Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
992/16.8PAOLG-C.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
EXECUÇÃO DO CRIME
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Nos casos em que a execução do crime se prolonga no tempo, o momento temporal relevante a considerar para efeitos de cúmulo jurídico é o da data da cessação da consumação ou o da prática do último ato.

-De outro lado, o momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes que impõe a realização de cúmulo jurídico é o do trânsito em julgado da primeira condenação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal de Faro, Juiz 5, correu termos o Processo Comum Coletivo n.º 992/16.8PAOLG, no qual se decidiu – por decisão de 14.04.2020 – indeferir o requerimento do arguido NMRP, nos autos melhor identificado, onde pedia que se procedesse ao cúmulo jurídico da pena aplicada nos presentes autos com as penas que lhe foram impostas no Processo 71/12.7JAFAR.

---

2. Inconformado com tal decisão, recorreu o arguido da mesma, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

1 - Tendo sido notificado, no passado dia 16 de abril do corrente ano, do despacho proferido no âmbito do Processo n.º 992/16.8PAOLH, que correu termos junto do Juiz 5 do Juízo Central Criminal de Faro, que indeferiu a realização do cúmulo jurídico solicitada por aquele, o arguido entende que, mediante uma análise cuidada e ponderada daquela decisão, a mesma é completamente absurda e não teve em conta vários aspetos que deveriam de ter sido tomados em conta.

2 - Tendo sido condenado, no âmbito daqueles, pelo crime de tráfico de estupefacientes, numa pena de 6 anos de prisão, com decisão proferida em 16 de abril de 2018, foi aquele também condenado numa pena de 8 anos e 10 meses de prisão no âmbito do Processo n.º 71/12.7JAFAR, que correu termos no âmbito do Juiz 2 do Juízo Central Criminal de Faro.

3 – A decisão condenatória proferida no âmbito desse processo foi proferida a 13 de janeiro de 2017 e os factos praticados no âmbito do processo do tribunal a quo foram praticados a 07 de dezembro de 2016, portanto, antes do dia 13 de Janeiro de 2017, data em que foi proferida a decisão que condenou o recorrente a 8 anos e 10 meses de prisão,

4. - Perante isso o ora recorrente requereu junto do tribunal a quo o respetivo cúmulo jurídico, uma vez que os factos praticados consumaram-se apenas num único acto, quando na decisão recorrida se entendeu – e mal - que os factos que originaram os referidos autos foram praticados entre 07/12/2016 e 22/05/2017, o que é completamente falso, pois que foram apenas praticados no dia 07 de dezembro de 2016, consumaram-se nesse mesmo dia, não houve continuação dos mesmos, cessaram naquela data.

5 - Além do mais, o recorrente deu entrada no estabelecimento prisional onde se encontra a 20 de abril de 2017, pelo que jamais poderia continuar a praticar os referidos factos até 22 de maio daquele ano, uma vez que estava privado da liberdade.

6 – Logo, com essa decisão prejudicou severamente o recorrente, uma vez que aquele tem direito ao cúmulo na integra, e tendo direito ao mesmo, o mesmo tem que ser levado a cabo por aquele tribunal; tratou-se de uma má interpretação daqueles autos por aquele tribunal.

7 - Assim sendo, em face do que se foi expondo ao longo do presente recurso, entende-se que há todas as condições legais para que o cúmulo jurídico requerido seja levado a cabo, com a revogação expressa do despacho do tribunal a quo, que deve ser alterado.

---

3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:

1 - Por despacho proferido a fls. 2382 dos autos à margem supra referenciados, foi decidido, pelo Mm.º Juiz titular do mesmo, não efetuar o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido, ora recorrente, Nelson Pereira, no presente processo e no Processo Comum Coletivo n.º 71/12.7 JAFAR, decisão essa que não merece qualquer censura, já que o crime de tráfico de estupefacientes objeto do presente processo e os crimes objeto dos autos n.º 71/12.7JAFAR não se encontram em concurso entre si – tendo em conta o disposto no artigo 77 n.º 1 do Código Penal – pois que os factos objeto dos presentes autos foram praticados após o trânsito em julgado da condenação proferida naquele processo.

2 - Com efeito, os atos de execução do crime de tráfico de estupefacientes objeto dos presentes autos ocorreram entre os dias 7 de dezembro de 2016 e 22 de maio de 2017, data esta em que se considera que o mesmo crime de execução continuada se consumou, sendo que esta mesma data – 22/05/2017 – é posterior à data em que a decisão proferida no Processo n.º 71/12.7 JAFAR transitou em julgado (13/01/2017), mostrando-se, dessa forma, perfeitamente justificada a decisão, tomada no despacho ora recorrido, de não proceder ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido ora recorrente nos presentes autos e no Processo n.º 71/12.7 JAFAR.

3 - Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido NMRP, confirmando-se a douta decisão recorrida nos seus precisos termos.

4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (parecer de 7.06.2020), dizendo, em síntese:

- Como resulta do acórdão da Relação de Coimbra, de 2017-10-11, Recurso n.º 840/11.5JACBR-B.C1, in www.dgsi.pt:

“I - O que releva para efeitos da verificação dos pressupostos da realização do cúmulo jurídico de penas, não é a [data] da condenação e trânsito desta mas sim da data da ocorrência dos factos. O elemento preponderante e determinante a considerar é a data da prática do crime, da sua consumação.

III - Nos crimes instantâneos a consumação coincide com a prática do ato criminoso e esgota-se neste «verificado o evento, verificada está a prática definitiva do mesmo», nos demais a execução prolonga-se no tempo e o momento temporal relevante a considerar é o da data da cessação da consumação ou o da prática do último ato.

IV - O momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes que impõe a realização de cúmulo jurídico, logo a aplicação de uma pena única, é o do trânsito em julgado da primeira condenação.

V - Porque quando transitou a sentença proferida no processo… ainda a arguida não tinha praticado todos os atos que constituem o objeto destes autos, não se verifica o pressuposto previsto no art.º 78 n.º 1 do CP e, por isso, as penas parcelares aplicadas em cada um dos dois processos não podem ser juridicamente cumuladas”.

- A pena aplicada neste processo – e que o arguido pretende seja englobada no cúmulo – “não respeita apenas ao primeiro ato de tráfico cometido (em 7-12-2016), mas à totalidade dos atos praticados no período compreendido entre 7-12-2016 e 22-5-2017, ou seja, a toda a atividade que desenvolveu naquele lapso de tempo… não havendo assim lugar a cúmulo jurídico, mas a uma situação de sucessão (de cumprimento) de penas”.

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do Código de Processo Penal).

---

6. Foram dados como provados, com base na análise do Certificado de Registo Criminal do arguido e no acórdão proferido nos presentes autos, que o arguido foi condenado:

Processo factos decisão crimes penas Obs.

1 3/05.9 GALLE 21/10/2005 04/03/2010 tráfico 5 a 6 m

2 110/09.9 PFCSC 20/09/2010 Resist. Cond. ilegal 8 m subst. multa Ext.

3 554/08.3 GCFAR 21/08/2008 07/03/2012 Arma 5 a 10 m (em cumulo c\ 1 Ext.

4 1748/14.8 GBABF 14/08/2014 21/01/2015 Cond. ilegal 180 multa

5 71/12.7 JAFAR 10/05/2014 e 06/04/2013 13/01/2017 Roubo Tráfico 8 a 10 m

6 992/16.8 PAOLH 07/12/2016 e 22/05/2017 16/04/2018 Tráfico 6 a

O acórdão condenatório proferido no Processo 71/12.7JAFAR transitou em julgado no dia 13/01/2017 e o crime pelo qual o arguido foi condenado nos presentes autos foi cometido entre os dias 07/12/2016 (antes, pois, do trânsito em julgado da supra referida decisão final condenatória) e 22/05/2017.

---

7. A motivação do recuso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Tais conclusões – porque delimitam o âmbito do recurso, como é pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores – devem ser claras e precisas, de modo a que não se suscitem dúvidas, quer quanto às razões da divergência do recorrente relativamente à decisão recorrida, quer quanto às questões que pretende ver apreciadas/conhecidas pelo tribunal superior.

Atentas as conclusões da motivação do recurso apresentado pelo arguido, assim consideradas, delas se extrai uma única questão colocada à apreciação deste tribunal no presente recurso: é a de saber se os crimes pelos quais o arguido foi condenado no Processo 71/12.7JAFAR (transitado em julgado no dia 13/01/2017) e nos presentes autos - praticado entre os dias 07/12/2016 (antes, pois, do trânsito em julgado da supra referida decisão final condenatória) e 22/05/2017 estão numa relação de concurso e, consequentemente, se deve proceder-se ao cúmulo jurídico das penas aplicadas em ambos os processos.

Esta é, pois, a questão a decidir.

---

7.1. Na decisão recorrida entendeu-se que não, pois que – escreveu-se – “o crime cometido nos presentes autos, pese embora se tenha iniciado antes do trânsito em julgado do acórdão proferido no Processo 71/12.7JAFAR (ocorrido no dia 13/01/2017), continuou a ser executado para além desta data.

Com efeito o crime de tráfico cometido pelo arguido no âmbito dos presentes autos não se consumou num ato único, mas antes em vários atos praticados ao longo do período supra referido.

Nestes casos em que a execução do crime prolonga-se no tempo, o momento temporal relevante a considerar para efeitos de cúmulo jurídico é o da data da cessação da consumação ou o da prática do último ato.

De outro lado, o momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes que impõe a realização de cúmulo jurídico é o do trânsito em julgado da primeira condenação.

Verifica-se, pois, que o crime cometido pelo arguido nos presentes autos foi cometido após o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida no Processo 71/12.7JAFAR”.

7.2. Contrariamente ao decidido, entende o arguido que assim não é, pois que “é completamente falso” que os factos praticados que originaram os presentes autos tenham sido praticados entre os dias 7.12.2016 e 22.05.2017, pois que “foram apenas praticados no dia 07 de dezembro de 2016… o ora recorrente deu entrada no estabelecimento prisional… a 20 de Abril de 2017”, pelo que “jamais poderia continuar a praticar os referidos factos até 22 de maio… e uma vez que estava privado da liberdade”.

7.3. Consta da matéria de facto constante do acórdão proferido no Proc. 992/16.8PAOLG, com data de 15.03.2018, transitado em julgado, além do mais que aqui não releva:

1) Que, “pelo menos desde dezembro de 2016 e até 22 de maio de 2017, na cidade de ……………….., os arguidos NMRP e V… dedicaram-se à venda de heroína e cocaína a consumidores que os procuravam para o efeito”;

2) Que:

- “no dia 9 de março de 2017, pelas 15.15h, no Bairro do ……………, em …………….., o arguido NMRP vendeu a B dois pacotes de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 0,139 gramas…”;

- “no dia 13 de março de 2017, pelas 15.07 horas, no Bairro do …………., em ………….., o arguido NMRP vendeu a O… um pacote de heroína com o peso líquido de 0,262 gramas…”;

- “no dia 14 de março de 2017, pelas 15.28 horas, no Bairro do ……….., em …………., os arguidos NMRP e V… venderam a MR… um pacote de heroína com o peso líquido de 0,267 gramas…”;

3) Que no período referido em 1 (pelo menos desde dezembro de 2016 e até 22 de maio de 2017):

- “os arguidos NMRP e VPM, em diversas ocasiões, “… cederam cocaína a FJGB”;

- o arguido NMRP, em diversas ocasiões, “… vendeu cocaína… a DAL”;

- os arguidos N e V “venderam diariamente, por diversas vezes, heroína e cocaína a consumidores de tais substâncias (em número não apurado, mas próximo de 50)”.

7.4. O acórdão condenatório proferido nos presentes autos transitou em julgado em 16.04.2018, pelo que a matéria de facto nele dada como provada – que esteve subjacente à condenação do arguido – não pode agora ser questionada, pois que não é este o meio e o local para a questionar; trata-se de matéria definitivamente assente, imodificável, por força do caso julgado.

Dela resulta que a conduta do arguido – integradora do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado - se prolongou “pelo menos desde dezembro de 2016 e até 22 de maio de 2017”, portanto, muito para além da data do trânsito em julgado da decisão proferida no Proc. 71/12.7JAFAR, que transitou em julgado em 13.01.2017.

E como bem se escreveu na decisão recorrida – relativamente ao que o arguido nada aduziu que permita questionar – continuando a prática do crime de tráfico para além da data do trânsito em julgado da decisão proferida no Proc. 71/12.7JAFAR, através da prática de novos atos de execução que se prolongaram para além dessa data (que, aliás, acima se concretizaram, alguns deles no mês de março de 2017), “o momento temporal relevante a considerar para efeitos de cúmulo jurídico é o da data da cessação da consumação ou o da prática do último ato… o momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes que impõe a realização de cúmulo jurídico é o do trânsito em julgado da primeira condenação”.

Em abono desta posição – para além do acórdão acima identificado - pode ver-se também acórdão do STJ de 25.10.2017, Proc. 3/12.2GAAMT.1.S1, citado no acórdão do mesmo tribunal de 26.06.2019, Proc. 206/16.0PALGS.S2 (onde se defendeu aquela posição), in www.dgsi.pt, onde se decidiu, em situação idêntica à dos presentes autos, que a “data relevante a ponderar para a existência de uma relação de concurso” é a data em que cessou a atividade de tráfico; esta decisão – escreve-se naquele acórdão (de 25.10.2017) – é a que se afigura “mais conforme com a natureza do crime habitual em que um crime de tráfico de estupefacientes em trato sucessivo se pode inserir. Podemos, ademais, convocar a regra prevista no artigo 119 n.º 2 alínea b) do Código Penal, quanto ao início do prazo da prescrição do procedimento criminal nos crimes continuados e nos crimes habituais em que o prazo só corre «desde o dia da prática do último ato»”.

E é a que resulta do disposto nos art.ºs 77 n.º 1, ex vi art.º 78 n.º 1, ambos do CP, que define como limite temporal da existência do concurso de crimes e, consequentemente, do cúmulo jurídico das penas aplicadas aos vários crimes o trânsito em julgado da primeira decisão condenatória.

Não estamos, em face do que se deixa dito, perante uma situação de concurso de crimes, tal como se dispõe no art.º 77 n.º 1 do CP, pelo que carece de fundamento a pretendida realização do cúmulo jurídico das penas aplicadas nos presentes autos e no Proc. 71/12.7JAFAR e, consequentemente, o recurso.

---

8. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC`s (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP).

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, / /

(Alberto João Borges)

(Maria Fernanda Pereira Palma)