – também amiga da demandante, que, por isso, frequentava a sua casa – importa salientar a “linda relação” que os referenciados mantinham, tendo-os vistos, nas vezes em que os visitou, na parte da manhã, em datas também não precisas, com roupa própria de quem havia saído da cama.


Em síntese: para além de não ter sido feita qualquer referência à necessidade de alimentos, por parte da recorrente (…), as vezes em que esta e o falecido (…) foram vistos juntos não foram, suficientemente localizadas no tempo, nomeadamente, nos dois anos que precederam a morte deste.


Ora, este non liquet é reforçado não só pela circunstância de os referenciados terem sido casados um como outro, até 1990 – ano que se divorciaram –, como também pelo facto de as testemunhas (…) – vizinha do falecido – e (…) – empresário, amigo do (…) e seu patrão, por algum tempo – terem referido que os últimos 15 anos daquele, mais ou menos, foram passados na companhia de (…), como se marido e mulher fossem.


Competindo à recorrente (…) a prova dos factos em causa, este non liquet converte-se num liquet contra si.


Não tem, pois, esta Relação a convicção (certeza subjetiva) da realidade de tais factos.


Assim sendo, improcede esta parte da apelação.


Quanto ao alegado erro na aplicação do direito aos factos


O insucesso da recorrente (…), relativamente ao segmento da apelação antes decidido, conduz à improcedência do pedido, por não se encontrar provada a verificação de uma união de facto, com mais de dois anos, entre a referenciada e o falecido (…).


Porém, mesmo que tivesse tido êxito na prova deste facto, o pedido não podia ser considerado, na medida em que, por se tratar de uma relação jurídica cujo “conteúdo é precisamente o mesmo da que foi objecto” da acção nº …/11.0 TBTVR, a sentença nesta proferida “tem eficácia em relação a terceiros” [11].


Decisão


Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter a sentença recorrida.


Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficia.


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Évora, 25 de Junho de 2015


Sílvio José Teixeira de Sousa


Rui Machado e Moura


Maria da Conceição Ferreira


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[1] “A Autora viveu com o falecido em comunhão de mesa, cama e habitação durante mais de dois anos.”
[2] “Tiveram vida em comum, coabitando a mesma casa, pernoitando juntos, relacionando-se sexualmente por mais de dois anos”.
[3] “A Autora tem absoluta necessidade de alimentos para fazer face às suas necessidades: como alimentação, saúde, vestuário e demais despesas domésticas”.
[4] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, pág. 452, e artigo 342º., nºs 1 e 2 do Código Civil.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, pág. 447.
[6] Acórdão do STJ, de 2 de Dezembro de 2013 (processo nº 34/11.0 TBPNL.L1.S1), in www.dgsi.pt..
[7] Acórdão do STJ de 14 de Fevereiro de 2012 (processo nº 6823/09.3 TBBRG.G1.S1.), in www.dgsi.pt. (no mesmo sentido, os acórdãos do STJ, de 16 de Outubro de 2012 (processo nº 649/04.2 TBPDL.L1.S1), 6 de Julho de 2011 (processo nº 450/04.3 TCLRS.L1.S1), 6 de Julho de 2011 (processo nº 645/05.2 TBVCD.P1.S1), 24 de Maio de 2011 (processo nº 376/2002.E1.S1), 2 de Março de 2011 (processo nº 1675/06.2 TBPRD.P1.S1), 16 de Dezembro de 2010 (processo nº 2410/06.1 TBLLE.E1.S1) e 28 de Maio de 2009 (processo nº 4303/05.0 TBTVD.S1), no mesmo sítio), e artigo 662.º, nº 1, do Código de Processo Civil).
[8] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 436.
[9] Artigos 3º., nº 1, e) e 6º, nº 1 da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio.
[10] Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 15 de Março de 2012, in Diário da República, 1ª Série, nº 10 de 15 de Janeiro de 2013.
[11] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, pág. 160.